Etiqueta: Maria Afonso Peixoto

  • Mulheres na guerra de caneta em punho

    Mulheres na guerra de caneta em punho

    Título

    As enviadas especiais

    Autora

    JUDITH MACKRELL (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Traçar perfis de mulheres marcantes é algo que já consta do “currículo” de Judith Mackrell, e um ofício para o qual tem inequívoco talento. A biógrafa britânica e crítica de dança no jornal The Guardian, lançou, em 2013, Flappers: Six Women of a Dangerous Generation, sobre seis artistas arrojadas que viveram com intensidade os ‘loucos anos’ 1920. 

    Em As enviadas especiais, editado no início deste  ano pela Casa das Letras, a escritora escolheu novamente seis figuras femininas mas por motivos diferentes: estas fizeram História, no século passado, por pavimentarem o caminho para outras repórteres de guerra, numa época em que a sua representação nestes trabalhos era escassa. No final da Segunda Guerra Mundial, cerca de 250 jornalistas mulheres tinham conseguido acreditação junto dos Aliados para reportar o conflito, mas até lá o caminho foi sinuoso.  

    Estas seis pioneiras tiveram de lutar contra convenções sociais, o preconceito, e muitos outros obstáculos perante uma realidade dominada pelo masculino. Contornaram as dificuldades com engenho, criatividade e coragem, como os factos comprovam. Por exemplo, Martha Gelhorn viu-se “obrigada” a se infiltrar num barco-hospital da Cruz Vermelha para desembarcar na praia de Omaha um dia após o Dia D. 

    Além de Gelhorn, as outras cinco “protagonistas”, que ficamos a conhecer em pormenor no final da leitura, são Sigrid Schultz, Virginia Cowles, Helen Kirkpatrick, Lee Miller e Clare Hollingworth. Com excepção desta última, que era britânica, todas de nacionalidade norte-americana.  

    Nesta obra são descritas as suas trajectórias como repórteres de guerra, revelando também as vidas que levaram depois da Segunda Guerra Mundial, e que continuaram a ser tudo menos aborrecidas, para além de longas. Por exemplo, Clare Hollingworth atingiu a meta dos 105 anos, tendo falecido em 2017. Foi a responsável pelo “furo do século”, ao noticiar o deflagrar da guerra, com a invasão da Polónia pela Alemanha.  

    A bravura destas jornalistas, plasmada nos acontecimentos relatados neste livro, valeu honrosas distinções: Helen Kirkpatrick recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, e Virginia Cowles – que quase foi presa em Espanha, em plena guerra civil –, foi distinguida com a Ordem do Império Britânico (OBE).

    Mesmo assim há muitas diferenças entre elas, embora em alguns casos os seus caminhos se tenham cruzado: Martha Gelhorn e Virginia Cowles tornaram-se amigas, apesar dos feitios pouco compatíveis e divergências políticas: a primeira apoiava ferozmente os republicanos, que combatiam a ditadura franquista, enquanto a segunda assumia uma postura de maior imparcialidade. A amizade, contudo, não foi isenta de crispação, e desenvolveu-se em grande parte como tentativa de ‘colmatar’ o sentimento de serem uma minoria feminina no meio dos homens. 

    Feitas as apresentações de cada uma delas, a narrativa desenvolve-se com histórias “entrelaçadas”, condensadas em 16 capítulos e quase 500 páginas. Profícua em detalhes sobre a vida pessoal (e também íntima e até sexual) das correspondentes, é notória a profundidade da investigação levada a cabo pela autora, que fez também uso dos seus diários, notas e registos. 

    As enviadas especiais expõe assim a complexidade das dinâmicas entre as jornalistas e os homens de quem estavam rodeadas, que se revestiam de diversas maneiras: romances sólidos ou fugazes, parcerias, amizades e também o oposto, nomeadamente “desamores”, traições, antipatias e competitividade.  

    Pela negativa, salientamos a omnipresente retórica feminista da obra, que por vezes se torna enfadonha – mas que não surpreende, dado o contexto actual. É perceptível um tom que diminui os homens, insistindo em apontar-lhes inúmeros defeitos, ao passo que as menções a virtudes são “guardadas” exclusivamente para as repórteres, a quem até os traços mais condenáveis nunca merecem reprovação, mas somente elogios.  

    Um dos exemplos é o caso amoroso entre Ernest Hemingway e Martha Gelhorn – que viriam a tornar-se marido e mulher, por poucos anos –, iniciado quando o famoso escritor ainda era casado. Explicando como o romance adúltero serviu para abrir muitas portas à (então aspirante) jornalista, a autora mostra-se complacente com Gelhorn, apontando a “crise” histórica que assolava o Ocidente, e que justificava a transgressão de quaisquer limites morais.  

    A propósito, é patente a forma como as repórteres souberam utilizar o seu ‘charme feminino’ para obter vantagens como jornalistas. Lee Miller, a fotojornalista que cobriu a libertação de Paris e esteve nos campos de concentração nazi de Buchenwald e Dachau, foi acusada por colegas (homens) de granjear sucesso profissional através da sua sexualidade.

    No todo, contudo, esta é uma obra sólida e bem documentada, recheada de dados curiosos. Desde a proximidade entre Martha Gelhorn e os Roosevelt e de Lee Miller com Pablo Picasso, à relação de relativa confiança de Singrid Schultz e Hermann Göring, um dos deputados mais prominentes do partido nazi, estabelecida com o intuito de obter informações privilegiadas sobre os líderes do Terceiro Reich.  

    A obra termina com uma espécie de balanço, em que a autora sugere haver ainda um longo caminho a percorrer para a igualdade, na cobertura de “guerras, revoluções e catástrofes” (pág. 491). Contudo, entre os traumas e horrores da guerra suportados pelas repórteres, torna-se cómico, mas elucidativo, que a Judith Mackrell faça alusão às palavras da jornalista britânica Kate Adie que, cinquenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, afirmou: “Nunca é fácil (…) «baixarmo-nos […] no meio do deserto […] e fazermos chichi à frente de 2 mil tipos»”. (pág. 490)

  • Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Título

    A guerra dos chips

    Autor

    CHRIS MILLER (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Muito se tem dito sobre o fim da hegemonia dos Estados Unidos, e o início de uma nova era onde outras potências adquirem destaque internacional, sobretudo a China, o seu principal adversário. Teme-se, digamos assim, que o verniz mais do que estale entre estas duas nações, em grande parte devido às tensões envolvendo Taiwan.

