Etiqueta: Mariana Santos Martins

  • Madeira: crónica dos materiais

    Madeira: crónica dos materiais

    Todos nós temos caixas, certo? Alguma espécie de caixa, de algum tipo de forma, com algum tipo de conteúdo, mesmo que seja o vazio. (Meu coração é uma caixa de madeira.)

    Numa caixa de madeira, os sulcos acumulam-se, num cheiro de tempo que passou, que se agarra às coisas, agarra-se aos tecidos desde quando ainda lá guardávamos o enxoval, algodão com cheiro de floresta cortada. (E já dizia o poeta que era como um cofre que não se pode fechar de cheio.)

    photo of brown wood slab

    Numa caixa de música, pequenos mecanismos rodam em dentes, suavemente percorrendo uma fita (de tempo), a mordiscar vazios para produzir melodias (pequeninas), muitas notas de música a reverberar desde os primeiros dedos que as marcaram na História do Mundo. (Meu coração é uma caixa cheia de gente.)

    Numa caixa de cordas esticadas, uma guitarra nasce, ou nasce um piano (e têm gente dentro), ou mais instrumentos ainda, que sopram cores dentro dos nossos ouvidos, e as moléculas de água sacudindo-se. (E já dizia alguém que nós somos as nossas coisas, e diria eu, ou as pessoas, que trazemos coladas à pele dentro de nós.)

    Numa caixa com portas e janelas nasce a casa, e se nos encostamos à madeira sentimos a temperatura que temos no corpo, encolhemos e esticamos com ela, rangemos à medida que o dia nos comprime, e dilata, berramos num estalido, abanamos com o vento, agarramo-nos à terra. (Eu sou as pessoas que me tocam, vocês todos, minhas palavras são vossas e em nada mais me fico sendo, do que uma criança sentada de pernas cruzadas e o livro aberto sobre a cabeça como um telhado que se faz chapéu e também é feito de árvores.)

    brown tree log on green grass field near lake during daytime

    Madeira e tempo são árvores, são muletas, são cajados, são martelos, são música, são a tua casa e a minha, timidamente a penetrar o céu e sentadas de pernas cruzadas com um livro a fazer de telhado. São mortos vivos de pé, na nossa vida e na seguinte, desejosos de repousar os ossos na terra para sentir as raízes, tanto em cima como em baixo.

    O boneco de madeira, de nariz em crescendo, porque conta mentiras, porque o fizeram viver numa fábula. Quantas vezes a criança o viu apertar os olhos e contar muitas patranhas para tocar com a ponta do nariz na ponta mais alta de uma árvore. E que mal tinha isso? Tudo na busca da fada azul.

    Quando o carpinteiro, essa espécie em vias de extinção, apadrinhou e esculpiu a mesa e a cadeira (para que nos sentássemos), acarinhou e oleou o armário (para que nos guardássemos), saberia ele, porventura, que o tempo e a arte seriam servidos enlatados (“lavados com champô”)?

    brown wooden table with white printer papers

    Esfreguem pauzinhos para fazer fogo; se o vento estiver de feição, poderemos lamber montes em braseiro desmedido. Ou deixem submersa a madeira, a inchar e a chupar a água que nos deixa verdes. Quando o musgo crescer, saberemos então onde fica o norte. E já não nos perdemos na mata.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vidro: crónica dos materiais

    Vidro: crónica dos materiais

    Os primeiros sinais de magia dos homens (ouves os sinais?) aconteceram com uma fogueira (claro, o fogo, sempre o fogo) na praia, muitos mil anos antes de nós (eu hoje sou eu) sermos nós próprios, quando porventura éramos até outras pessoas noutros sítios ou, simplesmente, éter ou átomos à deriva noutra galáxia (o que é a alma?).

    Acendendo uma fogueira na areia, com conchas que o mar nos trouxe (ouviste o mar dentro delas?), com o calor enorme e exactamente necessário a exercer a pressão desejada, nasceu a transparência. Nasceu o vidro (que magia!)

    person holding grey lit torch

    Não está lá mas está. Deixa ver mas impede de passar. Que fortuna! (Será?)

    Com o tempo as nossas cavernas, construídas, puderam abrir os olhos (são o espelho da tua alma?), arregalar o horizonte, sem risco de tanto frio gélido, ou que a tempestade nos engolisse as coisas (somos as nossas coisas?). Janelas nasceram com o vidro, onde antes apenas existiam vigias. O rosto fortificado das pedras que envolviam os nossos abrigos deixaram de ser esquimós e puderam engolir o mundo (mas quem está a ver também pode ser visto…)

    – Isto não tem luz nenhuma! Eu quero mais janelas! E maiores! Quero muitas janelas! Era assim que eu faria a minha casa!

    Mulheres e crianças, presas dentro de casas gaiola, querem muitas janelas. E muito grandes (podes ver mas não podes passar). As paredes escancararam-se ao longo do tempo. Em vez de olhos, passaram a ter bocarras abertas, penduradas entre vomitar a privacidade de quem as habita e o engolir um mundo de luzes que as rodeia.

    (Miquido…)

    Free stock photo of architecture, building, curtain

    Montras. E janelas (e postigos). Passamos de pássaros em gaiolas a peixes em aquários.

