Etiqueta: Luís Gomes

  • “Vai ficar tudo bem”, ou a “lotaria” do Estado será a nossa “terminação”

    “Vai ficar tudo bem”, ou a “lotaria” do Estado será a nossa “terminação”


    Ontem, durante a manhã foi publicada a evolução dos preços ao produtor na Alemanha para o mês de Agosto: os preços subiram 45,8% em relação ao mesmo mês do ano passado! A inflação criada durante os últimos dois anos pelo Banco Central Europeu (BCE) está assim de boa saúde… e não se deveria recomendar.

    Resta-nos o consolo de ter servido para pagar a funcionários públicos e apaniguados do Estado durante os dois anos da “pandemia”, para que estes pudessem estar em casa sem fazer nada e a ver séries Netflix. Vai ficar tudo bem! Lembram-se?

    assorted bunch of fruit lot

    Nos últimos dias, não parámos de escutar sobre a necessidade de tributar os “lucros excessivos” das grandes empresas. Pessoalmente, parece-me que a única entidade com lucros excessivos até à data tem sido o Estado português. Aliás: saiu-lhe a lotaria!

    Apenas à boleia da inflação, e em relação a 2021, no primeiro semestre de 2022, o Estado português logrou obter mais 5,7 mil milhões de Euros de receita fiscal e mais mil milhões de Euros de contribuições para a Segurança Social. Não é um total, é um acréscimo em relação a 2021 – e apenas para a primeira metade do ano. A este ritmo, no final de 2022, poderá resultar numa receita adicional de 13,4 mil milhões de Euros, algo como 1.325 Euros a cada português.

    Para uma família de quatro pessoas (pai, mãe e dois filhos), o Estado português irá obter uma receita adicional no valor de 5.306 Euros. Os 350 Euros que serão devolvidos em Outubro (125 × 2 + 50 × 2) representam apenas 6,5% do “assalto”. Depois de despojar, de forma pungente, o ladrão, qual samaritano salaz, devolve uma migalha do butim. Aparentemente, reina a felicidade entre todos. Vai ficar tudo bem! Não é?

    10 and 20 euro banknotes

    Entretanto, sabemos que a Grande Líder Europeia, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista, apresentou um grandiloquente plano de redução do consumo de energia, em que constam medidas do tipo: “use menos”. Depois de ter proibido os europeus de adquirir energia ao maior produtor mundial, temos agora medidas absolutamente inovadoras e geniais, que a nenhuma cabeça se lhe tinha ocorrido: “use menos”.

    Podemos estar descansados: os Estados Unidos sofreram, certamente, o mesmo boicote comercial quando bombardearam e invadiram nações soberanas como o Vietname, o Camboja, a Sérvia, o Iraque, a Somália, o Afeganistão, a Síria – sim, a Síria, precisamente, a área rica em Petróleo, está a ter lugar nos nossos dias –, Granada; enfim, a lista é infindável. Além disso, as sanções à Rússia estão a resultar: quando o frio apertar, iremos usar lenha. Vai ficar tudo bem! Não é?

    Entretanto, o Estado português voltou a confiscar os proprietários, num novo ataque aos “ricos e fascistas”, visando proteger os “fracos e os oprimidos”, os inquilinos. O criminoso quer ser o único a gozar da inflação criada pelo seu Banco Central, mais ninguém pode beneficiar do saque.

    Durante a década de 70 e 80 do século passado, em particular durante o período “revolucionário”, o parque habitacional português ficou em ruínas devido ao congelamento de rendas, que não acompanharam a evolução da inflação, mas parece que a insanidade nunca tem fim. Aplicar a receita que não resultou é o lema. Vai ficar tudo bem! Não é?

    person walking near The Great Sphinx

    Entretanto, depois do discurso da esmola, parece que alguns demoraram a compreender que o maior esquema em pirâmide da História da Humanidade, denominado Segurança Social, está próximo da falência. Aparentemente, só agora começam a compreender que o confisco dos jovens a favor de um exército de idosos não irá terminar bem. 

    Todos os esquemas em pirâmide têm um fim: ele anuncia-se quando os novos idiotas que entram no esquema são insuficientes para pagar as saídas. Para perpetuar a fraude, o poder não quer assustar os idiotas, mas apenas diminuir o confisco dos que desejam sair. Vai ficar tudo bem! Não é?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?

    Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?


    Há umas semanas, Vítor Constâncio deu uma entrevista à RTP a respeito da inflação, com aquele ar doutoral que o caracteriza (cansado até), a viver o “produto” de muitos anos de milionárias sinecuras oferecidas pelo partido em que sempre militou. Com um semblante que parecia reflectir um certo enfado, lá respondeu às perguntas do jornalista José Rodrigues dos Santos, que parecia, sem ironia, vir bem preparado.

    Este último iniciou a entrevista com a seguinte questão:

    – Não terá o Banco Central Europeu (BCE) actuado demasiado tarde em relação à inflação?

    blue and yellow star decor

    Em resposta, Vítor Constâncio utilizou mais ou menos estas palavras: – A inflação, até Agosto do ano passado (2021), esteve sempre abaixo de 3%, ou seja, enquadrada no objectivo de 2%. Só no final de 2021 a coisa piorou, passando os 3% e por aí fora, até ter ficado evidente que teria de existir um ciclo de subida de taxas de juro, iniciando-se mais cedo nos Estados Unidos. Qualquer variação das taxas de juro leva tempo a produzir efeitos.

    Seguidamente, Rodrigues dos Santos ripostou: – Não deveria ter ocorrido uma actuação mais cedo, dado que agora temos a inflação a destruir os salários?