    Contudo, como Chris Miller demonstra em A guerra dos chips, por enquanto, se “guerra” há, esta vai-se travando com outras armas: os chips. 

    Professor de História Internacional na Tufts University’s Fletcher School, e investigador convidado no think-thank American Enterprise Institute, o autor deste best-seller do New York Times ocupa também o cargo de director para a Eurásia no Foreign Policy Research Institute. Eis, portanto, um verdadeiro especialista nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia, a política externa russa e a história das relações norte-americanas com o estrangeiro, como se vê por algumas das suas obras, como The Struggle to Save the Soviet Economy: Mikhail Gorbachev and the Collapse of the USSR e ainda Putinomics: Power and Money in Resurgent Russia.

    A narrativa desta sua obra, agora publicada em Portugal, assemelha-se ao enredo de um filme de acção, em que os protagonistas se debatem pela vitória, enquanto os acontecimentos se vão adensando e tornando cada vez mais imprevisíveis, fazendo-nos colar ao ecrã. E o propósito será mesmo esse, uma vez que A guerra dos chips mostra ser uma espécie de thriller de não-ficcão e, por isso, o autor confere-lhe uma boa dose de intensidade dramática. Nesta história da vida real, o que está em causa é a cobiça pelo lugar cimeiro na indústria dos semicondutores – e é isso que assegurará a consolidação e manutenção do poder, a nível global, a quem o alcance. 

    Ao longo de cerca de 450 páginas, Chris Miller recua até às origens desta tecnologia, que diz ser o “novo petróleo”, e explica em detalhe como se tem desenrolado, neste campo de autêntica batalha, a luta entre os Estados Unidos e a China. Fala do caso das sanções à Huawei, que fizeram manchetes no início deste ano, mas que foram apenas uma das medidas que os Estados Unidos já tomaram para tentar evitar, ou atrasar, a ascensão da China neste sector. 

    Os chips, como se sabe, são uma peça fundamental de variados equipamentos, e o autor lembra-nos como uma grande parte da nossa existência está profundamente alicerçada nesta tecnologia. Desde os micro-ondas, smartphones, frigoríficos, computadores, à Bolsa de Valores e ao armamento, o Mundo como o conhecemos hoje não existiria sem estes minúsculos objectos. Na verdade, “grande parte do PIB Mundial é produzido com máquinas que só funcionam com semicondutores. Para um produto que não existia há 75 anos atrás, esta é uma evolução extraordinária”. (pág. 34)

    Não é, assim, de espantar que a China esteja tão apostada em destronar os Estados Unidos, gastando já mais dinheiro a importar chips anualmente do que em petróleo. No caminho, tem tentado fintar as duras restrições aplicadas pelos Estados Unidos, como a Lei dos Chips, e outros entraves à sua capacidade de produção, como os controlos à exportação de materiais necessários.  

    Para sabermos se será, ou não, bem-sucedida, teremos de esperar pelos próximos capítulos, mas aquilo que Chris Miller salienta é que se pode estar na iminência de uma mudança abissal no panorama geopolítico, alterando o equilíbrio das relações económicas internacionais e do poder militar. O seguinte trecho resume o seu argumento: “A Segunda Guerra Mundial foi decidida pelo aço e pelo alumínio, logo seguida pela Guerra Fria, que foi definida pelo armamento atómico. A rivalidade entre os Estados Unidos e a China pode muito bem ser decidida pela capacidade computacional”. (pág 29)

    Até a famosa Sillicon Valley, que é também central nesta indústria, deve ao seu nome ao material com que se fabricam os chips. Como Chris Miller destaca pertinentemente, a Internet e as redes sociais, de que hoje estamos tão dependentes, só existem graças à genialidade de alguns cientistas, e “porque os engenheiros aprenderam a controlar o mais diminuto movimento dos eletrões na sua corrida através de superfícies de silício. A ‘Big Tech’ não existiria se o custo de processar e memorizar 0 e 1 não tivesse caído um bilião de vezes nas últimas cinco décadas”. (pág. 32)

    Mas se é inegável a relevância desta tecnologia neste nosso Mundo globalizado, também é verdade que a sua importância assume contornos mais delicados, tendo em conta que a produção se concentra num reduzido número de companhias, que, ainda por cima, se localizam em países vulneráveis a conflitos bélicos ou até a desastres naturais, como terramotos – como é o caso de Taiwan e do Japão. 

    No entanto, o “fantasma” mais assustador, que paira sobre a gigante indústria dos chips e, acima de tudo, sobre o Ocidente, é a de uma Terceira Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a China. 

    A guerra dos chips “troca por miúdos”, assim, tanto quanto é possível num assunto deste calibre, as dinâmicas perigosas entre as duas potências que continuarão, previsivelmente, a digladiar pelo “domínio” do Mundo, num verdadeiro duelo de titãs. 

    No final desta colossal e fascinante obra, Chris Miller confessa que “escrever este livro foi só ligeiramente menos complexo do que fazer um chip” (pág. 451), o que, passando o humor ou ironia, acaba por mostrar, com justiça, o grau de minúcia, investigação e de esforço de simplificação que ele colocou num tema tão complexo mas tratado com mestria.

  • Os destroços de uma utopia

    Os destroços de uma utopia

    Título

    Regresso da URSS seguido de apontamentos ao meu “Regresso da URSS”

    Autor

    ANDRÉ GIDE (tradução: João van Zeller)

    Editora

    Dom Quixote

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nobel da Literatura em 1947, o francês André Gide (1869-1951) publicou, em 1936, Regresso da URSS, no qual relatava a viagem à União Soviética que fez naquele ano, e posteriormente lançou também Apontamentos , sobre essa mesma jornada. Agora, ambos os títulos foram publicados pela Dom Quixote num só volume, que conta com uma apresentação do filósofo, investigador e professor Paulo Tunhas, falecido em Abril passado.

