Etiqueta: Maria Carneiro

  • 50 sombras em tom Disney

    50 sombras em tom Disney

    Título

    Letra miudinha

    Autora

    LAUREN ASHER (tradução: Ana Cunha Ribeiro)

    Editora (Edição)

    Marcador (Outubro de 2022)

    Cotação

    6/20

    Recensão

    Tudo neste livro é miudinho, até o enredo: quando o avô morre, deixa a cada um dos netos uma participação numa empresa que vale milhares de milhões de dólares.

    No entanto, para poderem tomar posse da herança, cada um tem de cumprir algumas condições. Rowan, um dos herdeiros terá de reformular e apresentar um plano de recuperação para o parque de diversões estilo Disneyland, chamado Dreamland. Zahra é funcionária desse parque, e sempre sonhou fazer parte da equipa dos Criadores – as pessoas que imaginam novas atrações para o parque e as põem depois em prática.

    Num golpe de sorte, que na altura pareceu azar, Zahra, num momento de embriaguez, submete uma crítica a uma das atrações mais populares de Dreamland. Essa crítica chega às mãos de Rowan, que vê em Zahra imenso potencial como Criadora, promovendo-a. A partir daí, tudo muda.

    É também miudinho o estilo da autora, cheio de lugares-comuns e vulgaridades: “não digo nada e seguro-me ao apoio de braços. É-me oferecida uma visão muito próxima do seu traseiro, mal contido pela sua indumentária não regulamentar de calças de ganga e t-shirt. (…) ela roça contra as minhas pernas compridas com a graciosidade de uma girafa recém-nascida.” “Ela encolhe-se ao mesmo tempo que pega finalmente no seu caderno e se atira para trás para ficar sentada. O seu skate Penny escorrega-lhe do colo e aterra em cima dos meus sapatos de dois mil dólares.”

    Os vários capítulos vão alternando de narrador: ou Rowan ou Zahra. Ambos relatam os mesmos acontecimentos e vão avançando, na narrativa, com essas contribuições nem sempre coincidentes. A autora tenta dar um tom de romance erótico que, na maior parte das vezes, resvala completamente e faz-nos perder o interesse no livro.

    Pelo que sei, estamos perante um best-seller. É um sucesso no Tik Tok. Percebe-se. Trata-se, de facto, de um romance para leitores muito pouco exigentes, e é um daqueles livros descartáveis que não deixam saudade, e que não chegam sequer a entreter. A saga, pelos vistos, vai continuar, e este é apenas o primeiro volume que conta a história de um dos herdeiros: Dreamland Billionaires, Book 1. Seguir-se-ão outros. A ignorar. 

  • Há algo de podre no Reino da Dinamarca

    Há algo de podre no Reino da Dinamarca

    Título

    A trilogia de Copenhaga

    Autora

    TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Neste livro, Tove Ditlevsen faz-nos uma descrição pungente da sua vida (o livro é autobiográfico), não hesitando em entrar em caminhos confessionais, explorando temas como a infância, a maternidade e as dificuldades da mulher em se assumir como artista, sem pudor e sem subterfúgios. O livro está dividido em três partes: Infância, Juventude e Relações Tóxicas; e foi publicado, pela primeira vez, nos anos 60 do século XXI, na Dinamarca.

    Infância fala-nos sobretudo da sua meninice, num bairro pobre de Copenhaga, e na sua relação complicada com a família. A sua relação mais próxima é com o pai “no fundo da minha infância está o meu pai a rir-se e é negro e velho como a nossa salamandra mas não tem nada de assustador (…). Nunca me interpela por sua própria iniciativa porque não sabe o que dizer a meninas pequenas. De vez em quando, dá-me umas palmadas na cabeça e ri-se: ah, ah, ah. Nessas alturas a minha mãe torce a boca num esgar de desagrado e ele depressa retrai a mão.”

    Com a mãe é diferente: “Já tenho quase seis anos e em breve serei matriculada na escola, porque já sei ler e escrever. A minha mãe conta-o, cheia de orgulho a quem a quiser ouvir. Diz assim: os filhos dos pobres também têm cabeça”. O irmão goza constantemente com ela e, sendo o preferido da mãe, provoca-lhe ciúmes constantes e dolorosos. Um dia descobre o seu caderno de poesia e isso é mais um motivo para o gozo e o escárnio permanentes. Tove é uma criança infeliz, quase sem amigos, e que se deixa manipular facilmente por qualquer um que lhe mostre um pouco de interesse e atenção. Vai ser assim a vida toda.