    A minha casa é o Porto e tem ombros de granito, as janelas vão do chão ao tecto à medida da minha anca com a tua, para eu poder passar por elas e fugir sem ter de abrir a porta. Que estais a fazer à minha casa? O fogo vem aí?

    Os vidros estilhaçaram assim as nossas vidas. Deram-nos vãos com película de água do mar cristalizada. Deram-nos lentes de óculos, binóculos, telescópios, máquinas fotográficas. Deram-nos ecrãs. Todos os ecrãs deste mundo para onde fomos agora viver, a habitar o reino de vidro frio onde encosto a cabeça para respirar melhor se o pânico me avassalar (deixa ver mas não deixa passar).

    Deram-nos copos, garrafas (um resguardo de chuveiro que desliza). Faróis. Lâmpadas (para encontrar o caminho e espantar os demónios). A luz! A luz! (Lusitânia.)

    Já viste tudo onde encontras vidro? Mas cuidado com a repetida dor crónica: do plástico que finge ser vidro como finge ser metal, também anda por aí!

    (Miquida…)

    Podemos escrever mensagens no vidro. Ou pelo menos enrolar pergaminhos numa garrafa que baloiça nas ondas do mar, meu queridominha querida, roubar palavras aqui e ali, transparentes a borbulhar na água.

    E, se eu me quiser enroscar ao teu lado e sentir aquele arrepio que une o pescoço ao ombro, quando se sente lá a respiração, prometo que o bafo vai ficar na janela para te deixar mensagens de amor que se apaguem num segundo.

    Um do lado de fora, outro do lado de dentro, o vidro deixa ver mas não deixa passar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Metal: crónica dos materiais

    Metal: crónica dos materiais

    Se em silêncio ouvimos aqueles eucaliptos, pinheiros e acácias, a sacudir gentilmente o cabelo com o vento, a folhagem… muito do sussurro dela se parece com as ondas do mar e quase que sentimos o sal a morder a bochecha junto aos molares.

    Como é que este som me lembra metal, se é tão mais fresco e azul?

    É porque também é leve, maleável. Mas o metal a ser feito é quente, sem dúvida, muito quente, nascido do fogo. Mas uma vez frio fica gelado, transformado em árvores petrificadas que seguram cabos de electricidade, espadas e adagas que usamos para sermos mais pontiagudos.

    aerial view of forest

    Se nos raspamos em metal, mesmo frio, sabemos que vai queimar a pele. Arrancar a derme (a frio), mostrar-nos o inferno da dor que se espalha como mancha. (Até a água há-de enferrujar a chaga.)

    O varão de ferro com nervuras a falarem em código. O perfil de alumínio a pedir que se brinque, se construa, se encaixe. A folha de inox a soltar trovões inesperados. O cobre em fiapos, o ouro do estaleiro.

    O andaime, o seu som clincante, sempre sujo de cimento, sempre de mil cores (clin clanc), o vento a assobiar nos tubos como quem toca órgão.

    As dobradiças, as braçadeiras da caixa aberta da carrinha, o guarda-lamas a querer prevenir a torção do plástico com que decidiram começar a fazer as portas, a carroçaria, o habitáculo (o metal a finar-se porque pesa, é trabalho de músculo e não de laboratório e robot).

    Clin clanc

    birds flying over brown metal tower

    Pensa no sabor do metal e sentes a língua a retrair-se um pouco, um incómodo ligeiro. Pensa no cheiro do metal quando entras na oficina do serralheiro e sentes o azul quente entrar nos pulmões e tirar o ar. O ácido do estômago a trepar por ti acima numa azia (metálica) e sabes que se não vais usar fogo para esculpir, com um enorme escudo em frente ao rosto, mais vale saíres dali, ali não se vive em paz.

    Clin clanc

    A era do progresso já não sabe a metal. Está escondido, torcido, perdido ou invisível. A era do progresso sabe a plástico. Polímero. Mas isso é outra dor crónica.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Conveniente ‘in prima partem’

    Conveniente ‘in prima partem’

    É por nos ser conveniente seguir a rua principal (que não existe, não há rua principal, não há princípio) para chegar ao destino (para quem ainda o tenha), que viramos à esquerda, e não à direita (não é para mim).

    É por nos ser conveniente calar em vez de falar (não cantar) para baixar a cabeça (para quem ainda a tenha), que seguimos a vida empurrados pela multidão (a formiga no carreiro?)

    É por nos ser conveniente a conivência com o crime, com o pecado, com a imoralidade, com a falta de ética de invertebrados que tomaram conta dos edifícios, que não denunciamos (but not a snitch!), não nos pomos de pé e somos crescidinhos, adultos, rijos (isso é masculinidade tóxica? Mandem entrar os homens por favor!)

    white arrow painted on brick wall

    Um bufo.

    Um delator.

    Ou um whistleblower? (Precisam-se provas!)

    Se eles, supostos líderes, tivessem espinha, acordavam de manhã com dor nas costas por aquilo que fazem por si próprios contra nós, com ou sem falcão.

    Burgueses insuportavelmente viscosos, com cheiro de cremes por cima de plástico, animados por palhaços de calças de ganga com muita graça, muita graça mesmo, assim como senhoras bem compostas e bem apresentadas na mesinha brilhante da televisão. Que nojo.

