Etiqueta: Marcador

  • Conexão divina (e felina)

    Conexão divina (e felina)

    Título

    Como construir um barco

    Autora

    ELAINE FEENEY 

    Editora

    D. Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Peguei no livro e saí a correr. Só mais tarde, quando me sentei para o ler, me dei conta do equívoco. Pensava que era um livro sobre como construir um barco. Literalmente. Daqueles livros práticos sobre ‘como fazer sozinho’. Não era. Não sei porque me equivoquei. Afinal, bastava olhar para a capa com reduzida atenção para perceber que se trata de uma obra de ficção. A etiqueta que diz que a obra foi nomeada para o The Booker Prize de 2023 era outra pista esclarecedora. Não estou a ver um livro que ensine a construir um barco a ser nomeado para um prémio do género (por muito que adore livros práticos sobre como fazer coisas). Adiante, ultrapassado o meu espanto (parvo) causado pela desatenção, aceito a situação: tinha um romance pela frente para ler.

    A capa era auspiciosa. Além da etiqueta de nomeação para o tal prémio, tinha uma recomendação de um vencedor do The Booker Prize, Douglas Stuart. Diz que se trata de “um romance cheio de esperança e de humanidade”. Na contracapa, prossegue: diz que é uma “daqueles raros livros que nos fazem sentir menos sós” e que se trata de “uma história inspiradora sobre uma comunidade e as pequenas coisas que podem mudar uma vida.”

    Não consegui ler o livro sentada, sossegada. Mexi-me muitas vezes no meu lugar no sofá. Para alguns, será talvez menos fácil de ler. (Percebi, depois, que a autora publicou também obras de poesia e teatro, o que explica alguns dos caminhos que percorreu para contar esta história.) Alguns parágrafos ganham vida e as palavras escorregam para as linhas seguintes, em sequência, exigindo atenção e abertura mental. Reli algumas partes para ver se tinha compreendido bem (mas admito que possa ser, também, feitio meu e da minha ocasional parca concentração). Acredito que cada um, seja neurodivergente ou neurotípico, ‘ouve’ as palavras que lê de forma única e compreende (ou não) e vivencia de modo próprio cada história, cada linha. 

    Posto isto, acabei a marcar várias páginas para as mencionar ao leitor desta recensão. Só tinha o marcador que vem com o livro e uma caneta. Acabei por marcar as restantes páginas com as caixinhas compridas de incenso que tinha comprado e que ainda aguardavam na almofada do sofá para ir para o armário. O resultado foi um livro gordo (mas sem páginas dobradas) e com as páginas devidamente seleccionadas.

    A obra tem como personagem central um rapaz, Jamie O’Neill, com 13 anos, que tem dois desejos ou sonhos. Mas seria muito redutor dizer que é disto que o livro trata. Entre histórias de personagens paralelas e o percurso do rapaz, há muitas enseadas, ondas, mergulhos, marés baixas e altas e redemoinhos.  O leitor é confrontado consigo próprio e com a sua vida (eu, pelo menos, fui). Simples frases levam-nos em viagens por novos mares, que não os do enredo do livro. Como no parágrafo que fala que a construção de um barco não é um processo aleatório, “tem muitas fases, vamos eliminar todas as irregularidades” e, “se alguma coisa estiver mal feita, a camada seguinte vai revelá-lo”. Como a vida? Ou o parágrafo que diz que “tudo o que é bom começa com um bom impulso”. Ou aquele que garante que “para criar é preciso sentir-se e estar desconfortável, e por vezes sentir-te-ás desacompanhado”. (Fico por aqui e, afinal, não precisava usar todas as caixinhas de incenso como marcador.) 

    Concluindo, tirando-se os inúmeros “foda-se” e “merda”, que detesto (distraem-me na leitura como uma mosca a ziguezaguear junto aos olhos), é um livro a ler. Com calma e paciência, devagar. O ‘slow reading‘, que é avesso ao consumo de papa-livros de Verão para mostrar, depois, nas redes sociais, a foto da pilha de obras lidas). Mas também esses leitores o lerão bem. Com asneiras e tudo (ou, sobretudo, porque as asneiras talvez ainda estejam na moda, não só na capa de livros, como no seu interior).   

