Etiqueta: Mariana Santos Martins

  • Polegares para fora

    Polegares para fora

    É como aquele abraço, o corpo cede, as mãos rodeiam, em volta das costas, mas os polegares ficam estendidos, para fora, recusando o toque, recusando agarrar… Um passo para trás, um pé de fora.

    Agora, a noite chega mais cedo, todos sentimos o aviso do inverno, um novo inverno que acabrunha a mente, a pensar como aquecer a toca para nos escondermos. E suponho que a leste, pelas mesas e cadeiras emboloradas onde o regime do comediante herói treme, o horror do avanço da neve nas botas russas alucine as mentes cegas (polegares para fora), cismadas na fantasia gelada e petrificada de medo do gigante europeu, que é asiático.

    person in black long sleeve shirt

    O Zé envelheceu, entretanto, profundamente, embrulhado e implodido na recusa em admitir ter sido usado como peça menor neste jogo americano de vergar velhos europeus como colunato avançado contra a ameaça chinesa. Encorrilhado na noção que os traficantes de guerra das televisões, confortavelmente aquecidos e maquilhados debaixo do holofote brilhante, deixaram de falar nos ossos ucranianos que se espraiam nas planícies de Zaporizhia.

    A crença terá sido sincera. Que eram bastiões de um ideal europeu, democrata, ocidental… Que estavam a combater o mal e a defender o bem… Que cada vida de uma geração chacinada na lama, por estes anos, valia o sacrifício e elevava o legado de homenzinhos arrogantes que julgavam o seu papel na História como glorioso a conduzir jovens para a morte vã…

    Que parvoíce. A glória. A vã glória (polegares para fora.)

    Os únicos vencedores no jogo da História mantêm-se na sombra, a engordar as teias de influência obscura. Repousam em almofadas fofas em Genebra, entretidos a debater formas de comunicar o apocalipse climático e manter o gado informado e obediente nos cercados.

    Soldier Holding Rifle

    Enquanto o Zé perde o sono e repara que Israel é afinal o novo bastião dos valores e dos ideais superiores da ideologia vigente, contra o avanço da areia nas botas jihadistas, os ratos que o rodeiam começam a encher todos os bolsos com riquezas portáteis. Tudo se assemelha em ecos do passado, quando um lunático líder entrincheirado num bunker vociferava que o Reich de mil anos nasceria em cima das costas de todos os alemães estendidos sob as bombas aliadas.

    Nos corredores aumentam os sussurros de como resolver a saída de cena do palhaço triste, que tipo de punhal cravar entre as suas costelas. Se a História for meiga com o Zé, surgirá um breve momento de lucidez na sua cabeça que o fará envergonhadamente fugir, já, fugir para longe, esconder-se do mundo que o quer devorar. Mas se o medo dessa vergonha for demasiado insuportável, talvez a Primavera nasça em cima das suas costas, estendido sob a deslealdade de quem lhe bateu com as mãos no lombo (polegares para fora).

    De Gaza vemos as crianças estendidas entre sangue e escombros. Pequenas. Partidas. Convulsões que nos cortam o ar. Mães e pais que gritam ou mães e pais que já nem lá estão, ficando os corpos debaixo de toneladas de pedra, e aquelas crianças sozinhas, mãos enluvadas tentando acudir-lhes o corpo sem saber por onde começar.

    Guerra – que nojo.

    Unrecognizable multiracial guys showing thumbs up gesture

    Se não existissem homens e mulheres aprestando-se a serem botas, veríamos crianças mortas na areia ou corpos abandonados na geada de leste?

    Recusem. Digam não. As armas estão nas vossas mãos, pela glória de um Zé vacilante, medroso, de um Bibi aviltante, sorridente e psicopata, de um pobre velho Joe, demente, gaguejando chavões dados em cábula por falcões.

    Se as pessoas despirem o uniforme, estendendo armas, e recusando o seu uso, nos pés destes patetas, veremos que a carne cobrindo-lhes o esqueleto cansado é afinal igual à do inimigo que mandaram matar. Vejam-se nus. Para que serve um exército?

