Etiqueta: Maria Carneiro

  • Um origami japonês

    Um origami japonês

    Título

    Mil grous

    Autor

    YASUNARI KAWABATA (tradução: Mário Dias Correia)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Agosto de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Esta história conta-se em duas linhas: Chikako, uma terrível e temível alcoviteira, antiga amante do pai de Kikuji, o protagonista, cria uma rede de mentiras para envolver todos os intervenientes: as jovens que ela faz questão de apresentar a Kikuji, a mãe de uma delas e os pais dele, ambos já falecidos. Tudo o resto é mestria pura do autor, uma linguagem suave, mais abstrata que descritiva, aproximando-se muitas vezes da prosa poética. 

    Outra ‘protagonista’ é a tradicional cerimónia do chá do Japão, cuja subtileza nos escapa muitas vezes por ser rica em símbolos e significados nem sempre são claros. A arte do chá, na qual Chikako é exímia, promoverá tanto aproximações quanto desencontros, sendo o pretexto que ela usa para se insinuar nas vidas alheias.

    O tradutor manteve os nomes dos objetos e dos locais envolvidos no ritual, com os termos no original. No entanto, uma nota de edição logo no início do livro, ajudam na sua compreensão.

    Os mil grous, título do livro, são também importantes na cultura japonesa: o grou, ou tsuru, é uma ave sagrada no Japão. Simboliza a longevidade, pois nas lendas vive mil anos. Diz-se que fazer mil origamis de tsurus traz a realização dos desejos. No romance, porém, os mil grous não são garantia de sorte, saúde, paz ou longevidade. As personagens não contam com as graças da ave mítica.

    Página a página, aquilo que começa com um monólogo interior de Kikuji, vai-se tornando cada vez mas denso. As suas recordações de infância trazem-lhe a memória do tempo em que Chikako esteve envolvida com o seu pai, o sofrimento da mãe a que assistiu impotente, o que faz que crie uma aversão enorme a essa mulher que, no entanto, e de forma abusiva se vai insinuando na vida do jovem, trazendo-lhe notícias que ele não pede, organizando cerimónias de chá na sua própria casa e à revelia da vontade dele. E, tudo isto, com uma contenção enorme de descrições. Cada linha de diálogo, cada descrição parecem extremamente importantes, talvez precisamente porque há tão pouco texto descritivo.

    Muito daquilo que se passa com os personagens sentimo-lo mais do que lemos. Há só pequenos indícios e pequenas pistas, num texto de uma contenção enorme que nos faz desejar mais. Yasunari Kawabata consegue uni elementos como sexo, sensualidade, luto, traição, calor e perda de valores orientais para nos contar uma história que, apesar de simples e linear, nos prende nas suas pouco mais do que 170 páginas.

  • A cláusula familiar

    A cláusula familiar

    Título

    A voz das mulheres

    Autora

    MIRIAM TOEWS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (edição)

    Alfaguara (Setembro de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    “O que se segue é fruto da imaginação feminina” – frase do início do filme inspirado neste livro.

    A história, arrepiante, passou-se numa comunidade religiosa rural, de menonitas, em Manitoba, na Bolívia. Trata-se de um acontecimento real que Miriam Toews ficciona após a prisão dos agressores sexuais, de um grupo indeterminado de mulheres (fala-se em várias centenas), que violaram, repetidamente, e ao longo de anos, depois de as adormecerem com recurso a uma substância química, usada como anestesiante de bovinos.

    O livro desenvolve-se através de uma série de diálogos transcritos por August Epp, um professor recentemente readmitido na colónia depois da excomunhão, anos antes, dos seus pais por terem feito circular literatura proibida pelos líderes religiosos.

    A narrativa anda à volta do relato dos ataques levados a cabo durante a noite, por parte do que alguns membros da comunidade afirmaram serem fantasmas ou demónios. Outros culpavam a “imaginação feminina selvagem” – até que vários dos homens por trás dos ataques são descobertos e detidos. O irónico é que essa detenção serve, não para os punir, mas sim para os proteger da fúria de algumas mulheres.

    Enquanto os homens se dirigem à cidade para resgatar os acusados, oito mulheres– entre elas, Ona Friesen, grávida do filho do seu violador, e a adolescente Neitje, cuja mãe se suicidou – reúnem-se, secretamente, num palheiro para decidir como responder aos acontecimentos. Elas têm apenas dois dias para decidir o que fazer antes dos homens regressarem.

    É Ona que convida o pária da cidade, para servir como escrivão. Ela quer que o encontro seja registado para a posteridade e, na comunidade, apenas os homens podem aprender a ler e escrever. E August fá-lo em inglês, uma vez que depois da excomunhão os pais emigraram para Inglaterra.

    Miriam Toews explora um universo de pensamentos revelador sobre género, justiça, liberdade e poder. No entanto, o seu objetivo não é tanto o trauma dessas mulheres, mas a sua capacidade de sobrevivência e resiliência. Numa entrevista, a autora diz: ‘Eu precisava de escrever sobre essas mulheres. Eu podia ter sido uma delas’. De facto, ela própria nasceu numa comunidade menonita do Canadá.