    E como se atrevem a não se envergonharem pelo nojo que nos metem? Cábulas! Doninhas que deslizam junto às paredes com a cuequinha húmida por poder ir dar um suposto passeio de uma suposta fortuna de bitcoin. Que nojo.

    right arrow sign on wall

    Influenciadores que se fotografaram com a máscara personalizada, olhem para mim que lindo, fui ver os gorilas na bruma, fiz mais um teste, portei-me bem, é preciso portar bem. Que nojo.

    E pensam eles que a Madame Guilhotine não aparece ciclicamente na história para mudar o capítulo. Pensam eles que a cumplicidade com aquilo que é errado não tem dolo (é errado! É errado! Nem tudo pode ser relativo! Não podem eternamente escudarem-se na desculpa que não sabiam!)

    Anjinhos que dividiram câmaras e juntas de freguesia (uma p’ra ti outra p’ra mim), e nós não sabemos dos senhores que vieram bater à porta para pagar a viagem da diáspora no dia do voto?! Não sabíamos que era errado?! Não comentamos entre dentes e finos e tremoços o nojo da corja que andava a acolchoar o “seu”?

    – Ah mas vou aproveitar a viagem! (Não é para mim!)

    Não sabemos como funcionam os corredores das academias, as palmadinhas nas costas, as simpatias, as guerras e rixas internas, as lutas por poder que nada constroem, nada trabalham?! Estão espantados com o desemprego jovem? A desorientação dos miúdos? A “fuga de cérebros”?! Pois, mas quantos estiveram a dar-lhes a mão? Quantos estão com dor de costas a segurar uma instituição por arames? Quantos estão sobrecarregados com o trabalho das alminhas que estão a governar o “seu”?

    gray arrow left sign

    – Eu vou botar lá por ele! (Não é para mim!)

    Que guardem lá o avental! Que se abotoem lá com as lombadas de palavras que não são deles! Virão uma vez mais os propagandistas do ministério da verdade gritar “negacionista”, “chalupa”, “o que fazer com eles?” Ninguém viu nada, agora foi tudo contra, o assalto aconteceu à porta do prédio e as persianas desceram sorrateiramente assim que a polícia chegou. Ninguém viu nada…

    É por nos ser conveniente passar pelos pingos da chuva (não temos o chuço?) que seguimos pela rua principal para chegar mais depressa ao nosso destino e pousarmos a cabeça na almofada esta noite, dormir, na paz da falta de espinha.

    É por nos ser conveniente que temos a máquina de lavar roupa e a máquina de lavar louça, esses triunfos que emanciparam as mulheres.

    É por nos ser conveniente que pedimos conselho jurídico no hipermercado, em promoção da semana.

    a blurry photo of a woman's face

    É por nos ser conveniente que despachamos o chato do arquitecto, que mais a mais é caro, e só faz bonecos, e mais a mais a realidade virtual agora até trata disso.

    Conveniente.

    Segui pela rua principal, para chegar mais depressa ao destino, e avistei ao longe. Havia neve naquele campo, em pleno Julho, em pequenos tufos espalhados por entre a relva alta. Um campo murado e cercado por uma rede alta onde ovelhas se passeavam preguiçosamente.

    Ao aproximar-me vi que, afinal, a neve eram flores.

    Conveniente.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma folha amarrotada é uma construção

    Uma folha amarrotada é uma construção

    Esta coisa do viver tem corpo mas também tem tempo. Como esse corpo que vestimos, e que esticamos a pele nos ossos, à medida que nos pomos de pé na vida, à medida que esse vestido fica solto, amarrotado e enrugado, onde antes existiam dobras, e a velhice se instala e nos aninha. A pele transforma-se em peles, todas as que vestimos, remendamos e engomamos ao longo do tempo.

    Eventualmente, livres da pintura que pode esconder as brechas de terra seca que se abrem pela nossa cara, livres da roupagem que pode encobrir as manchas que povoam os nossos braços, livres para avistar os derrames que trepam pelas nossas pernas, vemos o tempo e não o corpo. Afinal, a quarta dimensão é visível e real, só que não conseguimos ver num momento só.

    naked woman lying on bed

    (E as curvas, as curvas onde alguém se pode aninhar em nós, onde nos podemos aninhar em alguém. Sento-me no teu colo e encaixo a cabeça na curva do teu pescoço e que descanso posso sentir, que alívio, que até o ar parece correr melhor dentro de nós se podemos repousar no carinho que um corpo encontra com outro corpo.)

    A casa que nos embrulha não é diferente. Também se cansa, também se estraga e envelhece. Também decai e morre, também sofre abandono e entranha o cheiro das nossas peles nas paredes. (Será que fico a cheirar à minha casa?)

    Tudo precisa de cuidado, de limpeza, de ternura, de um abraço. As coisas também. (As pessoas também.)

    Mas os anos passam, e nós não vemos o tempo, a não ser quando ele já passou. Pensamos sempre que é cedo de mais ou tarde de mais. Pensamos sempre que há um ontem, um hoje e um amanhã, e que o hoje é já tão enorme que não dá para olhar para ontem ou imaginar o amanhã.

    close-up photography of human hand

    Não dá para falar mais baixo sem que os sussurros se infiltrem nas portas até enferrujarem as dobradiças que rangem, grasnam em cada vaivém. E não dá para falar mais alto sem que as vibrações sacudam as janelas e lá fora vejam que almas querem fugir a bater as asas e voar. (Longe, longe desta casa vou encontrar a minha casa.)

