Etiqueta: Maria Afonso Peixoto

  • O Inverno da vida sob a forma de prosa

    O Inverno da vida sob a forma de prosa

    Título

    Misericórdia

    Autora

    LÍDIA JORGE

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Misericórdia é o novo romance de Lídia Jorge, e foi escrito a pedido da sua mãe, Maria dos Remédios, que residia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime quando faleceu em abril de 2020, com 92 anos, logo no início da pandemia, vítima de covid19.

    Com uma vasta obra, Lídia Jorge é um dos nomes femininos mais consolidados da literatura portuguesa. Nascida em Boliqueime em 1946, é autora de inúmeros romances, contos, poesias, crónicas e ensaios: Entre as suas obras mais conhecidas estão Os Memoráveis (2014), Combateremos a Sombra (2007), O Dia dos Prodígios (1978) e A Costa dos Murmúrios (1988).

    Já recebeu vários prémios literários, nacionais e internacionais, entre os quais o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000); o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014) e, mais recentemente, o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas (2020).

    Inspirado na história e nos registos pessoais da mãe da autora, Misericórdia é um retrato ficcionado, contado na primeira pessoa, dos últimos meses de vida de Maria Alberta Nunes Amado – tratada por Dona Alberti – uma idosa que vive no Hotel Paraíso, um lar de terceira idade. semelhante a um diário, a narrativa inicia-se a 19 de abril de 2019 e estende-se até à véspera da morte do personagem.

    Ao contrário do que se poderá pensar, Misericórdia não é triste nem tão-pouco deprimente. Também não é sentimentalista. É belo, comovente, autêntico. Mesmo quando desvela a maldade humana, o que sobressai é a vida que ainda pulsa dentro dos residentes do Hotel Palácio.

    Alude às dificuldades inerentes a quem está no Inverno da vida: a sensação de que o corpo nos trai e não acata as nossas ordens, os pensamentos são movediços e a autonomia, que outrora se tivera, se perdeu. Fica-se à mercê dos outros, e da sua misericórdia. Não obstante, consegue mostrar a beleza da velhice, até mesmo o seu encanto, e isto apesar das agruras que ela abarca. É a derradeira experiência de viver o presente, já não existe pressa para se chegar a lado nenhum e, como evidencia o diário de Dona Alberti, o regozijo mora nos momentos mais corriqueiros: na escuta de uma leitura melódica que um estranho faz de uma história, ou na breve visita do genro.

    Misericórdia tem humor, candura, leveza, mesmo nos pontuais incidentes ominosos que descreve. Esses episódios não deixam o leitor indiferente, mas também não pesam demasiado – são contrabalançados com o humor e com o entendimento de que nenhuma contrariedade é o destino final.

    Estamos sempre dentro da cabeça desta Dona Alberti, a quem a idade não levou a personalidade, que é forte e vincada. E estamos bem; as 457 páginas do romance não são demasiadas para conhecer esta castiça senhora. Eis um excerto que relata uma das suas últimas “batalhas” com a noite, isto é, as insónias:

    “A noite esperou que eu me movesse. Como eu não lhe fazia a vontade, a ardilosa disse – «E quero ainda o teu saco de pano que usas pendurado ao pescoço, com tudo o que tens lá dentro.» Era demais. Respondi-lhe – Isso querias tu. O meu saco com tudo o que tenho lá dentro? Parece impossível. Visitas-me há anos, e não me conheces? Esse, só se mo arrancares à força. Experimenta lá. (…) Se te aproximares mais um milímetro que seja, vais ter de experimentar a resistência dos meus pulsos. Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.”

    A prosa é sublime, e Lídia Jorge faz um trabalho brilhante na criação da voz literária desta personagem, tornando o discurso e o tom sempre familiares e reminiscentes de uma qualquer avó – se não a nossa, alguma.

    A autora afirmou já que este não é um livro mórbido, mas sobre a vida. Tem razão. Não poderia ser mais verdadeiro. Misericórdia é a vida contada por quem mais a viveu, uma idosa. E isso é de valor, ainda mais quando contada com tanta vitalidade.