    Porque mantemos soldados ao fim de centenas de anos de história de holocaustos e vísceras espalhadas por entre pedras? Porque permitimos perder agricultores a enfiar as mãos na terra semeando alimento, enquanto insistimos em promover coveiros a enfiar o futuro na lama semeando a morte?

    Polegares para fora.

    Soldiers in Line to Get in a Plane

    Não queiramos bandeiras, fronteiras, muros ou países, que se alimentam de soldados, todos nossos filhos, condenando-os, assim, sem pejo, a mortes frias e violentas, em prol de medrosos, fanáticos e dementes, que se arrastam por veludos vermelhos sem sequer sentirem o peso da culpa a crescer-lhes nos tornozelos.

    Não há direito de defesa. Não existe. É a mentira com que os maquilhados e quentes debaixo de holofotes brilhantes nos violam a alma, decididos a salgar a terra por abstracções inúteis. E é a mentira com que se convencem fanáticos nas ruas a maltratar outro ser humano.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Crónica de um dia de chuva a pé coxinho

    Crónica de um dia de chuva a pé coxinho

    Imagino que a História virá a retratar a triste trotineta, com o seu trotineteiro empoleirado numa capa de chuva a piscar os olhos pelo planeta, como já o fez sobre o curioso Penny Farthing [1].

    Inusitado. Frágil. Caricato.

    Rain Drops

    As carroças metálicas abrandam impacientemente na cauda das trotinetas, tremendo ante a possibilidade de uma ultrapassagem segura do peão com duas rodinhas que cruzam a rotunda num estranho ângulo obtuso, uma perna no ar a corrigir a curvatura do movimento.

    Todas as pessoas se vão fintando mutuamente, e eu sento-me (sinto-me) cá dentro, como a tampa metálica de ferro rebaixada anormalmente no asfalto, a ser martelada com mais uma gota de chuva e mais uma roda irritada (somos
    tantas, tantas).

    Pam pam! (tampas a saltar).

    Man in Blue Jacket Sitting on a Rock

    Viver hoje a queda deste império é viver como a precipitação de ‘comboios atmosféricos’ (parece poesia), uma catadupa de gotas, caudal que excede canos, sistemas que transbordam, que vomitam, que regurgitam. Que se espalham ao comprido entre enormes buracos, máquinas, terra revolvida, caleiras partidas entupidas com as folhas de Outono. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém.

    Anda tudo com as dores de costas a vergar, a vergar. Picadas de melgas e a humidade a entranhar-se nas malhas. O dinheiro que falta, o frigorífico mais vazio, a goteira na sala. O passivo dos passivos e as máscaras que jeito dão para esconder as bolhas que entram em erupção de corpos que não gritam, e adoecem. Bombas que estalam ao longe, aqui, ali, e a exigência permanente de uma opinião, uma bandeira, um estandarte.

    Paz, pão, educação.

    – Estamos aqui há horas e afinal não se decidiu nada!

    Fragrant tender tulips in glass vase placed near window during rain in evening

    Ninguém disse que era fácil. Podemos sempre admitir que o queixume e o desalento pertence a quem tem ânsias de poder despótico. Mas digo eu, aqui que ninguém me lê.

    Ninguém quer matar-me… – disse Polifemo

    Mais lata de tinta, menos lata de tinta, qual o assunto do dia para atirar contra as paredes e pessoas?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Para os lados

    Para os lados

    Entrelaçamento quântico – é o que aparenta atravessar as eras naqueles tapetes de areia da Mesopotâmia, uma impossibilidade particular de diluir os poderes, equilibrar águas, que borbulham ou se separam, simplesmente porque aquilo que em cima está logo faz algo ficar em baixo, e não importa quantas vezes façamos a medição do evento.