    Considerado o último dos mais importantes escritores franceses do século, André Gide nasceu em Paris no seio de uma família burguesa protestante, tendo uma educação rígida e moralista. Influência que veio a desconstruir, já que Gide se enquadrava no arquétipo do artista subversivo: homossexual, praticava e defendia abertamente a pederastia, e nutria simpatia pelos ideais comunistas e revolucionários.

    Um prolífico escritor, Gide teve o seu primeiro livro publicado em 1891, e muitas das suas produções literárias eram de carácter autobiográfico. Escreveu em diversos estilos, incluindo ensaios e críticas, e traduziu ainda autores como Shakespeare, Joseph Conrad e Rainer Maria Rilke. O imoralista , Corydon e Os frutos da terra são algumas das suas obras de maior destaque. 

    O escritor francês conheceu a União Soviética em 1936, poucos anos depois de ter declarado, nas suas próprias palavras, direitos e amor pelo país. Porém, com a sua visita ao território soviético, a opinião que então acalentava esbarrou com uma realidade menos idílica do que aquela que tinha imaginado. Ainda assim, diga-se, o autor faz, logo no início, uma ressalva: apesar das críticas que desferem à União Soviética, consequências de um compromisso para com a verdade, a sua fé na possibilidade de o país alcançar o ideal comunista não abandonado.

    Mas, de facto, o que André Gide descreve parece longe de se assemelhar a uma utopia. Embora ressalte alguns aspectos positivos e dignos de elogio, o retrato que traça é inequivocamente mais negro do que risonho. 

    O que o escritor encontra aquela URSS de Estaline é um povo domesticado, mergulhado na propaganda do regime, sem conhecimento do que acontece além das fronteiras soviéticas, resignado e reduzido a uma uniformização castradora.

    Convencidos de que o seu país é, em todos os aspectos, superior aos demais, adultos e crianças vivem alheados da realidade dos restantes países europeus, mas convictos, não obstante, de que sabem exatamente do que se passa para lá “da sua rua”.  Mostram-se atónitos, até cinicamente descrentes, quando Gide lhes revela, por exemplo, que em França também existem escolas e um metropolitano.

    A somar à ignorância sobre a conjuntura europeia, as crianças aprendem desde cedo quais são as qualidades do regime estalinista, que reproduzem sem questionar. O lema subjacente é simples: tudo o que se faz na URSS é bom e virtuoso; o que se faz fora dela é, no mínimo, medíocre.  

    Gide revela-se igualmente desapontado com o culto do líder e a constante bajulação a Estaline, dando conta de que a sua efígie se ergue por toda a parte, e a sua imagem está pendurada em todas as casas por que passou. 

    Por outro lado, a pobreza ainda prevalecente que o regime comunista não conseguiu erradicar, constituiu uma surpresa para o autor: “Supostamente, já não existem classes na URSS. Mas existem pobres, muito pobres. Esperava, no entanto, já não os ver, ou mais precisamente: foi para já não os ver que fui à URSS” (p. 65).

    Sobre o Pravda, o principal órgão de comunicação social soviético, que determina o sentido que deve seguir o pensamento do povo, Gide é assertivo: “Todas as manhãs, o Pravda ensina-lhes o que deve saber, pensar, acreditar. E não é aconselhável afastar-se disso!” (pág. 51). 

    Salientando a importância da liberdade artística – por óbvias razões – como instrumento de crítica do poder e do status quo, o escritor lamenta a censura que observou: qualquer obra só é aceite se estiver “alinhada”. 

    Gide acaba por denunciar, enfim, a morte do espírito crítico, e o encorajamento à subserviência e à delação. Os opositores, que se atrevam a mostrar insatisfação perante o regime instalado, são facilmente imputados de uma atitude “contrarrevolucionária”. O essencial do seu pensamento sobre o que testemunhou pode resumir-se nestas linhas:

    Ditadura do proletariado , foi-nos prometido. Estamos longe disso. Sim: ditadura, obviamente; mas ditadura de um homem, e já não dos proletários unidos, dos soviéticos. É importante não nos iludirmos, e temos de reconhecer muito claramente que não era isto que gostaríamos. Mais um passo e diríamos até: é isto precisamente o que não queríamos” (p. 76). 

    Para além do sublime domínio da palavra, que tornou André Gide num marco na literatura francesa, o uso inteligente do sarcasmo e de um humor acutilante, faz deste relato uma leitura imperdível. 

    Em última análise, a obra convida o leitor, sobretudo o mais obstinado, a reflectir sobre se os mais nobres valores podem ter, como consequência legítima, a tirania. Mas, antes disso, se uma filiação ideológica deve redundar num envio que não permita constatar o esclarecer. Porque, como nota Gide, “é importante ver as coisas como são , e não como gostaria que fosse”. 

  • A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    Título

    A arte de driblar destinos

    Autor

    CELSO COSTA

    Editora (Edição)

    LeYa (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    O título deste romance de estreia de Celso Costa, aos 74 anos, reconhecido matemático brasileiro e agora também escritor, encaixaria perfeitamente numa auto-biografia. E, na verdade, não sendo um livro de memórias, esta é uma obra de autoficção, precisamente inspirada na suas história de vida.

    Com o seu A arte de driblar destinos, Celso Costa recebeu o Prémio LeYa de 2022, para originais anónimos, e foi assim uma verdadeira entrada “em grande” no universo das letras, ainda mais impressionante para quem dedicou a sua (longa) carreira profissional às ciências exactas.