    Em vez de insistir nos crimes, Toews confere um poder extraordinário às suas protagonistas, enquanto elas discutem sobre a melhor forma de permanecer fiéis a um sistema que as traiu tão brutalmente. O resultado improvável é uma lição magistral de ética e, surpreendentemente, dado o título, A voz das mulheres, ser narrado por um homem, acrescenta-lhe uma ironia inesperada. Depois de tudo o que passaram, as ideias das mulheres passam a ser o centro, e elas conseguem fazer com que um homem escreva aquilo que elas pensam e dizem.

    A voz das mulheres funciona assim como um diálogo socrático. Elas tornam-se construtoras do seu próprio futuro. À medida que o romance avança, tornam-se cada vez mais conscientes desse futuro. Discutem acaloradamente sobre a escolha das palavras, procurando não apenas clareza, mas também precisão.

    Ao ouvir as mulheres falarem, August pensa: “Lembro-me de como o meu pai me disse que os pilares gémeos que protegem a entrada do santuário da religião são a narrativa e a crueldade”. No celeiro, que se torna o santuário destas mulheres, contar histórias é um ato coletivo de libertação e de catarse mas também de clarificação. Sócrates ficaria satisfeito. 

  • Ciência pop

    Ciência pop

    Título

    Perguntas frequentes sobre o Universo

    Autores

    JORGE CHAM e DANIEL WHITESON (tradução: Joana Honrado)

    Editora (Edição)

    Saída de Emergência (Julho de 2023)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Desde 2019, a coleção “Eu amo Ciência”, através da Dessassossego, a chancela de não-ficção da Saída de Emergência, assume como objetivo “revolucionar a forma como se divulga a ciência em Portugal e conquistar espaço e visibilidade para a ciência nas livrarias”, acrescentando ainda que “pretende divulgar a ciência e o método científico”, e nessa tarefa “não pretende confrontar nem antagonizar, mas sim dar a conhecer”.  

    Tem cumprido, e tanto assim que já lançou 24 títulos em apenas três anos, sendo que Perguntas frequentes sobre o Universo é um dos mais recentes.

    Mas, antes, os autores: Jorge Cham e Daniel Whiteson. O primeiro é doutorado em Robótica/Engenharia Mecânica pela Universidade de Stanford e colabora com o The New York Times, The Washington Post, The Atlantic, Scientific American, entre outros. É, ainda, o criador do popular site PHD Comics. Daniel Whiteson é professor de Física na Universidade da Califórnia. Colabora com Jorge Cham em comics e vídeos explicativos de ciência que são visualizados por milhões de pessoas, em todo o mundo. 

    Este é, como o título indicia, um livro de perguntas e respostas do género: Por que razão os extraterrestres ainda não nos visitaram? Por quanto tempo sobreviverá a Humanidade? Serão os seres humanos previsíveis? Onde se situa o centro do Universo? E outras do género. 

    Os autores informam que respondem às questões como cientistas e não como engenheiros. “Um físico dirá que algo é possível se não conhecer uma lei da física que o impeça”. Assim, uma nave espacial a viajar a uma velocidade suficiente para alcançar a estrela mais próxima num período de tempo razoável não é impedida pelas leis da física, no entanto, explicam, é impossível construí-la para esse fim. Da mesma forma, buracos de minhoca (wormhole), a nossa versão moderna de espaço-tempo, e viagens no tempo “não são considerados impossíveis” – assim como muitos outros cenários. Por outro lado, por exemplo, prevê-se que um asteroide possa atingir a Terra, que o Sol explodirá e a raça humana será extinta, mas estudos afirmam que nenhum desses acontecimentos é uma ameaça imediata.  

    Assim, mantendo-se fiéis à ciência pura, os autores oferecem uma visão alicerçada em conhecimentos profundos das matérias que tratam, tentando, ao mesmo tempo, torná-la acessível ao público em geral e, parece-nos, ao público jovem.

    Trata-se de um livro híbrido, entre uma tentativa de explicação racional de problemas que nos intrigam a todos, mas, ao mesmo tempo, quer chegar a toda a gente, com piadas, às vezes a despropósito, com ilustrações profusamente espalhadas por todas as páginas, cheias de “pseudo-humor”, apartes e desenhos animados para servir como introdução a conceitos que requerem muito mais estudo uma total compreensão.

    É, por isso, acaba por se tonar num um livro de Ciência Pop, que não nos convenceu de todo.

  • Mãe não há só uma

    Mãe não há só uma

    Título

    Vínculos ferozes

    Autora

    VIVIAN GORNICK (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Há livros que escrevem a sua própria história, sem que se perceba porque são ignorados quando são publicados, e têm um sucesso enorme tempos depois. Foi o que se passou com este Vínculos ferozes. Foi publicado pela primeira vez em 1987, mas só acabou catapultado para o sucesso recentemente, pelos críticos literários do New York Times que o consideraram o Melhor Livro de Memórias dos Últimos 50 Anos.