    Vítor Constâncio voltou a responder com um ar professoral: – As taxas de juro demoram tempo a fazer efeito e, por conseguinte, mesmo que tivesse ocorrido uma actuação mais atempada, não teria havido grande diferença na taxa de inflação que hoje temos…”porque… repare… os grandes pulos na inflação deveram-se a grandes choques internacionais de preços; primeiro o Petróleo, depois a alimentação, o trigo e outros produtos alimentares intermédios… que deram origem ao aumento dos preços”.

    Vítor Constâncio, antigo vice-presidente do Banco Central Europeu

    Interrompendo, Rodrigues dos Santos retrucou direito à “ferida”, com estas palavras: – Mas não houve uma enorme impressão de moeda pelo BCE por alturas da pandemia?

    Eis que o “professor” contesta com enorme protérvia: – A impressão de moeda não é a causa da inflação que se atribuiu durante muito tempo, na chamada visão monetarista das coisas. Veja que, entre 2008 e 2015, 2016 e mesmo 2017, ocorreu impressão de moeda, ou seja, um aumento espectacular do balanço dos Bancos Centrais e não houve inflação durante todos esses anos! Portanto, essa teoria da emissão monetária não tem aqui grande justificação. O ponto aqui é que a inflação começou com choques externos, primeiro na energia, depois na alimentação e, claro, começou a partir de certa altura, mas só este ano, nos preços internos. A política monetária tem de tentar mitigar precisamente isso.

    Resumamos então as palavras de Vítor Constâncio:

    1 – A impressão de dinheiro não tem qualquer relação com a inflação;

    2 – A inflação, que estamos presentemente a viver, é fruto de um truque de prestidigitação: o resultado de choques internacionais nos preços, gerando “pulos”.

    Mas esta propaganda estatal não se ficava por aqui. Na semana passada, no inacreditável discurso da esmola, o nosso primeiro-ministro atirava: “… consequência da pandemia e, sobretudo, da guerra da Rússia contra a Ucrânia, temos vindo a sofrer um brutal aumento da inflação que atinge duramente o poder de compra das famílias…”. Aqui a inflação não apareceu por magia, digamos por choque, mas já foi consequência da pandemia e da guerra na Ucrânia.

    stack of books on table

    Importa deixar algo claro a estes senhores que o único responsável pela inflação é o Governo, pois tem o monopólio da emissão de moeda, através do seu Banco Central, juntamente com o sistema bancário – que apenas pode operar caso possua uma licença bancária – , que igualmente emite moeda quando concede créditos por contrapartida da emissão de moeda.

    Mais ninguém gera inflação. Não é o Putin, não é a “pandemia”, nem tão pouco são os “choques ou os pulos” dos preços.

    Quem gera inflação é o Banco Central e o sistema bancário por si licenciado e supervisionado – mais ninguém!

    Como expliquei neste vídeo, quando há emissão de dinheiro não ocorre qualquer produção de bens ou serviços, não há aumento de riqueza, apenas a sua redistribuição. É como uma pirâmide de flutes de champanhe: os copos mais próximos do topo (neste caso, os mais favorecidos e os apaniguados do Estado) são os primeiros a receber o champanhe; enquanto os que estão abaixo (os pobres) recebem apenas gotas, mas já a saberem mal, em resultado de preços inflacionados.

    A inflação é, na verdade, um roubo dos ricos e poderosos aos pobres, nada mais. Os ricos vêem os seus activos e propriedades a valorizar, o Governo vê as suas receitas a disparar e a dívida pública a diminuir, tanto em termos reais como em peso do Produto Interno Bruto (PIB).

    Vítor Constâncio diz-nos que, entre 2008 e 2017, houve uma impressão massiva de moeda, mas não houve inflação. Diríamos mesmo que, desde o final de 2008, não aconteceu outra coisa que não seja a impressão massiva de moeda e inflação. Vejamos o balanço do principal Banco Central do Mundo: a Reserva Federal norte-americana (FED).

    Evolução do balanço da Reserva Federal norte-americana entre 2009 e Agosto de 2022, em biliões de dólares. Fonte: St. Louis Fed; Análise do autor

    Entre o início de 2009 e o final de 2017, o balanço duplicou, ou seja, subiu 110%, a um ritmo anual de 8,6%. Esta emissão é amplificada 10 ou 20 vezes pelo sistema bancário, pois esta nova moeda é creditada a seu favor, podendo assim conceder crédito com uma pequeníssima fracção destas reservas.

    Isto foi o que precisamente sucedeu durante aquele período até ao início da “pandemia”: os bancos norte-americanos concediam crédito com juros de 0% às grandes empresas, como a Apple ou a Tesla, por contrapartida da criação de moeda – ou seja, inflação. Com esta liquidez compravam as suas próprias acções nas bolsas de valores e faziam subir as cotações. Uma redistribuição a favor dos accionistas destas empresas, algo que o Dr. Vítor Constâncio não se deve ter apercebido seguramente.

    Vamos utilizar um momento-chave dos Bancos Centrais, quando a administração do Banco Central Europeu (BCE) – na altura presidido por Mario Draghi, e com Vítor Constâncio a ocupar a vice-presidência – anunciava a 26 de Julho de 2012: “… está pronto para fazer o que for necessário para preservar o euro; e acreditem que isso será suficiente…”.

    O que é que aconteceu com as cotações das principais acções norte-americanas e os principais índices bolsistas no período entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, no final de Fevereiro de 2020: a Tesla subiu 2 521%, ao ritmo anual de 54% ao ano, a Amazon 845%, ao ritmo anual de 34%, e por aí a fora. Para os multimilionários norte-americanos, este período foi de enorme bonança. A inflação seguia inteiramente a seu favor.