  • Uma orfandade emocional

    Uma orfandade emocional

    Título

    Os abismos

    Autora

    PILAR QUINTANA (tradução: Pedro Rapoula)

    Editora

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do sucesso retumbante de A Cadela, que foi finalista do National Book Award em 2020 nos Estados Unidos, chegou agora a Portugal o novo romance da escritora colombiana Pilar Quintana, Os Abismos, que venceu em 2021 o prestigiado Prémio Alfaguara em 2021 de romance. Uma vez mais, é a Dom Quixote a editar a obra daquela que é uma das romancistas com maior projecção na América Latina.

    Os Abismos retrata os dramas de uma família colombiana atormentada, nos anos 1980, e a história é-nos contada pela filha (única), Cláudia, uma menina de apenas nove anos.  A mãe, também Cláudia, não o queria ter sido, e só o foi por força das convenções sociais que não a deixaram prosseguir uma carreira nem escolher outro destino que não fosse o casamento e a maternidade. Assim, pode dizer-se que a distância emocional que define a relação entre ambas é “abismal” – sempre fria, distante, negligente –, à imagem do que tinha sido, também, entre a avó e mãe de Cláudia.

    Embora Cláudia “adulta” repita constantemente, quase a tentar convencer-se a si mesma, que não é como a sua mãe, a verdade é que não consegue deixar de reproduzir com a sua filha os mesmos padrões emocionais que herdou e assimilhou na sua infância.

    O pai, Jorge, 21 anos mais velho do que Cláudia-mãe, passa a maior parte do tempo a trabalhar no supermercado que gere com a sua irmã, Amélia. E, quando, enfim, está em casa, a sua presença é quase meramente física, já não são muitas as palavras que troca com a filha – não obstante, o pouco que diz deixa transparecer algum afecto.

    O seguinte trecho em que Cláudia descreve a celebração do seu nono aniversário é revelador do trato entre o casal e a filha:

    A minha mãe, como todos os anos, recordou a sua gravidez. A grande barriga, os pés inchados, que a cada cinco minutos tinha vontade de ir à casa de banho, que não conseguia dormir e o que lhe custava levantar-se da cama. As dores começaram ao almoço. Eram a coisa mais horrível que já tinha sentido. O meu pai levou-a para a clínica e ali sofreu toda a tarde, toda a noite, toda a manhã do dia seguinte, toda uma nova tarde, a sentir que ia morrer, e outra noite completa, até de madrugada.

    – Saiu roxa. Horrorosa. Puseram-ma ao peito e eu, a tremer e a chorar, pensei: esforcei-me tanto para isto?

    A minha mãe deu uma gargalhada tão grande que se lhe viu o céu da boca, profundo e sulcado como o tronco de uma pessoa subnutrida.

    – A bebé mais feia da clínica – disse o meu pai.

    Deste modo, Cláudia-filha cresce com os pais, mas sempre numa espécie de orfandade emocional, privada do afecto que, na idade em que está, tem necessidade de receber e que nunca se cansa de tentar obter. A situação familiar, que já é complexa e delicada, leva um novo “tombo” quando a Cláudia-mãe começa a ter um caso com o marido da cunhada.

    A traição fá-la afundar-se ainda mais e cair numa depressão que a deixa praticamente de cama, a whisky e comprimidos. A partir de aí, a sua personagem fica num limbo constante, parecendo estar sempre a um pequeno passo de “resvalar” para a autodestruição, o que confere um certo clima de mistério que se vai adensando ao longo do romance. Com Cláudia-filha, fala sobre Grace Kelly e Natalie Wood, dizendo-lhe que as trágicas mortes das actrizes só podem mesmo ter sido por suicídio.  

    Tendo a selva colombiana sempre como “pano de fundo”, o título Os Abismos remete tanto para os precipícios psicológicos em que as personagens se encontram, mergulhadas em sentimentos depressivos, como para os precipícios físicos que vão surgindo ao longo de toda a história.

