Etiqueta: Maria Afonso Peixoto

  • Mulheres na guerra de caneta em punho

    Mulheres na guerra de caneta em punho

    Título

    As enviadas especiais

    Autora

    JUDITH MACKRELL (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Traçar perfis de mulheres marcantes é algo que já consta do “currículo” Judith Mackrell, e um ofício para o qual tem inequívoco talento. A biógrafa britânica e crítica de dança para o jornal The Guardian, lançou, em 2013, Flappers: Six Women of a Dangerous, uma obra sobre seis artistas arrojadas que viveram com intensidade os ‘loucos anos’ 1920. 

    Em As enviadas especiais, editado este ano pela Casa das Letras, a escritora escolheu novamente seis figuras femininas para biografar, mas por motivos diferentes: estas mulheres fizeram História, no século passado, por pavimentarem o caminho para outras repórteres de guerra, numa época em que a sua representação nestes trabalhos era escassa. No final da Segunda Guerra Mundial, eram cerca de 250 as jornalistas mulheres que tinham conseguido acreditação, junto dos Aliados, para reportar o conflito, mas o caminho foi sinuoso.  

    Estas pioneiras tiveram, elas próprias, de lutar contra as convenções sociais da altura, o preconceito, e os obstáculos com que se depararam pela sua condição de mulheres numa realidade dominada pelo masculino. Contornaram as dificuldades com engenho, criatividade e coragem, como os factos comprovam: Martha Gelhorn, por exemplo, viu-se “obrigada” a infiltrar-se num barco-hospital da Cruz Vermelha para desembarcar na praia de Omaha um dia após o Dia D. 

    Além de Gelhorn, as outras cinco “protagonistas” que ficamos a conhecer em pormenor no final da leitura, são Sigrid Schultz, Virginia Cowles, Helen Kirkpatrick, Lee Miller e Clare Hollingworth. Todas de nacionalidade americana, excepto Hollingworth, que era britânica.  

    A autora descreve as suas trajectórias como repórteres de guerra, revelando também as vidas que levaram depois da Segunda Guerra Mundial, e que continuaram a ser tudo menos aborrecidas, para além de longas. Clare Hollingworth atingiu a meta dos 105 anos, tendo falecido em 2017. Foi a responsável pelo “furo do século”, ao noticiar o deflagrar da guerra, com a invasão da Polónia pela Alemanha.  

    A bravura das jornalistas, plasmada nos acontecimentos relatados neste livro, valeu a algumas delas honrosas distinções: Helen Kirkpatrick recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, e Virginia Cowles – que quase foi presa em Espanha, em plena guerra civil –, foi distinguida com um OBE do governo britânico.

    As carreiras destas mulheres foram trilhadas por diferentes vias, mas, em alguns casos, os seus caminhos cruzaram-se: Martha Gelhorn e Virginia Cowles tornaram-se amigas, apesar dos feitios pouco compatíveis e divergências políticas – Gelhorn apoiava ferozmente os republicanos que combatiam a ditadura franquista, enquanto Cowles assumia uma postura de maior imparcialidade. A amizade, contudo, não foi isenta de crispação, e desenvolveu-se em grande parte como tentativa de ‘colmatar’ o sentimento de serem uma minoria feminina no meio dos homens. 

    Feitas as apresentações de cada uma delas, a narrativa desenvolve-se com histórias “entrelaçadas”, condensadas em 16 capítulos e quase 500 páginas. Profícua em detalhes sobre a vida pessoal (e também íntima e sexual) das correspondentes, é notória a profundidade da investigação levada a cabo pela autora, que fez também uso dos seus diários, notas e registos. 

    As enviadas especiais expõe a complexidade das dinâmicas entre as jornalistas e os homens de quem estavam rodeadas, que se revestiam de diversas maneiras: romances sólidos ou fugazes, parcerias, amizades e também o oposto, nomeadamente “desamores”, traições, antipatias e competitividade.  