    Dir-se-ia que todos aguardamos novo sacrifício de um carpinteiro em sandálias. Alguém que diga algo tão ultrajante como: amai-vos uns aos outros – e, em seguida, dê o corpo a esse manifesto.

    green and yellow spiral illustration

    Mas hoje, com tantos manifestos e tantos corpos a manifestarem-se, tantos homens que se fingem outra coisa, repararíamos?

    Dir-se-ia que aguardamos que as deusas marquem a linha no tapete de areia – e se não se portarem bem, tiramos os brinquedos aos meninos; paus e pedras têm um raio de acção limitado.

    Entretanto, sempre segue um apocalipse sazonal, daqueles sem graça nenhuma, que nada tem a ver com as promessas reveladas há milénios (a programação habitual segue dentro de momentos).

    Menos.

    Menos bom senso, e mais areia na boca, que nos sobra a sede, e as sandálias já não nos protegem, nem de nós. Por cá, a chuva cai já pesada – e quem gritou lobo berra-nos aos ouvidos que o mundo é perigoso.

    Joana bateu com o bastão no chão, a Catarina (furtada a mais conhecimento sobre o tema) proclamou a sua aliança com os homens que têm inveja do útero.

    Silhouette of Person Standing Near Calm Sea

    O mundo está reduzido a estes bastões, a estes grãos de areia, a tempestades pouco férteis que enevoam a vista e na verdade, creio que estamos todos a pagar a factura das clausuras “voluntárias”.

    Sugiro que se alinhem todos em formação num descampado, com uniformes mais ou menos equivalentes, talvez um capacete (paus e pedras), a quem mais caiba um elmo talvez, e corram de frente uns contra os outros. Berrem! Berrem muito desde dentro da alma, berrem com força por aquilo em que acreditem e choquem de frente, de peito aberto (paus e pedras).

    Depois contem os mortos – e quem tiver mais vivos ganha. Serão vivos cansados que vão dormir mal o resto das vidas e, cansados, não mais guerrearão.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Primeiro, tudo

    Primeiro, tudo

    Primeiro, acordar claro. Ou adormecer, dependendo de quando nos assalta, em vagas, em assombros, ondas de uma aflição inexplicável que nos corta o ar (e corta ao meio), punho firme que nos agarra e segura violentamente pela cavidade torácica.

    Uma explosão, um disparo, paredes a esburacar e a poeira, a poeira, a poeira, a misturar-se com o nosso suor e uma lágrima confusa (doeu), a guerra, a guerra, a guerra (tantas guerras).

    Alguém fez a pergunta: porquê tantos homens em idade e corpo de soldados, ali a arrochar nas costas do Mediterrâneo? Exauridos (os homens fugindo da guerra, a guerra fugindo dos homens), e as mulheres que carregam filhos nos braços e rasgam os joelhos na fuga?

    Exploded House in Borodyanka

    Ver é um exercício. Tomamos como certo que nos é dado, pronto, sem necessidade de aperfeiçoamento ou silêncio.

    Ver.

    Primeiro, tudo.

    Conhecer o corpo ao nosso lado, deixar que um coração ouça o outro a bater. Cheiros, gestos, respirações e a alma dos intestinos a regurgitar medos. Conhecer a casa da alma, desenhar os contornos de memória e saber onde vive cada espaço. Que cor tem cada sala.

    E ouvir. Saber que tonalidade de acorde segura as notas atrás das paredes (edifica-me, eu sou música e tu não sabes ler pautas) que tormenta, tormenta, tormenta… (e o punho firme a trepar a pescoço).

    Voltamos aos ângulos mortos, mais uma urgência.

    A diferença entre torres (colmeias) de casinhas empilhadas e as almas ali, todas encaixotadas como no cemitério, confusas de tantos corações a bater, tantos corações a gritar, tanto ar a quitar-se (urgência) e as casas deitadas a repousar ossos cansados na terra, a descarregar na fornalha nuclear do mundo, os mundos todos que nos habitam, povoam, infernizam (dorme, vai a casa e dorme, não passes só por lá, toca alguém no caminho, não vivas sozinho).