    Com efeito, Celso Costa começou por estudar Engenharia e Medicina antes de eleger definitivamente a Matemática, em especial a Geometria Diferencial, sobre a qual compôs a sua tese de doutoramento. E aí o autor, pode dizer-se, não é um estranho a honras e distinções: teve uma “superfície mínima” baptizada mundialmente em sua homenagem, a “Superfície Costa”, depois de ter descoberto a solução de um problema matemático com 206 anos. Em 1998 foi condecorado com a ordem nacional do mérito científico na classe de Comendador, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil. Recentemente, retirado do papel de professor universitário, que assumia desde 1981, Celso Costa estabelece-se assim, e agora, como uma revelação na Literatura.

    É difícil destrinçar o “criador” do romance do menino no qual a narrativa se centra, já que os seus percursos são idênticos. O narrador e protagonista de A arte de driblar destinos passou os seus primeiros anos de vida numa propriedade localizada no interior do estado do Paraná, chamada “Ribeirão do Engano”. À medida que cresce, descobre a sua paixão e vocação para os números, e quando atinge a maioridade acaba por trocar o meio rural, onde sempre viveu, pelo ambiente cosmopolita da cidade de Curitiba, para prosseguir os estudos na universidade.

    Num contexto familiar e social de agudas limitações financeiras e escassos recursos e oportunidades, no Brasil profundo dos anos 1950 e 60, a história narrada evidencia a importância da educação como agente propulsor da liberdade, para se ir além do que alguma vez se imaginava ser possível, e de voar por alturas mais elevadas.

    A arte de driblar destinos lê-se, na verdade, quase sem darmos por isso. É um romance descontraído, bem-humorado, descomprometido. Através de um retrato vivo e vívido, a narrativa transporta-nos para um Brasil profundo, apaixonante e em bruto, que é sempre o cenário no desenrolar da história. Desperta, aliás, em nós, uma intensa vontade de adquirir um bilhete de avião só de ida (e talvz uma máquina do tempo, também) e conhecer aquela realidade com os nossos próprios olhos.

    À falta de bilhetes, fica-nos a leitura. A escrita de Celso Costa consegue essa proeza de nos fazer viajar, pela forma como descreve os vários episódios, a cada página, imbuídos de uma autenticidade e simplicidade que nos desarma. Sempre presentes estão os elos e os dramas familiares, as amarguras da vida, e os seus momentos mais inebriantes, aqueles que quase pedem que nos belisquemos para ter a certeza de que estamos acordados.

    Com 277 páginas, o romance divide-se em 44 capítulos, que nos contam as histórias e peripécias que o narrador vivencia durante o seu crescimento, entre os seus três anos até aos 19 anos. Com esta idade, começa um novo “capítulo” longe de casa, contrariando todas as probabilidades, ao agarrar a oportunidade de estudar, que lhe permite traçar um outro destino para si.

    A linguagem informal e coloquial torna o romance leve e genuíno, e as castiças e singulares figuras que surgem no decorrer da narrativa, como o coveiro Cipriano Sombra, o ‘Faquir sertanejo’ ou o “prefeito” Malaquias Buarque, parecem ter sido retiradas de um engenhoso e criativo enredo cinematográfico. Há, também, o pai do menino, Zé Branco, que, de génio impetuoso, não mede as consequências dos seus actos, e a mãe, Nena, protectora mas de pulso firme. O jovem casal encanta e intriga o leitor com a suas personalidades fortes. 

    O 44.º capítulo, intitulado “Desembarque do caipira”, é onde o percurso do leitor chega ao fim, mas onde se inicia a derradeira aventura do jovem “herói” da história, que finalmente conhece a capital do Paraná, nas circunstâncias em que estas linhas exprimem:

    “Vindo de longe, tropeando seus sonhos desde o Ribeirão do Engano, ali está, sondando rumos, o caipira que nunca viu um semáforo, nem um prédio com mais de dois andares, e desconhece o mar.

    O moço de tocos de barba despontando tem fome. Com a mochila aos ombros, arrastando a mala grande, anda alguns metros sem deixar a calçada de desembarque e entra no bar. O aroma é apetitoso, cheiro bom de café acabado de passar pelo coador de pano. Com olhos ávidos examina a pequena vitrine em cima do balcão e indaga ao atendente, num sotaque do interior:

    – O que é que o senhor tem aí, de sal, pra comer? 

    O rapaz atrás do balcão, entre estupefato e divertido, estreita os olhos, enquadra a cara do caipira e dispara:

    – Temos sal!

    É o primeiro tranco do novato na cidade grande. Sem alternativa e com medo de ser zoado de novo, opta pelo simples:

    – Quero um copo de café com leite, meio a meio, e um pão com manteiga na chapa.

    Ao pedido, o atendente coloca a cabeça no guichê e grita para a cozinha:

    – Saindo uma canoa na chapa e uma média!

    Uma média, uma canoa! Assim o novato conquista as primeiras palavras de um novo vocabulário.”

  • Uma tragédia com um final feliz

    Uma tragédia com um final feliz

    Título

    70072: A menina que não sabia odiar

    Autora

    LIDIA MASKSYMOWICZ (tradução: Ivan Figueiras)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Janeiro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    As histórias sobre o Holocausto, narradas através da tela do cinema ou em livros, são inúmeras. Esta, é sobre Lidia Maksymowicz, uma sobrevivente dos campos de concentração nazis que foi levada para Auschwitz-Birkenau com apenas três anos e de onde só saiu treze meses depois, em Janeiro de 1945. Dizem os historiadores que foi a criança que passou mais tempo em Birkenau. Durante esse tenebroso período, foi uma das ‘cobaias’ de Josef Mengele para as suas experiências médicas, que incluíam a administração de vacinas a pedido de empresas farmacêuticas.

    Lidia não era judia (actualmente é católica); nasceu na Bielorrúsia, filha de guerrilheiros da resistência. O seu pai não acabou nos campos de concentração; é forçado a juntar-se ao Exército Soviético, separando-se do resto da família – Lidia, a mãe Anna e os avós – antes de estes serem capturados e deportados pelos alemães.
    Esta obra, prefaciada pelo Papa Francisco, é inspirada no documentário 70072: La bambina che non sapeva odiare, feito pela associação La Memoria Viva. Os números 70072 são aqueles que Lidia tem tatuados no seu braço, uma marca em si deixada pelo regime nazi. Tal como a terrível experiência que viveu estará para sempre gravada na sua mente, os dígitos que a identificavam em Birkenau permanecem ainda, indeléveis, na sua carne. A tatuagem foi beijada pelo Papa Francisco, a 26 de Maio de 2021.