    Pela negativa, salientamos a omnipresente retórica feminista da obra, que se torna enfadonha – mas que não surpreende, dado o contexto actual. É perceptível um tom que diminui os homens, insistindo em apontar-lhes inúmeros defeitos, ao passo que as menções a virtudes são “guardadas” exclusivamente para as repórteres, a quem até os traços mais condenáveis nunca merecem reprovação, mas elogios.  

    Um dos exemplos é o caso amoroso entre Ernest Hemingway e Martha Gelhorn – que viriam a tornar-se marido e mulher, por poucos anos –, iniciado quando o famoso escritor ainda era casado. Explicando como o romance adúltero serviu para abrir muitas portas à (então aspirante) jornalista, a autora mostra-se complacente com Gelhorn, apontando a “crise” histórica que assolava o Ocidente, e que justificava a transgressão de quaisquer limites morais.  

    A propósito, é patente a forma como as repórteres souberam utilizar o seu ‘charme feminino’ para obter vantagens como jornalistas. Lee Miller, a fotojornalista que cobriu a libertação de Paris e esteve nos campos de concentração nazi de Buchenwald e Dachau, foi acusada por colegas (homens) de granjear sucesso profissional através da sua sexualidade.

    No todo, é uma obra sólida e bem documentada, recheada de dados curiosos. Desde a proximidade entre Martha Gelhorn e os Roosevelt e de Lee Miller com Pablo Picasso, à relação de relativa confiança de Singrid Schultz e Hermann Göring, um dos deputados mais prominentes do partido nazi, estabelecida com o intuito de obter informações privilegiadas sobre os líderes do Terceiro Reich.  

    A obra termina com uma espécie de balanço, em que a autora sugere haver ainda um longo caminho a percorrer para a igualdade, na cobertura de “guerras, revoluções e catástrofes” (pág. 491). Contudo, entre os traumas e horrores da guerra suportados pelas repórteres, torna-se cómico, mas elucidativo, que a Judith Mackrell faz alusão às palavras da jornalista britânica Kate Adie que, cinquenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, afirmou: 

    “Nunca é fácil (…) «baixarmo-nos […] no meio do deserto […] e fazermos chichi à frente de 2 mil tipos»”. (pág. 490)

  • Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Título

    A guerra dos chips

    Autor

    CHRIS MILLER (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Muito se tem dito sobre o fim da hegemonia dos Estados Unidos, e o início de uma nova era onde outras potências adquirem destaque internacional, sobretudo a China, o seu principal adversário. Teme-se, digamos assim, que o verniz mais do que estale entre estas duas nações, em grande parte devido às tensões envolvendo Taiwan.

    Contudo, como Chris Miller demonstra em A guerra dos chips, por enquanto, se “guerra” há, esta vai-se travando com outras armas: os chips. 

    Professor de História Internacional na Tufts University’s Fletcher School, e investigador convidado no think-thank American Enterprise Institute, o autor deste best-seller do New York Times ocupa também o cargo de director para a Eurásia no Foreign Policy Research Institute. Eis, portanto, um verdadeiro especialista nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia, a política externa russa e a história das relações norte-americanas com o estrangeiro, como se vê por algumas das suas obras, como The Struggle to Save the Soviet Economy: Mikhail Gorbachev and the Collapse of the USSR e ainda Putinomics: Power and Money in Resurgent Russia.

    A narrativa desta sua obra, agora publicada em Portugal, assemelha-se ao enredo de um filme de acção, em que os protagonistas se debatem pela vitória, enquanto os acontecimentos se vão adensando e tornando cada vez mais imprevisíveis, fazendo-nos colar ao ecrã. E o propósito será mesmo esse, uma vez que A guerra dos chips mostra ser uma espécie de thriller de não-ficcão e, por isso, o autor confere-lhe uma boa dose de intensidade dramática. Nesta história da vida real, o que está em causa é a cobiça pelo lugar cimeiro na indústria dos semicondutores – e é isso que assegurará a consolidação e manutenção do poder, a nível global, a quem o alcance. 