    Retorno do preço da acção ou pontos do índice entre 26 de Julho de 2012 e 28 de Fevereiro de 2020
    (Unidade: %; medido em Euros). Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    O que é que aconteceu com o imobiliário para o mesmo período: o índice “S&P/ Case-Shiller U.S. National Home Price Index”, que mede os preços do imobiliário para as principais cidades norte-americanas, subiu 50% entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, a um ritmo anual de 5,4%, muito longe da suposta inexistente inflação que nos anunciava Vítor Constâncio na entrevista.

    Mas podiam dizer-nos que os lucros da Tesla foram excepcionais e subiram vertiginosamente durante este período, justificando tal subida meteórica. Não, nada disso. Entre 2012 e 2019, a Tesla nunca apresentou lucros para nenhum exercício. Em 2017 até apresentou perdas colossais de 1,9 mil milhões de dólares (fonte: Macrotrends).

    Mas agora vamos ver o que aconteceu com as obrigações que foram objecto de ajuda por parte do BCE de Vítor Constâncio, após anúncio salvífico do euro em Julho de 2012.

    Na figura seguinte podemos ver que inflação foi coisa que “nunca existiu”, em particular para as obrigações gregas que subiram 644%, ao um ritmo anual de 22%, desde o épico anúncio de Mario Draghi até aos nossos dias. Tratou-se de um verdadeiro milagre para um Estado falido, que tem hoje uma dívida pública superior a 220% do PIB e que, antes da ajuda de Mario Draghi, se financiava nos mercados acima de 35%!

    Evolução mensal do preço e da taxa de juro implícita das obrigações emitidas pelo Estado grego com maturidade a 10 anos (Unidade: índice e %). Fonte: Investing (Thomson Reuters Greece 10 Years Government Benchmark). Análise do autor

    Para o mesmo período, as obrigações portuguesas subiram 146%, as espanholas 86% e as italianas 61%, uma verdadeira festa para bancos e multimilionários, que à boleia da inflação dos Bancos Centrais viram uma importante fracção da riqueza mundial ser canalizada directamente para os seus bolsos.

    Mas eis que chegou um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%: era necessário imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã. Pela primeira vez, os Estados deixaram de se preocupar com quem lhes pagava a conta. O processo foi e é simples: enormes défices financiados com a emissão de obrigações e adquiridas pelos Bancos Centrais por contrapartida da emissão de moeda. Inflação sem limites!

    No caso do Banco Central norte-americano, o FED, desde o início da “pandemia” até hoje, subiu o seu balanço em 4,5 biliões de dólares (12 zeros); o BCE não ficou atrás, imprimindo praticamente a mesma quantia, neste caso em euros.

    Então o que aconteceu entre o início da “pandemia” e o início da guerra da Ucrânia? Como podemos ver na figura seguinte, o petróleo subiu 351%, ao ritmo anual de 121%.

    O petróleo, no final de Março de 2020, valia 20 dólares por barril (cerca de 18 euros) e no dia 23 de Fevereiro de 2022 – um dia anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia – valia 92,1 dólares por barril (81,3 euros).

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 30 de Março de 2020 e 23 de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor

    Para o mesmo período, a madeira subiu 323%, ao ritmo de 113% por ano, o gás natural 169%, ao ritmo anual de 68%, a aveia 155%, ao ritmo anual de 64%, e por aí fora.

    A impressão massiva de dinheiro para as pessoas “ficarem a casa”, enquanto se lhes dizia que iria “ficar tudo bem”, gerou uma enorme inflação. Não foi o resultado de um truque de magia, mas uma inflação deliberadamente criada pelos Governos.

    Será que estas subidas foram mais ou menos acentuadas após o início da guerra da Ucrânia?

    A partir de 22 de Fevereiro até finais de Agosto, de entre 22 matérias-primas, apenas sete subiram a um ritmo anualizado superior – assinaladas a cinzento –, ou seja, 30%, aproximadamente.

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 23 de Fevereiro de 2022 e 29 de Agosto de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Destaque para o gás natural que subiu 131% até ao final de Agosto de 2022, a um ritmo anual de 411%. Esta subida deve-se, não só à inflação criada pelos Bancos Centrais, mas também à “estúpida” política de sanções da União Europeia (UE).

    Em conclusão, a presente inflação que estamos a viver é da exclusiva responsabilidade dos Governos, que têm o monopólio da emissão de moeda, juntamente com o sistema bancário com uma licença governamental, que lhes autoriza a prática de reservas fraccionadas, uma prática altamente inflacionária.

    Numa primeira fase, esta “loucura” foi apenas um fenómeno de ricos: carros antigos, arte, acções, obrigações, imobiliário, passes de jogador de futebol, imobiliário…

    black and silver laptop computer

    Numa segunda fase, a impressora trabalhou com tal intensidade, que a massa monetária criada foi parar essencialmente às mãos dos apaniguados do Governo, a quem lhes foi proporcionada uma procura completamente artificial e desnecessária: testes, máscaras, vacinas, contratação de funcionários públicos de forma massiva, subsídios para o “fique em casa”, etc.

    Esta “liquidez” foi usada para adquirir bens que fazem parte do cabaz de compras utilizado para medir a inflação. Desta vez, não foi possível ocultar, daí a necessidade da propaganda e dos truques de prestidigitação.

    A inflação é o aumento de massa monetária: isto é, um monopólio do Governo e do sistema bancário autorizado pelas autoridades. Nada mais.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Globalismo: a nova tirania

    Globalismo: a nova tirania


    A revolução luterana de há 500 anos não trouxe apenas o Estado Absoluto, também demoliu a visão comum que mantinha a sociedade unida. Cada indivíduo era agora capaz de interpretar as Sagradas Escrituras, em lugar de um intermediário que passava anos a estudar, enquadrada por uma instituição milenar. Cada um tinha agora uma opinião sobre a sociedade: a ideologia.  