    Grayscale Photography of Chainmails and Helmets on Ground

    Não tenho opiniões. Talvez tenha lamentos. Desculpem, não tenho, já chega de opiniões. Passaram a ser tantas, tantas, tantas (e a guerra, a guerra, a guerra).

    Que vorazes as máquinas estão, a devorar as nossas palavras, a sugarem-nas até já nascerem sem significado, aguadas, finas, ruído de estática em fundo. A sobranceria da era dos andróides que fingem ser meninos de verdade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Azul

    Azul

    Viste os ecos azuis nos azulejos molhados do corredor que se estendia do balneário, frio, escorregadiço? Chinelos slap slap, cuidadosos, e o aconchego da toalha, a linha do elástico da touca, a repuxar cantos da pele, as coxas arrepiadas, a aproximarem-se de um degrau de chuveiro.

    O pudor tímido.

    O reverberar de água, motores, chlap, o mergulho daquele homem em braçadas ríspidas. O cheiro.

    Close-up of Water Droplets Against Blue Background

    Cheiro azul de cuspe, desinfectado, e gestos hesitantes (vais cair, vais cair!). Abandonar tudo num canto e chegarmo-nos junto a uma toca aquática, suave, tina de água tépida, e o cloro a entrar pela alma dentro (quando morremos o ar que nos abandona é o nosso espírito?)

    Cada pequeno pulinho, bailarinas em pontas, deita-te, que assim já te equilibras. Flutua, que assim já te moves com o movimento dos outros. Que mais fácil, que é assim, deitada, e o mundo navega na mesma.

    Claro, alguém passará, salpicando tudo em volta, sem delicadezas, agitando ondas e perturbando o sono leve. Que mais fácil que seria assim, com bolha que protegesse a cara da água fria, que viajou no ar, que pairou um segundo livre antes de se derramar na pálpebra fechada.

    Existe uma claraboia que deixa o sol se despejar por ali abaixo. Gaivotas pairando longe, flutuando no céu azul, (e tu a flutuares em azulejo), fazendo de conta que o tempo também flutua, que também balança, como mesa manca, só um bocadinho manca, só o suficiente para estremecer – e te deixar na dúvida se foste tu que vacilaste.

    flock of bird flying on sky

    Nadadores que se escondem debaixo de água, a encolher o nariz, ao romper a película transparente, ouvem os brilhos azuis das pessoas que deslizam junto à borda?

    Que brilho tens tu quando estás sem roupa e tiritas pelo mundo fora? Sabes que se não tiveres medo das gotas, que fogem livres da dança dos outros, te podes aquecer num abraço, e se chorares ali ninguém vê? Porque é tudo azul. E o tempo flutua.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Perdura, porventura, ternura

    Perdura, porventura, ternura

    Há pequenas coisas, como, por exemplo, sentir areia nos dentes enquanto comemos fruta na praia, que sabe à ferrugem que avistamos ao longe numa escultura imensa, maciça, de ferro a oxidar ao longe, lacrau áspero de rabo eriçado na nossa direcção (vou picar, vou picar!)

    Podemos exasperar-nos. Tentar cuspir, selectivamente. Ou podemos tentar continuar a mastigar, o mínimo de movimentos, até a engolir quase assim, como está. Engolir a praia suja, a bem da paz de espírito.

    Explicarmos a alguém como vemos, as coisas, exige articulação suave, candura, um refinar a areia até ser pó dourado entrando pelas narinas, bem dentro, até respirarem a nossa verdade, e nada verem mais, e o deserto ficará nos seus olhos, ondulado e amarelo.

    Person Foot Prints on Sands Photo

    Palavras.

    Falarmos com paredes é exercício de lamento, duro, emparelhado e sólido. Cego. Surdo também. Mais fácil o murmúrio, sempre, entre dentes (talvez o mínimo de movimentos para engolir a areia com sumo da fruta), o sol queimando as vistas e o horizonte a bater-nos o cabelo, na cara. Aguentar a nortada e continuar, se as mãos tremerem esforçamo-nos para que não notem, que não acudam.

