Etiqueta: Maria Afonso Peixoto

  • Histórias heroicas da vida real

    Histórias heroicas da vida real

    Título

    Um dia de cada vez

    Autor

    NELSON OLIM

    Editora (Edição)

    Lua de Papel (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Uma das melhores formas de descrever este livro, de forma simples, é dizer que é um “abraço” de 190 páginas. Por outras palavras, é um relato de esperança e humanidade e um testemunho de como os milagres acontecem nos cenários mais catastróficos e apocalípticos; de que quando o mundo parece desabar, há sempre quem se dedique a ajudar e a fazer de um desastre algo mais suportável.

    Em Um dia de cada vez, Nelson Olim, que tem no seu currículo várias missões de ajuda humanitária como médico cirurgião, partilha com o leitor algumas dessas histórias – são onze no total –, que certamente não deixarão indiferente quem as lê.

    Actualmente, Nelson Olim é Conselheiro Regional de Trauma para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Fez parte do Comité Internacional da Cruz Vermelha em Genebra, e foi Conselheiro Regional da Rede de Equipas Médicas de Emergência da OMS no Médio Oriente e Coordenador de Trauma da OMS para Gaza. Já esteve em missões em várias zonas assoladas por conflito e desastres, como Gaza, Kosovo, Somália, Iémen, Iraque, Sudão e o Afeganistão.

    O livro começa por remontar à altura em que o autor trabalhava no INEM e atravessava Lisboa a toda a brida, mas rapidamente somos transportados para outros cenários e países longínquos. Em Um dia de cada vez, ficamos a conhecer a experiência de Nelson Olim em Banda Aceh, na Indonésia, no rescaldo do tsunami de 2004. Uma viagem que optou por fazer, adiando umas férias planeadas com a mulher num destino paradisíaco. Conhecemos, também, a tribo “Murley” com a qual se cruzou no Sudão do Sul e que fez o seu estômago “contrair”, ou a história sobre o “cerco” a que foi sujeito no Iémen.

    É particularmente interessante perceber os contratempos, as peripécias e até alguns sustos – enfim, os “bastidores” – envolvidos nestas missões humanitárias. Ou é o tempo que não está de feição para viajar de avião, ou são aterragens inesperadas, ou é uma mulher que entra em trabalho de parto em pleno aeroporto de Frankfurt, durante o trajecto de regresso a Portugal da sua equipa de médicos em missão, obrigando o autor a fazer, inesperadamente, o papel de cirurgião de serviço (neste caso, o obstetra) numa casa-de-banho. O inusitado e o cómico insistem em “dar o ar da sua graça”, não importa qual seja o contexto ou situação, e na vida de um cirurgião especializado em Medicina de Emergência, a imprevisibilidade é a norma.

    Enquanto se descrevem as histórias, vamos imaginando os cenários e sentindo as emoções inerentes a cada situação. Consternação, quando lemos sobre uma mãe que perdeu o bebé de quatro meses por engasgamento, que Nelson Olim e um colega não conseguiram salvar. Uma ansiedade expectante, com as cirurgias delicadas que fez, batalhando contra o tempo, para tentar que a morte não fosse o destino do seu paciente. Comoção, quando o “milagre” acontece pela medicina e uma vida é salva, contra todas as probabilidades.

    Embora se fale, por vezes, de situações que tipicamente fazem o coração acelerar e onde nos assola a curiosidade por descobrir o que vem a seguir, este livro revela-se aconchegante; porventura, devido ao amor e ao altruísmo envolvidos nestas histórias, e que passam para o leitor. Amor esse que a historiadora Raquel Varela, que assina o prefácio, sublinha e bem, quando salienta que o ofício escolhido pelo autor só pode dever-se a um prazer em cuidar dos outros – e à ocitocina, hormona do amor – mais do que à necessidade de adrenalina que o autor alega ter.

    Não seria favor nem exagero apelidar médicos como Nelson Olim, que efectivamente salvam vidas – muitas vezes em condições, no mínimo, pouco favoráveis, e até arriscando a própria pele – como “super-heróis” da vida real. E se, por isso, o autor teria razões para ter um ego inflamado, a verdade é que o oposto se verifica. E é isso que torna esta leitura ainda mais especial: a maneira despretensiosa e humilde como as histórias nos são contadas, sem vestígios de egocentrismo, megalomania ou “síndrome de salvador”.

    O autor, aliás, destaca um conselho de um cirurgião israelita, chamado “Dr. Best”, que no início da sua carreira o orientou num estágio no Rambam Medical Center, em Haifa: “O ego de um bom cirurgião deve ser assim pequeno, tão pequeno que caiba no bolso de trás das calças”. E é visível que o médico acatou a “deixa”.

    Escrito num tom simples e despojado, o livro deve o seu título ao propósito do médico de lutar contra a morte, que ameaça os seus pacientes, “um dia de cada vez”.

    Um dia de cada vez é uma leitura muitíssimo recomendável: uma obra sobre humanidade e a Humanidade, sem lamechismos ou lugares-comuns. Para os mais sensíveis, recomenda-se apenas “passar à frente” alguns parágrafos ocasionais em que o autor entra em maior detalhe sobre algumas das operações que efectuou.

  • Tudo é transfobia? Já não se pode dizer o óbvio?

    Tudo é transfobia? Já não se pode dizer o óbvio?

    O antigo jornalista e actual comentador Miguel Sousa Tavares tem estado debaixo de fogo, depois de ter criticado a escolha deste ano para Miss Portugal, que recaiu sobre uma mulher transgénero, de seu nome Marina Machete. No seu novo espaço de comentário, que estreou no Jornal Nacional da passada quinta-feira, Sousa Tavares dizia ao jornalista José Alberto Carvalho que não foi uma “mulher bonita” que venceu o concurso, mas sim o resultado das várias operações plásticas a que foi sujeita para se tornar mulher. Disse ainda que as mulheres saíam “maltratadas” com esta eleição, que tornou o concurso numa “anedota e numa batota.”