    Pilar Quintana consegue conferir ao romance uma forte carga emocional, e a sua intensidade é o que nos deixa agarrados ao livro, mas é também, em contrapartida, o único motivo que torna difícil ler as 200 páginas de uma só vez.  

    De facto, a melancolia pode ser esmagadora, e é impossível ficar indiferente à infância infeliz da pequena Cláudia que, na sua inocência – sempre evidenciada na forma como descreve e interpreta os acontecimentos –, procura amor nos adultos que a rodeiam, mas raras vezes com sucesso.

    Parece ser consensual entre os críticos que Os Abismos não conseguiu chegar ao mesmo patamar literário que A Cadela. Em todo o caso, vale, e muito, a pena ler este novo romance de Pilar Quintana, não só pela qualidade da escrita, como pelo enredo dramático e inebriante, que aborda dinâmicas e mecanismos psicológicos que, mais ou menos familiares, não soarão estranhos a ninguém.

  • Uma utopia será sempre boa?

    Uma utopia será sempre boa?

    Título

    A nova ordem mundial

    Autor

    H. G. WELLS

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Conseguirá o Mundo, alguma vez, alcançar uma paz perdurável? E se sim, o que terá a Humanidade de fazer de modo a tornar essa possibilidade real? Com a eclosão da Segunda Grande Guerra, é a estas perguntas que o prolífico escritor, jornalista e romancista britânico H. G. Wells (1866-1946) tentou responder em A Nova Ordem Mundial, que teve a sua primeira edição em 1940, e foi agora republicado pela Dom Quixote.

    H. G. Wells foi um dos escritores mais notáveis do início do século XX. O Homem Invisível, A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos estão entre as suas obras mais conhecidas. Considerado um visionário e um dos principais percursores da ficção científica, vaticinou, por exemplo, o advento da rádio e da televisão, a vigilância em massa, a world wide web, e a bomba atómica.

    A expressão “Nova Ordem Mundial” tem hoje servido de material para teorias da conspiração. Curiosamente, algumas delas poderiam mesmo fundamentar-se neste livro. É que o autor apresenta a tese de um governo internacional como a solução para os conflitos que na altura assolavam o Ocidente. Um socialista confesso – foi um dos membros mais proeminentes da Sociedade Fabiana – H. G. Wells mostra-se crítico do marxismo e da revolução russa, mas defende abnegadamente a colectivização do poder e reitera que está em curso o fim de uma era e a queda de uma antiga ordem.

    Wells clarifica a sua ideia de colectivização no seguinte trecho: “[É] a gestão dos assuntos comuns da humanidade por um controlo comum responsável por toda a comunidade. Significa a abolição da discricionariedade nas questões sociais e económicas, assim como nas questões internacionais. Significa a abolição drástica da procura do lucro e de todas as artimanhas que os seres humanos engendram para parasitarem os seus congéneres. É a concretização prática da irmandade humana por intermédio de um controlo comum.”

    Segundo Wells, é imperativo que ocorra esta transformação na sociedade, sob risco de o mundo redundar em miséria e destruição.

    Wells adverte, porém, que este sistema socialista à escala global, que vê como inevitável, só poderá ser bem-sucedido se forem feitas diligências no sentido de proteger os cidadãos contra eventuais abusos de poder.

    Para esse fim, torna-se essencial a formulação de uma Declaração de Direitos Humanos, que o autor apresenta em esboço nesta obra, e que viria a desenvolver em Os Direitos do Homem, publicado no mesmo ano.

    Na verdade, o canadiano John Peter Humphrey, responsável pelo rascunho que serviu de base à Declaração Universal dos Direitos Humanos, chegou a admitir que a matéria de H. G. Wells sobre os direitos humanos influenciou a elaboração do documento adoptado pelas Nações Unidas.