    Como Lidia admite, as recordações que guarda da passagem pelos campos não são muitas – não obstante que, entre as poucas que tem, algumas sejam bem vívidas. Outras, ainda, não está certa se serão, de facto, memórias do que viveu ou se são construções que a sua mente foi edificando com o tempo, com base no que, já depois de ter sido libertada, foi escutando, lendo ou vendo e absorvendo sobre o que era o dia-a-dia dos prisioneiros.
    A história de Lidia, pode dizer-se, é daquelas que termina com “um final feliz”. Para além de ter conseguido escapar com vida da barbárie por que passou, foi adoptada, depois da libertação pelo Exército Vermelho, por uma mulher polaca, Bronislawa. Recomeçou a sua vida na Polónia, com a sua família adoptiva, na província de Oświęcim – lugar onde permanece até hoje, e que passou a considerar a sua casa.

    Também a sua mãe biológica sobreviveu aos campos nazis, e as duas reencontraram-se, finalmente, em 1961, já 17 anos após terem sido separadas em Birkenau. Este emotivo reencontro, que teve lugar em Moscovo, foi alvo de intensa cobertura mediática na altura, tanto pela comunicação social soviética como polaca.  Como Lidia explica, representou um dia que o regime soviético queria que fosse “histórico” e gritado aos sete ventos, para transmitir a imagem de que a União Soviética se preocupava com os filhos da sua terra. 

    70072 – A menina que não sabia odiar é um testemunho bonito de uma história que merece indubitavelmente ser contada, mas que acaba por ser apenas mais uma no meio de milhentas que já existem sobre Segunda Guerra Mundial. Não consegue ser particularmente impactante, e o leitor fica com a sensação de que o relato se sustenta mais nos factos que já são do senso comum – e que já foram repetidos múltiplas vezes ao longo das últimas décadas – do que nas memórias individuais e singulares desta sobrevivente em específico. Acaba por ter, por isso, um tom um pouco superficial e “fabricado”, carecendo de profundidade e sendo abundante em lugares-comuns.

    O momento mais comovente do livro é, então, aquele que se centra na reaproximação, após quase duas décadas de afastamento, de Lidia com a sua mãe biológica. As emoções contraditórias e humanas que envolvem este “retorno” improvável (e milagroso) da filha aos braços da mãe – já como uma mulher adulta e casada, e não como a criança que era –, conferem “cor” e intensidade à narrativa, que de outra forma não teria.

  • A mão e o abismo

    A mão e o abismo

    Título

    Dor fantasma

    Autor

    RAFAEL GALLO

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A escrita de Dor fantasma terá sido, de certo modo, um exercício catártico para Rafael Gallo, que se digladiava com uma depressão durante o processo criativo. O labor não foi em vão: a obra valeu ao autor brasileiro o Prémio Literário José Saramago 2022. Uma distinção que o escritor almejava, já que é um fã assumido do Nobel português da Literatura e leu quase todos os seus livros.

    Nascido em São Paulo, Rafael Gallo venceu também o Prémio São Paulo de Literatura pelo romance Rebentar, lançado em 2015, e o Prémio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveilon e outros dias, de 2012.

    Dor fantasma é aquilo que o título dá a entender: uma história de dor, tanto física como emocional, que tem como protagonista Rômulo Castelo, um ilustre pianista que vê o seu mundo ruir quando perde a mão direita depois de ser atropelado por um motociclista à porta da universidade onde ensina a sua arte. Após o acidente, é-lhe amputada não só a extremidade do braço direito como toda a sua (frágil) identidade.

    Rômulo é um homem profundamente atormentado, e por isso intragável, para quem os que o rodeiam são seres ineptos, sempre aquém da perfeição e da excelência – qualidades que procura incessantemente alcançar através do seu trabalho. O seu trato difícil e frequentemente agressivo começa, a pouco e pouco, a alienar todos os que lhe são mais próximos. A sua mulher, Marisa, os seus alunos e colegas vão começando a perder a tolerância com a atitude hostil do pianista, que parece ter construído um fosso entre si e tudo o que não seja o seu piano.

    Até ao fatídico dia que o priva do seu instrumento de trabalho, os dias de Rômulo são quase todos iguais. Quando o despertador toca de manhã, fecha-se na sua sala de estudos, a sós com o seu Steinway para praticar o Rondeau Fantastique, a “peça intocável” do reputado pianista e compositor húngaro Franz Liszt. Rômulo é um dos melhores intérpretes do artista, e cada execução que repete da partitura é rumo a tornar-se numa espécie de “reencarnação” do compositor. O engenho que exibe foi herdado – ou incutido – pelo seu pai, George Castelo, um maestro que inculcou no filho, a par da paixão pela música, uma disciplina indefectível.

    Rômulo também tem um filho, de oito anos, a quem deu o nome Franz em homenagem ao seu ídolo, mas o descendente nunca irá preservar o talento que corre nos genes dos homens da família, já que sofre de uma forma rara de paralisia cerebral. Por isso, “Franzino” apenas recebe do pai uma declarada rejeição.

    De facto, o abismo começa a desenhar-se com as queixas por agressão dos seus alunos e o pedido de divórcio de Marisa. A partir daí, a descida aos infernos é ininterrupta. Não podendo fazer a tour pela Europa que tinha planeado antes de ser amputado, Rômulo deixa de ter a única razão que tinha para existir, e para que, pelo menos, o seu corpo estivesse presente, já uma espécie de ‘fantasma’.

    Nesta obra, as palavras seguem um encadeamento lírico, uma procede a outra, como se juntas formassem uma composição musical. Têm movimento, exaltam-se na leitura. Há uma ordem que é bela, o ritmo é compassado. A história é desconcertante. Dor fantasma é um romance sólido, pleno e arrebatador.