    Como seria de esperar, depressa se elevou um coro de vozes indignadas, com vários comentadores da nossa praça a despejarem sobre Miguel Sousa Tavares os seus sermões e anátemas. É mais uma polémica “instantânea”, que num país saudável nem sequer teria lugar – mas aqui, cá estamos nós, mais uma vez, a fingir que não temos coisas realmente sérias para nos preocuparem e entreterem-nos, e que a história é merecedora de se lhe dedicar imensa atenção.

    O único motivo que nos deve levar a reflectir sobre este (não) assunto é no sentido de concluir como hoje ter opinião se transformou num acto perigoso, se for a opinião “errada”, obrigando figuras públicas, pela pressão de uma ‘massa’ chamada opinião pública, a pedir desculpa apenas por terem dito a maior das obviedades.

    Uma das tiradas que suscitou mais celeuma e foi quando Miguel Sousa Tavares perguntou a José Alberto Carvalho se casaria com Marina Machete. Qualquer pessoa tem o direito de considerar a questão esdrúxula ou a despropósito, mas será caso para revolta? É assim tão ofensiva e desrespeitosa? O mais provável é que se fossem duas mulheres a indagar se casariam com um homem transgénero, não assistíssemos a tanto burburinho – a não ser, talvez, entre a comunidade do alfabeto.

    Ao porem em causa o sentido que faz uma mulher transgénero ser coroada Miss Portugal, os dois jornalistas receberam até a distinção de “machos dominadores” por uma fan-girl do actual Governo. Acredito que nunca ninguém tenha imaginado ler “machos dominadores” e os nomes de José Alberto Carvalho e Miguel Sousa Tavares na mesma frase, mas enfim, hoje é fácil contestar as afirmações de um homem, da forma mais básica, parecendo-se eloquente: basta acusá-lo de machismo.

    Houve também quem condenasse a conversa de “balneário” e de “taberna” dos ditos cavalheiros. Falou-se ainda em boçalidade e numa “humilhação” feita a Marina Machete. Com todas as alarvidades e futilidades diariamente transmitidas na televisão portuguesa, incluindo nos espaços de comentário e de notícias, só agora a trupe Comentadores & Companhia se apercebeu que pouco ou nada se aprende em frente ao pequeno écrã. 

    Seja como for, afirmar que um homem biológico não é uma mulher só peca por ser tão óbvio que não deveria ser necessário recordá-lo – não devia fazer de ninguém um herege. Seguindo esta linha de raciocínio, não é de todo descabido defender que alguém que nasceu homem não pertence num concurso de mulheres.

    A opinião de Miguel Sousa Tavares, concorde-se ou não, é estritamente racional e adstrita a um facto insofismável: Marina Machete não teria o físico que possui se não fosse pelos procedimentos cirúrgicos a que se submeteu. Constatá-lo não denota qualquer fobia; é uma verdade simples e objectiva. E mesmo não tendo qualquer simpatia pelo comentador em causa, que já terá proferido opiniões muito questionáveis, não creio, no caso em apreço, que mereça castigo por dizer uma verdade.

    Certo é que alguns, a quem os factos fazem urticária e as opiniões “erradas” ainda mais, conseguiram que a polémica assumisse proporções tais, que José Alberto Carvalho se prestou a um mea culpa no Jornal Nacional de ontem, retratando-se e pedindo desculpa pela sua “atitude irreflectida”. Atitude essa que foi simplesmente responder a Miguel Sousa Tavares: que não se casaria com Marina Machete. Hoje, isto é um crime de lesa-majestade e serve de tema de discussão para vários dias.

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    Quem viva num universo paralelo e considere problemático afirmar-se em público que “um homem não é uma mulher”, ou outras verdades de La Palice, está no seu pleno direito se quiser indignar-se. Mas a sua ira não deve ter tanto poder que consiga silenciar quem bate o pé e tenta ser o adulto na sala, repondo alguma da sanidade perdida nos últimos anos.

    Perante os gritos e choros da comitiva de ofendidos com a opinião alheia, a resposta não deve ser aquiescer, mas a indiferença. A liberdade que os arautos do politicamente correcto têm para ventilar a sua revolta, com a notícia do dia, não pode servir para espezinhar a liberdade de expressão dos outros.

    Durante a polémica conversa, José Alberto Carvalho perguntou a Miguel Sousa Tavares se não tinha receio de ser acusado de transfobia, ao que o último respondeu “não ter idade” para se preocupar com as coisas de que o acusam. Veremos, na próxima quinta-feira, se o “desbocado” comentador mantém a sua posição, ou se verga a esta exaustiva censura.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Orçamento tapa (mal) buracos

    Orçamento tapa (mal) buracos

    Numa altura em que o país debate o Orçamento de Estado para 2024, e na mesma semana em que se assinou o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, é pertinente fazer-se uma reflexão sobre a situação em que nos encontramos e o rumo que estamos a tomar – não obstante muitos de nós termos os olhos postos no conflito Israel-Hamas. E, infelizmente, parece que ainda não é possível, nem será tão cedo, vislumbrar a cada vez mais esperada “luz ao fundo do túnel”.

    Um relatório recente da Rede Europeia Anti-Pobreza revelou dados preocupantes – que se tornam ainda mais alarmantes tendo em conta que se referem a 2021, não reflectindo por isso a hecatombe da crise inflacionista e do aumento dos juros que o ano de 2022 nos trouxe. Ou seja, o cenário será ainda mais negro.  Há dois anos, segundo este relatório, quase metade da população assolada pela pobreza encontrava-se, mesmo assim, a trabalhar. Também havia 1.696.000 pessoas em situação de risco, significando que os seus rendimentos se situavam abaixo dos 551 euros mensais.

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    O Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza também levou a que a atenção mediática e política se debruçasse, por momentos, no flagelo dos sem-abrigo, com o Presidente da República a pedir para se fazer mais, mas sabemos que ele é reincidente em pedidos deste género, como se viu em 2019 e no ano passado. Apesar dos desejos presidenciais, já havia sido noticiado em Setembro que Portugal é o sexto país da União Europeia com mais sem-abrigo, com quase 10 mil pessoas nessa condição. O Governo, por seu turno, aproveitou a efeméride para apresentar o “Plano de Acção da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2022-2025”.