    Embora conceba reflexões pertinentes, com as quais se pode até estabelecer paralelos com os tempos actuais, a realidade que H. G. Wells desenha como sendo desejável e necessária é manifestamente utópica. As últimas décadas provaram-no: o reconhecimento dos direitos humanos não tem impedido a sua violação, a paz não foi alcançada – adivinha-se, inclusivamente, novos cenários de guerra – e não parecem haver métodos infalíveis de evitar a tirania.

    Não obstante, e quer se concorde ou não com a sua visão, a crítica sagaz e arguta de H. G. Wells à sociedade do seu tempo fazem com que esta leitura valha a pena e atestam à sua genialidade.

  • Um buffet de dicas saudáveis

    Um buffet de dicas saudáveis

    Título

    Seja um super-humano

    Autor

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Maio de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Para a maioria dos portugueses, Manuel Pinto Coelho dispensa apresentações. Muitos, pelo menos, terão já ouvido o seu nome, ou visto o seu rosto, na televisão, na estante de uma livraria, ao folhear uma revista ou um jornal, ou até em podcasts no Youtube.

    Nos últimos anos, este clínico com uma experiência de meio século de prática tornou-se numa cara conhecida da praça pública, amiúde associado a declarações controversas no seio da comunidade médica. Sorridente e bem-disposto, causou burburinho as suas posições sobre, por exemplo, a exposição solar desprotegida e a utilização de estatinas.  

    Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 1972, Pinto Coelho teve uma formação académica convencional, mas a doença neurodegenerativa (esclerose lateral amiotrófica) que, no final do ano passado, vitimou o seu filho Bernardo, levou-o a procurar novas formas de potencializar a saúde humana. Desde então, publicou diversos livros – alguns tornando-se best-sellers, como Chegar Novo a Velho, em 2015 – e fundou ainda a sua própria clínica.

    Seja um super-humano – 50 hábitos que vão mudar a sua vida para sempre é, como o título sugere, uma compilação de várias recomendações com vista à melhoria da saúde. É uma espécie de manual que aborda um pouco de tudo. Por se tratar de uma lista bastante extensa de sugestões, nenhuma é desenvolvida com profundidade. No entanto, o autor resume essas sugestões com argumentos médicos.

    Com 50 propostas ao longo de 367 páginas, e destinadas a uma grande diversidade de leitores, mesmo daqueles não familiarizados com temáticas médicas, o livro acaba, naturalmente, por ser de carácter bastante geral e abrangente. Não se trata, pois, de aconselhamento médico personalizado, nem esse é o propósito. O objectivo é ser um ponto de partida que proporcione ao leitor um aporte de informação que lhe permita, depois, explorar e ir implementando cada hábito conforme as suas próprias particularidades. É como um mapa para a saúde.

    Seja um super-humano – 50 hábitos que vão mudar a sua vida para sempre fala assim de uma “prosperidade física”, algo que, para se alcançar, requer mais do que apenas uma alimentação equilibrada. É necessária, também, uma atenção ao ar que se respira, aos pensamentos que se entretém, às emoções com que nos ocupamos. E é por isso que este livro parece querer ser um guia completo para um estilo de vida, que abarca as várias dimensões do ser-humano: a física, mental e emocional.

    Encontramos todo o tipo de conselhos, tão variados em tema como no grau de especificidade. Desde os que aludem ao que comemos ao exercício físico. Uns na linha de uma sabedoria ancestral, alguns de senso comum ou bom senso, como “Faça exames às principais patologias”, e outros mais irreverentes, como “Beba água do mar”.  

    Em suma, este é um interessante “manual” para quem queira aprender a cuidar melhor do seu corpo (físico) ou manter-se em homeostase. Independentemente do nível de conhecimento, o leitor poderá aqui, de decerto, encontrar, ou recordar, algo de útil para a sua vida. 

  • As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

    As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

    Título

    Onde as pêras caem

    Autora

    NANA EKVTIMISHVILI (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A premiada realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili fez o seu debut como escritora em 2015 com Onde as pêras caem, e foi uma aposta ganha: publicado em inglês no ano passado, o seu (ainda) único romance foi nomeado para o International Booker Prize.