  • Um repasto de encher a alma

    Um repasto de encher a alma

    Título

    Histórias e curiosidades à mesa

    Autor

    VÍRGILIO NOGUEIRO GOMES

    Editora (Edição)

    Marcador (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Tendo em conta a época natalícia que se aproxima, muito dada a bródios e a oferendas, eis o livro ideal para as mentes curiosas se empanturrarem sem problemas de consciência, tal a cornucópia de histórias e curiosidades que Virgílio Nogueiro Gomes (n. 1949) nos serve, que são um regalo e bem nos satisfazem o conhecimento acerca destas coisas do comer e do beber. Como verdadeiro e acérrimo defensor da gastronomia portuguesa, da sua autenticidade e da sua boa confecção, Virgílio Nogueiro Gomes tem vindo ao longo dos últimos anos a manifestar as suas opiniões, defesas ou increpações através de inúmeros formatos, sendo a crónica um deles e que pratica com obstinada regularidade na sua página online (www.virgiliogomes.com).

    Na Nota Introdutória, o investigador em História da Alimentação confessa que este livro surge agora por insistência dos leitores habituais do seu site, que lhe haviam manifestado o desejo de ver impressas a maioria das suas crónicas.

    Embora a presente edição não seja a transcrição completa dos textos que Virgílio Nogueiro Gomes publicou nesse espaço, são antes “uma seleção” do autor, “juntamente com textos publicados em outras obras”, sendo alguns inéditos, e outros alterados ou actualizados.

    Assim, o autor dividiu o livro em três grande capítulos: o primeiro, dedicado às Histórias e Curiosidades, com textos “que abordam momentos históricos interligados com os alimentos”, que vão desde “Macarons à Portuguesa” até “São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros”, das “Sopas de cavalo cansado” à “Coleção de cardápios de Olavo Bilac” ou a “Tradição à mesa, ou a educação do gosto”, assunto tão corrente nas exposições do autor.

    No segundo capítulo, intitulado, Produtos, Histórias e Estórias, Virgílio Nogueiro Gomes discorre acerca de produtos e ingredientes e a maneira de como eles chegaram até nós. Este é um capítulo muito interessante, uma vez que o autor não só nos dá um enquadramento desses produtos ou ingredientes que entram na culinária portuguesa, como nos traça um roteiro de várias receitas confeccionadas por todo o país onde esses produtos ou ingredientes são protagonistas, como por exemplo o Alho, “produto fundamental na cozinha portuguesa”, os doces confeccionados com azeite (Económicos, Dormidos, Bolas Sovadas). Destaque para o texto que aborda a Banha de Porco e a Doçaria Portuguesa ou a simples e humilde cebola.

    Para o terceiro capítulo, Receitas, Histórias e Curiosidades, o autor deixou um apanhado de histórias acerca de algumas receitas, com as indicações para que os leitores as possam confeccionar, que vão desde um Bolo Rico de Amêndoa e Chila até um humilde Caldo Verde. Das muitas receitas que Virgílio Nogueiro Gomes nos dá a conhecer, destaque para o Empadão de Bacalhau, uma receita criada pelo autor em 1993, “para uma edição da revista Marie Claire” e que se tornou bastante afamada ou para os Pastéis de Santo António, marca registada e originários de Pernes, “na sequência de um processo organizado pela Junta de Freguesia de Pernes”, com uma bela história.

    Contudo, no meio de todas estas crónicas, cheias de histórias e curiosidades, importa também referir os inúmeros episódios que Virgílio Nogueiro Gomes revela, num tom muito confessional e intimista, acerca das suas experiências pelos restaurantes, tanto nacionais como internacionais, e as peripécias que lhe sucederam, seja pela negativa ou pela positiva, mas de todos eles podemos inferir o amor pela gastronomia portuguesa e a defesa intransigente que o autor lhe faz. E este livro é também isso mesmo, um manifesto pela dignidade e história da Culinária Portuguesa.

  • Em busca do sol, numa noite de Verão

    Em busca do sol, numa noite de Verão

    Título

    É tempo de reacender as estrelas

    Autor

    VIRGINIE GRIMALDI (tradução: Carmo Vasconcelos Romão)

    Editora (Edição)

    Marcador (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascida em Bórdéus em 1977, a francesa Virginie Grimaldi publicou o seu primeiro romance, Le premier jour du reste de ma vie, em 2015, e desde  aí não mais parou, tendo-se tornado, em 2020 a escritora mais lida no seu país.

    O sucesso tem sido internacional: já com sete romances – o último dos quais, Les Possibles, publicado no ano passado –, tem edições em duas dezenas de línguas. No entanto, este é o primeiro livro publicado em Portugal.