    Ao longo de cerca de 450 páginas, Chris Miller recua até às origens desta tecnologia, que diz ser o “novo petróleo”, e explica em detalhe como se tem desenrolado, neste campo de autêntica batalha, a luta entre os Estados Unidos e a China. Fala do caso das sanções à Huawei, que fizeram manchetes no início deste ano, mas que foram apenas uma das medidas que os Estados Unidos já tomaram para tentar evitar, ou atrasar, a ascensão da China neste sector. 

    Os chips, como se sabe, são uma peça fundamental de variados equipamentos, e o autor lembra-nos como uma grande parte da nossa existência está profundamente alicerçada nesta tecnologia. Desde os micro-ondas, smartphones, frigoríficos, computadores, à Bolsa de Valores e ao armamento, o Mundo como o conhecemos hoje não existiria sem estes minúsculos objectos. Na verdade, “grande parte do PIB Mundial é produzido com máquinas que só funcionam com semicondutores. Para um produto que não existia há 75 anos atrás, esta é uma evolução extraordinária”. (pág 34)

    Não é, assim, de espantar que a China esteja tão apostada em destronar os Estados Unidos, gastando já mais dinheiro a importar chips anualmente do que em petróleo. No caminho, tem tentado fintar as duras restrições aplicadas pelos Estados Unidos, como a Lei dos Chips, e outros entraves à sua capacidade de produção, como os controlos à exportação de materiais necessários.  

    Para sabermos se será, ou não, bem-sucedida, teremos de esperar pelos próximos capítulos, mas aquilo que Chris Miller salienta é que se pode estar na iminência de uma mudança abissal no panorama geopolítico, alterando o equilíbrio das relações económicas internacionais e do poder militar. O seguinte trecho resume o seu argumento: “A Segunda Guerra Mundial foi decidida pelo aço e pelo alumínio, logo seguida pela Guerra Fria, que foi definida pelo armamento atómico. A rivalidade entre os Estados Unidos e a China pode muito bem ser decidida pela capacidade computacional”. (pág 29)

    Até a famosa Sillicon Valley, que é também central nesta indústria, deve ao seu nome ao material com que se fabricam os chips. Como Chris Miller destaca pertinentemente, a Internet e as redes sociais, de que hoje estamos tão dependentes, só existem graças à genialidade de alguns cientistas, e “porque os engenheiros aprenderam a controlar o mais diminuto movimento dos eletrões na sua corrida através de superfícies de silício. A ‘Big Tech’ não existiria se o custo de processar e memorizar 0 e 1 não tivesse caído um bilião de vezes nas últimas cinco décadas”. (pág 32)

    Mas se é inegável a relevância desta tecnologia neste nosso Mundo globalizado, também é verdade que a sua importância assume contornos mais delicados, tendo em conta que a produção se concentra num reduzido número de companhias, que, ainda por cima, se localizam em países vulneráveis a conflitos bélicos ou até a desastres naturais, como terramotos – como é o caso de Taiwan e do Japão. 

    No entanto, o “fantasma” mais assustador, que paira sobre a gigante indústria dos chips e, acima de tudo, sobre o Ocidente, é a de uma Terceira Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a China. 

    A guerra dos chips “troca por miúdos”, assim, tanto quanto é possível num assunto deste calibre, as dinâmicas perigosas entre as duas potências que continuarão, previsivelmente, a digladiar pelo “domínio” do Mundo, num verdadeiro duelo de titãs. 

    No final desta colossal e fascinante obra, Chris Miller confessa que “escrever este livro foi só ligeiramente menos complexo do que fazer um chip” (pág 451), o que, passando o humor ou ironia, acaba por mostrar, com justiça, o grau de minúcia, investigação e de esforço de simplificação que ele colocou num tema tão complexo mas tratado com mestria.

  • Os destroços de uma utopia

    Os destroços de uma utopia

    Título

    Regresso da URSS seguido de apontamentos ao meu “Regresso da URSS”

    Autor

    ANDRÉ GIDE (tradução: João van Zeller)

    Editora

    Dom Quixote

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nobel da Literatura em 1947, o francês André Gide (1869-1951) publicou, em 1936, Regresso da URSS, no qual relatava a viagem à União Soviética que fez naquele ano, e posteriormente lançou também Apontamentos , sobre essa mesma jornada. Agora, ambos os títulos foram publicados pela Dom Quixote num só volume, que conta com uma apresentação do filósofo, investigador e professor Paulo Tunhas, falecido em Abril passado.