    Os críticos elogiaram-no pela avaliação crua e honesta que a autora faz sobre uma relação habitualmente não escrutinada nem por ensaios nem por ficção: a relação entre mães e filhas. Neste caso, entre a própria Vivian e a sua mãe. Trata-se de um livro autobiográfico, que explora a natureza do vínculo mãe-filha e, surpreendentemente, nos mostra como nem sempre é um relacionamento saudável.

    Escritora de não-ficção e crítica literária, Gornick normalmente escreve sobre assuntos polémicos, incluindo política e questões de género, mas, neste livro, explora tópicos familiares sob novos ângulos: o que significa ser mulher, mãe e filha. Refclete sobre o seu próprio relacionamento com a mãe, “Ma”, e o que esse vínculo filial lhe ensinou sobre feminilidade.

    Há muitas maneiras de ser mãe, e as outras influências femininas são tão importantes para as filhas em crescimento, quanto a influência das próprias mães. É isto que a autora explora. O relacionamento de Vivian Gornick com a mãe é difícil. “A minha relação com a minha mãe não é boa e, à medida que as nossas vidas se acumulam, parece muitas vezes piorar. Estamos encerradas num canal relacional estreito, intenso e vinculativo” (pág. 12).

    Aos quarenta e cinco anos da autora, elas encontram-se regularmente para passear pelas ruas de Manhattan. Esses passeios levam-nas a recordações nostálgicas da Nova Iorque do tempo da infância de uma e idade adulta de outra. Os diálogos são, por vezes, amistosos e cheios de sentido de humor mas, na maioria das vezes, essas caminhadas são ofuscadas por níveis de desprezo, irritação e raiva tão fortes que a mãe chega a interpelar estranhos na rua e dirá: “Esta é a minha filha. Ela odeia-me”.

    A narrativa passa-se então entre estes momentos do presente e as memórias do passado da autora. Vivian Gornick começa o livro com uma das suas primeiras recordações: tem oito anos e mora num bairro judeu, no Bronx, com Ma, que passa a maior parte do tempo a julgar as vizinhas do prédio e o que elas fazem. Tudo é objeto de escrutínio, o que fazem, o que compram, com quem se dão socialmente. Quem entra e sai das suas casas.

    Gornick reflete sobre o papel da mãe na sua educação, mas escreve também sobre as outras mulheres que moldaram a sua juventude, transformando-a na mulher que agora caminha com a mãe. Está particularmente grata a Nettie Levine. Nettie morava do outro lado do corredor do prédio, da sua infância, e era o oposto de Ma: coquete, liberal e feminina. Encorajou Viviane a “flirtar”, namorar e a usar os seus encantos femininos. Para Gornick, Nettie e Ma representavam os dois modelos antagónicos de feminilidade, e ela lutou, ao longo da sua vida, para os conciliar. 

    A mãe é ousada e obstinada, ela realmente quer o melhor para a filha, mas adora controlá-la. A tensão aumenta em casa. A casa da vizinha é um refúgio para a adolescente. E é neste diálogo de aproximação e de ruptura que toda a narrativa do livro nos vai levando num vai e vem de amor e de ódio.

    Vivian ama muito Ma, mas não a vê através de lentes cor-de-rosa. Vê-a como ela realmente é: não a sua mãe, mas uma mulher imperfeita com tantos defeitos como qualquer outra pessoa. Só quando crescemos é que vemos os nossos pais como pessoas reais e isso nem sempre é uma experiência agradável.

    A autora escreve também sobre si própria na amizade, no casamento, como filha, como uma mulher que vive sozinha em Nova Iorque e como uma escritora que tem dificuldade em escrever. Há momentos em que descreve as suas lutas e os seus fracassos com tanta franqueza calma que parece não haver nada sobre si que tema falar.

    É, por tudo isto, um livro brilhante, que nos deixa a pensar, e permanece por muito tempo na nossa mente.

  • O incrível destino de Belle Gunness

    O incrível destino de Belle Gunness

    Título

    Os meus homens

    Autora

    VICTORIA KIELLAND (tradução: João Reis)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Este livro é estranhíssimo. Embora escrito na terceira pessoa, deve ler-se, na sua maior parte, como um monólogo louco, desesperado e perturbador de uma mulher com problemas de saúde mental que, amiúde, nos traz um discurso desconexo que temos dificuldade em seguir.

    “O corpo de Nellie era tão quente e macio, ela cheirava tão bem, e Brynhild deixou-se tombar para dentro, agarrou-se mais e mais à irmã e Nellie não a soltou. Algo na visão que Brynhild teve naquele momento, nos braços de Nellie, virou tudo de cabeça para baixo, a libertação selvagem, esse sentimento repentino, ela só queria agarrar-se a Nellie para nunca mais a soltar. Brynhild sentiu a respiração desdobrar-se no corpo, como se todas as asas de borboleta lhe arrancassem a alma pela boca, como se conseguisse finalmente respirar e ao ar abrisse caminho até aos pulmões.”