    Não será estranho comprender, pela leitura de É tempo de reacender as estrelas, que já tenha vendido mais de um milhão de exemplares em todo o Mundo. Com efeito, a leveza e humor com que a autora permeia e premeia o romance provoca, no leitor, uma vontade inexplicável de avidamente prosseguir até à última página.

    É o livro ideal para uma escapadinha num local tranquilo, onde o silêncio seja cúmplice para desfrutar de uma viagem ao Cabo do Norte e, assim, contemplar as auroras boreais e outras paisagens melodiosas, onde o sol da meia-noite é um dos protagonistas.

    O romance aborda uma história contada em três versões – por uma mãe e as suas duas filhas. Cada versão tem uma voz e um registo distintos.

    A versão da mãe, Anna, na primeira pessoa, é a história de uma vida difícil, de uma mulher divorciada, com 37 anos, e das suas vicissitudes e dificuldades para conseguir pagar (sem sucesso) todas as despesas sozinha. As dívidas acumulam-se sem que saiba como se desenvencilhar dos credores. Para piorar ainda mais a situação, ela é convidada a despedir-se de um emprego desgastante, cujo horário não lhe permite passar tempo útil com as filhas, uma de 17 anos, Chloé, e outra de 12, Lily.

    A indemnização, que serviria para pagar todas as dívidas e relaxar durante algum tempo, é usada para viver uma longa viagem de autocaravana com as filhas até ao Cabo Norte. A decisão é acelerada, e posta em prática no dia em que Anna vê um homem nu na casa de banho de sua casa. 

    O registo de Chloé, uma jovem angustiada e sem auto-estima, é conhecido através do seu blogue pessoal, no qual a personagem partilha com quem quiser ler tudo o que se passa na sua vida, desde as discussões com a mãe por causa do pai, com quem não está há anos, às suas dúvidas relativas à sua activa vida pouco amorosa e sexual.

    Lily encontra num diário, que nomeia de Marcel, o seu amigo confidente a quem relata, com a ingenuidade típica de uma adolescente, os acontecimentos do seu dia-a-dia, incluindo o que os adultos denominam de bullying.

    O tom da narrativa varia, por isso, em cada capítulo – geralmente curtos – sendo mais intimista e revelador na versão adulta, a de Anna.

    A voz da jovem é tão banal quanto assustadora em termos de teor. Com efeito, os dilemas, angústias e dúvidas reveladas através do blogue de Chloé são, provavelmente, os de muitas outras jovens. Sendo, por esta razão, uma excelente oportunidade para as leitoras com filhas nesta faixa etária. De facto, ainda que seja um romance levezinho e algo superficial, os temas aqui abordados são, certamente, as questões que geram rupturas entre gerações, entre mães e filhas (no caso deste romance).

    A escrita diarística é marcada pelo humor ingénuo e jovial, típico de uma adolescente observadora e atenta.

    No conjunto, as três personagens entrelaçam as suas vidas como um jogo do gato e do rato, onde quem fica a ganhar é o leitor apreciador de romances de Verão.

    É, também, o relato de uma viagem inspiradora, em que o cenário de algumas cidades escandinavas se torna, em certos momentos, mais um protagonista.

    A aprendizagem da mãe é uma constante e o modo como lida e gera com os problemas das filhas pode ajudar outras mães a encontrar outras perspectivas com humor.

  • Uma deliciosa busca às cozinhas com pitada portuguesa

    Uma deliciosa busca às cozinhas com pitada portuguesa

    Título

    À portuguesa: receitas em livros estrangeiros até 1900

    Autor

    VIRGÍLIO NOGUEIRO GOMES

    Editora

    Marcador

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Diz o povo que a curiosidade matou o gato, mas para Virgílio Nogueiro Gomes (n. 1949) esse desejo revelou-se o rastilho primordial que o conduziu numa investigação gastronómica durante seis anos, e o levou a mergulhar nos arquivos de bibliotecas e alfarrabistas em busca de dezenas de manuais de cozinha de antanho.

    Profundo conhecedor e defensor da gastronomia portuguesa, Virgílio Nogueiro Gomes pretendia descobrir as razões que justificassem o facto de algumas receitas publicadas em livros estrangeiros ostentarem a denominação «à portuguesa» ou de «Portugal».