    Eu não me adapto à realidade, onde existem fraquezas humanas, como o vício do jogo, a miséria moral ou a assimetria de informação – por exemplo, a relação entre um médico e um paciente, onde nem sempre o segundo questiona sobre os medicamentos receitados pelo primeiro –, a realidade é que tem de adaptar-se à minha visão sobre a sociedade.  

    brown wooden cross on brown wooden wall

    Tudo isto foi ajudado por uma revolução no pensamento. Tivemos Descartes que afirmou: “tudo que vemos, sentimos, tocamos, pode ser fruto de nossa imaginação, não existindo realmente. Apenas o pensamento tem força e prova de verdade”. Aquilo que está dentro da cabeça do homem é de alguma forma mais verdadeiro do que a sua percepção da realidade.  

    Um século depois, Kant reforçou a revolução mental original de Descartes, afirmando que, embora não possamos ter certeza se temos dois braços, ou se é frio ou quente, escuro ou ensolarado fora de nossa mente, a Razão é universal; isto é, se as pessoas pensarem bastante em qualquer coisa, chegarão às mesmas conclusões. As ideias tornaram-se mais verdadeiras do que a vida real. A era das ideologias tinha começado.  

    As ideologias são por natureza projectos universais. Todos os homens devem ter uma igual condição económica (Marx); Os melhores devem governar as massas (tecnocracia). Apenas há lugar na sociedade para determinadas raças (Nacional Socialismo); A sociedade deve abandonar os carros (Globalismo); Não há lugar na nossa sociedade para não vacinados (Covidismo). 

    Todos os homens têm o seu lugar na sociedade e têm que chegar lá para que as coisas funcionem tal como prescrito pela realidade ideológica, mesmo que o “lugar apropriado” de algumas pessoas seja o Gulag, Auschwitz ou mesmo um campo de “concentração para não vacinados na Austrália”.  

    Pode parecer que a revolução individualista foi desfeita pela chegada do pensamento ideológico universalizante; a visão de mundo comum que orientou a nossa civilização foi abalada pelo individualismo da primeira Modernidade, apenas para ser substituída por um novo universalismo ideológico.  

    Para São Tomás de Aquino, a bondade é a verdade, e a verdade significa que o que está dentro das nossas cabeças (ideias, noções, percepções) coincide com o que está fora (a própria realidade). Para qualquer ideólogo é o contrário: a “bondade” é ter a própria realidade de acordo com o que está dentro da cabeça, a ideologia que ele adopta.  

    Em lugar de testar sua percepção contra a realidade, os ideólogos julgam a realidade contra a sua ideologia, “mais verdadeira que a própria realidade”. Ao lidar com qualquer fenómeno social, partem sempre das premissas da sua ideologia.  

    person reaching black heart cutout paper

    Todas as ciências foram tocadas pela ideologia, até a Economia. Tivemos Keynes, um estatístico que inventou a macroeconomia, inaugurando a gestão de agregados – o consumo agregado, a despesa agregada, o investimento agregado – e retirando a acção humana individual da equação. Todas as mentiras e dissonâncias são possíveis, facilitando a propaganda de Estado e abrindo caminho a uma enorme burocracia encarregue de forçar a ideologia sobre a sociedade. 

    Os bancos centrais emitem dinheiro para estimular a economia. Um indivíduo falsifica dinheiro. Os primeiros actuam em nome do bem, da ideologia. O segundo tem como destino o calabouço. 

    Os bancos centrais compram obrigações soberanas para reduzir os encargos com juros dos governos, provocando a redução dos juros e a subida do preço dessas obrigações. Como tem informação privilegiada, um indivíduo compra acções da empresa XYZ, dado que tem conhecimento de uma iminente subida do seu preço em bolsa. Os primeiros estão a ajudar o governo a realizar um estímulo fiscal. O segundo está a manipular preços, devendo ser detido pela prática de “inside trading”. 

    O Estado encerra um restaurante em nome do combate a uma pandemia com uma taxa de sobrevivência de 99%, está a evitar a “morte de milhões”. O segundo deverá ir à ruína e esperar em casa por uma esmola, se alguma vez chegar. 

    person holding brown leather bifold wallet

    O principal problema do pensamento ideológico é que ele é literalmente a adoração de uma fantasia. As fantasias são coisas que não existem no mundo real, apenas existem dentro das nossas mentes; acreditar no que está dentro da cabeça ao invés de sentidos mentirosos é o ponto de partida do pensamento ideológico.  

    O seu segundo problema é que as ideologias não permitem o elemento mais essencial na sociedade humana, a natureza humana. Se lermos uma história escrita há centenas ou milhares de anos, veremos os homens a agir tal como agem hoje, sofrendo pelas mesmas causas, buscando os mesmos prazeres, caindo nas mesmas tentações – o vício do jogo, por exemplo – e assim por diante. O homem não muda e, embora cada homem seja diferente de todos os outros, em certo nível todos os homens são iguais. 

    Aos estarmos cegos para a natureza humana, os ideólogos sempre caem na mesma armadilha universalizante. Eles podem ser ideólogos de visão única, como neoliberais ou comunistas, ou podem acreditar que os não vacinados são seres inferiores, que merecem ser ostracizados pela sociedade; no final, todos eles tratam toda ou pelo menos grandes áreas da Humanidade como se todos os homens fossem clones do que eles vêem no espelho. 

    Eles estão sempre optimistas sobre como as pessoas se vão comportar, eles sempre assumem que todos querem e valorizam exactamente as mesmas coisas que eles.  

    woman in black and white tank top leaning on wall

    Regra geral, estes “loucos” necessitam da violência de Estado para imporem a sua versão da realidade aos demais. Ou detêm poder efectivo sobre o Estado ou conseguem influenciar quem o detém.  

    Estamos agora na etapa final da revolução protestante: uma ideologia global imposta sobre toda a humanidade, imposta através de instituições globais, como a OMS e os Bancos Centrais. Os “loucos” não se importam com a realidade, afinal apenas querem o nosso bem, até dizem: “Não terás nada e serás feliz!” 