    Cavar a terra para descobrir um projecto é como preparar o terreno para semear fruto desconhecido. Na verdade, não sabemos se estamos a pôr água de mais ou água de menos, não sabemos se quer sombra ou se quer luz. Só sabemos que, entre as ervas daninhas e o mundo a viver em volta, cada vez mais nos pavimentam os espaços vazios para que só passem as rodas, porque se passarem os pés sabemos que nos vamos queimar.

    Da folha vazia passamos à folha amarrotada, no fim talvez cheguemos a um origami preciosamente podado, que levou tempo a mimar, aparar e amparar.

    O mundo agora é feito de folhas amachucadas numa pressa. Amarfanhadas. Atiradas para o ar como quem tenta acertar no cesto dos papéis. Estas folhas sem desenho sempre existiram, espraiam-se pelas estevas desde sempre, agarradas o mais possível a ribeiros, que alimentavam campos, ou estão encavalitadas em buracos onde se conseguem enfiar nas cidades.

    person with green yellow and pink paint on hand

    Mas estas folhas de ontem tinham uma coisa que as folhas de hoje não tinham: tempo. Tinham demorado tempo, tinham custado tempo, tinham durado no tempo, tinham materiais feitos com o tempo infindável da natureza que sempre existia e sempre existirá.

    E isto, simplesmente isto, tinha uma dignidade que não conseguimos hoje ver nas placas pré-fabricadas empilhadas num armazém enorme, sujo de colas e venenos vários que nos apressamos em assemblar por cima da cabeça e respirar intensamente.

    Então, agora passamos por muita construção. Muita mais do que alguma vez a minha avó viu. A terra já não entra dentro da cozinha de casa, o Estado (essa entidade sobrenatural) até já tanto construiu, e tantos de nós saíram das barracas.

    Porque estais então tristes? Porque estais então cansados?

    two children sitting on ground with dried leaves

    Posso ser eu a desenhar o espaço da curva do pescoço onde deveis repousar a cabeça e respirar de alívio?

    Digam-lhes, não nos tirem as casas. Sejam elas como forem, não lhes chamem velhas nem tortas. Não nos digam que o nosso corpo polui o tempo, dêem-nos carinho, cuidado e limpeza. Criar demora, digam-lhes, aguardem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aqueles quatro legos coloridos são para eles um arranha-céus

    Aqueles quatro legos coloridos são para eles um arranha-céus


    Descobri por acaso a Simonetta Gatto, uma linda criatura nascida no Zimbabwe de pais italianos, nascida em movimento.

    Com a Simonetta, que escolho mencionar hoje sem a avisar previamente, descobri, de uma forma doce e singela que Bolonha, a cidade que desenhou novos contornos no mundo académico nas últimas décadas, era a Manhattan da Idade Média, tendo sido alcunhada de “La Turrita” graças a um fantástico skyline de mais de 150 torres, 22 sobreviventes aos nossos dias.

    Eram tantas, que o terreno até aluiu. Uma coisa que acontece quando muitos gigantes de egos bicudos se empilham demasiado próximo. Coisas de torres, portanto…

    Outras coisas próprias de torres é servirem por exemplo para as treparmos, nem que seja com ideias mais revolucionárias. (Toca o sino!)

    Foi o caso de Galileu que subiu uma das torres, ainda hoje viva, para cismar em atirar diferentes objectos de lá de cima e tecer as suas ideias sobre gravidade e velocidade terminal. Assim vemos que, por vezes, até torres que ameaçam a terra podem ter o seu uso no ar, nem que seja para atirar algo de lá de cima. Com diferentes formas, pesos, materiais, lá ia tudo caindo até cá baixo. (Experiências nocturnas claro, para não acertar em ninguém no cocuruto.)

    E como conseguia Galileu rigor científico nas suas experiências? perguntei eu na minha mente, e Simonetta respondeu-me:

    Um pêndulo construído com toda a precisão, de um tempo que andava devagar, e um pequeno coro de Jesuítas entoando em uníssono um cronómetro musical. Não era perfeito, mas era perfeito para aquele tempo.

    brown and white buildings at daytime

    Assim se tentava refutar o princípio da equivalência de Aristóteles, que postulava que o mais pesado caíria mais depressa. Começou-se o trabalho. Mas só se concluiu parte dele em 2017.

    Mesmo Einstein teorizou em fórmulas, mas não conseguiu verificar; teve de ser um pequeno satélite francês a concluir a experiência de Galileu em órbita (será que também tem coro de Jesuítas?), e assim se vê como a Ciência atravessa séculos para responder a uma singela pergunta, em que na verdade a maioria de nós nem entende o porquê de tal curiosidade.

    Torres e imperadores.