  • O poeta místico

    O poeta místico

    Título

    O pensamento esotérico de Fernando Pessoa

    Autora

    YVETTE K. CENTENO

    Editora (Edição)

    Companhia das Ilhas (Julho de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    De origem germano-polaca, Yvette K. Centeno é um dos pesos-pesados, no feminino, da nossa literatura e considerada uma das maiores intelectuais do país. Escritora, poetisa e professora, é também uma investigadora, intensiva e extensiva, da vida e obra de Fernando Pessoa – e a prova é este livro, que teve a sua edição original em 1990 pela editora & etc, e surge-nos agora acrescida de um posfácio.

    Licenciada em Filologia Germânica, Yvette Centeno fez a sua tese de doutoramento sobre A alquimia no Fausto de Goethe. E não é irrelevante para o caso. Fausto e Goethe são, aliás, nomes que surgem por diversas vezes ao longo deste O pensamento esotérico de Fernando Pessoa.

    Este ensaio é algo intimidante, confessa-se, uma vez que nos coloca frente-a-frente com a genialidade de não uma, mas duas mentes. E os temas abordados não facilitam a tarefa: aqui cabe tudo o que é místico e oculto, desde a filosofia hermética, a religião, a Kabala, ao estudo de sociedades secretas como a Maçonaria e o Rosacrucianismo. Todos estes domínios se cruzam – na verdade, amiúde se sobrepõem –, pelo que é apenas natural que se fale de todos ao mesmo tempo.

    A leitura desta obra não apela ao intelecto, pois, para esta nossa dimensão humana, adentrar nestas matérias é sempre como andar por areias movediças. As linguagens simbólicas não são decifráveis do mesmo modo que as ciências exactas. Porque aqui, nunca é o que está lá que importa, mas o que está implícito. É preciso ver-se com outros olhos. Afinal, como diz o poeta: “O mistério (que é tudo) não é compreensível senão à emoção, a inteligência não pode compreender o mistério”.

    E Fernando Pessoa deseja ardentemente desvendar esse mistério, sem, no entanto, se deixar consumir por ele. Como assume, é “Mercúrio” que o guia, o Deus do conhecimento, o “Mestre do entendimento dos seres e da sua natureza”. 

    Deste modo, ele não pretende integrar as sociedades secretas pelas quais parece interessar-se tanto. De facto, o que o move é a avidez de saber. Faz, aliás, uma “declaração de diferenças”, em que explica isso mesmo. Declara a sua simpatia pelo ocultismo, fazendo, contudo, a ressalva de que não é, ele próprio, um “ocultista”.

    Há doutrinas que só podem ser transmitidas de forma codificada, porque como explica Pessoa, “divulgar é destruir”. Isto é, desvendar é inútil, quando não é também prejudicial, porque os incautos não vão entender – provavelmente irão, de qualquer modo, subverter o significado. E é por isso que a Bíblia, por exemplo “é ininteligível e absurda sem a chave ‘alquímica’”. E foi esta alquimia que o poeta nitidamente buscou em vida e, o que encontrou, está patente na sua obra.

    Crítico do catolicismo, a “Igreja de Roma”, Fernando Pessoa parece, de facto, acreditar que a religião foi sempre mal compreendida: para o poeta, os Evangelhos são “rituais dramáticos, nada tendo que ver com qualquer realidade histórica”.

    No seguinte trecho, o “nosso poeta” – nas palavras de Yvette Centeno – tece considerações dignas de destaque:

    “A par do cristismo oficial, com os seus vários misticismos e ascetismos e as suas magias várias, nós notamos, episodicamente vinda à superfície, uma corrente que data sem dúvida da Gnose (isto é, da junção da Cabala judaica com o neoplatonismo) e que ora nos aparece com o aspecto dos cavaleiros de Malta, ou dos Templários, ora, desaparecendo, nos torna a surgir nos Rosa-Cruz, para, finalmente, surgir à plena superfície na Maçonaria. (…) As fórmulas e os ritos maçónicos são nitidamente judaicos; o substrato oculto desses ritos é nitidamente gnóstico. A Maçonaria derivou de um ramo dos Rosa-Cruz.”

    E prossegue, aludindo à influência do movimento em algumas efemérides: “Pareceria absurdo citar esta subcorrente cristista, se a importância dela na história não fosse, apesar de ser oculta, enorme. Ela agiu fortemente na Renascença e na Reforma; a sua ingerência na Revolução Francesa é assinalada”.

    Simpatizante da maçonaria – o seu avô era maçon –, o poeta discordou fortemente, em 1935, de um projecto-de-lei contra a Ordem Maçónica, que fora apresentado por um deputado.

    Fernando Pessoa discorre, com a astúcia e profundidade que são tão suas, sobre os símbolos da “rosa” e da “cruz”. A cruz é a matéria e o movimento; a rosa é o mundo (Rosamund), “a vida divina” que enche essa mesma matéria e movimento. Juntas, são o “Resultado” ou a “Terra”.  A este respeito, uma das conclusões a que chega é que “o símbolo cristão completo e final é o símbolo da Rosa-Cruz”.

    Quando ao cristianismo, diz-nos que é preciso “sentir” e, ao mesmo tempo, “repudiar”. A lógica (aparente ilógica) da contradição e do paradoxo é uma constante na dialéctica de Pessoa. Tal é evidente quando preconiza o “sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo”. A multiplicidade no sentir teve expressão máxima na sua heteronímia, sobejamente conhecida.  

    Para Fernando Pessoa – e talvez isto ajude a explicar o seu fascínio –, a iniciação em sociedades secretas não é mais do que uma “mimetização”, em sentido figurado, no plano terrestre, de uma “iniciação verdadeira”. Como tal, as cerimónias maçónicas são meramente simbólicas. Para se ser um iniciado, não é, portanto, necessário pertencer-se a qualquer ‘ordem’. Ainda assim, e parafraseando o poeta: “Ao homem vulgar, que queira entrar as portas do oculto, diremos só uma coisa: não tentes! O oculto é que nos procura, não nós a ele”.