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Assim se fez um Estado Tirano

    Assim se fez um Estado Tirano


    Até há cinco séculos, a promulgação de leis pelo Estado era algo pouco comum. Esperava-se que as pessoas fizessem o que era a prática comum numa dada comunidade e se abstivessem de fazer aquilo que as pessoas “pouco decentes fazem”.

    De certa forma, essa noção ainda hoje persiste. Os polícias, por exemplo, tendem a ver os criminosos em geral não exactamente como infractores da lei, mas como pessoas que fazem coisas que pessoas decentes não fazem: “Eu não saio por aí a roubar coisas”.

    man in black jacket walking on bridge near body of water during daytime

    Os sistemas jurídicos anglo-saxónicos ainda preservam essa tradição: a Common-law. Os casos são resolvidos através de um caso anterior semelhante e, em seguida, estendendo a decisão precedente sobre a nova situação aparentemente relacionada.

    Funcionou bem para as pequenas comunidades, muito unidas e com poucas diferenças, mas com sociedades crescentemente complexas, isto é, com grupos sociais com distintas culturas, aquilo que parece óbvio para um grupo social pode ser um absurdo para outro.

    O sistema legal romano foi outra abordagem que existiu no passado, criado com um vasto império, de pessoas e culturas amplamente diferentes. Nele, não havia lugar para o direito comum: tudo o que se proíbe está escrito; tudo o que não é proibido é permitido.

    É assim que os sistemas judiciais funcionam na maior parte do Mundo nos nossos dias. No entanto, com uma diferença importante: os juízes eram bastante livres para interpretar a lei escrita à sua maneira. Desta forma, a lei, no sistema romano, acabava por não ser algo a ser obedecido literalmente, mesmo que tal literalidade fosse possível. As leis eram directrizes e não obrigações morais, onde o costume determinava se uma determinada lei era compreendida e aceite pela sociedade em geral.

    Com o advento do Estado Moderno, onde as burocracias imperam, começou a tratar-se a lei escrita como algo divino, aquilo que denominamos por “positivismo”, pois as leis promulgadas são chamadas de “direito positivo”, em contraste com o direito consuetudinário – construção jurídica baseada em costumes a partir das tradições dos povos de determinado local e que passaram a ser aceites como norma.

    A actual teoria do Estado todo-poderoso surgiu no momento em que um monge martelou um pedaço de papel na porta de uma igreja – na noite das Bruxas, nada menos! –, altura em que se viviam importantes revoltas sociais no norte da Europa.

    A criação de Frei Martinho Lutero de uma religião totalmente nova não foi uma causa, mas uma consequência da sua martelada na porta de uma igreja. Ele desejava desafiar uma pessoa do seu bairro que andava a angariar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma, para debater com ele a legitimidade das suas “técnicas de venda”.

    A véspera de Todos os Santos foi o momento perfeito para pregar as suas propostas na porta daquela igreja em particular, já que no dia seguinte seria realizada a maior exposição de relíquias sagradas de todo o norte da Europa, garantindo a propagação da sua mensagem a milhares de peregrinos.

    Lutero, um professor que conhecia as Sagradas Escrituras, desafiava uma pessoa que provavelmente conhecia as Sagradas Escrituras apenas do que escutava nas suas idas às missas, com as seguintes regras: todo e qualquer argumento deveria ser extraído das Escrituras – algo justo!

    A religião era então, e ainda é – seja o cristianismo, o islamismo, o budismo ou o moderno ateísmo –, a lente através da qual vemos, a lógica com a qual interpretamos, o mundo ao nosso redor.

    Naquela época, na Europa, a religião significava uma coisa, e apenas uma coisa, em todos os lugares. Não apenas os seus princípios morais formavam a estrutura de comportamento aceitável, mas o tempo religioso – o calendário litúrgico – deu às pessoas a própria noção de tempo.

    As práticas religiosas – por exemplo, as peregrinações àquela igreja onde Lutero martelou as suas propostas – eram essencialmente universais e partilhadas por todos; a autoridade religiosa era a base da autoridade civil, e assim por diante.

    A autoridade religiosa não significava que um rei fosse considerado um procurador de Deus. Muito pelo contrário. Na verdade, significava que o trabalho de qualquer governante podia e devia ser comparado com o que era então universalmente aceite como vindo de Deus; governaria como representante do povo. Não de Deus: do povo.

    A voz do povo era a voz de Deus, e, muitas vezes, era a visão do povo sobre o que era certo e o que era errado, dentro do contexto de um consentimento religioso absolutamente unânime, que manteria ou deporia reis e príncipes.

    beaded brown rosary

    A autoridade de um governante, portanto, dependia de como ele usava a sua – bem pequena – autoridade. Ele realmente tinha o poder de aprovar algumas leis positivas, mas a lista de requisitos era bastante vasta. Entre outras coisas, não podia aprovar uma lei que não fosse útil ou que fosse contra o costume estabelecido. O rei era uma espécie de velho patriarca que não diria aos seus filhos e netos como governar as suas próprias casas, mas cuja autoridade seria respeitada para resolver disputas.

    Além disso, toda a sua autoridade vinha de compromissos: ele teria que proteger cada uma das pessoas que viviam nos “seus” territórios, enquanto o povo teria que alimentá-lo, tal como aos seus exércitos privados – ridículos em comparação com os exércitos modernos. Ele era um servo da terra, o mais baixo servo, pois seria o último a abandonar o território.

    Entretanto, uma mosca feia, gorda e peluda presa na pomada da sociedade estava a surgir: o dinheiro. Mais especificamente, o facto de que havia uma presença cada vez maior do dinheiro na sociedade, apesar de não haver então lugar para ele.