    Mas o corpo diz mais, mais do que a boca.

    Então, assim, fácil é enredar-nos. Descobrimos, se calhar, que não conhecemos os nossos pensamentos (como não conheço os teus), e divagamos, e viajamos, e papagueamos frases curtas, que nos deram embrulhadas e torcidas nas pontas (rebuçados), caramelo sem gosto, a gosto.

    Oh Deus! (deuses!), quantos caramelos a derreter ao sol, a colar a areia ao céu da boca!

    photo of silhouette photo of man standing on rock

    Sacode! Sacudamos! Que se o corpo ainda tiver força para sacudir, talvez se espantem então para longe os magros demónios que se penduram nas nossas costas. Como sombras de mãos que, dançando sozinhas, povoam o tecto, enormes, para distrair a birra.

    E se tropeçarmos, porventura, temos de nos agarrar, cada vez mais a algo terno, que nos ampare, que a idade não perdoa, e perdura.

    Mariana Santos Martins é arquitecta

    P.S. A autora pede humildemente aos seus esforçados leitores que se deleitem com a hiperligação no início do texto em pleno, ouvindo, mas também vendo. Porque o Belo é urgente.


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  • Lobo rouco, lobo louco

    Lobo rouco, lobo louco

    Os mantras entoam-se no horizonte, como uivos de lobo, e pouco mais nos sobra que agarrar o cestinho e continuar no caminho de cabeça baixa (não te desvies do caminho), segurar o corpo a tremer e manter o medo da floresta longe de nós (não te desvies do caminho).

    Quase todas as verdades que importam estão guardadas em histórias de crianças. Quase tudo o resto está construído em cima disso, com a diferença que uma criança ainda consegue levitar e um adulto é demasiado pesado para o fazer (demasiadas bolas de ferro nos tornozelos).

    Gray Timber Wolf

    Era uma vez.

    (_Estava na floresta um lobo a uivar, por trás duma giesta eu pus-me a
    escutar…_)

    Na História Interminável, um lobo negro é convocado pelo Nada para lhe permitir engolir a terra da Fantasia, obliterando a sua existência contra os esforços de uma criança guerreira e uma criança leitora (e
    durante anos eu tremia com a perspectiva de que o Lobo e o Nada estariam escondidos no piso de cima de casa, pois se o piso era escuro e como um nada, até eu chegar lá acima e acender a luz, certamente viveriam lá, esperando matreiramente para me devorar).

    No Capuchinho Vermelho, o lobo trapaceia até conseguir comer a avozinha e se travestir no seu pijama, de forma a ouvir melhor, a ver melhor e com a boca tão grande comer a indefesa menina.

    Nos Três Porquinhos, o lobo bufa a sua raiva contra as frágeis casas dos três irmãos, esfomeado, raivoso e determinado.

    No Pedro e o Lobo já vemos que, na verdade, o lobo é mais um instrumento, faz parte da composição, e com todos os outros sons conseguimos chegar a uma história, que acaba como tem sempre de terminar. Com um pato que talvez morra, e caçadores que talvez apareçam, pululantes, a terminar a opressão num grande estrondo.

    As histórias de crianças têm lá tudo ou quase tudo. Deixam os avisos que importam e condensam tudo em frasco de doce de conserva. Com princípio, meio e fim.

    A diferença é que, porventura, no frasco de doce o fim da opressão é um estrondo rápido e definitivo. Mas depois do Big Bang a geleia espalhou-se a alta velocidade em todas as direcções e nós não conseguimos ver o açúcar concentrado numa partícula compreensível. Apreensível.

    Por mais que almejemos pelo troar dos caçadores que nos vêm salvar, o mais seguro que devemos contar, é que o fugirmos do lobo ainda só acabou de começar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • A sociedade do espectáculo e a chata da ética

    A sociedade do espectáculo e a chata da ética

    Se calhar temos mesmo circuitos diferentes, e alguns de nós têm os fios ligados num disjuntor, e não no outro.