    Considerado o último dos mais importantes escritores franceses do século, André Gide nasceu em Paris no seio de uma família burguesa protestante, tendo uma educação rígida e moralista. Influência que veio a desconstruir, já que Gide se enquadrava no arquétipo do artista subversivo: homossexual, praticava e defendia abertamente a pederastia, e nutria simpatia pelos ideais comunistas e revolucionários.

    Um prolífico escritor, Gide teve o seu primeiro livro publicado em 1891, e muitas das suas produções literárias eram de carácter autobiográfico. Escreveu em diversos estilos, incluindo ensaios e críticas, e traduziu ainda autores como Shakespeare, Joseph Conrad e Rainer Maria Rilke. O imoralista , Corydon e Os frutos da terra são algumas das suas obras de maior destaque. 

    O escritor francês conheceu a União Soviética em 1936, poucos anos depois de ter declarado, nas suas próprias palavras, direitos e amor pelo país. Porém, com a sua visita ao território soviético, a opinião que então acalentava esbarrou com uma realidade menos idílica do que aquela que tinha imaginado. Ainda assim, diga-se, o autor faz, logo no início, uma ressalva: apesar das críticas que desferem à União Soviética, consequências de um compromisso para com a verdade, a sua fé na possibilidade de o país alcançar o ideal comunista não abandonado.

    Mas, de facto, o que André Gide descreve parece longe de se assemelhar a uma utopia. Embora ressalte alguns aspectos positivos e dignos de elogio, o retrato que traça é inequivocamente mais negro do que risonho. 

    O que o escritor encontra aquela URSS de Estaline é um povo domesticado, mergulhado na propaganda do regime, sem conhecimento do que acontece além das fronteiras soviéticas, resignado e reduzido a uma uniformização castradora.

    Convencidos de que o seu país é, em todos os aspectos, superior aos demais, adultos e crianças vivem alheados da realidade dos restantes países europeus, mas convictos, não obstante, de que sabem exatamente do que se passa para lá “da sua rua”.  Mostram-se atónitos, até cinicamente descrentes, quando Gide lhes revela, por exemplo, que em França também existem escolas e um metropolitano.

    A somar à ignorância sobre a conjuntura europeia, as crianças aprendem desde cedo quais são as qualidades do regime estalinista, que reproduzem sem questionar. O lema subjacente é simples: tudo o que se faz na URSS é bom e virtuoso; o que se faz fora dela é, no mínimo, medíocre.  

    Gide revela-se igualmente desapontado com o culto do líder e a constante bajulação a Estaline, dando conta de que a sua efígie se ergue por toda a parte, e a sua imagem está pendurada em todas as casas por que passou. 

    Por outro lado, a pobreza ainda prevalecente que o regime comunista não conseguiu erradicar, constituiu uma surpresa ​para o autor: “Supostamente, já não existem classes na URSS. Mas existem pobres, muito pobres. Esperava, no entanto, já não os ver, ou mais precisamente: foi para já não os ver que fui à URSS” (p. 65).

    Sobre o Pravda, o principal órgão de comunicação social soviético, que determina o sentido que deve seguir o pensamento do povo, Gide é assertivo: “Todas as manhãs, o Pravda ensina-lhes o que deve saber, pensar, acreditar. E não é aconselhável afastar-se disso!” (pág. 51). 

    Salientando a importância da liberdade artística – por óbvias razões – como instrumento de crítica do poder e do status quo, o escritor lamenta a censura que observou: qualquer obra só é aceite se estiver “alinhada”. 