    Brynild é a protagonista, e durante a narrativa muda o seu nome, primeiro para Bella, e depois para Belle, numa busca desesperada de se tornar alguém novo e começar de novo. Nellie é uma sua irmã que vive nos Estados Unidos, para onde Brynild vai depois de uma experiência traumática que viveu na Noruega, sua terra natal, por volta de 1880. 

    Os factos são baseados na história real de uma mulher, muitas vezes referida como “a primeira assassina em série da América”, Lady Barba Azul, Princesa do Inferno e a viúva negra de La Porte. A sua notoriedade já lhe valeu um lugar no Guinness e fascinou fãs de crimes. Inspirou baladas, panfletos e livros de não-ficção, alguns filmes e documentários, e pelo menos um longo romance. Agora, a escritora norueguesa Victoria Kielland pegou na história e dá-nos uma visão nova da mesma. 

    Depois de um breve período a viver com a irmã, casa-se com um norueguês, Mads Sørensen, e mata-o. Depois casa-se com Peder Gunness, outro norueguês, mata-o também. Depois de Peder, começa a publicar anúncios em jornais atraindo homens solitários e com posses e vai matando-os, um a um, e enterrando os restos desmembrados no quintal.

    Victoria Kielland é brilhante em descrever pequenos momentos quotidianos que, numa mente deprimida, se transformam num desespero avassalador.

    “As recordações eram como uma sopa branca atrás dela, faziam um som de sucção sempre que ela mexia a cabeça, a pura morte por afogamento. (…) A luz que a encadeava entrava pela janela, caía sobre todas as coisas, deixava à vista pó e moscas, deixava tantas coisas à vista que Bella sentiu uma náusea e, no meio de um pântano como uma vegetação luxuriante e canais construídos com represas, no meio de braços e pernas, com os olhos no meio da cara, Bella não mais aguentou.”

    Não é uma leitura fácil nem confortável e é cansativo estar dentro da cabeça de Belle. Os mesmos detalhes e imagens surgem repetidamente, numa vertigem da loucura que vai aumentando à medida que os acontecimentos se sucedem.

    Apesar da brutalidade de algumas páginas, trata-se de um romance até poético e comovente e damos por nós a tentar desculpabilizar a protagonista e a tentar perceber as razões que a levaram a atos tão violentos na sua busca insaciável do amor.

    A tradução de João Reis é, como habitualmente neste tradutor, exímia e cuidada.

  • O passado que nos assombra

    O passado que nos assombra

    Título

    As mães

    Autora

    BRIT BENNETT (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora

    Alfaguara (Maio de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O livro começa no final. Numa comunidade negra e cristã no sul da Califórnia, Nadia Turner, uma jovem bonita, obstinada e ainda a sofrer pelo recente e inexplicável suicídio da mãe, envolve-se com o filho do pastor de uma das igrejas da localidade, Luke Sheppard.

    Aos 21 anos, Luke é um ex-atleta que trabalha como empregado de mesa num restaurante, depois de ter sofrido uma grave lesão numa perna que o afastou do campo de futebol, onde estava a ter uma carreira brilhante, e que o impede de seguir para a universidade, como pretendia, com uma bolsa de estudo.

    Dessa relação, resultou um segredo que vai marcar todo o romance e que dita o fim do relacionamento. Depois do afastamento dos dois, aparece a figura da doce Aubrey Evans, completando o conflituoso triângulo amoroso. Após o afastamento de Luke, Nadia e Aubrey tornam-se as melhores amigas, mas quando Nadia deixa a cidade para ir para a Universidade, Aubrey e Luke envolvem-se sem que Aubrey saiba do segredo do passado do namorado e da melhor amiga.

    As ramificações que se seguem vão acompanhar as três personagens, desde o fim da adolescência até o início da vida adulta, exercendo um impacto e ondas de choque capazes de influenciar as suas trajetórias de vida durante muito tempo, mesmo depois de passados os seus anos de juventude. Anos depois, eles ainda vivem à sombra das escolhas da juventude e da insistente dúvida: e se tivessem agido de forma diferente? As possibilidades dos caminhos não escolhidos tornam-se uma sombra implacável.

    Mas o que dá nome a este livro não é nenhuma destas personagens, e sim um grupo peculiar de senhoras que frequentam a Upper Room, a Igreja. Elas aparecem no livro em capítulos intercalados, quase como um coro grego a reforçar as opções ou não-opções das personagens e formam, como uma entidade, uma personagem em uníssono: os trechos em que elas aparecem são narrados na primeira pessoa do plural, e esse “nós” traz-nos a sensação de que elas são todas, mas também nenhuma.

    A história de Nadia é, assim, emoldurada por esse coro de vozes das alcoviteiras anciãs da igreja que servem de polícia da moralidade da comunidade:

    “Nós já fomos jovens. Embora não pareça. É claro, quem nos vê hoje nem imagina como éramos – a flexibilidade e o vigor já se foram, a pele do rosto e do pescoço caiu. É o que acontece quando envelhecemos. Tudo cai, como se o corpo estivesse a aproximar-se de onde veio e para onde vai voltar. Mas já fomos novas e bonitas, e isso significa que já amámos homens de merda. Não há maneira cristã de dizer isso. Existem dois tipos de homens no mundo: homens de verdade e homens de merda.” 