    A segunda parte continua com a mesma toada: uma juventude cheia de problemas económicos, os poemas que continua a escrever às escondidas e as relações pessoais tumultuosas e muito pouco satisfatórias: amigos que se transformam em namorados (e em maridos) mas com quem ela, verdadeiramente, nunca cria laços. Para além disso, não consegue manter um emprego porque facilmente se desinteressa das suas obrigações e por um motivo mais ou menos trivial vai-se despedindo ou sendo despedida. Foi despedida como empregada doméstica, por ter esfregado um piano com água; foi ama seca de um menino que anunciou: “Tens que fazer tudo o que eu digo ou dou-te um tiro”. Sai de casa dos pais quando faz dezoito anos e vai morar para uma pensão que tinha o retrato de Hitler na parede; embarcou no primeiro dos seus quatro casamentos e teve um amante que lhe enviou cartas iguais às que escrevia a todas as suas amantes, como descobriu depois do fim do romance.

    Por volta dos 20 anos publicou o seu primeiro livro de poesia, e tornou-se famosa. Mas, nem por isso mais feliz.

    E, depois, nada nos prepara para a terceira parte: Relações Tóxicas. Ditlevsen, divorciada de um editor literário com quem casou só porque ele tinha aquela profissão, escapou das pressões desta segunda união condenada e nova maternidade, seguida de um aborto clandestino – que nos deixa um travo amargo pela forma como ela lidou com a situação e pelo facto de constatarmos acontecer, na Dinamarca, o mesmo que acontecia, em Portugal, no que diz respeito à educação sexual e à saúde da mulher –, e tropeçou nos braços do seu próximo marido, um médico silenciosamente perturbado, que preenche as suas necessidades como nenhum homem tinha feito antes, porque, para além de uma relação desigual, conflituosa e ciumenta a viciou em petidina.

    Diz ela que o medicamento tem um nome que “soa como o canto dos pássaros”. Quando o marido lho dá, imediatamente, a felicidade mental e física que ela oferece é infinitamente mais intensa do que tudo o que sentiu até então. “Eu sorri-lhe agradecida”, escreve, “e o fluido entrou no meu sangue, elevando-me ao único nível onde eu queria existir. Depois ele foi para a cama comigo, como sempre fazia, quando o efeito estava no auge. O seu abraço era estranhamente breve e violento.”

    À medida que a sua dependência se aprofunda, a narrativa torna-se total e agonizantemente compulsiva. Chega a um clímax doloroso, ainda mais comovente pelo facto de, após cinco anos de cativeiro no reino do vício, Tove consegue libertar-se quer do vício, quer do marido, mas nunca mais foi uma mulher inteira, apesar do amor com que foi rodeada pelo quarto marido e por Jabbe, a fiel criada que lhe tomava conta dos filhos nas suas ausências.

    Acabou por falecer aos 58 anos, por overdose.

    Um livro que é mais do que uma vida. É um testemunho histórico e um documento que nos ajuda a compreender, inclusive, a história daquele país.

  • O caminho faz-se caminhando

    O caminho faz-se caminhando

    Título

    Lincoln Highway

    Autor

    AMOR TOWLES (tradução: Tânia Ganho)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Recensão

    A Lincoln Highway é a estrada transcontinental mais antiga e a primeira construída para veículos motorizados, ligando as costas leste e oeste, dos Estados Unidos da América. O livro inclui, logo nas páginas iniciais, o seu mapa. É este percurso que Emmett Watson e o seu irmão Billy se propõem fazer, até à Califórnia, tentando fugir do passado e tentando encontrar a mãe que os abandonou, quando ainda eram crianças.

    Emmett Watson, o irmão mais velho, cometeu um crime, e pagou um preço por isso. Tem 18 anos e acaba de ser libertado da instituição de reabilitação, onde cumpriu a pena. Regressa à quinta onde cresceu, no Nebraska, e tenciona juntar-se ao irmão mais novo, Billy, uma vez que, entretanto, o pai de ambos morreu, falido e na iminência de perder a quinta, penhorada pelo Banco.

    À sua espera, Emmett, para além do irmão, tem o seu Studebaker Land Cruiser, de 1948 e para sua surpresa um envelope, com um valor considerável em dinheiro, deixado pelo pai, acompanhado por uma carta em que lhe pede que recomecem a vida noutro lugar. É isso que tencionam fazer, mas o destino troca-lhes as voltas.

    Por peripécias várias, nomeadamente o facto de outros dois jovens, Duchess e Woody, a cumprir pena na mesma instituição, se terem escondido no porta-bagagem do carro do diretor, e aparecido, de surpresa, a um Emmett estupefacto, antes de lhe roubarem o carro.

    Assim, em vez de rumarem à Califórnia, os dois irmãos fazem a viagem, de comboio, no sentido inverso, e vão para Nova Iorque, destino provável dos dois amigos.

    Aquilo que prometia ser um romance on the road transforma-se, então, noutra coisa, e essa é apenas a primeira surpresa que nos reserva o autor.
    O livro transporta-nos pela América dos anos 50, onde acompanharemos as várias personagens/narradores durante dez dias.