    Dos seus filmes, destacam-se In Bloom, selecionado para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição dos Óscares de 2014, e My Happy Family, exibido no Sundance Film Festival de 2017.

    Onde as pêras caem é uma homenagem aos pequenos super-heróis da vida real, aqueles dos quais ninguém fala, que lutam diariamente pela sobrevivência em circunstâncias adversas. Por outras palavras, é a história de órfãos e crianças com deficiências mentais que são abandonados à sua sorte pelas respectivas famílias num colégio interno conhecido como a “Escola dos Idiotas”. O pano de fundo é o início da década de 1990, após a dissolução da União Soviética, na rua de Kerch, em Tiblissi, capital da Geórgia.

    Nesta obra ficcional, a heroína é Lela, apresentada com traços heróicos: destemida, aguerrida e com uma personalidade vincada. O seu espírito rebelde e independente é, no entanto, contrabalançado por um lado bondoso e altruísta que, devido à sua “capa” protectora, não é logo perceptível a um mero estranho.

    Os vilões da história são adultos: os pais que viraram as costas aos filhos, e lhes alimentam falsas esperanças de um dia os irem buscar, ou os “educadores”, como Vano, professor de História do colégio, e às mãos de quem as meninas sofrem abusos sexuais constantes. Já com dezoito anos, Lela vai, ao longo dos dias, congeminando o assassinato de Vano, que a violou repetidas vezes durante a sua infância.

    Para além de motivada pelo desejo de vingança, Lela faz o papel de irmã mais velha e assume a missão de proteger o seu amigo Irakli, acalentando o sonho de o ver partir para uma nova vida fora das paredes do orfanato. Ika, como os colegas lhe chamam, é um menino que espera, há anos, que a mãe o venha buscar num “próximo fim de semana” que nunca chega.

    A chance de deixar aquela instituição putrefacta, e de sentir pela primeira vez o calor de um lar e o aconchego de uma família parece estar ao alcance de Irakli quando um casal americano envia uma representante à Escola para adoptar um dos residentes. Porém, quando finalmente surge a oportunidade de Irakli começar do zero, dá-se uma reviravolta.

    Escrito sem sentimentalismos, Onde as pêras caem é um retrato fiel e verossímil de um mundo à margem, mas que todos sabemos que existe. Nomeia, dá voz e corpo a estes anónimos que, tal como tantos outros, podemos não conhecer mas que andam por aí, num qualquer “edíficio-escola” nas periferias das cidades; e de quem ouvimos falar, de vez em quando, na televisão ou nos jornais. Talvez por isso, as personagens nos pareçam estranhamente familiares e as descrições tristemente reais. 

    Todos nós, de resto, já nos teremos cruzado com vítimas de abusos e de abandono que, porventura, engrossam os relatórios de instituições de solidariedade social. Ou com as que, omissas dessas listas, vivem as suas vidas como as personagens deste romance: relegadas ao esquecimento depois de serem “saqueadas” pelos seus carrascos, a não ser que alguém como Ekvtimishvili se lembre de escrever sobre eles.

    Onde as pêras caem é, enfim, sobre crianças especiais com vidas marcantes que, aqui, neste romance, como na vida real, vale a pena conhecer para evitar que ainda existam em próximas gerações.

  • A perigosa queda do homem

    A perigosa queda do homem

    Título

    Espermagedão: a fertilidade masculina em queda livre

    Autor

    NIELS CHRISTIAN GEELMUYDEN (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora (Editora)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Espermagedão – um termo inusitado, mas que nos traz à mente o Armagedão, a derradeira batalha bíblica entre as forças do Bem e do Mal.

    Não é mero acaso: o objectivo do título é precisamente causar impacto, pois o livro constitui um alerta sobre o qual o subtítulo logo nos elucida: “a fertilidade masculina em queda livre”. Batalha final ou não, o que o autor nos diz é, inegavelmente, estarmos na iminência de uma hecatombe: a qualidade do esperma no mundo ocidental caiu 60% em menos de 40 anos. Associada a este problema está, também, uma dramática redução nos níveis de testosterona.