    Mas se a pobreza extrema é um problema grave e que necessita de ser combatida, é igualmente pavoroso assistir a uma classe média cada vez mais estrangulada, num país onde quem aufere 2000 euros brutos pertence ao clube dos mais “ricos”, e com um nível de vida já mais baixo do que a Roménia.

    Ora, face às dificuldades financeiras crescentes, algumas das principais medidas previstas no Orçamento de Estado e que o executivo anunciou de forma emproada, foram a diminuição do IRS, o aumento do salário mínimo e de apoios sociais como as pensões e o abono de família, e subsídios a vitimas de violência doméstica. Uma migalha para cada nicho de eleitores, portanto, capitalizando o desespero generalizado – mesmo que, no fim, fiquemos com menos.

    five red apples on white surface

    Quanto ao salário mínimo: se metade dos pobres, trabalham, deixarão de ser pobres com mais 60 euros por mês?! E se o preço das casas sofreu um aumento de 90% em relação a 2015, enquanto os salários aumentaram apenas 20%, subir salários por decreto servirá para resolver o problema?

    No fundo, é mais um Orçamento assistencialista, numa perspectiva de damage control, mas, na verdade, com mais de damage do que de control. Porque, longe de promover soluções reais, apenas tapa buracos, e mal. No fim, sem se investir numa economia mais competitiva, continuará a não se produzir riqueza – e a tendência do empobrecimento não se inverterá.

    O Governo adoptou a estratégia de parecer responsável, alardeando o slogan das contas certas – irónico, vindo do partido que nos colocou em três bancarrotas –, enquanto propagandeou uma redução de impostos que é, na verdade, ilusória.

    Como foi noticiado, os impostos indirectos aumentaram, e serão mais 3 mil milhões de euros para os bolsos do Estado (mais 9% em relação ao presente). Contas feitas, o Governo deverá bater um recorde de receita fiscal em 2024. Falar de um alívio da carga fiscal é, assim, um engodo.  Pelo meio, com a Saúde e a Educação a rebentar pelas costuras, também vemos dinheiro público desperdiçado para causas vazias, como a “Igualdade de Género”, para onde serão canalizados 426 milhões de euros.

    man sleeping on bench in the middle of the street

    Este executivo continua, enfim, igual a si próprio: vai tapando o sol com a peneira, enquanto fomenta a dependência do Estado, e nos corta cada vez mais as pernas. Por este caminho, o que se vai conseguir é esbater as diferenças, mas seremos apenas mais iguais na pobreza. A classe média será esmifrada, e apenas alguns conseguirão escapar a esta verdadeira carnificina.

    Os portugueses continuam a caminhar em direcção ao abismo da dependência e da domesticação, e a contar os tostões para se manterem à tona. Neste cenário aterrador, o Governo fez o que faz bem: dá-nos a mão, não para nos salvar, mas apenas para que o afogamento seja um pouco mais lento.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Escolhemos mesmo os nossos governantes?

    Escolhemos mesmo os nossos governantes?

    “No passado, muitos déspotas e governos quiseram fazê-lo, mas ninguém compreendia o suficiente sobre biologia, e ninguém tinha meios computacionais e dados para hackear milhões de pessoas. Nem a GESTAPO, nem o KGB podiam fazê-lo. Mas, em breve, pelo menos algumas corporações e governos serão capazes de hackear sistematicamente todas as pessoas. Nós, humanos, temos de nos habituar à ideia de que já não somos almas misteriosas”. Estas sinistras palavras são do (também sinistro) historiador e escritor israelita Yuval Noah Harari – conhecido por best-sellers como Sapiensnuma reunião anual do World Economic Forum em 2020.  

    Mesmo com todos os progressos científicos, não sei se é verdade que já não sobra qualquer réstia de mistério ao ser-humano, mas, em todo o caso, parece-me que estas declarações são essenciais para entendermos a realidade actual e das últimas décadas.  Desde logo, porque as palavras de Harari, proferidas no palco da elite que controla o Mundo a seu bel-prazer, mostra-nos – para quem queira ver e ouvir, em vez de enfiar a cabeça na areia – o futuro distópico que os nossos overlords têm planeado para nós. Não há como dizer que é teoria da conspiração; é abertamente assumido.

    World Economic Forum

    Mas a frase “nós, humanos, temos de nos habituar à ideia de que já não somos almas misteriosas” ecoou em mim, sobretudo porque é um ponto nevrálgico do monstro com que nos defrontamos. Sublinhe-se: quem manda em nós – Governos, grandes corporações, elites – conhece-nos de “ginjeira”. Para eles, somos como marionetas que manipulam habilmente através da propaganda, da comunicação social (por vezes, confundem-se), enfim, das acções que encabeçam. No fundo, há muito que já fomos manietados e “hackeados” por meio de técnicas sofisticadas de manipulação psicológica. Fazem de nós gato-sapato, levam-nos a caminhar em direcção ao precipício, sem que nos apercebamos, enquanto mantêm em nós a ilusão de que estamos a agir de livre vontade. Mas o nosso livre arbítrio é o mesmo dos habitantes da caverna da Alegoria de Platão, que julgam conhecer a realidade, quando apenas têm poder de vislumbrar as sombras.

    Hoje, não há necessidade de instaurar uma ditadura no Ocidente. As mentes estão controladas, e por isso, as pessoas também. Julgamos eleger quem nos representa, mas o leque de candidatos que nos oferecem não representa os nossos interesses. Aqueles que estão na política para, de facto, servir o país, não têm grande margem de manobra – ou se portam bem e se conformam, ou são afastados. O poder apenas pode cair nas mãos de quem convém, e é isso que acontece, com a preciosa ajuda de uma comunicação social corrompida que os promove.