    Numa contagem decrescente, o livro começa no capítulo dez e termina no um.  Com uma arquitetura narrativa muito original o narrador, em cada um dos capítulos, é diferente e várias vezes vemos as mesmas circunstâncias narradas de maneira diferente e com perspetivas diferentes dependendo de o narrador ser Emmett, Billy ou algum dos outros personagens como os dois amigos, Woody e Duchess ou Sally, a vizinha da casa do lado, que tem uma paixoneta por Emmett e tratou de Billy na ausência do irmão.

    Esse é um dos aspetos mais fascinantes do livro: os capítulos têm uma impressão digital; o tom, a abordagem dos assuntos e até o sentido de humor são pessoais e, ao fim de alguns capítulos, começamos a identificar facilmente o narrador.

    As aventuras alternadas dos vários narradores que deixam sempre um fio solto e que é retomado no capítulo seguinte criam uma sinfonia empolgante com muitas notas diferentes, de caóticas a assustadoras (um vagabundo, ameaça atirar Billy do comboio abaixo) a maravilhosas (a primeira visão de Manhattan, de Emmett, quando chegam a Nova Iorque), por exemplo.

    Billy é uma criança maravilhosa: um misto de mágico e filósofo fascinado por um livro que leva na mochila “Compêndio de Heróis, Aventureiros e Outros Viajantes Intrépidos”, de Abacus Abernathe, e que já leu, como faz questão de repetir, vinte e cinco vezes, funciona como o deus ex machina; não apenas desencadeia acontecimentos como também tem uma habilidade quase mágica de criar a história certa para os estranhos que vão encontrando ao longo do caminho.

    É ele que convence o irmão que o tal “recomeço de vida” deve ser feito em San Francisco onde ele acredita que a mãe está e tem sempre um pretexto para voltar ao livro que o faz acreditar que os grandes descobridores científicos podem viajar ombro a ombro pelos reinos do conhecido e do desconhecido aproveitando ao máximo a inteligência e a coragem, mas também serem ajudados por feitiçarias e encantamentos e a intervenção ocasional dos deuses.

    Quem ler a Lincoln Highway vai adorar a viagem por cerca de seiscentas páginas, que se leem com o prazer da evasão, algo que apenas alguns livros nos proporcionam.

  • Os dias últimos de Nicolau Coelho

    Os dias últimos de Nicolau Coelho

    Título

    A última curva do caminho

    Autor

    MANUEL JORGE MARMELO

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Nicolau Coelho, um reformado professor de Filosofia e escritor está a preparar-se para morrer. Anda na casa dos 80 anos e muda completamente a vida:  abandona a sua rotina citadina, separa-se da mulher, Alba, que não o quer acompanhar porque “Parecia um plano perfeito, mas não fui capaz de prever que Alba se recusaria a morar na vila, longe dos centros comerciais e dos salões de beleza, dos ginásios e do peeling ultrassónico, das amigas e dos hipermercados, do design de sobrancelhas e das sessões de alexandrite. Demasiado tarde compreendi que ela não abdicaria das ambições, da comodidade e dos projetos que tem, das viagens que ainda pretende fazer, talvez de um amante ou dois e da vertigem que já não lhe proporciono…” e vai viver para a vila da sua infância tentando reencontrá-la e, com isso, reencontrar-se a si.

    Cada capítulo conta uma história, num ritmo diacrónico que nos leva desde a infância, em África: “Vivíamos, o meu pai, a minha mãe e eu, como instalados numas férias perpétuas e sem maiores aborrecimentos do que os impostos pela necessidade de vigiar os pretos para que não se entregassem à preguiça e à vadiagem. Creio, por isso, que fui feliz em África, na fazenda onde o meu pai era capataz”, até às recordações da avó Adalgisa que foi viver para casa de Nicolau quando enviuvou e com quem aprende ladainhas e orações (há várias na íntegra em vários capítulos) e histórias de família e de antepassados que ele só conhece através das palavras da avó e ainda, no presente, as conversas com o Dimas, o dono da papelaria, “um homem amistoso e enérgico. Aprecio bastante cavaquear com ele, o que faço, sem falta, de cada vez que se me acaba o fumo e o pretexto para ir à varanda tomar um pouco do ar puríssimo e frio que nesta altura do ano sopra do lado da serra. Encontro-o quase sempre à porta do estabelecimento onde passa a maior parte do tempo, saudando quem passa e sorrindo para as raparigas novas.

    É um misto de poeta e filósofo e no livro há vários diálogos deliciosos entre os dois. “Entendemo-nos perfeitamente, o Dimas e eu. Se o cumprimento com alegorias do Evangelho de Nicodemo, ele responde com paráfrases de Álvaro de Campos” e a tentativa de compreender a história da sua prima Delfina que tinha sido internada num hospício por, durante meses, ter transportado o cadáver do pai, num carrinho de mão, para ir levantar a reforma, no posto dos Correios, com o uso das impressões digitais da “mão morta, mas ainda útil” numa descrição simultaneamente tétrica e divertida: “Os habitantes da vila estavam habituados a que Delfina chegasse à praça acartando Estanislau num carrinho de mão. Ela transpirava ofegante de quase correr, com o rosto encarnado e os músculos retesados pelo esforço de erguer e empurrar a carreta. O velho vinha lá deitado com as pernas abertas e parecia satisfeito: acenava com o cajado e mostrava um grande sorriso quase sem dentes.”