    Ambiciosos e visionários gigantes que dizem para onde devemos ir. Como devemos viver. Que ajardinam o mundo para nos estender a todos na relva (e enterrar). Especialistas em maquinar políticas em corredores escuros e sinistros, globalistas que tecem uma teia e berram ameaças. Se o mar nos engolir, se o sol nos incendiar, se os vírus nos devorarem… eles terão a solução: controlo.

    a view of a city with tall buildings

    A máscara, a vacina semestral, a moeda digital, o rastreamento do teu movimento, da tua alimentação, dos teus comportamentos. Da queda em velocidade terminal que os aguarda eles movem-se na fé de que se subirem alto o suficiente serão a ave de rapina que paira sobre nós ratinhos, de garras estendidas.

    Já se viu em Bolonha, nas torres ou na uniformização do ensino superior disfarçada de liberdade de movimento e garantia de qualidade. Uniformização é a chave, esmagar a anomalia.

    Porque este imperador (certamente uma teoria de conspiração) considera as anomalias um risco (para o topo das torres).

    E o pêndulo construído com toda a precisão, de um tempo que anda depressa, que nos acerta nas costas e empurra-nos para a esquerda e para a direita. Pensamos nós, ratinhos, que existe diferença, enquanto as torres se empilham nos nossos ombros e nós como terra, aluímos.

    Pobre do imperador, todo nu, não sabe ele na sua infinita arrogância, que nós que vivemos em tocas somos a massa que edifica este mundo. Nós que escavamos a terra e abrigamos as nossas crias experimentamos um amor que ele nunca conhecerá.

    Nós, que vivemos com medo, quando na verdade temos o poder, nas nossas mãos e nos nossos pés descalços. Porque nós fazemos parte deste Mundo, e eles, lá em cima, vão ficar a pairar no silêncio infinito da nossa órbita.

    No fim, todos caímos, à mesma velocidade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Crónica com uma criança aos berros

    Crónica com uma criança aos berros


    Gotas de chuva como pingos de mel dourado, caem em raios de luz, e eu juro que o céu, ao descer de Trancoso, indeciso entre a Primavera e o Verão no crepúsculo do fim do meu dia, parece desabar-se em cascatas de algodão, incandescente, que fazem até acreditar no divino, ou em galopadas furiosas de quadrigas romanas pertencentes a uma classe superior de seres – se olhar cá para baixo, podem, num respingo, alumiar ou ensombrar tudo o que nos sustém.

    O carro mantém a rota a serpentear por asfalto, agora lambido por um rio de ouro líquido, fino, singelo.

    Penso talvez que, assim, as cerejas ganharam viço, mas e ai que boas que estavam – e que importam os bonecos a papaguear nos ecrãs que o fim está próximo, alterações e climáticas e patati patatá!

    shallow focus photography of green grass

    Calem-se diacho!

    Já todos entendemos que querem é fechar o país, porque vem aí o calor, e temos todos que fingir que os incêndios não são um negócio, e isto há já décadas.

    Agora, aquilo que está a dar é fingir ser tudo pelo nosso bem (patati!), pedir licença de porte de isqueiro para não chegar fogo à mata e não fumar para não chegar fogo aos pulmões (patatá!), que isto de viver num estado totalitário será coisa a estranhar devagarinho e depois entranhamos, que remédio!

    Mas as gotas de chuva como mel continuam a correr, quando tem de mesmo de ser, e sinto-as como quem atravessa uma tempestade de cometas rasgando o dia… Ou a noite.

    yellow leaf with water droplets

    Adeus que m’embora vou.

    Tenho saudades de Arraiolos. Tenho de ir derreter ossos nortenhos por lá, até porque já fazem falta as migas. Vou pela estrada fora, e continuarei a seguir até lá, é sensato procurar o calor, ao contrário do que me diz a televisão, que cresceu, duplicou e alastrou pela parede da sala, que nem bolor negro, tóxico, intrusivo…

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As janelas, que nos hospitais se tornam quadrados

    As janelas, que nos hospitais se tornam quadrados


    A luz azulada, emanada do computador, recorta o perfil gentil daquela mulher contra o meu olhar ensonado.

    Um perfil doce de mãe, cansada, que, cuidando do bebé numa enfermaria, neste quarto piso de hospital, se apoquenta em terminar trabalho, para aquela empresa na segunda-feira não sentir a sua falta.

    Um semi-sorriso, meigo, o olhar, concentrado, o cabelo, amarrado, no topo do fato, de treino, as esquinas, das omoplatas, a revelarem-se, na camisola, e curvada, num ninho, o adormece, num sussurro, baixo.

    Deu-me bolachas, um iogurte, uma maçã, uma t-shirt limpa e o tal sorriso, meigo, de mãe, mãe de toda a gente, tudo, tudo doce.

    Eu, olhem, sabem… Dei-lhe palavras, que tenho muitas, e ela lá ia mordiscando todas, pacientemente; às vezes lá lhe sacava o riso aberto, e sentia-me finalmente a retribuir a atenção silenciosa que ela me dispensava, com elegância.

    Ouvem-se pi, pi, pi, e choros, coisas que caem noutros pisos, tosses, mais choros, o burburinho das máquinas, e cadeiras e mesas, que parecem vaguear sozinhas pelo edifício. Os cadeirões, repousos de mãe, descansando ossos, grasnam loucamente para se abrirem, e cada uma, de nós, hesita em sequer deitá-lo (deita-te) pi, pi, pi.