  • A comovente homenagem aos eternos amigos

    A comovente homenagem aos eternos amigos

    Título

    As melhores histórias do melhor amigo

    Autores

    Vários

    Editora (Edição)

    Parsifal (Outubro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Este As melhores histórias do melhor amigo é um livro sobre o amor. Uma das mais bonitas, fraternas e universais formas de amor – a que existe entre o Homem e o seu eterno melhor amigo de quatro patas: o cão.

    O fundador e editor da Parsifal, Marcelo Teixeira seleccionou quase uma vintena de breves contos e textos, escritos por reputados autores nacionais e internacionais, para homenagear os nossos sempre fiéis companheiros.

     É, por isso, verdadeiramente, uma coletânea de histórias de amor. Alguns escritos são de carácter ficcional, outros contam experiências reais. Cada um deles descreve uma vivência diferente, e em todos a emoção é tónica muito presente, com a relação (ou as relações) entre humanos e canídeos como protagonista.

    Formado em Arqueologia e História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Marcelo Teixeira dedicou grande parte da sua vida às letras, sobretudo como editor, onde se destacou como coordenador editorial da Oficina do Livro, antes de fundar a Parsifal em 2013. É co-autor dos livros de poesia Terna Ausência (2005) e Santo Ofício (2006), e dos livros História(s) do Estado Novo e Reflexões sobre a expedição punitiva norte-americana no México na imprensa portuguesa.
    Como o próprio assume, esta obra sobre a paixão por canídeos não teria surgido se não fosse a insistência dos seus filhos para que acolherem, na família, um novo membro, quadrúpede e peludo.

    Nesta “enxuta” obra de apenas 156 páginas, podemos assim ler escritores, vivos e já falecidos, tão distintos como Mark Twain, Anton Tchékhov, José Luís Peixoto, Machado de Assis, Sérgio Luís de Carvalho e Filomena Marona Beja. Todos os textos são uma ode a essa encantadora espécime que são os canídeos e a quem, como tão bem elucidam as palavras de Sérgio Luís Carvalho, “pouco falta (…) para serem humanos; e o que lhes falta apenas reverte a favor deles”.

    O “acervo” escolhido é bastante heterogéneo: alguns contos ou fábulas, bem-humoradas, arrancam-nos um sorriso aberto ou até mesmo uma gargalhada, enquanto outras suscitam-nos comoção, nostalgia ou compaixão.

    Assim, com Tchékhov, em A senhora do cãozinho, um lulu-da-pomerânia branco testemunha o início de uma história de amor. Em Rumo ao primitivo, de Jack London, temos um cão estilo “super-herói” chamado Buck. O cómico e indiscreto Black, um bull-terrier, é responsável pelo desenlace de um casal, ao “denunciar” o caso de dois amantes, no conto de Artur de Azevedo. Já Mark Twain, em A história de uma cadela, fala-nos sobre uma família canina bastante erudita, em que a mãe, uma collie, sabe, inclusivamente, que a palavra “agricultura” é um sinónimo de “incandescência intramural”.

    Marcelo Teixeira salienta, e bem, na introdução, a omnipresença destes animais na arte, na literatura, na cultura, e no quotidiano do Homem desde tempos imemoriais. Conseguirá alguém imaginar um mundo sem cães? O amor incondicional, a alegria, a lealdade, a proteção e a companhia que proporcionam aos seus bípedes pais adoptivos não têm par, e por isso esta homenagem a estes seres deveras especiais é uma justa retribuição.

    Vale muitíssimo a pena ter este livro em casa – com ou sem cão –, já que a sua aquisição é um ganho duplo: por um lado, acrescenta-se à biblioteca um tributo enternecedor a estes nossos fiéis amigos de quatro patas sob a forma de peças literárias imaculadas; e, por outro, contribui-se para a Associação Zoófila de Leiria – Fiéis Amigos e para a Associação Protectora de Animais da Marinha Grande, já que as receitas obtidas com as vendas revertem, na totalidade, a favor destas instituições.

    Deixo apenas uma advertência: quem não for já dono de um bichinho destes, poderá, com a leitura deste livro, ser assaltado por um forte desejo de se dirigir ao canil mais próximo e levar um consigo para casa. Se for o caso, não resista. É que, e para concluir, citando novamente Sérgio Luís de Carvalho: “E – vejam bem o que os cães nos fazem – mesmo sendo ateu convicto desde a minha juventude, chego muitas vezes ao ponto de agradecer a Deus por os ter criado”.

  • A leveza de uma vida notável

    A leveza de uma vida notável

    Título

    Peste e cólera

    Autor

    PATRICK DEVILLE (tradução: José Mário Silva)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Dezembro de 2022)

    Cotação 

    15/20

    Recensão

    Alguns heróis são mais esquecidos do que outros – e não se incomodam com isso, porque nunca tiveram a pretensão de o ser. Alexandre Yersin 1863-1943, discípulo de Louis Pasteur, foi um microbiologista, polímata e cientista suíço que se encaixa nesse perfil.

    Pouco conhecido pela generalidade das pessoas, não é um dos nomes mais sonantes da História da Medicina, embora o bacilo da peste negra, Yersinia pestis, descoberto pelo cientista em Hong Kong em 1894, tenha sido nomeado em sua honra.

    Felizmente, o escritor francês Patrick Deville, escreveu um romance inspirado na intensa vida de Yersin, que foi um explorador em várias áreas da vida, e não apenas da Ciência. Intitula-se Peste e cólera, e tornou-se, no ano passado, o primeiro romancista traduzido para português do romancista, estando integrado na Colecção de Alberto Manguel,uma iniciativa da Tinta da China e da RTP. Originalmente publicado em 2012, recebeu nesse ano o prémio Femina e o Prix de Prix em França.

    O romance é abundante – talvez em demasia – em apontamentos históricos e curiosidades, ou não fosse também o seu próprio autor um aventureiro e viajante profissional.  Patrick Deville partiu para o Golfo Pérsico como adido cultural, com apenas 23 anos, e foi professor em países como a Argélia e a Nigéria, tendo publicado o seu primeiro livro em 1987. Também noutras das suas obras, Deville inspirou-se em figuras reais, conjugando as suas vidas com a ficção.