    A inspiração para continuar a escrever não chega e Nicolau Coelho confessa: “Vim para a vila sem Alba – para recordar, mas também para morrer ou escrever, consoante o que acontecesse mais depressa. Mas não escrevo nada. Encaramo-nos de perto, cada vez mais próximos, o meu computador e eu. Opomos um ao outro as respetivas folhas em branco, a minha e a sua, como gémeos ciclópicos jogando ao sério.”

    Há também um mergulho nas redes sociais e nas notícias online para compensar o afastamento da cidade e das suas relações de uma vida. O livro aborda ainda a questão da inteligência artificial naquilo que interessa ao narrador: uma máquina que escreva livros. Pondera como seria uma máquina que escrevesse por ele romances, que tivesse na sua inteligência artificial um catálogo de milhares de livros para se guiar e lhe fosse possível redigir uma obra.

    Deixa de ter pressa e habitua-se aos ritmos do interior em abandono, reconstruindo memórias e protagonistas da história da sua família. Algumas personagens são inesquecíveis: Henrique Damião Coelho, o Cricas, o Quim pila de ouro, o Tronquinhas, o Fura Pitos, cada um deles a viver situações que nos prendem à narrativa e nos divertem e enternecem.

    A memória da mulher permanece sempre presente e esperança que ela apareça também. Nunca acontece. O desfecho é inesperado. A vida deixa de fazer sentido e, para o leitor, fica uma sentença do protagonista: Agora já não tenho necessidade de me justificar.

  • O magnífico voo do colibri

    O magnífico voo do colibri

    Título

    O colibri

    Autor

    SANDRO VERONESI (tradução: Cristina Rodrigues e Artur Guerra)

    Editora (Edição)

    Quetzal (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Sandro Veronesi é considerado um dos mais importantes romancistas italianos dos últimos trinta anos e é um (o outro é Paolo Volponi) dos dois únicos que ganharam duas vezes o Prémio Strega, o mais prestigiado prémio literário entre os que reconhecem obras em italiano. 

    Nasceu em Florença, em 1959, e licenciou-se em arquitetura. Entre os seus livros destacam-se: Caos calmo, adaptado ao cinema e interpretado por Nanni Moretti, nomeado como actor para o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2008.

    Este, O colibri, publicado em Portugal pela Quetzal, terá também, em breve, uma adaptação ao cinema. O livro é um excelente romance que impõe uma releitura, porque é riquíssimo em referências e pormenores que nos prendem desde o início, e sendo tantos e tão ricos não os apreendemos a todos na primeira leitura.

    O título remete para a alcunha que o protagonista, Marco Carrera, médico oftalmologista, tinha em criança, dada pela sua mãe, por causa da sua pequena estatura, abaixo do percentil considerado normal. O problema físico resolveu-se, na adolescência, com um tratamento à base de hormonas de crescimento, mas Marco permanece toda a vida um colibri por causa da sua capacidade de permanecer no ar, apesar das adversidades.

    Numa carta que lhe é enviada por outra personagem, Luísa, é-lhe dito: “Consegues ficar parado no mundo e no tempo, consegues parar o mundo e o tempo à tua volta, às vezes consegues até remontar e recuperar o tempo perdido, tal como o Colibri és capaz de voar para trás. Por isso, é tão agradável estar ao teu lado.”

    O livro é uma saga familiar, marcada por uma sucessão de perdas e de impossibilidades que marcam profundamente Marco que, apesar de tudo, se reergue, se reorganiza voltando a cair e a organizar-se, numa vertigem de perdas irreparáveis (a morte de uma irmã, o afastamento do irmão, a doença do pai e depois da mãe de quem tem que cuidar até à morte) e a vivência de relações fortes tecidas com uma ternura que nos comove (a filha, com problemas psiquiátricos, de quem fica responsável quando se separa da mulher,  a neta linda, Miraijin, de uma beleza exótica, que vem encher de alegria e esperança a parte final da vida do protagonista).

    O mais surpreendente, contudo, é a voz do narrador polifónico: a correspondência entre Marco e Luísa, que vivem um amor sempre no limbo, sempre a pairar e só no final do livro percebemos na sua totalidade, os telefonemas, com outros personagens que aparecem transcritos assim como as SMS e os e-mails, versos citados, frases de outros romances inseridas no discurso, alusões frequentes a outras formas de arte, músicas e letras de canções, obras de arte e de design, mistura de ficção e realidade, títulos de livros e, um dos capítulos, é até a adaptação (ou transcrição?)  de um conto de Beppe Fenoglio, Il gorgo. O autor explica-nos todas essas referências no final do livro.