    Porque uns de nós olham os spots publicitários da Guerra Fria na SIC Notícias, e vêem mestres de cerimónias, sequências de imagens orquestradas com brilhantismo de Hollywood.

    Mas outros vêem a guerra dos livros de História, a ameaça existencial, a propaganda como um mal necessário para manter a moral nas trincheiras.

    brown CRT TV

    Alguns de nós olham rodapés sobre como Portugal é campeão de concentração de glifosatos, e vêem um esquema de perseguição aos agricultores nas entrelinhas, um polvo monopolista que cresce e engorda a comer o pequeno produtor em resposta a uma agenda globalista, nada tem a ver com o ambiente, nada tem a ver com a saúde. São as mesmas pessoas que acharam boa ideia fabricar munições com urânio empobrecido, matem quem dispara e matem quem é alvejado.

    Outros vêem o apocalipse ambiental, por entre vídeos bombardeados sobre eventos climáticos extremos no mundo inteiro, a necessidade absoluta de sucumbirmos a nossa existência ao bem comum, seguirmos as regras e não questionarmos.

    Alguns de nós vêem máscaras como símbolos, agressões, malefícios à saúde, o reduto final e visível de como fomos todos burlados durante três longos e penosos anos. E alguns de nós até acham que, entre uma máscara e um suposto beijo não consentido, mil vezes o bater de lábios a festejar vitória, porque “o vírus foi derrotado”.

    Outros vêem a prova de que o planeta nos quer assassinar indiscriminadamente e o importante é cumprir as orientações das pessoas que sabem e querem o nosso bem. Entre a natureza de vírus com nomes de letras e números, como um asteróide, e o maldito patriarcado, o melhor… é ficar em casa.

    silhouette photography of person

    Uns vêem um bebé como a alegria que motiva a vida, pequeninas mãos que dormem em suaves espasmos de preguiça a enrolarem as moles mas afiadas unhas junto ao nosso pescoço. Vemos a encarnação de um breve momento. Vemos o sono e sentimos o alívio de quando o bebé se sente seguro e adormece profundamente. Se se sente seguro, quase conseguimos sentir o mesmo. Ou pelo menos o alento de manter o ambiente seguro em volta. Vemos todos os momentos seguintes de uma vida inteira. E vemos o único amor que importa.

    Mas há outros que vêem mera carne. Pratinho de experiências. Não é vida, é biologia. Não é biologia, é laboratório. Não é laboratório, é edifício. E um edifício pode ter pessoas lá dentro vestidas com umas batas brancas todas iguais e óculos e luvas e essas coisas. E ai de quem atente ao progresso das batas brancas!

    Ai de quem levante o fantasma bolorento da ética!

    woman standing in front of the digital machine

    Qual ética, na era em que pessoas se injectam com o que lhes mandam injectar? Qual ética, na era em que as pessoas são presas se lhes dizem para o fazer? Qual ética, se abdicam do seu rosto em nome de uma farsa? Qual ética, se os senhores que mandam, de bata branca e fato e gravata, estão no pináculo da sobranceria moral, se eles tudo sabem e sabem melhor e são melhores do que nós e todos os outros?

    Alguns de nós olham, enfim, moinhos, mesmo deixando o cavalo parar para beber água.

    E outros, talvez, vêem gigantes, vestem uma armadura e preparam-se para cavalgar de frente contra um edifício.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Cimento: crónica dos materiais

    Cimento: crónica dos materiais

    Se entro e ainda está fresco, é doce o cheiro. Sinto a água, ainda no embrulho, recordações de infância trazem-me o barulho de lama, debaixo dos pés, gotas, soltas, sujas, terra, pó, areia.

    Traço 1 para 4. Traço 1 para 2.