    Os candidatos a governantes já foram há muito empacotados e estão prontos a servir no dia das eleições. A máquina de propaganda já tratou de os “vender”, para que possamos exercer a nossa “escolha”. Os exemplos deste processo são vários.

    Chess Piece

    Mas olhemos para o nosso “pequeno mundo”, para o caso de Portugal.

    Do lado do PSD, não parece arriscado apostar que Carlos Moedas sucederá a Luís Montenegro. Quanto ao Partido Socialista, ainda esta semana Pedro Nuno Santos inaugurou o seu espaço de comentário na SIC. O caminho rumo ao “trono” que António Costa ainda ocupa faz-se, assim, ao colo de supostos “jornalistas”. Na verdade, os mesmos que permitiram que o actual primeiro-ministro “açambarcasse” o poder com laivos ditatoriais, sem que fosse por isso mal visto – primeiro a António José Seguro, e depois a Pedro Passos Coelho. Na sua governação, pouco mais fez do que destruir o país, em uníssono com os interesses de organizações supranacionais.

    António José Seguro, que de acordo com várias “fontes”, como se diz em ‘jornalês’, é uma pessoa (inconvenientemente) honesta, foi obliterado antes de ter sequer chance de se tornar primeiro-ministro. Chegou, aliás, a denunciar, numa entrevista, a existência de um “partido invisível na sociedade portuguesa, que tem secções em todos os partidos, fundamentalmente nos partidos do Governo”, e acrescentou que “é este poder fáctico que precisa de ser escavacado, de ser destruído”. Será que a sua posição sobre este “poder fáctico” teve algum peso no seu afastamento abrupto?

    Porventura, o antigo líder socialista seria demasiado bom para governar – pelo menos, para a elite parasitária que se move nas sombras, para a comunicação social vendida, e para desgraça dos portugueses que, em vez de um político vertical, ficaram com um manipulador exímio que não olha a meios para atingir fins e que conseguirá dormir descansado enquanto vê o país a definhar e a apodrecer.

    People Standing Near Statue

    Talvez hoje, tenhamos perdido o “direito” de escolher um líder que, independentemente da sua ideologia, coloque os interesses colectivos à frente dos seus. Fala-se muito de uma “alternativa” ao Partido Socialista, e é verdade que parece não existir, nem à esquerda nem à direita. Nem tão pouco, arrisco dizer, nos partidos sem assento parlamentar. Mas, tendo em conta estes poderes fácticos que corroem a democracia, quem procura apenas uma alternativa ao Partido Socialista, falha o alvo.

    Urge uma alternativa à corrupção e à subversão e que grassa em todos os partidos e demais agremiações de poder. Dito de forma simples, é preciso que o povo desperte do torpor, e que, pegando na afirmação de Harari que citei no início, devolva a “tirada” aos poderes instalados, e lhes diga: “têm de se habituar à ideia de que já não são um mistério para nós, e já não nos conseguem manipular”.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Não se pode falar de imigração desenfreada? Ou deve-se?

    Não se pode falar de imigração desenfreada? Ou deve-se?

    É hoje um dos temas ‘tabu’. Salvo algumas excepções, e descambando sempre numa discussão ideológica e pouco racional, o debate sobre a imigração desenfreada – e repita-se, a imigração desenfreada – não encontra espaço nem tempo na sociedade civil. Tal como sucedeu na pandemia, ou em outras questões “fracturantes”, cria-se aqui um eixo onde apenas um lado é consensualmente aceite e as demais opiniões são proibidas. Não há lugar sequer ao meio-termo: ou se está visceralmente contra, ou incondicionalmente a favor.

    Aqueles que divergem, rapidamente são apodados de insensíveis e desumanos vilões que encolhem os ombros perante a desgraça alheia, ou pior – com sorte são xingados simplesmente de fascistas. Por outro lado, quem aceita sem reservas as crescentes remessas de imigrantes são os humanistas, os evoluídos, os solidários e os altruístas; enfim, os cidadãos exemplares com um lugar reservado no céu. Este compasso moral foi, nas últimas décadas, sendo paulatinamente estabelecido, até se cristalizar como uma verdade inquestionável. O problema disto é ser uma dicotomia simplista, e por isso errónea, que ignora a complexidade do tema e rejeita qualquer nuance.

    aerial view of people on shoreline

    Em Portugal, os imigrantes têm aumentado de uma forma galopante, sobretudo desde que António Costa é primeiro-ministro. Por exemplo, em Setembro noticiou-se que só este ano se passou de 781.915 imigrantes, no final de 2022, para os 980.000. São quase 200 mil. Por ano, nascem apenas cerca de 80 mil crianças e esse número apresenta uma tendência decrescente há décadas também porque muitos jovens portugueses tiveram de emigrar – e nos países onde lhes deram melhores condições lá têm os seus filhos.

    Sempre podemos dizer que os imigrantes que escolhem o nosso país procuram o mesmo, mas convém, já agora, ver se a “troca” faz sentido, sobretudo porque os nossos emigrantes, além de portugueses (o que, salvo melhor opinião, não é desonroso), saem agora com um curso superior, que é um investimento também público a ser aproveitado por países terceiros.

    Em Março, com as autorizações de residência automáticas para cidadãos da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), Portugal passou de uma política de portas abertas para portas “escancaradas”. Atendendo às enormes dificuldades na Habitação e na Saúde, é pertinente interrogarmo-nos sobre o porquê de tal decisão. Qual o intuito? É por pensar que duas ou três dezenas de emigrantes se podem encaixotar num T1 na Mouraria? É mesmo disto que o país precisa? É, sequer, uma medida recíproca e proporcional? Não. Facto é que, em apenas seis meses, mais de 151 mil vistos já foram concedidos.

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    Bem conhecemos as declarações diárias de personalidades políticas, incluindo membros do Governo , assumindo que tanto a população portuguesa como a europeia estão em queda livre, e apontando a chegada de imigrantes como a única saída para esta crise, para o aumento do PIB e para a sustentabilidade da Segurança Social. Mas esta será sempre uma solução artificial, além de ser um argumento facilmente desconstruído.