    A narrativa não está organizada linearmente, oscila no tempo, há penumbras que antevemos e só mais tarde se iluminarão, ora pelas analepses proporcionadas por jogos de memórias, ora pelas prolepses que antecipam momentos decisivos para as personagens. Mas o ritmo é encantatório com uma beleza de linguagem sem notas dissonantes que não conseguimos deixar de seguir numa leitura que não conseguimos largar.

  • Uma família infeliz, à sua maneira

    Uma família infeliz, à sua maneira

    Título

    A cláusula familiar

    Autor

    JONAS HASSEN KHEMIRI (tradução: Joana Neves)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    08/20

    Recensão

    Um livro que parte de uma premissa banal (uma família, como todas as outras) e que termina num romance banal, que não deixa marcas de espécie nenhuma, excepto um enorme bocejo.

    Começa: “Um avô que é pai volta ao país que nunca deixou.  Está na fila para o controle de passaportes. Se o agente por trás do vidro fizer perguntas desconfiadas, o pai que é avô vai manter a calma”.

    O mote está dado. As personagens não têm nome. Temos o avô que é pai, temos o filho que é pai, temos a filha que ainda não é mãe. Temos a irmã que é filha, mas que já não é mãe, e temos o filho que é pai, mas que não quer voltar a ser, e todo um conjunto de relações familiares e de lugares comuns e acontecimentos sem interesse que nos entedia ao fim de poucas páginas.

    O avô, que é pai, é um velho que, duas vezes por ano, visita os filhos, na Suécia. É uma pessoa difícil, frequentemente preconceituosa, constantemente crítica, e a sua visita parece ser mais motivada por questões práticas do que por afecto: um acordo tácito, a tal claúsula familiar, vincula o filho a ocupar-se dele nesses regressos bianuais e a manter um apartamento em seu nome, para assim ele poder escapar-se aos impostos no seu país de origem.

    Nesta visita, que acompanhamos desde a sua chegada ao país,  o avô, que é pai, estará dez dias. O livro começa numa quarta-feira e cada capítulo tem o nome do dia da semana a que diz respeito.

    Como diria Tolstoi: todas as famílias felizes se parecem, as infelizes são, cada uma, infeliz à sua maneira.

    Esta é uma família infeliz, e o autor faz-nos a descrição detalhada da limpeza que fez ao apartamento preparando-o para a chegado do pai, que é avô, mas que, rapidamente, regressa a casa porque tem os filhos para cuidar, uma vez que optou por gozar a licença de paternidade, na íntegra, o que faz com que fique sozinho com os filhos, todo o dia,  enquanto a mãe vai trabalhar criando, ao fim de pouco tempo, tensão entre o casal e os pais e os filhos, que são netos, o que acaba por se estender ao avô que veio de visita mas não se sente bem-vindo.

    Os encontros familiares são, também eles, sempre tensos porque o avô, que é pai, nunca está satisfeito com nada: a refeição que o filho preparou, o atraso da nora para o jantar, o facto de não o terem ido buscar ao aeroporto, e sido obrigado assim a fazer uma viagem de autocarro numa noite fria e chuvosa, o encontro com a filha que já mãe e está novamente grávida e a contas com a vida e com um casamento insatisfatório.

    Só o avô, um patriarca orgulhoso, é perfeito – de acordo com ele próprio, pelo menos e, nas suas palavras (há vários diálogos que ele tem com estranhos como taxistas, por exemplo), quando faz elogios aos filhos, na sua ausência. Em presença deles, é insuportável, e todos desejam que os dez dias acabem depressa para que ele regresse ao seu país, até à próxima visita.

    O livro pretende ser um tributo às famílias, às suas dinâmicas, aos seus limites e aos seus silêncios, mas, na minha opinião fica muito aquém.

  • As estradas que Bandini tece

    As estradas que Bandini tece

    Título

    Estrada para Los Angeles

    Autor

    JOHN FANTE (tradução: Vasco Gato)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Estrada para Los Angeles foi escrito em 1933, e é o primeiro de quatro volumes hoje conhecidos como The Bandini Quartet. Os outros são: A Primavera há-de chegar, Pergunta ao Pó, do qual já fizemos recensão, e Os sonhos de Bunker Hill.

    Arturo Bandini tem, neste romance, 18 anos, perdeu o pai e, vivendo com a mãe e a irmã adolescente, Mona, não tem outro remédio senão começar a trabalhar em empregos duros e mal pagos, que ele vai abandonando por vontade própria, ou porque o despedem, uma vez que o seu sonho é ser escritor.

    Entretanto, vai lendo livros da Biblioteca, de autores que não compreende – como Nietzsche e Schopenhauer –, mas que cita a torto e a direito para grande espanto, quer da família, quer dos colegas de trabalho, na sua maioria latinos e asiáticos, que mal sabem falar inglês. Em casa tem uma relação conflituosa com as mulheres da família que não o entendem:

    “ – Onde está a Mona? – perguntei.