    Observadoras, contam-nos, nas suas narrativas, factos que muitas vezes ainda não eram muito claros para nós, leitores, ou revelam partes do passado das personagens, recordando-as enquanto conversam.

    Na pequena comunidade onde todos sabem da vida de todos, As mães sabem-na melhor que ninguém. As mães acompanham a história da mãe de Nadia sem compreender o seu suicídio; acompanham a ida de Nadia para a Universidade, assim como a sua longa ausência; acompanham o relacionamento de Luke e Aubrey e o seu desejo de terem um filho, e assim vão entrelaçando os fios das histórias de todos numa história extremamente profunda e comovente. 

    As mães é um livro sobre as consequências das nossas escolhas e a forma como estas moldam os nossos caminhos.

  • O quarto que fecha por fora

    O quarto que fecha por fora

    Título

    A criada

    Autora

    FREIDA MCFADDEN (tradução: Carla Ribeiro)

    Editora

    Alma dos Livros (Junho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Freida McFadden, a autora deste thriller psicológico, é médica e especialista em lesões cerebrais. Talvez, também por isso, o relato que faz de algumas personagens seja com conhecimento de causa, por mais inverosímeis que nos pareçam os seus actos. O cérebro humano é cheio de surpresas.

    Neste romance, a autora inventa cenários inesperados e fora do comum, que nos apanham sempre de surpresa. É uma história cheia de voltas e reviravoltas, daquele género de narrativas que não conseguimos largar, porque sabemos que a próxima página nos reserva sempre surpresas, e queremos sempre saber o que vai acontecer.

    O livro conta-nos a história de Millie, uma mulher recém-libertada da cadeia, por um crime que inicialmente desconhecemos, e que procura emprego. Mal acredita na sua sorte quando é contratada por Nina Winchester, como empregada doméstica interna. Millie dorme no carro e está em liberdade condicional, de forma que ter o seu próprio quarto e tratar, aparentemente, de funções domésticas sem grande dificuldade, lhe parece uma sorte incrível.

    A casa é maravilhosa, Nina recebe-a muito amistosamente, mas aquilo que inicialmente lhe parecia uma bênção foi aos poucos transformando-se num enorme pesadelo. A patroa parece deleitar-se em enlouquecê-la, criando situações de mal-entendidos e sujando e desarrumando a casa toda apenas para ver Millie a limpar e a arrumar. 

    Para piorar as coisas, conta mentiras estranhas sobre a sua própria filha, Cecelia, uma criança de nove anos, caprichosa e mal-educada e com quem Millie tem imensas dificuldades em lidar. O único que parece escapar a este cenário é Andrew, o marido de Nina, um perfeito cavalheiro, lindíssimo, sempre irrepreensivelmente vestido, com um grande emprego e um grande carro. Ama a mulher e trata-a, aparentemente, muito bem. O marido perfeito, em suma.

    A primeira parte do livro, dedicado a Millie, fala-nos, pois, das suas funções, na casa, do seu emprego e dos mau tratos que Nina lhe inflige, mas que ela vai suportando porque a última coisa que quer é voltar a dormir no seu carro e, sendo despedida, sabe que irá ter dificuldade em arranjar um novo emprego, com o cadastro que tem. Afinal, ter o seu próprio quarto, apesar deste ser um aposento onde só cabe uma cama e com um armário minúsculo, parece-lhe uma boa troca. Até descobrir que o quarto só se fecha à chave, do lado de fora. 

    Descobriremos, depois, terríveis segredos na segunda parte do livro, dedicado a Nina. 

    Se há uma coisa que a grande maioria dos thrillers têm em comum são as caracterizações claras dos vários personagens. Os protagonistas são invariavelmente os bons, enquanto que os maus são identificados com precisão e descritos de forma a atrair nossa antipatia, respeitando, assim, as convenções clássicas. Millie é inegavelmente a vítima, e Nina a vilã, que queremos que seja castigada. Assim, quando Millie se começa a apaixonar por Andrew, quase desejamos que a criada fique a viver com o patrão e a malvada patroa seja expulsa de casa. E isso acontece, mas, quando acontece, saber que aquele quarto só fecha do lado de fora começa a fazer todo o sentido. Ou não…  

    A maior parte do romance concentra-se nas relações entre estas três pessoas, altamente disfuncionais e atormentadas à sua maneira. Às vezes bem-humoradas, e outras vezes bastante terríveis e preocupantes, as interações que têm uns com os outros é o que faz mover a história. E McFadden sabe exatamente como aumentar, consistentemente, a perturbação que vamos sentindo à medida que o lemos sabendo, de antemão, que todas as personagens correm perigo, que não sabemos bem qual até à última página. 

    Do ponto de vista formal, o romance não traz nada de original, nem que mereça menção, mas o seu conteúdo não deixa o leitor indiferentes. Portanto, uma óptima leitura para o Verão.