    Perante um Governo que não só permite, pela inacção, a debandada de portugueses – não criando condições para os jovens se estabelecerem como famílias –, forçoso é concluir que não existe vontade política de assegurar a renovação das gerações com portugueses de origem. Renovar é sempre bom, mas qual seria o mal se fosse sobretudo com portugueses. Ou ser humanista é abrir os braços aos imigrantes e escorraçar os portugueses?

    Quem defende uma imigração descontrolada costuma invocar um imperativo moral, que teoricamente faz sentido: gozando de um nível de vida superior, a Europa deve abrigar todos os estrangeiros porque é o “correcto”. Mas onde é que começa, e onde acaba, exactamente, a solidariedade destes bons samaritanos? Quando é que uma “ajuda” deixa de ser razoável e se torna contraproducente? E será que as objecções à imigração não têm legitimidade?

    Passkontrolle Passport control signage

    Quem responde “não” a esta questão, por regra faz vista grossa a consequências negativas; a começar pela perda de coesão e da identidade nacionais – Roma e Pavia não se fizeram num dia, e também a ausência de conflitos regionais (vd. Espanha) deve-se ao facto de sermos um país uno há mais de 800 anos. Mas esse nem é o pior mal, e os outros males são pouco humanistas. Receber imigrantes de braços abertos e deixá-los depois amontoarem nas ruas ou em habitações sem condição, atirando-os à pobreza, não é ser humanista. Deixá-los cair em redes de tráfico humano ou de extorsão, não é ser humanista.

    Bem sei qual é o outro lado da moeda: se um Estado restringe a entrada de imigrantes, esse Estado é xenófobo e racista. E também sei que se pode ser preso por ter e não ter cão: se aceita, então é-se acusado de não fazer o suficiente na integração. Nada de novo debaixo do sol, ou no “reino de Portugal” (leia-se, Dinamarca) : faça o que fizer, as culpas de todos os males do mundo recaem sobre o Ocidente. Não há avé-marias nem pais-nossos que lhe dêem a Salvação, depois de todos os pecados cometidos.

    Contudo, aqueles que fazem escárnio do legítimo direito do Ocidente em preservar o seu património cultural e identidade nacional, defendem-no curiosamente, na maior parte dos casos, esse direito para outros países. Na verdade, não é que desprezem a afirmação da nacionalidade: apenas parecem fazê-lo com aqueles que lhes são culturalmente mais próximos. Não preconizam a abolição de fronteiras ou a diluição de todos os países num mosaico multicultural de cidadãos sem noção de pertença e de raízes históricas, como expatriados dentro dos próprios países. Caso contrário, não poderiam condenar – como condenam – o colonialismo nem defender a soberania das antigas colónias e a sua independência e autonomia.

    white bird

    A sua aversão àquilo que denominam, com desdém, de “nacionalismo”, não se aplica, por exemplo, a nações africanas, árabes, ou aos países que empregam políticas estritas para “proteger” a sua composição demográfica, como a China ou Israel. A “conversa” da inclusão e da diversidade revela-se, assim, pura demagogia, ou uma flagrante hipocrisia. Apregoam o respeito pela singularidade dos diversos países e respectivos povos; mas só para alguns.

    Na verdade, e perdoe-se o pleonasmo, a verdadeira diversidade pressupõe a existência de países e culturas fortes, coesas e heterogéneas, que interagem saudavelmente entre si, em vez de um (ou muitos) melting pot (em) que nos querem “cozinhar”, sem se saber se, no fim, ficamos todos fritos, assados ou esturricados.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aborto: e que tal pensar em evitar que uma mulher pense nisso?

    Aborto: e que tal pensar em evitar que uma mulher pense nisso?

    Um recente relatório da Entidade Reguladora da Saúde diz que em 2022 realizaram-se 15.616 interrupções voluntárias da gravidez (IGV) em Portugal, um aumento de 15% face ao ano anterior. Soubemos também que, desde 2018, se fizeram 71.651 abortos.
    Perante estes dados, a primeira coisa que se ocorre na cabeça de certas pessoas é apelar ao alargamento do prazo legal para a prática de IGV, ou “repudiar” os profissionais de saúde objectores de consciência – esses malvados que se arrogam “juízes” morais e se recusam a realizar o procedimento.

    Começo por fazer um esclarecimento prévio: defendo a legalização do aborto, e discordo cabalmente de uma parte da direita que, por vezes, produz grande alarido em posições anti-aborto – e que se opõe até mesmo em casos de violação. Porém, também não concordo, e me parece até macabro, que certos grupos – não satisfeitos com o quadro de despenalização do aborto até às 10 semanas (já desde 2007) – façam deste assunto constante cavalo de batalha, e que, de quando em vez, se lembrem de azucrinar a opinião pública com mais reivindicações.

    a group of people holding up signs in front of the capitol building

    Esta obsessão persistente é sintomática e paradigmática não só de uma sociedade que julga apenas ter direitos, e poucos deveres, como do cerne do movimento feminista, que alardeia ter o bem-estar da mulher no topo das suas prioridades, mas que reduz as suas boas intenções a uma luta fetichista pelo “direito” ao aborto.  

    Uma vez legalmente garantida a possibilidade de recorrer à IGV, como sucede há vários anos, uma preocupação genuína com as mulheres deveria manifestar-se em redor da seguinte magna questão: o que pode a sociedade fazer para evitar que uma mulher sinta necessidade de recorrer ao aborto? Não (apenas) por eventuais questões morais ou religiosas, mas por se tratar de um procedimento doloroso a vários níveis e, a todos os títulos, obviamente indesejável.

    A resposta a esta questão passa indubitavelmente pela literacia, pela educação e pela contracepção, mas, deveria também passar por uma reflexão sobre os efeitos colaterais de uma cultura que promove uma sexualidade inconsequente e isenta de responsabilidades. Isto porque, nos últimos anos, estudos apontaram para uma correlação entre sexo casual e impactos negativos na saúde mental entre jovens adultos. Acresce ainda que este parece ser um problema maior para o sexo feminino, com as mulheres a apresentarem uma maior tendência para arrependimentos em encontros sexuais do que os homens.