    A minha mãe disse-me que ela estava na Igreja e eu disse: – A minha própria irmã reduzida à superstição da prece! Sangue do meu sangue. Uma freira, uma adoradora de Deus! Que barbaridade!

    – Não te ponhas outra vez com essa conversa – disse ela. – Tu não passas de um miúdo que lê demasiados livros.

    – Isso é o que tu pensas – disse eu. – É muito evidente que tens uma obsessão.

    A cara dela empalideceu

    – Uma quê?

    – Esquece – disse eu. – Não vale a pena falar com brancos, saloios, broncos e imbecis. O homem inteligente emprega certas reservas na escolha dos seus ouvintes.”

    E refugia-se no quarto, onde tem uma coleção de revistas pornográficas “Artistas e Modelos”, com fotos de mulheres nuas a quem trata pelo nome e com quem tem grandes conversas: “Passei uma hora a falar com elas, subi às montanhas com a Elaine e fui aos mares do Sul com a Rosa e, por fim, reunido com todas elas espalhadas à minha volta, disse-lhes que não tinha favoritas e que cada uma delas teria a sua oportunidade à vez.”

    E, logo de seguida desilusões: “Porém, daí por um bocado, fiquei extremamente cansado, sentindo-me cada vez mais idiota, até que comecei a odiar a noção de que elas não passavam de fotografias, planas, só com um lado e tão semelhantes na cor e no cheiro. E todas elas cheiravam a puta. (…) Mas que belo super-homem me saíste! E se o Nietzsche te pudesse ver agora? E o Schopenhauer? O que pensaria ele? E o Spengler? Ah! Como o Spengler havia de berrar contigo!”

    É, em suma, um revoltado, auto-proclamado génio literário, ateu, diz-se simpatizante do comunismo russo, tortura caranguejos na praia com uma arma de pressão de ar, e moscas na casa de banho, arrancando-lhes as asas.

    Tem um discurso que, por vezes, raia a loucura ou, pelo menos uma perturbação bipolar e, como escreve na primeira pessoa, temos acesso a essa loucura dentro da cabeça da personagem, enquanto desenvolve discursos megalómanos ou revoltas existenciais. E humor. Muito humor.

    No final do livro, Bandini foge de casa e vai procurar a glória em outras paragens. Deixa-nos os títulos dos livros que sabe que irá escrever, e que lhe vão dar a glória. Faz-nos acreditar nisso. Fante, o autor, deu-lhe razão.

  • África é outro planeta

    África é outro planeta

    Título

    Paraíso

    Autor

    ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Maio de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Abdulrazak Gurnah, o surpreendente prémio Nobel da Literatura de 2021 (ninguém estava à espera), nasceu em 1948, em Zanzibar, Tanzânia, mas vive, desde a década de 1960, no Reino Unido, para onde fugiu, devido às convulsões políticas, no seu país, que levaram à perseguição, de cidadãos de origem árabe, como é o seu caso.

    Começou a escrever aos 21 anos e a temática da sua obra passa pelos estudos pós-colonialistas, a vivência dos refugiados entre culturas e continentes, procurando sempre uma verdade que foge à explicação simplista e que é de alguém que sofreu na pele essa situação.  Para além disso, como profundo conhecedor do seu continente, Gurnah apresenta-nos uma África plural, multicultural, e não o retrato de um continente uniforme.

    África é, de facto, um caldeirão de culturas que o autor nos descreve, com mestria, trazendo-nos a sua sensualidade, cheiros e cores e beleza selvagem omnipresentes em toda a obra.

    A ação deste Paraíso, originalmente publicado em 1994, passa-se no tempo imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, ou seja, no preciso momento em que o complexo e tenso sistema social pré-colonial, da atual Tanzânia, se desmorona na presença dos primeiros europeus no território, os alemães.

    São eles uma presença mítica, neste romance, e de quem se diz que “comem ferro” e são “cintilantes homens encarnados com pêlos nas orelhas” e que, para além disso, “apoderaram-se das melhores terras sem pagar uma única missanga, forçam as pessoas a trabalhar para eles e, qual praga de gafanhotos, a sua voracidade não conhece limites ou pudor”.

    O romance conta-nos a história de Yusuf, que, aos doze anos, é entregue, pelo próprio pai, a um rico comerciante a quem se habituara a chamar tio. Parte um dia, com ele, numa viagem de comboio e “nunca ocorreu a Yusuf, nem por um instante, que iria ficar afastado dos pais por muito tempo ou que talvez não os tornaria a ver”. Foi isso mesmo que aconteceu.

    Na sua nova vida, como escravo, Yusuf soube, por Kahlil, companheiro de infortúnio de quem se tornará amigo, e lhe diz logo no primeiro encontro: ”Quanto ao teu tio Aziz, para começo ele não é teu tio (…) está aqui porque o teu Ba deve dinheiro ao seyyid. Eu estou aqui porque o meu Ba lhe deve dinheiro…só que já morreu. Deus tenha piedade da sua alma”.