    Gide acaba por denunciar, enfim, a morte do espírito crítico, e o encorajamento à subserviência e à delação. Os opositores, que se atrevam a mostrar insatisfação perante o regime instalado, são facilmente imputados de uma atitude “contrarrevolucionária”. O essencial do seu pensamento sobre o que testemunhou pode resumir-se nestas linhas:

    Ditadura do proletariado , foi-nos prometido. Estamos longe disso. Sim: ditadura, obviamente; mas ditadura de um homem, e já não dos proletários unidos, dos soviéticos. É importante não nos iludirmos, e temos de reconhecer muito claramente que não era isto que gostaríamos. Mais um passo e diríamos até: é isto precisamente o que não queríamos” (p. 76). 

    Para além do sublime domínio da palavra, que tornou André Gide num marco na literatura francesa, o uso inteligente do sarcasmo e de um humor acutilante, faz deste relato uma leitura imperdível. 

    Em última análise, a obra convida o leitor, sobretudo o mais obstinado, a reflectir sobre se os mais nobres valores podem ter, como consequência legítima, a tirania. Mas, antes disso, se uma filiação ideológica deve redundar num envio que não permita constatar o esclarecer. Porque, como nota Gide, “é importante ver as coisas como são , e não como gostaria que fosse”. 

  • A mão e o abismo

    A mão e o abismo

    Título

    Dor fantasma

    Autor

    RAFAEL GALLO

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A escrita de Dor fantasma terá sido, de certo modo, um exercício catártico para Rafael Gallo, que se digladiava com uma depressão durante o processo criativo. O labor não foi em vão: a obra valeu ao autor brasileiro o Prémio Literário José Saramago 2022. Uma distinção que o escritor almejava, já que é um fã assumido do Nobel português da Literatura e leu quase todos os seus livros.

    Nascido em São Paulo, Rafael Gallo venceu também o Prémio São Paulo de Literatura pelo romance Rebentar, lançado em 2015, e o Prémio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveilon e outros dias, de 2012.

    Dor fantasma é aquilo que o título dá a entender: uma história de dor, tanto física como emocional, que tem como protagonista Rômulo Castelo, um ilustre pianista que vê o seu mundo ruir quando perde a mão direita depois de ser atropelado por um motociclista à porta da universidade onde ensina a sua arte. Após acidente, é-lhe amputada não só a extremidade do braço direito como toda a sua (frágil) identidade.

    Rômulo é um homem profundamente atormentado, e por isso intragável, para quem os que o rodeiam são seres ineptos, sempre aquém da perfeição e da excelência – qualidades que procura incessantemente alcançar através do seu trabalho. O seu trato difícil e frequentemente agressivo começa, a pouco e pouco, a alienar todos os que lhe são mais próximos. A sua mulher, Marisa, os seus alunos e colegas vão começando a perder a tolerância com a atitude hostil do pianista, que parece ter construído um fosso entre si e tudo o que não seja o seu piano.

    Até ao fatídico dia que o priva do seu instrumento de trabalho, os dias de Rômulo são quase todos iguais. Quando o despertador toca de manhã, fecha-se na sua sala de estudos, a sós com o seu Steinway para praticar o Rondeau Fantastique, a “peça intocável” do reputado pianista e compositor húngaro Franz Liszt. Rômulo é um dos melhores intérpretes do artista, e cada execução que repete da partitura é rumo a tornar-se numa espécie de “reencarnação” do compositor. O engenho que exibe foi herdado – ou incutido – pelo seu pai, George Castelo, um maestro que inculcou no filho, a par da paixão pela música, uma disciplina indefectível.

    Rômulo também tem um filho, de oito anos, a quem deu o nome Franz em homenagem ao seu ídolo, mas o descendente nunca irá preservar o talento que corre nos genes dos homens da família, já que sofre de uma forma rara de paralisia cerebral. Por isso, “Franzino” apenas recebe do pai uma declarada rejeição.

    De facto, o abismo começa a desenhar-se com as queixas por agressão dos seus alunos e o pedido de divórcio de Marisa. A partir daí, a descida aos infernos é ininterrupta. Não podendo fazer a tour pela Europa que tinha planeado antes de ser amputado, Rômulo deixa de ter a única razão que tinha para existir, e para que, pelo menos, o seu corpo estivesse presente, já uma espécie de ‘fantasma’.