    Niels Christian Geelmuyden, um conhecido ensaísta norueguês, tem sido também um dos poucos jornalistas a fazer soar os alarmes sobre esta crise que assombra o sexo masculino. Neste livro, Geelmuyden faz eco de estudos científicos e de opiniões de especialistas em reprodução e fertilidade.   

    Aos que pensam que não precisam de se preocupar porque não planeiam ter filhos, o autor faz uma advertência: a incapacidade de gerar bebés não é a única consequência negativa que advém de uma fraca reserva de espermatozoides, ou de gametas masculinos “pouco nadadores”. Geelmuyden indica outros efeitos perniciosos, como seja uma maior susceptibilidade a doenças como o cancro, nomeadamente dos testículos.

    E, como se tudo isto não fosse suficientemente apocalíptico, o norueguês alerta que similares problemas já se encontram no mundo selvagem, com diversas “bizarrices”: peixes-machos a pôr ovos, répteis com pénis mais curtos e incremento da homossexualidade e a bissexualidade no reino animal.

    Quanto a possíveis causas que expliquem este boom de infertilidade, existem muitas. Dir-se-ia até, demasiadas, como expõe Geelmuyden. No livro ocupam quatro vezes mais páginas do que as que nos oferecem soluções, o que pode não ser muito tranquilizar para os leitores.

    Aparentemente, os “gatilhos” que tornam os homens inférteis (e também as mulheres) estão por todo o lado: poluentes, pesticidas, água da torneira, sedentarismo, organismos geneticamente modificados, flúor, soja, etc., etc., etc.

    Espermagedão faz-nos, assim, dar conta de que, no mundo actual, estamos mergulhados num ambiente pouco amigável, ou mesmo hostil, à homeostase e à fecundidade dos nossos corpos.

    Na quarta parte, em que se pretende responder à pergunta sobre o que podemos fazer, encontramos conselhos variados. Alguns, lembram-nos a sabedoria ancestral das nossas avós, como “comer fruta e legumes” e “dormir o suficiente”; outros, espelham os hábitos do típico millenial do século XXI, como, por exemplo, a recomendação de “não guardar o telemóvel no bolso”; e, finalmente, temos aqueles que não nos deixam esquecer que estamos na era da tecnologia, como a congelação de amostras de esperma e a procriação medicamente assistida.

    Já bem no final do livro, “entramos” numa espécie de filme louco de ficção científica com soluções mais radicais. Por exemplo, fica-se a saber que, já em 2016, investigadores espanhóis anunciaram ter produzido esperma humano a partir de células da pele. Em simultâneo, o livro fala-nos de cientistas e especialistas em bioética, como Henry T. Greely, que anunciam que “daqui a vinte ou quarenta anos, o sexo para fins de reprodução terá quase deixado de existir”.

    Geelmuyden levanta, por isso, uma série de questões pertinentes também do ponto de vista ético: “Onde nos conduzirá  tudo isto, no longo prazo? O que nos espera? Será um admirável mundo novo ou uma barbárie tecnológica de contornos estranhos? Poderemos adivinhar os desígnios do despotismo dos manipuladores biológicos vestidos de branco? O poderio mundial será transferido para os laboratórios?”

    Um dos principais méritos de Espermagedão, e que torna urgente a sua leitura, reside na necessidade de percebermos que um problema é real para que o possamos resolver. Em suma, só podemos derrotar o “papão” da infertilidade se soubermos que ele anda por aí à solta. Se, alheios à sua existência, o ignorarmos, a Humanidade, como a conhecemos, corre um sério risco de desaparecer.