    E é neste mundo que a criança vai crescer e tomar consciência de que aquele a quem chamava tio não é, realmente, seu tio e sim seu senhor, “um comerciante implacável de subtis odores e modos”, hábil nos negócios e admirado (e invejado) por muitos.

    Grande parte do livro narra, precisamente, a expedição de Aziz e Yusuf e uma caravana enorme de transportadores e servos, capatazes e guias através da África profunda, numa viagem de milhares de quilómetros comercializando vários produtos e matérias primas que trocam, compram, vendem e dão de tributo a tribos por onde vão passando, sofrendo as mais variadas violências e ataques quer de animais, quer de homens.

    Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar num único dia e algumas quedas de água majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica.” disse o autor, numa entrevista ao El Pais. E de facto é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer noutro lugar qualquer. “O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, acrescentou Gurnah, na mesma entrevista.

    Nessa viagem Yusuf deixa de ser criança, mas continua a importar-lhe mais a beleza das paisagens por onde passam, no coração do país, e a do jardim da casa do seu senhor e as histórias que ouve aos seus companheiros de viagem e aos habitantes dos lugares por onde vão passando, do que a sua própria liberdade. Yusuf é um escravo, mas não se sente como tal, e só mesmo no final do livro veremos um gesto de resistência e de libertação, surpreendente pela decisão inesperada que toma.

    Um livro de uma agradável leitura misto de romance, novela, literatura de viagens e História.

  • O cãozinho riu! De que ri, Bandini?

    O cãozinho riu! De que ri, Bandini?

    Título

    Pergunta ao pó

    Autor

    JOHN FANTE (tradução: Rui Pires Cabral)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Arturo Bandini é uma fraude. Arturo Bandini é um fiasco. Arturo Bandini é um sedutor de quem não conseguimos deixar de gostar.

    Trata-se do alter ego do autor John Fante e Pergunta ao pó é um romance semi-autobiográfico. Bandini é um jovem escritor frustrado que conseguiu publicar, numa revista, o conto “O cãozinho riu”, que teve um moderado sucesso e que durante algum tempo lhe alimentou o ego e a vaidade.

    Convencido que teria sucesso como escritor mudou-se do Colorado para um hotel de Los Angeles onde rapidamente cai numa espiral de falta de imaginação, de falta de dinheiro e fome e arrasta-nos com ele:  “nasceste pobre, filho de camponeses depauperados, empurrado para aqui e para ali porque eras pobre, fugido do teu Colorado natal porque eras pobre, e agora erras pelas sarjetas de Los Angeles porque és pobre e esperas escrever um livro que te faça rico, pois aqueles que te odiavam no Colorado deixarão de te odiar se o escreveres”.

    Nessa vertigem o estilo de escrita é avassalador e, por vezes, aqui e ali temos dificuldade em manter o pé porque o autor arrasta-nos para o seu imaginário e temos dificuldade em o distinguir da realidade vivida. “Apavorado por lugares altos também e por sangue e por terremotos; fora isso, bastante corajoso, excetuando a morte, exceto o medo de que eu vá gritar numa multidão, exceto o medo de apendicite, exceto o medo de problemas cardíacos, a tal ponto que, sentado no seu quarto segurando o relógio e apertando a veia jugular, contando as batidas do coração, ouvindo o ronrom e o zunzum do seu estômago. Fora isso, bastante corajoso.”

    Mas o que nos é narrado em Pergunta ao pó não se resume a um relato das privações e agruras sentidas pelo jovem escritor. Que o diga Charles Bukowski, autor do prefácio: “Eu era novo, passava fome, bebia e tentava ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, mas nenhum desses livros parecia ter qualquer relação comigo. (…) Até que um dia, ao abrir um certo livro, encontrei o que procurava. Fiquei ali, de pé, por uns momentos, a ler. Depois, como um homem que descobre uma pepita de ouro, numa lixeira, levei o livro até uma das mesas. As frases corriam ligeiras pela página fora, havia como que um fluir. Cada uma delas tinha uma espécie particular de energia e era seguida por outra semelhante. (…) Eis ali, finalmente, um homem que não temia as emoções. (…) O começo daquele livro foi para mim um violente, um enorme milagre.”

    Faz, de facto, um retrato vívido e vibrante da América dos anos 30. Uma América cheia de contrastes, rica em cores e culturas, mas também de muita miséria, e muito preconceito. Bandini vive intensamente tudo isso. Apaixona-se perdidamente por Camilla Lopez, uma mexicana empregada num café, que frequenta, e tem com ela uma ligação de amor e ódio numa relação conflituosa e desequilibrada, enquadrada por um triângulo amoroso com Sammy, um colega de Camilla.