    De acordo com a Lei – isto é, com o costume –, alguém que nascesse guerreiro ou agricultor teria para sempre tal estatuto na sua vida terrena. A única escolha real era o ingresso na vida eclesiástica, uma espécie de terceira via.

    O dinheiro não fazia diferença: um guerreiro rico ainda deveria ser um guerreiro, arriscando o seu pescoço pelos outros; um agricultor teria de continuar a lavrar a terra e não podia comprar ou vender terras. Todo o dinheiro do Mundo não podia transformar um guerreiro num agricultor, ou vice-versa.

    gray concrete castle

    O comércio começou a enriquecer algumas pessoas. A maioria vinha de famílias de agricultores. Não havia lugar para os ricos na sociedade, mas eles conseguiram esculpir um lugar para si, usando o seu dinheiro em benefício dos militares. Não é uma novidade, algumas dessas pessoas continuaram a fazê-lo até aos nossos dias. O principal fabricante de armas da Alemanha em ambas guerras mundiais foi a Krupp, um conglomerado familiar que começou naquela época como um negócio familiar.

    Antes que os ricos chegassem à cidade, não havia tal coisa. Havia castelos com fossos, mas, infelizmente, sem dragões, e terras em redor. Quando havia guerra, os civis entravam no castelo e os militares saíam, mas em tempos normais era o contrário.

    Com o dinheiro, surgiu algo novo. Os novos ricos começaram a financiar os muros, cada vez maiores, ao redor das muralhas iniciais do castelo e, por sua vez, construíram casas e lojas dentro das novas muralhas.

    O nome dessas cidades comerciais que se desenvolveram entre as muralhas originais e as novas e maiores do castelo era o Burgo – a fortificação que servia de abrigo às populações situadas fora das muralhas. Os seus habitantes ficaram conhecidos como a “burguesia”.

    Obviamente, os militares e a burguesia “tornaram-se amigos”, em detrimento dos pobres, que continuavam fora das muralhas originais – e do burgo. Na época de Lutero, as revoltas dos camponeses estavam a começar a ser comuns em todos os lugares, mas os militares (os nobres) estavam de mãos atadas, por essa desagradável tradição de obedecer a Deus. A revolução de Lutero forneceu-lhes a escapatória.

    Mais do que isso, instalou-se uma nova autoridade religiosa que diria aos príncipes como lidar com os camponeses revoltados: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos”.

    people gathering on street during nighttime

    “Como se matam cães raivosos” foi estendida a todas as seitas que não se juntavam ao seu novo governo – a Igreja Luterana – aprovado pelo Estado (ou melhor, aprovado pelos governantes locais; os Estados eram muito pequenos e ainda sem importância, e, acima de tudo, o poder era 100% pessoal: o Estado era o seu rei).

    É por isso que todas as denominações protestantes de hoje podem traçar as suas linhagens institucionais e teológicas até uma ou duas das três seitas protestantes aprovadas pelo Estado do século XVI: luterana, calvinista e anglicana. Todas as outras opções que surgiram de diferentes interpretações da Sola Scriptura foram obviamente eliminadas – “como se matam os cães raivosos”.

    De certa forma, algo bastante semelhante já tinha acontecido alguns séculos antes, quando a seita gnóstica dos cátaros surgiu no sul de França e Norte de Itália. Ao tornar-se um cátaro, a pessoa libertava-se de todos os compromissos e obrigações anteriores, a base da então ordem social. As pessoas começaram a persegui-los e a matá-los, nomeando-se ao mesmo tempo juízes e carrascos, algo intolerável para a Igreja Católica. Foi assim que a Inquisição surgiu: para libertar os falsamente acusados.

    O sul da França, na época dos problemas cátaros, era o centro do mundo; o norte da Europa no tempo de Lutero era o deserto, os arredores da civilização. Foi assim que a nova religião conseguiu tempo suficiente para obter massa crítica e, desta forma, sobreviver muito mais tempo do que o catarismo.

    group of people walking on pedestrian lane

    O calvinismo – apoiado diretamente pela burguesia de Genebra – era então um fenómeno local, que sobreviveu tanto pelo caos completo no Norte quanto pela falta de importância da Suíça na época. O facto de os suíços serem tão ferozes, a ponto de todos quererem contratá-los como mercenários, ajudou a protegê-los.

    Assim, começaram as Guerras Religiosas Europeias e, por gerações e gerações, a Europa tornou-se um vasto campo de batalha onde os seguidores da Antiga e da Nova Religião tentavam obter vantagem para libertar os outros do jugo das suas horríveis heresias e superstições. Cem anos de derramamento de sangue.

    Qual foi a solução? O Tratado de Vestfália. Pode ser resumido ao seguinte: a religião de cada pequeno governante seria imposta a todos os seus súbditos. Por outras palavras, enquanto antes da revolução Luterana todos concordavam sobre o que Deus queria que um governo fizesse, e a sua autoridade repousava na conformidade a essa visão comum, depois da Vestfália cada governante local ganhou autoridade para decidir, por conta própria, qual seria a verdade de Deus.

    Os reis foram, de facto, colocados acima de Deus, recebendo o direito de julgar se o que sempre foi considerado por todos, em todos os lugares, como Revelação Divina se era ou não verdade.

    Para implementar a “nova verdade”, iniciou-se a propaganda de estado em grande escala. Iniciou-se pela interpretação das Escrituras Sagradas da seita vencedora, obviamente imposta pelo Estado, através da criação da “educação pública”, uma invenção protestante. Doutrinar a versão correcta era o lema.

    Hoje, a doutrinação das crianças no sistema escolar alcança níveis nunca imaginados, temos como exemplos a “civilização e progresso decorrentes do pagamento de impostos” – até existe um livro, a Joaninha e os impostos –, a “ideologia de um conjunto de letras sem fim” ou mesmo a nova “ciência emanada da DGS”. Um sem-fim de programas escolares destinados a criar um homem-novo – o comunismo também se propunha a tal.