    A medo passa, mais uma noite, e pergunta-se, a medo, a uma enfermeira de olhar enervado, se temos direito a pequeno almoço.

    – Não! E não o vai deitar agora que ele começa a chorar e depois não me vai ouvir a explicar! (deita-te).

    lighted brown tunnel with black metal pipes

    Já sem medo, perguntamos se temos direito às visitas, para poder aproveitar a avó a chegar, e pudermos assim acorrer, a correr, à casa de banho, numa outra paz de espírito.

    – Não! E só pode o pai e a mãe ou outro acompanhante designado. Na obstetrícia decidiu-se fazer assim, e por isso já sei que ontem era diferente, mas hoje é assim, porque houve uma reunião e a pediatria não vai fazer diferente e tem de compreender que as visitas só vêm desestabilizar o serviço (deita-te).

    Aqui, aprendemos gestos, formas, de deslizar, truques, para imobilizar, um pequenino, mentiras que repetimos, sem cessar, para que acreditem, que vai passar, que a dor é precisa (deita-te).

    Uma mãe montou ninho, naquele quarto, cinco sacas, tamanho jumbo, almofadas, jogos, livros, cartas, comida, comida, comida, roupa (deita-te), e o pai, sem entender tanta daquela coisa (deita-te).

    Mas a mãe monta este ninho, para o seu passarinho, põe a alma no bolso, entra pela porta, para compor as penas, em desalinho, dele (deita-te, deita-te, deita-te).

    Movem-se tristezas, nos corredores, e nem sou digna de observar, estas lindas almas. Que doces são.

    silhouette of children's running on hill

    Aquele menino, crachá de médico e estetoscópio ao pescoço. Já possui privilégios, acesso às áreas reservadas, domina já rodapés e circuitos.

    Batas azuis, brancas batas, um rapaz bonito encosta-se ao contentor do lixo, preto, companhia de elevador. Observo: curioso como me habituei já a evitar tocar nos contentores, e agora sou passageira de uma relação íntima que não me lembro muitas vezes que existe.

    Monstros mortos de pé: é o que os hospitais, os nossos, são.

    – Você tem de entender que as refeições são um serviço à parte, e não somos nós responsáveis pela organização.

    Eu entendo tudo. Eu quero é sair daqui. Só me custa não poder levar estas mães comigo, e as crias delas e os ninhos também.

    A vigília permanente, recortada, a luz azul, e ainda há quem queira proibir, ou deseje obsolescer, a palavra “mãe”.

    Noite dentro, aqui todas as janelas são quadrados, polígonos luminosos, mantendo-nos alertas ao mundo, lá fora, na rua, na estrada, num movimento sem importância.

    white bird on brown coconut husk

    Noite dentro, todos os quadrados estão enviesados, nascem losangos, e trapézios.

    Monstros, mortos de pé, com formigueiros, a tentar manter de pé, e a circular pelos circuitos, enquanto empurram contentores deslocando ar pastoso por vários canais. Lixívia, máquinas (pi pi pi), mopas, tabuleiros, sopa, sem sabor, onde os legumes morreram há largas horas, pão de dias (dias maus, maioritariamente), olhares pálidos, cansados, de acompanhantes resignados, pavimentos descartáveis, vinílicos (sabem o efeito dos vinílicos na saúde?), e poliéster (voltem as mantas de lã, por favor: mas porque deixaram as formigas de ter respeito pelo que é natural, como nós?)

    Assim é, quadrados com viés, a bandeirinha da república, na entrada do bloco, a recepção renovada, a ripado de carvalho, para ter cara lavada. E os órgãos, em sepsis, escondidos atrás das paredes…

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Espectros de um regime

    Espectros de um regime

    Título

    Sombras do Império: Belém – Projetos, Hesitações e Inércia, 1941-1972

    Autor

    JOÃO PAULO MARTINS (Org.)

    Editora

    Tinta da China (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    No seguimento da exposição com o mesmo nome, no Padrão dos Descobrimentos, entre 2 de Maio de 2022 e 30 de Janeiro de 2023, este livro surge como uma compilação essencial de uma equipa multidisciplinar que focou a sua investigação em Belém no contexto paradigmático das acções (ou inacções e inquietações de projecto) após a Exposição do Mundo Português de 1940.

    O primeiro artigo que nos é apresentado pertence à pena de Pedro Rito Nobre, arquitecto e investigador, que, com uma forma de expressão leve e directa, nos apresenta o necessário contexto da Exposição de 1940 e os planos de urbanização associados a esta malha urbana. A paginação, porém, por vezes dificulta a comunicação – algo plasmado ao longo de toda a edição – sendo que, embora elegante no seu grafismo e de uma forma bela se regularize numa continuidade plástica a apresentação do espólio fotográfico e documental – esta opção compromete a leitura de alguns desenhos e até da lógica das legendas (caso da página 26, em que a própria legenda da planta refere o uso do sistema “vermelhos e amarelos” para indicação dos elementos a demolir ou construir, não existindo porém essas cores nos desenhos, em sacrifício pela uniformidade gráfica).

    Para o público fora das disciplinas de edificação e planeamento, a descrição de eixos de implantação e acções de projecto e obra arriscam provocar um grau de opacidade considerável, porquanto um longo parágrafo explicativo do que consta na planta poderá conter jargão não tão acessível. Ainda assim, é muitas vezes necessário assumir o seu público alvo e talvez não apaparicar todos os destinatários apenas para aumentar o alcance, e arriscar, por seu turno, desprestigiar o conteúdo e as suas nuances.