    Assim, na sua aventura, o investigador em História da Alimentação coligiu cento e dezoito receitas, encontradas em trinta e um livros impressos entre 1604 e 1900, desde Espanha a Itália, do Brasil a França. Constatou que, na maioria das receitas, a denominação «à portuguesa» ou de «Portugal» estava subjacente ao uso de um ingrediente particular: a laranja doce, de que Portugal foi, principalmente a partir do século XVI, o maior distribuidor para os mercados da Europa.

    Considerada por muitos como a de melhor qualidade, a laranja portuguesa influenciou bastante a doçaria europeia até finais do século XIX.  Ainda hoje, em muitos países europeus e da bacia do Mediterrâneo a palavra usada para designar a laranja tem origem no topónimo Portugal: portakal, portocaliu, portokall, portokhali, portokal, portokali, portugallo, portugai.

    Muitas outras receitas encontradas por Virgílio Nogueiro Gomes surgem com estas designações simplesmente pelo uso de ingredientes então identificados com Portugal, como o caso do açúcar ou do vinho da Madeira, bastante procurados pelos mestres cozinheiros das principais cortes europeias.

    De acordo com o autor, «o encontro de cozinheiros das cortes ou de casas abastadas permitiria possivelmente a partilha de conhecimentos culinários e o nome “à portuguesa” poderia ser decorrente da nacionalidade do artista que ensinou.» Aponta depois o caso de Francisco Martinez Montiño, cozinheiro da corte espanhola, que acompanhou o rei Felipe III durante a sua estadia em Lisboa. «É possível», sugere o autor, «que por esse facto tenha aprendido algumas receitas nossas e, por isso, as terá batizado “à portuguesa”.»

    Na ausência de mais dados, aqui e ali, o autor vai apontando caminhos, sugerindo hipóteses, mas a falta de informação não permite uma explicação cabal, tal como sugere a advertência que Inês de Ornellas e Castro faz ao leitor no Prefácio: «neste livro encontramos, sobretudo, receitas que reproduzem aquilo que o(s) Outro(s) percepcionam ser, de algum modo, identificável com Portugal ao longo de trezentos anos», uma vez que, acrescenta, «a maior parte das obras foi escrita muito antes de existir o conceito de pratos tradicionais e nacionais».

    Segundo a investigação realizada por Virgílio Nogueiro Gomes, algumas das receitas, embora nos honrem com o título, «não fazem parte da nossa tradição alimentar ou não chegaram aos tempos atuais.» Outras são fruto de confusões e equívocos, como por exemplo a indicação do vinho da Madeira como sendo um vinho africano, ou receitas «à portuguesa» mas com a adição de vinho de Málaga ou de Alicante. Até o célebre Auguste Escoffier, quando publica o seu Le Guide Culinaire (1902), «vem assumir que apelida de “à portuguesa” todos os pratos que têm tomate.»

    Das receitas encontradas, Virgílio Nogueiro Gomes confeccionou e fotografou oito, resultado que pode ser vislumbrado numa das badanas do livro. Não obstante, devido ao interesse que estas receitas suscitam, as ditas mereciam um lugar mais destacado.

    As receitas, apresentadas na sua versão original, em fac-símile, foram traduzidas pelo autor e são acompanhadas por algumas notas ou comentários explicativos sobre um ou outro ingrediente mais esquivo, sendo quase todas elas passíveis de serem confeccionadas hoje em dia. Uma dessas receitas é a de um «arroz à portuguesa», que reproduzimos em baixo, pela grande semelhança com o nosso tradicional arroz-doce. Referência também para as preciosas informações biográficas sobre os autores destes livros de cozinha, algumas delas bem pitorescas e quase anedóticas.

    Eis um livro curioso, bastante pertinente, que abre caminho a futuras investigações sobre esta temática e que, acima de tudo, se revela muito útil e de referência para todos aqueles que se interessam pela história cultural da nossa alimentação.

    Deixamos aqui, para aguçar o apetite, a receita “Para fazer arroz à portuguesa”, incluída no livro Il Pan Unto Toscano (1705), de Francesco Gaudenzio (1648-1733):

    “Para vinte pessoas, tomar uma escudela de arroz e um bom púcaro de leite, pôr o dito arroz bem lavado e limpo no leite a ferver e deixá-lo cozer em fogo lento, misturando-o até engrossar. Próximo do fim da cozedura, adicionar uma libra de açúcar. Quando estiver cozido, misturar dez gemas de ovo batidas bastante bem com água de cheiros (possivelmente água de flor de laranjeira) e incorporar no arroz deixando ficar um pouco ao lume. Mandar para a mesa com canela por cima.”

    Bom apetite.