    A revolução Luterana abriu caminho para o direito divino absolutista; por cá, o expoente máximo foi o Rei D. José e o seu “carrasco”, o Marquês de Pombal. Apesar de terem sido “déspotas esclarecidos” não tinham o poder, longe disso, que um Estado moderno hoje possui. Algum cabeleireiro naquele tempo teria que pedir uma licença estatal para abrir ou inscrever-se nas finanças assim que abre actividade?

    white concrete statue of man

    O passo lógico surgiu depois: do rei absoluto passámos ao povo absoluto, surgindo essa entidade metafísica denominada colectivo. O colectivo até passou a escrever constituições – o contrato social. Sempre achei divertidas as entrevistas a dirigentes do Partido Comunista, onde todos invariavelmente afirmavam não serem responsáveis por nada, tudo tinha sido decidido pelo colectivo!

    O Estado, tendo absorvido o poder supostamente cedido “pelo colectivo”, tornou-se ainda mais absoluto do que qualquer monarca absoluto. Afinal, enquanto um rei ou uma rainha absolutista podia ignorar a vida real do “seu” povo, a ponto de acreditar que “dar-lhes brioches” seria a solução para a falta de pão, um Estado moderno tem olhos sem fim.

    Hoje em dia, com toda a tecnologia que um Estado pode colocar a seu serviço, o seu problema não é ignorar o que realmente significa a falta de pão, mas analisar todo o vasto fluxo de dados que lhe chega. Ele ouve cada palavra falada em cada telemóvel, mas necessita descobrir o que vale a pena ouvir. Ele vê em tempo real as pessoas que circulam pelas cidades, mas necessita descobrir quem observar. Ele necessita de nos impor um passaporte sanitário para circular numa fronteira ou entrar num restaurante, mas necessita saber como identificar os dissidentes que não se vacinaram.

    A revolução Luterana não trouxe apenas a tirania absoluta do Estado, que se concentra agora numa tentativa de estabelecer um governo global, através de instituições globais que definem a nova religião, onde um conjunto de sacerdotes pretende governar em nome da Humanidade, do Clima e do Planeta.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Roma ou a nova queda de um império

    Roma ou a nova queda de um império


    Em férias, aproveito para ler o livro The failure of the “New Economics”: an analysis of the Keynesian fallacies, de Henry Hazlitt. Como sabem,Keynes foi o “economista” que mais justificou o estado omnipresente e omnipotente do Estado.

    O Estado Social, com um peso na Economia sem precedentes, teve a sua justificação “académica” com Keynes. Obviamente, para os poderes instalados, as suas “receitas económicas” foram como música celestial. A estrada para um poder estatal sem limites estava aberta.

    Para além de um investidor de bolsa fracassado, Keynes era um estatístico que nunca estudou verdadeiramente Economia; só assim se justifica a quantidade de disparates que escreveu ao longo da vida. Apesar disso, o seu livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, objecto de análise no livro de Henry Hazlitt, foi elevado ao estatuto de fundador da Macroeconomia!

    John Maynard Keynes (1883-1946)

    Para Keynes, o mais importante era o nível de despesa da sociedade: denominado de despesa agregada. Se gasta muito, os produtores são incentivados a produzir mais, empregando, desta forma, mais trabalhadores e promovendo o pleno emprego. Se a despesa total subir demasiado, para além do pleno emprego, ocorre uma subida do nível geral dos preços, i.e., inflação.

    A recessão é o processo ao contrário: a sociedade gasta pouco, os produtores reduzem a produção, gerando desemprego e queda dos preços. Nunca pode haver desemprego com inflação.

    Segundo Keynes, a despesa é uma espécie de acelerador da Economia: se vai a fundo, temos pleno emprego e inflação; se vai a meio gás, fantástico, temos pleno emprego sem inflação; se não se acelera, temos recessão e desemprego. Cabe ao Estado acelerar e desacelerar: é simples!

    As recessões são causadas por quedas abruptas no nível de despesa agregada. Keynes nunca nos explicou as razões por detrás das mesmas, utilizando apenas o esmorecimento dos “animals spirits” como argumento. Ao longo do século XX, e ainda hoje, os seus discípulos continuam a tentar explicar as razões por detrás desse esmorecimento. Até hoje, sem grandes resultados.

    low-angle photography of high rise building

    Sempre que há uma recessão e subida do desemprego, qual a solução? O Governo tem de estimular a despesa agregada. Keynes propôs três soluções: (i) inflação, imprimindo moeda; (ii) subida da despesa pública, com o agravamento do défice orçamental; (iii) e redução de impostos.

    A terceira hipótese nunca foi verdadeiramente considerada por Keynes. A redução de impostos significa mais dinheiro no bolso dos contribuintes; imaginem se decidem poupar esse dinheiro em lugar de o gastar? Sacrilégio, funesto. Poupar é algo terrível, gerador de um cataclismo económico.

    Tais disparates são compreensíveis. Keynes, herdeiro de uma enorme fortuna, nunca trabalhou verdadeiramente na vida; nunca compreendeu, ou não quis, que a poupança é civilização, prosperidade e progresso. Sem poupança, ainda hoje, estaríamos a viver na Idade da Pedra.

    Os factores originais que Deus colocou na terra foram: (i) a força de trabalho dos homens; (ii) e a terra, incluindo os seus recursos naturais, como o petróleo, a água, as árvores de fruto…Nada mais. Um náufrago que tenha conseguido sobreviver a nado para uma ilha deserta encontrar-se-á nesse estado: sem bens de capital. O que são? Não satisfazem directamente uma necessidade humana, mas permitem uma enorme expansão da capacidade produtivas, ou seja, da riqueza.