  • Até para nascer é preciso sorte

    Até para nascer é preciso sorte

    Título

    Uma educação

    Autora

    TARA WESTOVER 

    Editora (Edição)

    Bertrand (Setembro de 2018)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Tara Westover é uma ensaísta e historiadora norte-americana. Em 2019 foi considerada pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do ano. Licenciou-se em Cambridge, em 2009, e no ano seguinte foi professora convidada da Universidade de Harvard. Mais tarde, regressou a Cambridge onde, em 2014, se doutorou em História com a tese “The Family, Morality and Social Science in Anglo-American Cooperative Thought, 1813–1890”.

    Uma educação, estreou em 1.º lugar na lista de best-sellers do The New York Times e foi finalista de vários prémios, incluindo o LA Times Book Prize, o PEN America’s Jean Stein Book Award e dois National Book Prêmio Círculo de Críticos. O New York Times classificou este livro como um dos 10 melhores de 2018.

    Talvez isso se justifique por ser-nos revelado, neste livro, as suas experiências dramáticas e perturbadoras.

    Tara é a mais nova de sete filhos de uma família mórmon, no estado do Idaho, nos Estados Unidos. A família fazia uma interpretação fundamentalista do mormonismo e estabelecia regras sobre todos os aspectos da vida de Tara, como seja o que poderia vestir, que hobbies e que contactos poderia ter com o mundo exterior. 

    Nasceu em casa, porque os pais desconfiavam de médicos, hospitais e medicamentos. Não foi registrada até aos nove anos de idade, e quando chegou a altura de o fazer ninguém sabia muito bem em que dia ou mês ela tinha nascido. Os pais também não acreditavam na Educação ministrada na Escola Pública, de forma que nenhum dos irmãos a frequentava.

    Foram educados pela mãe, e um dos irmãos mais velhos ensinaou Tara a ler, usando as escrituras da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos DiasApesar de estar no ensino doméstico, nunca prestaram provas, nem sequer fizeram uma redacção ou participaram em qualquer outra actividade de educação formal. A família via as escolas como parte de um exercício de lavagem cerebral, por parte do Governo. O seu pai, obviamente, e obrigando a família a ajudá-lo, armazenava armas e mantimentos, preparando-se para o fim do Mundo e para se proteger de qualquer tentativa do Estado em imiscuir-se na vida da família.

    “A minha família passava sempre os meses quentes a cozer e a enfrascar fruta para armazenar, pois o meu pai dizia que precisaríamos dela na Abominação da Desolação (…) Passamos o dia seguinte a descascar e cozer pêssegos. Ao entardecer tínhamos enchido dezenas de frascos, que foram preparados em filas perfeitas, acabadinhos de sair da panela de pressão”.

    Esta paranóia manteve-se mesmo em casos de emergência, como, por exemplo, quando a família se feriu gravemente num acidente de viação e recusou a ajuda médica por considerarem os hospitais e os médicos como agentes de um Estado maligno.

    Mesmo quando gravemente feridas, as crianças eram tratadas apenas pela mãe, uma curiosa do herbalismo e de outros métodos alternativos de cura, para além de praticar como parteira de uma forma clandestina. “O trabalho de parteira mudou a minha mãe. Era uma mulher adulta, mãe de sete filhos, mas pela primeira vez na vida era ela quem mandava. Cobrava cerca de quinhentos dólares por parto e esta foi a outra coisa que o trabalho de parteira mudou nela: de repente tinha dinheiro”.

    E, depois, havia a sucata. A sucata era o local de trabalho do pai e dos irmãos mais velhos, até que um dia passou a ser também o de Tara. Era um local onde se desenvolvia um trabalho de extrema violência e onde era necessária muita força física, algo que uma rapariguinha não tinha. Passou uma infância obrigada a trabalhar entre máquinas, sempre à beira de ser triturada pela maquinaria e sem que o pai demonstrasse um mínimo de preocupação.

    Quando crescesse, Tara sabia bem o que lhe estava destinado: aos 18 ou 19 anos “casava-me”; “o pai dava-me uma quinta” e “o marido fazia ali a casa”; a “mãe” ensinar-lhe-ia a ser parteira e “a usar ervas medicinais”. Os CDs de música clássica do irmão Tyler procuraram fazer a diferença na sua vida. Ouviu-os vezes sem conta. A música e a dança marcaram a sua adolescência – ainda que, mesmo aí, com mil cuidados, não pudesse usar roupa um tudo ou nada mais colada ao corpo. O pai chamava prostitutas às mulheres que o faziam. 

    Na primeira vez que usou batom, o irmão Shawn chamou-lhe galdéria – ela que, aos 15 anos, nada sabia sobre concepção, nunca beijara um rapaz, mas chegara a julgar poder estar grávida. Tyler, o irmão que gostava também de aprender com os livros, e se fechava no quarto a estudar contra a vontade paterna – “um homem não pode ganhar a vida com livros e folhas de papel”, “os doutorados eram Filhos da perdição” –, ajudou-a a dar o salto e a preparar o exame final dos estudos secundários que completou com sucesso.