    Man Holding Baby's-breath Flower in Front of Woman Standing Near Marble Wall

    Tendo em conta estes dados, seria lógico que, antes de colocarmos o aborto no centro da discussão – como o derradeiro recurso para prevenir uma gravidez indesejada – nos questionássemos antes sobre se a banalização da sexualidade não terá como consequência uma “sexualidade indesejada”. Seja na forma de uma vida sexual iniciada prematuramente, ou de comportamentos sexuais nocivos para a própria mulher.

    Por outro lado, num contexto em que cada vez mais mulheres se debatem com o desolador e deveras preocupante problema da infertilidade, e lutam pela possibilidade de engravidar e de levar a termo uma gravidez, não deixa de ser curioso que as brigadas “pró-escolha” não tenham, sobre este assunto, uma palavra de atenção. Ou, como temos visto em Portugal – perante os crescentes casos de mulheres que enfrentam dificuldades para terem os seus partos assegurados pelo Serviço Nacional de Saúde – , os efusivos activistas “pró-escolha” remetam-se ao silêncio.

    De facto, entre uma mulher que deseje abortar, e uma que deseje engravidar, apenas a batalha da primeira “faz as delícias” dos contestatários de serviço. Ao contrário do “direito” ao aborto, o “direito” à maternidade não parece, pois, constar sequer da lista de preocupações dos que se autoproclamam defensores da escolha, nem merecer qualquer resquício de indignação.

    woman wearing gold ring and pink dress

    Hoje, aliás, vemos celebridades internacionais (feministas) que se denominam, com regozijo, de serem child free, como se a escolha de não ter filhos fosse sinónimo de liberdade e empoderamento, e a maternidade não fosse mais do que um pesado fardo a suportar.

    Assim, é evidente que o movimento feminista “pró-escolha” tem, ao fim ao cabo, um inequívoco pendor anti-natalista. Quando o seu interesse na liberdade e no bem-estar das mulheres se resume a um intenso fervor pró-abortista, fica claro que as suas motivações se prendem menos com o superior interesse da mulher, e mais com uma vontade sinistra de assegurar que, paradoxalmente, se incorra em tantos comportamentos de risco quanto possível (instigando a promiscuidade e a irresponsabilidade) e, ao mesmo tempo, se possa, com o maior dos facilitismos, impedir um filho de nascer, invocando a autonomia sobre o próprio corpo.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • António Costa, o Bem-Amado

    António Costa, o Bem-Amado

    Esta semana assistimos a mais um “número” protagonizado pelo primeiro-ministro com a mãozinha das suas partenaires – leia-se, uma boa parte da imprensa dita de “referência”. Com o anúncio de um pacote de “medidas de apoio” aos jovens, António Costa afinal passou-nos, na verdade, mais um atestado de incompetência.

    Quis ele mostrar-nos, mais uma vez, que trata os portugueses como crianças; ele julga poder comprar-nos se nos passar umas guloseimas para a mão, na forma de subsídios e ajudinhas, para que permaneçamos pobres, mas um pouco menos, e assim nos lembremos que ele é o nosso bondoso “amigo”; e que nos lembremos do Partido Socialista na hora de irmos às urnas. Infelizmente, este modus operandi tem resultado muito bem: foi (também) assim que ele conseguiu – ou eles, se juntarmos o seu Partido Socialista – a maioria absoluta.

    Há quem gabe a arte, ou a “sorte”, de António Costa, como se o seu sucesso fosse atribuível a uma espécie de graça caída dos céus. Outros, dizem que é um político exímio e tacticista. De facto, há que reconhecer-lhe o mérito de conhecer bem a essência do povo português e de saber exactamente como o manobrar. Mas, note-se, as artimanhas do Partido Socialista não lograriam o mesmo efeito sem a preciosa ajuda (inadvertida ou não) da comunicação social mainstream. Os seus estratagemas, ainda que engenhosos, sairiam furados se não fosse a mediocridade de muita da nossa imprensa, que nos brinda com manchetes e notícias acríticas – umas atrás das outras.

    Feito o anúncio de António Costa na Academia Socialista – com toda a pompa e circunstância, como tem sido dito, para apresentar uma mão cheia de migalhas –, pouco se viu, na imprensa, contraponto jornalístico ou perguntas incómodas. Não se colocou o dedo na ferida, face à lástima em que o país se encontra – e cuja responsabilidade só pode ser assacada a quem nos governa há oito anos, independentemente das suas tentativas de ludibriar o povo com falinhas mansas.

    Mas a comunicação social não se limitou a não cumprir com o seu mais elementar dever, do qual, na verdade, já se demitiu há muito. Foi mais longe, e escrevinhou notícias tais como: “Prendas de Costa aos jovens” – note-se o tom paternalista concedido pelo Público: um governante que gere dinheiro dos nossos impostos, dá depois prendas aos jovens, mas esse dinheiro veio dos pais e demais familiares dos jovens… E isto já sem falar muito em títulos grandiloquentes sobre o nosso  “Costa, o ‘fazedor’ em Évora”, ainda por cima vítima das “mentiras” do Conselho do Estado.

    Por pouco, pensei, a coisa não descambava para títulos como “António Costa, o magnânimo”, “António Costa, o benfazejo”, “António Costa, o clemente”, ou ainda, sugere-me o director do PÁGINA UM (que é desse tempo), “António Costa, o Bem-Amado”.  Quem precisa de uma equipa de comunicação, quando se tem jornalistas encarteirados, e reconhecidos pela CPCJ, que escrevem notícias destas? Nem o veterano do marketing político, Luís Paixão Martins, consegue fazer o primeiro-ministro parecer tão bom – ou, se calhar, ali há dedo dele. Enfim, António Costa pode mesmo demitir o seu excelso técnico de comunicação; os seus serviços são dispensáveis.