  • Uma noite em que se descobre o sentido da escrita

    Uma noite em que se descobre o sentido da escrita

    Título

    O perfume das flores à noite

    Autora

    LEÏLA SLIMANI (tradução: Isabel Castro Silva)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “Anna Karénina partiu. Estou à espera que volte” – é o que Liev Tolstói terá dito ao seu editor, durante um inquietante período em que a inspiração do escritor russo escasseava. N’O perfume das flores à noite, Leïla Slimani fala-nos sobre como o bloqueio criativo de Tolstói lhe serve de consolo nos momentos em que a autora é assombrada pelo temido writers block. Confidencia-nos os sacrifícios a que obrigam a sua arte. Tece engenhosos argumentos para nos provar que a felicidade não está destinada aos fazem da escrita a sua vida.

    Leïla Slimani, que tem dupla nacionalidade – nasceu em Marrocos, mas rumou a Paris com 17 anos para estudar Ciências Políticas e Estudos Mediáticos –, estreou-se como romancista em 2014, com a obra No jardim do ogre, sendo-lhe logo atribuído o Prémio marroquino La Mamounia. Foi, porém, com o seu segundo romance, Canção Doce, que conseguiu prestígio internacional, com o prémio literário francês Prix Goncourt de 2016. O país dos outros, publicado no ano passado, foi igualmente bem recebido pelos leitores e pela crítica, e valeu-lhe o Grand Prix de l’Héroine Madame Figaro.

    Neste ensaio auto-reflexivo somos engolidos para a intimidade de Slimani, que nos conduz pelos periclitantes caminhos de um romancista. Vislumbramos um universo literário permeado pela solidão e pelo isolamento. A autora não se pinta, contudo, como uma vítima. Pelo contrário. As suas palavras não evidenciam sinais de autocomiseração, mas de resignação. Uma anuência ao que, frequentemente, se chama os ossos do ofício.

    O seu desejo de clausura leva-a a aceitar um convite inusitado para passar uma noite, só e trancada, no Punta della Dogana, um museu de arte em Veneza. E é aí que se desenrolam muitos dos pensamentos que partilha com o leitor. Pelo meio, evoca outros autores, como Virginia Woolf, Haruki Murakami e Emily Dickinson.

    Descobrimos os seus medos e fobias, os seus anseios, as suas idiossincrasias. Desde o receio que a acompanha quando sai de casa, porque o perigo espreita em cada esquina, às injustiças de que o seu pai foi vítima. A inadequação que sente por ser fruto de duas culturas tão diferentes, e não se sentir verdadeiramente parte de nenhuma.

    Ao longo das suas 135 páginas, este ensaio concretiza, sobretudo, a ideia de que a arte é parida a partir do sofrimento. O seguinte trecho evidencia-o bem: “(…) Não acredito que alguém escreva em busca de consolo. Não penso que os meus romances logrem a superação do sentimento de injustiça que vivi. Pelo contrário, um escritor está doentiamente preso às suas dores, aos seus pesadelos. Nada seria mais terrível do que curar-se deles.”

    Aos desabafos e divagações da romancista, juntam-se memórias da sua infância e juventude. Os seus relatos transportam-nos para a adolescência rebelde que viveu na capital marroquina, Rabat. Percebemos que os seus traços eremitas já vêm consigo desde que era criança. Compreendemos, também, como a concepção da mulher como um ser inferior ao homem na cultura misógina em que cresceu, a moldou e contribuiu para que hoje se assuma feminista.

    A história e a autoanálise da autora permite ao leitor uma reflexão. É difícil não vermos um bocadinho de nós em Leïla Slimani. A natureza complexa e paradoxal do ser humano é algo que, inevitavelmente, nos une.

    Para além de escritora, Slimani já foi jornalista, e em 2017 somou outra conquista profissional: foi nomeada representante pessoal do presidente Francês, Emmanuel Macron, como embaixadora para a Francofonia.

    Leïla Slimani será, decerto, uma mais-valia como diplomata. E terá sido, com certeza, também uma excelente jornalista. Contudo, o seu novo livro demonstra o seguinte: faça o que fizer, jamais deve deixar de articular palavras. O Mundo perderia uma brilhante escritora.