    Depois disso, foi sempre em crescendo até entrar para uma das mais prestigiadas universidades do Mundo. No entanto, o trauma, as gravações dramáticas e a família neurótica, de quem se foi afastando, marcou-lhe a vida e, ainda hoje, embora ausentes da sua vida, continuam a assombrar-lhe os sonos.

  • O meu nome é Mulher, ontem e hoje

    O meu nome é Mulher, ontem e hoje

    Título

    Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro

    Autora

    SUSANA MOREIRA MARQUES

    Editora (Edição)

    Companhia das Letras (Abril de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Susana Moreira Marques já me tinha, agradavelmente, surpreendido com o seu livro: Agora e na hora da nossa morte.

    Aqui o relato é outro, mas igualmente envolvente e emocional. 

    De Maio de 1948 a Maio de 1950, foi publicado em fascículos, para fugir à censura, o livro As mulheres do meu país, de Maria Lamas. É uma obra considerada um marco monumental do jornalismo que levou a autora a percorrer o país e a contactar mulheres de todos os extratos sociais dando a conhecer aos seus leitores a vida das portuguesas, sobretudo as das zonas rurais, nos anos 40.

    Confrontada com a indiferença do Governo em relação à condição feminina em Portugal, Maria Lamas respondeu que “iria observar como vivem as mulheres portuguesas e confirmar se os seus problemas estão realmente resolvidos” e “imagina que pode ganhar algum dinheiro, imagina que pode provar que as mulheres não estão protegidas pelo país fora como o Governo dizia que estavam, talvez imagine mesmo que pode ajudar à mudança, ainda que não seja claro que aspeto terá essa mudança para as mulheres.”

    Foi assim que decidiu empreender a grande viagem por um Portugal ditatorial, subdesenvolvido e analfabeto. Encontrou miséria, ignorância, superstição, obscurantismo, falta de condições básicas de higiene e de salubridade e falta quase total de cuidados médicos.

    Viajou de autocarro, de carro, de carroça, a pé, de burro, subiu e desceu montes e vales, falou com centenas de pessoas, tirou centenas de fotografias, opinou, interpelou, confrontou, foi mais fundo e muitas vezes comoveu-se e entristeceu-se e quase sempre se revoltou.

    Relatou com realismo a vida das operárias, das intelectuais e das artistas. Fez um retrato pungente que ainda hoje nos impressiona pela magnitude e pela minúcia.

    Em 2022, setenta anos depois, Marta Pessoa, realizadora de cinema, aborda o processo de escrita deste livro, recorrendo aos diários e ao espólio de Maria Lamas, e faz o documentário “Um nome para o que sou”.

    Pede a Susana Moreira Marques, jornalista e escritora, que se junte a ela na reflexão sobre a própria matéria e forma do livro e as leituras e significados que pode trazer, na atualidade.

    Diante da câmara, Susana Moreira Marques procura colocar-se no lugar de Maria Lamas e olhar para o lugar que as mulheres ocupavam antes e ocupam hoje num diálogo e num jogo de olhares. Há o olhar de Maria Lamas sobre as mulheres, o olhar da escritora sobre Maria Lamas e o livro, e ainda o olhar da realizadora (do filme) que se envolve e simultaneamente observa todo este processo.

    Há as imagens e as palavras, de antes e de hoje. “Quando cheguei ao fim da viagem, o que aconteceu foi que, depois de ter gravado a voz off do filme [que estreou em 2022], percebi que o texto tinha uma vida própria e havia muito material ainda, que tinha escrito ou pensado e não tinha entrado, e decidi que precisava de continuar a escrever”, revela a escritora e jornalista.

    E é esta Susana que parte, país fora e nos conta: “Em 1949, eu não existia. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha o seu dinheiro, que não é casada, mas partilha a vida com alguém, que tem filhas pequenas e, em vez de ficar em casa a cuidar delas, viaja.” E diz-nos:

    “Fazes também, mentalmente, uma lista do que não levas:

    Não levas um marido.

    Não levas o pai.

    Não levas a autorização de um homem para viajar.

    Instruções e ordens alheias.

    Uma série de regras não escritas, mas bem estudadas.

    Não levas percursos interditos assinalados no mapa.

    Nem, no itinerário, paragens proibidas por questões de moral.

    Em 1949, a minha mãe está na barriga da minha avó.

    Em 1949, a minha avó tem 23 anos. Está casada. Tem um filho de um ano. Anda com cargas à cabeça sem se desequilibrar do rio para as fábricas.

    Sei que a minha avó não está entre essas mulheres com quem Maria Lamas acaba de ir falar, mas eu procuro-a.

    Susana Moreira, seguindo, pois, os passos de Maria Lamas também enche cadernos com notas sobre os lugares por onde passa, mas em vez de grandes descrições escreve pequenos apontamentos, frases curtas que nos deixam suspensos e que são pequenos versos de poesia.  

    Na maior parte dos lugares por onde passa repara que mudou quase tudo, “menos a luz”. Já não encontra crianças descalças, nem mulheres a empurrar carroças sempre a meio de um trabalho qualquer, carregando cestos, grandes fardos e cântaros à cabeça.