    Vamos constatar o óbvio: António Costa não “dá” nada. António Costa, na verdade, tira-nos cada vez mais. António Costa desfere golpes na população através de pesados impostos, que são mal aplicados – veja-se o estado da Saúde e da Educação) –, e depois distribui pensinhos, enquanto alguns “jornalistas” fazem manchetes onde evidenciam a sua generosidade.

    Em paralelo, porque não há heróis sem obstáculos, a comunicação social insiste e persiste na cantiga da alegada “guerra” entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Mesmo a existir, uma contenda entre o primeiro-ministro e o Presidente da República, questiono-me se será matéria para tanta cobertura noticiosa e destaque de primeira página perante o estado da Nação. Não há outros temas no topo das prioridades?

    Cena de O Bem-Amado, famosa telenovela dos anos 70, sobre os projectos de Odorico Paraguassu na vila baiana de Sucupira.

    Mas a questão é que este suposto combate rasca Costa VS Marcelo, que nos impingem ad nauseam, parece não passar de mais uma história fabricada. Talvez para manter a aparência de uma democracia salutar, em que existe uma separação de poderes eficiente, em vez de uma mera partilha de poderes entre companheiros de longa data. De facto, tudo aponta para que os dois sejam “tu cá, tu lá”, e estejam (demasiado) à vontadinha, mas a nossa imprensa faz o obséquio de engendrar uma realidade alternativa para ir entretendo os portugueses.

    Enfim, o jornalismo mainstream deixou de ser o essencial watchdog do poder; neste momento é uma espécie de companheiro – na verdade, um fiel pet. E dos que vestem floridos laçarotes no pescoço, enquanto solta uns latidos de satisfação.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Rubiales: entre o feminismo e a hostilidade aos homens

    Rubiales: entre o feminismo e a hostilidade aos homens

    No auge do movimento MeToo, Marianne Williamson, uma escritora norte-americana e candidata presidencial pelo Partido Democrata nas últimas eleições, fez uma publicação na sua página de Facebook em que alertava para os excessos do clima persecutório instalado em relação aos homens, dizendo que, no que toca ao assédio, “existe uma diferença” entre um “criminoso” e um “idiota”.

    Choveram críticas por parte dos seus seguidores. Dias depois, Williamson revelou ter sido vítima de violação na sua juventude. Aqueles que se apressaram a julga-la só podem ter engolido em seco ao saber que a autora tinha sido vítima, não de um mero “idiota” que lança um piropo indesejado ou se atreve numa investida um pouco mais arrojada, mas, efectivamente, de um crime horrendo e cobarde.

    O beijo de Rubiales é uma situação que se encaixa na perfeição à advertência de Williamson. Não sei se Rubiales é um idiota – talvez! –, mas muito dificilmente se poderá, racional e honestamente, acusá-lo de ter cometido um crime.

     As feministas radicais, inebriadas como sempre pela sua misandria, sôfregas por qualquer pseudo-escândalo que sirva de oportunidade para gritar aos quatro ventos os chavões do “machismo tóxico” e “patriarcado opressor”, aproveitaram o caso Rubiales para se lançarem uma vez mais num apedrejamento público digno da Idade Média.

    Com o respaldo da comunicação social, que sem despudor se posiciona sempre no mesmo lado da barricada – o do feminismo bacoco hegemónico –, e das verdades absolutas, enquanto finge ser imparcial e democrática, o assassinato de carácter de Luis Rubiales, sem qualquer direito a defesa no “tribunal” da opinião pública, é já irreversível.

    Na CNN, há poucos dias, a directora da Visão, Mafalda Anjos, afirmava que são muitos e variados os exemplos de beijos e afectos públicos não consentidos, mas, para provar o seu argumento, precisou de ir buscar um caso ocorrido há 20 anos, entre Halle Berry e Adrien Brody numa cerimónia dos Óscares. De facto, nada mais demonstrativo de uma “pandemia” de assédio, do que ter de reportar-se a um episódio que se passou há duas décadas!

    Ainda assim, mais confrangedor do que ver feministas militantes e jornalistas de órgãos de comunicação social falidos nas suas habituais pregações, tem sido assistir à quantidade de homens que se perfilam para arrasar Rubiales numa mesquinha sinalização de virtude. Será este fenómeno inverso da mítica “solidariedade masculina” um espelho da progressiva queda de testosterona entre os homens, nas últimas décadas?

    É também de salientar a hipocrisia a que, de resto, este wokismo já nos tem habituado. Há menos de dois anos, a famosa cantora brasileira Anitta, afirmou que escolhera um bailarino apenas porque queria ter relações sexuais com ele, e não consta que tivesse havido na nossa praça qualquer manifestação de repúdio. Também aqui estava em causa uma relação de “subalternidade”. Imagine-se se Rubiales tivesse proferido semelhantes palavras – cairia o Carmo e a Trindade.

    Mostra-se, pois, evidente, que os casos “espontâneos” de demonstração de desejo pelos homens por parte de mulheres não merecem a mesma pronta condenação dos arautos da “igualdade”. Quando muito, são aplaudidos e vistos como um sinal de empoderamento.

    Devemos, por isso, perguntar-nos a que se deve esta duplicidade de critérios, quando o que se alega é defender a paridade de tratamento entre os sexos. Hoje, aliás, ao contrário do que o wokismo nos quer fazer crer, a masculinidade é vilipendiada, desdenhada, alvo de chacota, tanto em séries da Netflix, em livros, como na comunicação social e todos os espaços mainstream.

    Para deitar mais achas para a fogueira, a propósito do vídeo que tem circulado de Jenni Hermoso, no autocarro, a rir-se do beijo juntamente com as colegas, a comunicação social tem-nos também brindado com supostas “análises” psicológicas. Dizem os “especialistas”, ouvidos pela CNN, que a amena cavaqueira, em que Hermoso participou, se enquadra num “mecanismo de defesa”. Não sendo de descartar essa hipótese, é pertinente questionar por que motivo a imprensa se presta a estas “cambalhotas” argumentativas para determinar que Hermoso é uma vítima indefesa?