    É anunciado, na proporção correcta, o modo como as perspectivas que orientavam as decisões urbanísticas, neste caso de estudo, não assentavam com a mesma intensidade no actual culto historicista de preservação integral da cidade (diria eu e até alguns outros investigadores, por vezes de forma fachadista ou disneyficada).

    O acervo fotográfico e documental é absolutamente notável, cuidadosamente curado e apresentado de forma a enlevar o leitor e, portanto, apesar da gíria académica empregue na redacção, dir-se-ia até ser possível usufruir do livro abdicando do corpo do texto, tal é o impacto que a recolha releva.

    “Quando afinal as luzes de mil cores deixarem de incidir sôbre os pavilhões, quais são os candieiros que ficam acessos na nossa freguesia?” p. 20, citando Ecos de Belém, 10 de Julho de 1940, p. I

    Como este autor contribui na sua reflexão, após uma demonstração clara das aventuras e desventuras dos projectos e seus autores que tentavam criar novos mundos, “tão vasto plano para tão pouca concretização” (p. 43) é sem dúvida a melhor síntese desta apresentação.

    Segue-se o artigo de Joana Brites, historiadora de arte, investigador e professora universitária, onde novamente a leitura em colunas – em que os subcapítulos interrompem as mesmas dentro da mesma página – dificulta a mesma. De ressalvar também que na página 27 do autor anterior e na página 59 desta autora, encontramos uma redundância de uma cartografia; não obstante, é excelente a contextualização histórica sobre os conteúdos ideológicos e programáticos das intervenções apresentadas para os projectos desta época, mesmo à luz do panorama internacional.

    Não podemos deixar de exaltar a reflexão da página 69, nas considerações finais do artigo, sobre as relações de poder plasmadas no estudo da “não concretização” – neste caso, lusitana – não só das intenções da época em apreço, como mesmo actualmente.

    O artigo do organizador João Paulo Martins, arquitecto e professor universitário, tem um título absolutamente brilhante pelo seu carácter ilustrativo: “Espectros, fantasmas e outras assombrações (…)”.

    A anatomia temporal do projecto do Palácio do Ultramar, sempre acompanhado pelos desenhos brilhantes de Cristino da Silva permite-nos vivenciar uma narrativa muito interessante, assim como demonstrar as dinâmicas do “pequeno” poder em Portugal (página 95), ou as secas respostas do poder político (página 96).

    Na página 101 surge timidamente um modelo digital do projecto em análise, executado por Marta Orszt, infelizmente sem o destaque que poderia colmatar as lacunas de comunicação que já mencionámos. Em seguida, os restantes anteprojectos ao longo da década de 60 são-nos apresentados e, de novo, na página 111, uma vez mais o azedume político a empatar o avanço de uma visão. Para remate mais feliz, o Museu da Marinha garante-nos o alívio de, após esta saga de rezingas que impedem projectos, podermos observar obra erigida.

    O artigo seguinte pertence a Sebastião Carmo-Pereira, arquitecto paisagista, novamente com a companhia dum acervo de imagens e desenhos fantásticos. Ficamos a conhecer com muito interesse a luta dos planos de Belém até à Ermida de São Jerónimo, neste caso na sua dimensão paisagista e, como sempre, com o modo peculiar como aparentemente, em Portugal, não se gosta de árvores, e citando Ribeiro Telles na entrevista com Urbano Tavares Rodrigues:

    “A concentração da população nas cidades é um facto que se perde no tempo. A ruralidade criou e durante séculos manteve a cidade. Esta não era mais do que um elemento pontual no espaço rural onde se processava um complexo sistema de trocas. A relação entre a paisagem humanizada, a Natureza mais ou menos selvagem e a urbe era íntima. (…)” (página 145)

    Por fim, mas sem demérito pela sua posição, o artigo de Natasha Revez, historiadora de arte e investigadora, traça a crónica de costumes mais divertida do livro, com ironias no subtexto (ou então mea culpa se vislumbradas foram por predisposição mais sardónica pessoal).

    Sobre o Padrão dos Descobrimentos (curiosamente motivo de polémica recente), sobre a sua génese, sobre o seu orçamento começar em 9 mil contos e, mediante impugnação do primeiro concurso, subir para 12 mil; sobre as irregularidades do concurso e “projectos de cartaz” para se chegar até a abdicar do anonimato na segunda fase; sobre as alterações climáticas com o Infante a cair ao Tejo (página 157); e, de novo, a inépcia.

    Entretanto, a diferença entre o investimento em Sagres e em Lisboa, em que “mais um projecto «naufragou em ignotos baixios ante um terrível e inesperado cabo Não»” (página 161) com a devida homenagem a Teotónio Pereira e ao seu artigo “Não haverá ‘Mar Novo’” (talvez estes últimos parágrafos e imagens que o acompanham seja de observação essencial para os responsáveis autárquicos das encomendas de estatutária contemporânea em Portugal… talvez revejam os seus erros nuns pontos e, ao mesmo tempo, ironicamente constatem que até o atavismo do regime conseguiu – quando conseguia – produzir obras de melhor orgulho estético do que os suportes de pombos que vêm a ser erigidos ultimamente).