    Mas encontra outras mulheres (às vezes as mesmas, muitos anos depois) e vai fazendo a ponte entre uma mulher que não aparece no relato de Maria Lamas, a sua própria avó, e a sua própria filha que, ainda criança, a acompanha na contemplação desses imagens antigas. Susana Moreira Marques define-se como uma “mulher à janela” e “alguém que escuta”. É uma mulher que se surpreende e é nesse deixar-se surpreender que começa a sua viagem:

    “Unes pontos no mapa. Observas o desenho. Perguntas se é isso o país. Levas cadernos, canetas, câmaras, instrumentos digitais ou analógicos, mas sempre com a mesma função de registar o que se vive. Levas também um livro. Levas o livro como se fosse um guia de viagem, mas um guia que poderia servir para muitas outras viagens para o resto da vida, oferecendo várias possibilidades e não um só percurso. Leva-lo como se leva uma bíblia, para ter perto da cama quando se descansa, à mão em momentos de grandes dúvidas e receios. Leva-lo como um manual que torna mais fácil a compreensão da vida prática que tem sempre que ser desvendada. Ou como se fosse um volume esotérico, um instrumento mágico, que dará acesso ao que há muito está desaparecido. “

    E é uma viagem enternecedora e que nos ajuda a percebermos melhor o país que fomos e que, em muitos casos, continuamos a ser.

  • A fazedora de anjos

    A fazedora de anjos

    Título

    O acontecimento

    Autor 

    ANNIE ERNAUX (tradução: Maria Etelvina Santos)

    Editora (Edição)

    Livros do Brasil (Dezembro de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Uma das características marcantes da obra da escritora francesa Annie Ernaux, Nobel da Literatura do ano passado, é a invenção de uma forma narrativa muito própria.

    Os seus livros não são romances, nem ensaios, nem autobiografias, nem romances históricos, mas um pouco disso tudo em estilo e voz própria muito originais.

    Este O acontecimento, narrado na primeira pessoa, conta-nos a história de um aborto clandestino levado a cabo, pela autora, quando tinha 23 anos e era estudante universitária. O facto passou-se em 1963, doze anos antes da descriminalização do aborto promulgada em 1975, com a Lei Simone Veil.

    Grávida, envolvida numa relação fortuita e sem importância, fica desesperada e angustiada perante o dilema: por um lado a convicção que a sua única solução é um aborto, pois não quer nem está preparada para ser mãe, por outro, a certeza que o aborto, à data, era ilegal e muito perigoso.

    Num livro que embora só tenha oitenta e sete páginas e seja fácil de ler mas muito difícil de digerir, acompanhamos a sua jornada, em busca de uma forma de abortar. A autora vai trazendo à tona recordações da sua juventude recorrendo a uma agenda ou excertos de diários. Há vários exemplos de entradas desses registos. Por exemplo, quando a acompanhamos na procura por um médico que lhe faça o aborto com passagem por vários consultórios, ou na pesquisa de alguém que conhecesse alguém que tivesse o contacto de uma “fazedora de anjos” ou no confronto quotidiano com a proibição da lei.

    Ao mesmo tempo que tem conhecimento de que está grávida, o presidente Kennedy morre assassinado: “Mas isso já não me despertava nenhum interesse”, escreve ela numa das muitas entradas. O próprio curso universitário entra em uma espécie de hiato, o tema da monografia em que estava a trabalhar parece perder toda a sua importância. “Não escrevo mais. Não estudo mais. Como sair daqui?”. Essa espécie de alienação da realidade vai-se aprofundando com o passar do tempo, na procura de uma saída.

    Como disse Ernaux numa entrevista, o que escreve é simples e substantivo como os títulos dos seus livros, mas muito sofrido: em vez de uma caneta, uma faca. Ao perscrutar a memória e escrevendo sobre si vê-se a rasgar a própria carne e a revelar um sentimento atroz de um sofrimento solitário. Nunca disse aos pais que estava grávida e mesmo aos amigos não revelou o seu segredo. Fê-lo com mais à vontade a quase desconhecidos ou a pessoas que ela julgava poderem ajudá-la.

    O texto é cru, directo e, por vezes, brutal. Descreve um passado assombrado pelo medo e pela dor emocional e física. “O tempo tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruir a todo custo”.

    Narra detalhadamente o seu encontro com a “fazedora de anjos”, a vulnerabilidade e a vergonha que sentiu no processo e o seu período na urgência de um hospital após o acontecimento. Ali, expõe a violência médica e o julgamento moral de que foi vítima por ter tomado aquela decisão. Antes disso passou por um médico que tentou dissuadi-la da decisão chegando mesmo a receitar-lhe um medicamento que ela descobre, depois, ser antiabortivo e não, como julgava, um que lhe provocasse o aborto.

    Na própria comunidade universitária onde vivia, Annie é confrontada com um pensamento conservador a respeito do aborto e da sua legalidade e sofre o peso da censura velada que lhe mostrada até por pessoas que ela julgava que a compreenderiam.

    É um livro que nos deixa a pensar e que demonstra que, de facto, o Nobel foi justíssimo, e a obra desta autora merece muito ser lida.