    Tendo em conta a “caça às bruxas” (ou aos homens), e os exageros que o movimento MeToo inaugurou, parece que, longe de uma preocupação genuína com as mulheres, esta gigantesca onda de indignação com o chocho de Rubiales brota, de facto, de uma hostilidade arreigada aos homens.

    statue of angels

    Mais: apelar à criminalização do beijo de Rubiales e Hermoso – o qual, aliás, inicialmente não suscitou qualquer queixa por parte da jogadora – é um desrespeito para com verdadeiras vítimas de abusos sexuais.

    Qualificar este incidente, que, no máximo, foi um disparate imponderado, como um crime sexual, seria apenas absurdo, se não fosse também perigoso, por arruinar, quiçá injustamente (quem não se lembra do caso Johnny Depp – Amber Heard?), a vida e a carreira de um homem, sem apelo nem agravo.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A mística e a mágica das labaredas

    A mística e a mágica das labaredas

    Título

    Salvar o fogo

    Autor

    ITAMAR VIEIRA JUNIOR

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do seu romance de estreia, Torto arado, ter ganho o Prémio LeYa em 2018, o baiano Itamar Vieira Junior estabeleceu-se como um dos escritores brasileiros mais reconhecidos da actualidade, e das últimas décadas. 

    Alcançando um sucesso estrondoso, Torto arado valeu também ao autor, em 2020, o prémio literário mais importante do Brasil, o Jabuti de Literatura, e o prémio Oceanos. Em 2022, Vieira Junior lançou ainda o livro de contos Doramar ou a Odisseia, também editado pela Dom Quixote.

    Com Torto arado, o autor cravou indelevelmente o seu nome no mundo literário transportando o leitor para a realidade de um Brasil rural, assolado pela pobreza e vítima de relações de poder e velhas estruturas opressoras que se perpetuaram no tempo. Em Salvar o fogo, replicou a receita (recuperando até uma personagem) –, e saiu-se bem. Não tendo conseguido exceder a “obra-prima” anterior, o que nunca seria tarefa fácil, solidificou o estilo com que se apresentou ao público.

    A história deste seu segundo romance passa-se nos anos 1960 e tem como protagonistas Moisés e Luzia, dois irmãos que vivem numa comunidade rural na Tapera do Paraguaçu, como inquilinos de terras detidas pela Igreja, e obrigados a pagar, todos os meses, impostos à instituição – uma injustiça aos olhos de Mundinho, o pai, que se recusa sempre a cumprir com os pagamentos. 

    Mundinho trabalha na terra, de sol a sol, e é dependente do álcool, ficado o peso da educação de Moisés, o “caçula”, para Luzia, cuja idade dista uma grande distância do seu irmão mais novo. Vivem apenas os três juntos, já que todos os outros irmãos abandonaram a aldeia assim que tiveram oportunidade; e a matriarca da família, Alzira, faleceu antes de Moisés poder sequer recordar o seu rosto.

    Luzia, por isso, assume o fardo de cuidar do “Menino”, como lhe chama, para além de trabalhar todos os dias como lavadeira da igreja do Paraguaçu, de forma abnegada e devota. Entre os dois, há um amor maternal profundo, mas raras vezes exteriorizado: Moisés anseia por afecto, mas a irmã educa-o de rígida e friamente, nunca se permitindo expressar actos de carinho. 

    Os dois primeiros capítulos são narrados na primeira pessoa, sendo o primeiro contado pelos olhos de Moisés, e o segundo por Luzia. É neste último que se revela ao leitor um dos grandes segredos do romance, e que se compreende, finalmente, a atitude sempre ríspida e amarga de Luzia. 

    A Igreja surge, ao longo do romance, como um símbolo da opressão – sobre ela e através dela, contam-se muitas histórias. Essencialmente, é retratada como uma fonte do “Mal”, do que é profano e perverso, de agressão e subversão. As dores e os traumas que o mosteiro da aldeia provocou a Moisés – o único da família que frequentou a escola –, levaram-no a abandonar a sua casa, a irmã e o pai, e a rumar à cidade, com apenas 15 anos.

    Depois de um incêndio reduzir o mosteiro a ruínas, e o estado de saúde de Mundinho se deteriorar, os irmãos que há muito tinham virado costas às margens do rio do Paraguaçu, regressam para um reencontro familiar. O reencontro, já 15 anos após a partida de Moisés, reacende os fantasmas de um passado que, longe de enterrado, continua vivo e “efervescente”.

    Ao longo da história, há uma aura de mistério que envolve as personagens principais e que se vai adensando, enquanto vão, também, sendo desvendados alguns dos seus segredos.

    Luzia é tida por toda a comunidade como uma “bruxa” e acusada de práticas de feitiçaria, sendo por isso ostracizada, vilipendiada e alvo de chacota. A corcunda que, estranhamente, desenvolveu ainda em adolescente só cimentou, entre a população supersticiosa, o mito de eventuais poderes sobrenaturais. 

    Moisés, por sua vez, nascido nas águas do rio em noite de Lua Cheia, cresce e vive com muitas dúvidas em torno das verdadeiras causas do desaparecimento precoce da sua mãe e das circunstâncias em torno do seu nascimento.

    Salvar o fogo é sobre desigualdades e abusos de poder de instituições seculares perpetrados sob um manto de boas intenções, mas, mais que isso, é sobre a complexidade dos laços familiares e os dramas subjacentes, a força do feminino e da Natureza – e, claro, do fogo, literal e metafórico, que tanto consome e destrói como aquece e eleva.

    Sobretudo, é um romance que nos abre as portas a uma dimensão mística e mágica da vida, contrastando-a com a singeleza de vidas aparentemente “comuns” e simples, iguais a tantas outras que vieram antes. 

    A escrita é melodiosa e envolvente, embora fazendo-se por vezes uso de expressões que soam um pouco a clichés, já muito “repisados”.