    “Da exposição ao livro”, a apresentação em jeito de prefácio do organizador do livro é, na nossa humilde opinião, o remate perfeito a esta recensão crítica de um conteúdo de pertinência crítica:

    “(…) ficam evidentes os confrontos entre protagonistas individuais – políticos, arquitetos, paisagistas… – a cujas diferentes formações e culturas disciplinares deram suporte a abordagens distintas e objetivos não coincidentes. Cumplicidades e disputas entre gerações ou meramente pessoais, raramente assumidas ou completamente explicitadas, percorrem as trocas de argumentos que a documentação administrativa regista. Nos jornais, a escassez de comentadores independentes baliza os limites do debate público.(…) Não será surpreendente reconhecermos então (como hoje, afinal) a incapacidade generalizada para o exercício do diálogo, capaz de conduzir soluções esclarecidas, convincentes e partilhadas, consensos negociados, e não apenas conquistados ou, simplesmente, impostos.” (página 9)

  • Conveniente ‘in secunda partem’

    Conveniente ‘in secunda partem’

    Balindo, as ovelhas aproximaram-se do muro. Que inopinado! Para ruminantes fofos pareciam estranhamente seguros de que eu não seria uma ameaça. Seria por conviverem com flores que parecem neve ou talvez me pedissem que as libertasse da sua cerca, ares dos tempos, presas sem predadores.

    Não lhes toquei. Sinceramente, ocorreu-me que poderia ser mordida. Sabe-se lá o que pode fazer uma ovelha reclusa a quem caminha do lado de fora. Melhor manter distância segura, do lado de cá do muro (mais conveniente).

    white arrow painted on brick wall

    Ainda faltavam largos passos para chegar ao meu destino (em princípio) e contemplei pelo caminho outras tribos urbanas deslocadas do cheiro a cimento e rebarba de metal das obras que nos cercavam. Gatos tinhosos que se digladiavam junto a embalagens de comida em múltiplas pilhas de gordura junto a um silvado de uma casa devoluta, apaparicados por duas senhoras que lhes estimavam a dieta em afincada penitência humanitária. Três voluntários na mata mais distante que ceifavam furiosamente a vida de flora dita “invasora”, plantas que sempre achei inofensivas mas, esclareceram-me, seriam uma praga não autóctone que punha em causa a sobrevivência de espécies indígenas.

    Que estranho, estranho mundo que nós vivemos.

    Que inconveniente. Espécies mais oportunistas e eficientes em lutar pela vida, a comprometerem a segurança de outras. Há que ceifá-las pois! (É?)

    Orgulhosamente sós, os indígenas da Sentinela do Norte também acham conveniente repudiar o mundo inteiro da sua casa. E o mundo lá vai tentando respeitar isso, até porque cada tentativa normalmente acaba numa escaramuça de arco e flecha.

    right arrow sign on wall

    Os Sentinelas existem, nós – o mundo – sabemos que eles existem. Não sabemos que língua falam, quantos são, como se organizam entre eles, que crenças e fés alimentam – se é que alimentam algumas – sabemos apenas que estão ali, de sentinela em pleno Índico, sabemos que não somos bem vindos de barco, de avião, de helicóptero, a nado. Podemos levar prendas, podemos levar “a palavra”, não fomos convidados a entrar e não têm eles qualquer intenção de sair.

    Podemos pairar por perto em mar alto. É possível que os vejamos a começar a preparar pequenos barcos para virem ter connosco e nos demonstrarem o que pensam sobre espécies invasoras.

    O mundo, para os Sentinelas, não existe, ou não importa que exista. É uma inconveniência que não augura nada de bom e não é tolerada. Será, porventura, um notável exemplo de seres humanos sem curiosidade. Ou então uma pobre tribo oprimida em que jovens ambiciosos se vêem amarrados por anciãos medrosos. Ou talvez até, esteja ali, por entre prendas e subornos do passado, um segredo, um tesouro de magia que não sabemos que existe, o que contém, que fonte da juventude se esconde e os alimenta candidamente para lhes suportar a vida rodeada de mar, preciosa e incólume.

    gray arrow left sign

    A Índia assegurou na lei que não os devemos incomodar. Que se o fizermos nem mesmo os nossos ossos serão recuperados, ficaremos lá, sim, para sempre (que inconveniente!)

    A cada passo, dois vocalistas de pregões divergentes ralham um com o outro, vagarosamente, as suas palavras saem com mais velocidade do que o seu caminhar, pernas sincopadas a empurrar o caminho de ambos como se carris invisíveis os conduzissem para uma cave escura onde vão ficar a falar sozinhos (não os sobrevoem).

    – Isto o que faz falta é mais controlo!

    – Não! Não! O que faz falta é menos! Nenhum controlo permite o crescimento!

    a blurry photo of a woman's face

    E eles sorriram ao juiz, com uma disposição solarenga

    Porque não tinham a cura mas certamente precisavam do dinheiro

    Ao vislumbrar o meu destino vi flores roxas sacudidas pela brisa junto à estrada. Mas ao aproximar-me descobri que era lixo.

    Inconveniente.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.