    Se Alexandre Yersin nunca obteve uma grande notoriedade, tendo ficado relegado um pouco como uma personagem secundária, neste romance o aprendiz de Pasteur é o protagonista – e em pleno direito. É justo porque, como se percebe em Peste e cólera, a sua vida é digna de ocupar estas 222 páginas, e a sua história é daquelas que vale a pena conhecer. Não sendo assim uma biografia, é um romance que retrata, contudo, com grande fidelidade a sua vida, a qual se pôde reconstruir sobretudo através das cartas que, nas suas muitas viagens, escreveu à mãe, Fanny, e à irmã, Emilie.

    Poder-se-ia chamar Alexandre Yersin um homem dos sete ofícios, multifacetado. Sedento de conhecimento, foi o arquétipo do génio eremita. Sempre nutriu uma profunda admiração por David Livingstone, um conhecido missionário e explorador escocês. E, de facto, Yersin teve essa faceta aventureira: aos 27 anos tornou-se médico de bordo da Messageries Maritimes. Em navios a vapor, percorreu a costa do sudeste asiático, região cujo centro chegou a explorar, tendo até estado de caras com a morte.

    Não mais quis voltar à Europa, que trocaria definitivamente por Nha Trang, uma província que corresponde hoje ao actual Vietname. Nesse país, Alexandre Yersin é ainda hoje venerado pela forma como altruisticamente serviu a população vietnamita ao longo do quase meio século, e onde faleceu com 79 anos. Ali, abriu um pequeno laboratório que, poucos anos mais tarde, se tornaria uma filial do Instituto Pasteur.

    O romance percorre todas as estações da longa vida de Yersin: a infância, a juventude, a idade adulta e a velhice. Não o faz, contudo, por ordem cronológica. Ao longo do livro, vai-se avançando e recuando no tempo. Não sendo obra imperdível, com Peste e cólera ninguém perde nada com a sua leitura. É um livro leve, descomprometido, que cai bem.

    É certamente uma boa adição à biblioteca de qualquer pessoa. A escrita tem beleza, e a vida do cientista suíço é deveras impressionante.

  • Em terra de cegos, quem tem um olho é príncipe

    Em terra de cegos, quem tem um olho é príncipe

    Título

    O príncipe

    Autor

    NICOLAU MAQUIAVEL

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Será mau o lobo, e bom o cordeiro? A moral judaico-cristã dir-nos-ia que sim, mas Nicolau Maquiavel certamente discordaria. Há mais de cinco séculos, o filósofo, diplomata e político nascido em Florença escreveu O príncipe, agora um clássico que dispensa apresentações, agora reeditado pela Ideias de Ler. Considerada uma das mais importantes e pioneiras obras da filosofia moderna e da ciência política, O príncipe é, em suma, um manual de instruções para líderes políticos sobre como atingir e manter o poder.

    Sendo largamente inspirado no implacável duque César Bórgia, filho ilegítimo do Papa Alexandre VI, este tratado político proscreveu todas as normas morais vigentes na época, o que originou o sobejamente conhecido, e pejorativo, termo “maquiavélico” – que se tornou um sinónimo de matreiro, diabólico, velhaco.

    No entanto, citando um provérbio português, quem diz a verdade não merece castigo; e há uma certa injustiça em acusar Maquiavel de “maquiavelismo”. Aquilo que o filósofo italiano fez não foi mais do que uma descrição nua e crua das dinâmicas de poder que a sua posição lhe permitiu observar de perto. Assim, a moral só ficou de fora de O príncipe, porque também fica, amiúde, nas relações humanas e sobretudo naquelas que envolvem poder e domínio. Além disso, convenhamos, a obra não pretende ser romântica, mas realista. Por isso, é uma análise despudorada da condição humana que choca as mentes puritanas, por desafiar a moral católica como pretenso barómetro dos hábitos e bons costumes.

    Também é importante entender-se o contexto histórico da época em que Maquiavel escreveu a obra, designadamente a instabilidade e a fragmentação política e governativa que assolava a península italiana renascentista, e que a tornava palco de constantes e disruptivas lutas pelo poder.

    Um estratega perspicaz, Maquiavel explica como deve o príncipe incumbente administrar os vários tipos de principados. Argumenta que o reinante deve fugir tanto do desprezo como do ódio, bem como dos bajuladores. Explica ainda como deve o líder tratar os seus aliados e súbditos, e preconiza que mais vale ser temido do que amado – mas nunca odiado. Defende que deve estar-se sempre preparado para usar a força e para fazer a guerra, aproveitando os tempos de paz, não para baixar a guarda, mas para exercitar-se ainda mais.

    A obra terá sido uma referência para vários líderes e governantes nestes últimos séculos, incluindo Napoleão Bonaparte, Henrique VIII, Luís XIV, Estaline e Hitler – o que abona a favor da eficiência dos pressupostos defendidos. Hoje, também continua a constar da bibliografia de políticos e dos seus conselheiros.

    De facto, mesmo após mais de cinco séculos da sua publicação, O príncipe continua relevante e os seus argumentos actuais, o que mostra que a natureza do Homem e do poder tem um carácter fortemente imutável; mesmo que as técnicas utilizadas se sofistiquem. Afinal, quem não identifica, por exemplo, esta exortação no cenário político contemporâneo?:

    “Deve, além disso, nas convenientes alturas do ano, ter os povos ocupados com festas e espetáculos; e, porque toda a cidade está dividida em corporações ou em classes, deve ter em conta estes coletivos, reunir-se com eles algumas vezes, dar de si exemplos de humanidade e munificência, detendo, no entanto, sempre firme a majestade da sua dignidade, pois isso jamais deve faltar em alguma coisa.”

    Moralmente reprovável ou não, a leitura deste clássico é imprescindível para todos. Quem quer aprender a ser maquiavélico, deve ler O príncipe. Quem não se quer deixar levar por um, também.