    Nesta obra, as palavras seguem um encadeamento lírico, uma procede a outra, como se juntas formassem uma composição musical. Têm movimento, exaltam-se na leitura. Há uma ordem que é bela, o ritmo é compassado. A história é desconcertante. Dor fantasma é um romance sólido, pleno e arrebatador.

  • A leveza de uma vida notável

    A leveza de uma vida notável

    Título

    Peste e cólera

    Autor

    PATRICK DEVILLE (tradução: José Mário Silva)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Dezembro de 2022)

    Cotação 

    15/20

    Recensão

    Alguns heróis são mais esquecidos do que outros – e não se incomodam com isso, porque nunca tiveram a pretensão de o ser. Alexandre Yersin 1863-1943, discípulo de Louis Pasteur, foi um microbiologista, polímata e cientista suíço que se encaixa nesse perfil.

    Pouco conhecido pela generalidade das pessoas, não é um dos nomes mais sonantes da História da Medicina, embora o bacilo da peste negra, Yersinia pestis, descoberto pelo cientista em Hong Kong em 1894, tenha sido nomeado em sua honra.

    Felizmente, o escritor francês Patrick Deville, escreveu um romance inspirado na intensa vida de Yersin, que foi um explorador em várias áreas da vida, e não apenas da Ciência. Intitula-se Peste e cólera, e tornou-se, no ano passado, o primeiro romancista traduzido para português do romancista, estando integrado na Colecção de Alberto Manguel,uma iniciativa da Tinta da China e da RTP. Originalmente publicado em 2012, recebeu nesse ano o prémio Femina e o Prix de Prix em França.

    O romance é abundante – talvez em demasia – em apontamentos históricos e curiosidades, ou não fosse também o seu próprio autor um aventureiro e viajante profissional.  Patrick Deville partiu para o Golfo Pérsico como adido cultural, com apenas 23 anos, e foi professor em países como a Argélia e a Nigéria, tendo publicado o seu primeiro livro em 1987. Também noutras das suas obras, Deville inspirou-se em figuras reais, conjugando as suas vidas com a ficção.

    Se Alexandre Yersin nunca obteve uma grande notoriedade, tendo ficado relegado um pouco como uma personagem secundária, neste romance o aprendiz de Pasteur é o protagonista – e em pleno direito. É justo porque, como se percebe em Peste e cólera, a sua vida é digna de ocupar estas 222 páginas, e a sua história é daquelas que vale a pena conhecer. Não sendo assim uma biografia, é um romance que retrata, contudo, com grande fidelidade a sua vida, a qual se pôde reconstruir sobretudo através das cartas que, nas muitas suas viagens, escreveu à mãe, Fanny, e à irmã, Emilie.

    Poder-se-ia chamar Alexandre Yersin um homem dos sete ofícios, multifacetado. Sedento de conhecimento, foi o arquétipo do génio eremita. Sempre nutriu uma profunda admiração por David Livingstone, um conhecido missionário e explorador escocês. E, de facto, Yersin teve essa faceta aventureira: aos 27 anos tornou-se médico de bordo da Messageries Maritimes. Em navios a vapor, percorreu a costa do sudeste asiático, região cujo centro chegou a explorar, tendo até estado de caras com a morte.

    Não mais quis voltar à Europa, que trocaria definitivamente por Nha Trang, uma província que corresponde hoje ao actual Vietname. Nesse país, Alexandre Yersin é ainda hoje venerado pela forma como altruisticamente serviu a população vietnamita ao longo do quase meio século, e onde faleceu com 79 anos. Ali, abriu um pequeno laboratório que, poucos anos mais tarde, se tornaria uma filial do Instituto Pasteur.

    O romance percorre todas as estações da longa vida de Yersin: a infância, a juventude, a idade adulta e a velhice. Não o faz, contudo, por ordem cronológica. Ao longo do livro, vai-se avançando e recuando no tempo. Não sendo obra imperdível, com Peste e cólera ninguém perde nada com a sua leitura. É um livro leve, descomprometido, que cai bem.

    É certamente uma boa adição à biblioteca de qualquer pessoa. A escrita tem beleza, e a vida do cientista suíço é deveras impressionante.