    Existem números desenhados a branco, ali, no cimento. Não os vemos, mas eles estão lá (junto ao ferro), não os entendo, mas eles já se levantam (junto ao osso).

    This picture shows the scene of a construction site. In the foreground a hand wearing work gloves is carrying a bucket. In the background a cement truck is visible. Cement is flowing from the truck into the bucket.

    Nervuras de férreo metal, incrustadas com cimento, já petrificado; as mãos do teimoso que recusa as luvas, a pele a queimar. O cimento tudo come, come a água até de nós. E à medida que seca, na nervura do teu pescoço, endurece as circulações e impede o ar chegando à mente.

    Em apneia (e a água por ele a ser bebida).

    Cimento há em que lhe puseram conchas de mar, lá… sal, mais praia.

    Cimento fica que começa a romper (fissurar), o estalo a percorrer o eixo à procura de uma água da juventude, que por mais voltas jamais regressa. Chegou ao fim.

    O curioso mundo do cimento – e do betão, que se arma, que se armam em pedra, sem o ser. Não os entendo muito bem: são, para mim, construções de lama, com números brancos escondidos, e o senhor engenheiro a fazer troça de mim.

    Mas é, afinal, uma caixa de madeira que o embrulha, para a existência, precisa da mãe-árvore para nascer.

    Mas a talocha, o afago, a meiguice de emassar, até o nível soluçar a sua bolha, apenas quando o retiramos… aí, sim, sinto carinho; aí, sim, sinto escultura.

    Green Leafed Plant on Sand

    Que trabalho, que pesado, que suado.

    Reboco. Fino, areado, delgado.

    Reboco.

    Andamos todos a emassar cimento, fissurado.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Tecido: crónica dos materiais

    Tecido: crónica dos materiais

    Já estivemos bem mais embrulhados, em panos, rodeados por fibras, delicada ou grosseiramente entrançadas, a cobrir todos os objectos e todos os cantos e recantos. Mas eles, os panos, ainda lá estão.

    Estão descidos sobre as nossas janelas, estão repousados sob os nossos pés, estão embrulhados em cadeiras e sofás, capturados entre o colchão e a cama, até invisivelmente entalados em recheios de paredes e tectos. Lã de rocha, lã de vidro.

    Como a roupa que escolhemos para nos envolver, as casas pedem o carinho do tecido. O abafo de roupa pesada, gramagem alta, ou a frescura de malhas, finas e abertas.

    White, Black, and Red Textile

    O tecido rodeia-nos, para dar silêncio. Poucos se apercebem que o tecido nos foi sendo retirado das vidas, quando fomos recusando os naperons de crochet que avós tricotavam, para ali pousarem, na televisão, no aparador, na mesa. Despimos as casas, e elas, nuas, se envergonham agora de frio, com gritos a baterem contra a sua pele e a atordoarem-nos os ouvidos.

    Deixem a vossa casa vestir-se, e ela absorverá o som, e dar-vos-à sossego.

    O fio de algodão em nós, padronizados em matemática, encostavam-se aos vidros para filtrar luz e a temperatura.

    O peso ondulado da cortina, em queda junto à parede, guardava-nos o pudor, nos resguardava a intimidade.

    leaves, windows wallpaper, 4k wallpaper

    O laço do felpo cobrindo o chão em alcatifa.

    O ponto apertado do tapete, a fita leve da passadeira.

    A nódoa de vinho tinto naquela toalha de mesa.

    Os pêlos da gata no canto das mantas, na cama.

    O vaivém das flanelas e dos linhos, em picos, nas primaveras e nos outonos.

    Pano. E aquele respirar junto com o mundo, no balançar do cósmico vazio.

    brown and white rug

    E no fim, a mortalha, embrulhem-me em musselina, e enterrem-me de pé, com uma árvore plantada na moleirinha.

    Quero sair da terra depois de morta e espreguiçar os braços no ar…

    … e no meio, o toque gentil do tecido, subindo o corpo. E só retirado se me puder vestir contigo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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