    Quando recebe algum valor pela publicação de um conto, esbanja-o em roupas caras, bons restaurantes e bares de striptease. E depois tem momentos desconcertantes de sentimentos de ternura, de desespero e de muito humor: “Arturo Bandini sentado em frente à máquina de escrever dois dias seguidos, ininterruptamente, determinado a vingar. Mas não resultou; sofreu o mais longo cerco da mais dura e implacável determinação de toda a sua vida, e não escreveu uma única linha, mas apenas uma palavra, repetida pela página inteira, de cima a baixo, uma palavra só: palmeira, palmeira, palmeira, uma batalha mortal entre a palmeira e eu, e a palmeira ganhou: vi-a lá fora, a balouçar sob o ar azul, a ranger docemente sob o ar azul. Ao fim de dois dias de batalha, a palmeira levou a melhor e eu esgueirei-me pela janela e sentei-me debaixo dela.”

    O romance termina tragicamente na procura de um amor que nunca foi correspondido, e que o fez sofrer, mas também lhe deu alento.

    A tradução de Rui Pires Cabral é irrepreensível. O livro: uma obra-prima.

  • A metamorfose de um beijo

    A metamorfose de um beijo

    Título

    Para acabar de vez com Eddy Bellegueule

    Autor

    Édouard Louis (tradução: António Guerreiro)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Este livro tem como tema central a homofobia. A vítima é o narrador. É também autor porque se trata, de facto, de um romance quase autobiográfico.

    Não no sentido em que o são todos (dificilmente escalpelizamos, com coerência, emoções e sentimentos sem que os tenhamos vivido), mas no sentido em que o autor foi, de uma forma constante, vítima de bullying durante toda a sua infância e parte da adolescência. 

    As descrições que Eddy, a personagem principal, faz de algumas das agressões de que foi vítima são perturbadoras e dolorosas. “Da minha infância não tenho nenhuma recordação feliz”.

    Começa assim. “No corredor apareceram dois rapazes, o primeiro, grande, de cabelos ruivos, e o outro pequeno, de costas arqueadas. O matulão de cabelos ruivos escarrou. Toma lá nesse focinho (…) No corredor, perguntaram-me quem eu era, se era eu o Bellegueule de quem toda a gente falava. Fizeram-me esta pergunta que depois repeti incansavelmente durante meses, anos

    És tu o paneleiro?”

    Era. E a forma com que o tratam por causa dos trejeitos, da forma de falar, do facto de só se relacionar com raparigas, e não gostar de jogar futebol e de participar em outras brincadeiras “próprias de rapazes”, é de uma violência devastadora. Da parte desses dois agressores, mas também da família, uma vez que havia toda uma espiral de violência e humilhação na história trágica dos pais, como se de uma maldição herdada se tratasse, dos vizinhos, da avó, da escola, da aldeia toda.

    Édouard Louis, o autor francês, nasceu em Hallencourt (Picardia) no ano de 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris.

    Este romance foi dedicado ao filósofo e sociólogo, Didier Eribon autor de Regresso a Reims, sendo o seu livro de estreia. Entretanto, já publicou outros, com igual sucesso.

    Este é composto por duas partes, “Livro I” e “Livro II”, respetivamente, “Picardia (final dos anos 1990 – início dos 2000)” e Falha e fuga”, seguido de um epílogo, e é surpreendente que o autor o tenha escrito com apenas 19 anos de idade, uma vez que revela uma maturidade e autenticidade surpreendentes.

    As experiências narradas retratam um universo onde a pobreza, o consumo de álcool, e outras dependências, são omnipresentes numa aldeia onde a reprodução social leva as mulheres a tornarem-se caixas de supermercado, após terem abandonado, precocemente, os estudos; e os homens a mudarem-se da escola para a fábrica, logo que possam trabalhar.

    Foi a este destino que Eddy quis fugir. Um combate duplo: para além do contexto social sufocante e castrador, tinha um corpo que não obedecia aos ditames sociais.

    As namoradas com quem se forçava a relacionar-se não lhe despertavam o desejo: “Não conseguia simular o desejo. Tentei pensar noutra coisa para que o meu sexo se erguesse e a Sabrina se sentisse tranquila, mas quanto mais me concentrava mais as hipóteses de despertar a minha excitação se tornavam improváveis e longínquas”.

    O corpo, com vontade própria, só se excitava com a visão, ou com o toque, de um corpo masculino. Depois de se ter convencido disso “o meu corpo nunca mais deixou de se rebelar contra mim, chamando-me para o meu desejo e aniquilando todas as minhas ambições de ser como os outros, de gostar também de raparigas”, Eddy fugiu. Ir estudar numa Escola de Teatro, longe da aldeia, longe da família, longe de tudo o que o fazia sofrer, pareceu-lhe a única saída. Mas o passado seguiu-o. Acaba assim:

    “Estamos no corredor, diante da porta 117, à espera da professora, a senhora Cotinet.

    Alguém chega.

    Tristan

    Interpela-me

    -Então, Eddy, continuas bicha?

    Os outros riem

    Eu também.”

    Apesar de ser um romance com uma linguagem crua e dura é também comovente e terno. Uma belíssima descoberta.