    Uma cana de pesca não mata a fome, mas ajuda a incrementar a produtividade de quem tenta pescar; com as próprias mãos seria uma tarefa bem mais complicada! Um barco de pesca é igualmente um bem que não satisfaz qualquer necessidade humana, mas incrementa substancialmente a produtividade de um pescador. Ambos são bens de capital.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Para produzir um bem de capital, esse náufrago irá ter de restringir o consumo para se dedicar a construir uma cana de pesca. Se trabalha durante seis horas a recolher frutos para a sua subsistência, tem duas opções para obter um bem de capital: (i) aumenta as horas de trabalho, por exemplo, para oito horas, com o propósito de obter uma maior quantidade de frutos, não consumido uma parte que servirá para o alimentar na construção da cana de pesca; (ii) diminui as horas dedicadas a recolher frutos, aceitando comer menos durante o tempo que demora a construir a cana de pesca.

    Não há milagres. A poupança implica sempre um sacrifício do consumo presente. Não podemos trabalhar mais de 24 horas e os recursos na Natureza são escassos. Para obtermos bens de capital, aquilo que nos irá permitir obter um maior número de bens e serviços por hora de trabalho, necessitamos de poupar.

    A poupança é aplicada a criar bens de capital, aquilo que designamos por investimento, como construir uma cana de pesca. O investimento acarreta riscos, apesar de muitos burocratas terem estabelecido que tal não existia – seguro de depósitos bancários é um bom exemplo.

    Que riscos podem existir no nosso exemplo? A cana de pesca pode não funcionar; alguém que viveu anteriormente na ilha pode ter deixado uma cana de pesca já construída, deitando a perder as horas de trabalho.

    Essa é precisamente a função do empreendedor, utilizar as suas poupanças num negócio, correndo sempre o risco de as perder, mas com a possibilidade de lucros enormes, caso a iniciativa seja um sucesso. Que riscos podem ser? Eis alguns exemplos: a procura que pensava ter pode não aparecer; as preferências do consumidor podem alterar-se, afectando a procura pelos seus produtos.

    person standing near the stairs

    Um trabalhador corre riscos, pois as poupanças do empreendedor são utilizadas para o pagamento do seu salário mensal. Os eventuais lucros ou perdas são sempre imputados ao empreendedor, é assim que deverá funcionar um mercado livre.

    Em conclusão, a teoria keynesiana do “paradoxo da poupança” é, pois, um completo disparate, porque, para esta corrente económica, a poupança agrava uma recessão!

    As outras duas vias para o estímulo da despesa agregada são o aumento da despesa ou a impressão de moeda. Ambas, com um impacto muito negativo a longo prazo, como seguidamente explicarei. Para Keynes tal não importa, pois no “no futuro estaremos todos mortos”.

    Não interessa que a impressão de moeda significa a redistribuição de riqueza a favor de uma casta de privilegiados junto da impressora de notas; isto sem ocorrer a produção adicional de um carro, de um prego, de nada, apenas uma fatia maior do mesmo bolo a favor de uma casta de privilegiados.

    Também não interessa que o aumento da despesa fiscal signifique um agravamento do défice público e, por conseguinte, incremento da dívida pública. No futuro alguém irá pagar a conta com maiores impostos; afinal, estaremos todos mortos!

    Do lado “oposto” a esta corrente económica, temos uma espécie de oposição controlada, fundada por esse paladino do “mercado livre”, Milton Friedman. Esta é designada por escola monetarista ou escola de Chicago.

    Milton Friedman (1912-2006)

    Milton Friedman, esse arauto do “mercado livre”, foi o inventor das retenções na fonte – por exemplo, as retenções de IRS (podemos imaginar a nossa reacção se a conta fosse apresentada de uma única vez!?) – e conselheiro de Richard Nixon, presidente norte-americano que terminou em 1971 com a convertibilidade do Dólar norte-americano em ouro.

    Segundo os monetaristas, o problema do desemprego resolve-se pelo ajuste dos salários. A livre interacção entre a procura e oferta resolve o problema. Desta forma, bastará uma descida dos salários e as empresas voltam a contratar, fazendo desaparecer o desemprego.

    O grande temor dos monetaristas é a descida do nível dos preços: a deflação. Ai Jesus, se tal acontece – tal conclusão, sempre me espanta, dado que beneficia os mais pobres, pois adquirem mais por menos!

    Tal como os Keynesianos, para as monetaristas a despesa agregada não pode cair, dado que provoca deflação. Se tal ocorre, as pessoas irão diferir consumo e acentuar a recessão. Segundo a teoria, o Banco Central tem de aparecer e imprimir dinheiro para que tal não aconteça. O confisco da população, em particular dos mais pobres, é justificado em nome de um benefício colectivo: evitar uma recessão!

    Qual o suporte teórico para tudo isto? No livro Monetary history of the United States, 1867–1960, Milton Friedman e Anna J. Schwartz analisam a História Monetária dos Estados Unidos. Nesse livro de factos estatísticos, com quase 900 páginas, não dedicam uma linha à enorme inflação criada pela Reserva Federal, o Banco Central norte-americano, durante os anos 20 do século transacto.

    U.S. American flags under clear sky

    Depois da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra voltou ao padrão-ouro, tentando regressar ao rácio de conversão pré-guerra, mesma depois de ter impresso Libras Esterlinas sem respaldo por ouro, para financiar a guerra. Desta forma, havia o risco de vários países europeus solicitarem a conversão das Libras Esterlinas em Ouro, nesse momento a moeda reserva do Mundo, colocando a nu a inflação criada pelo Banco de Inglaterra durante a guerra.

    Quem apoiou o Banco Central inglês? O Banco Central norte-americano, imprimindo enormes quantidades de Dólares norte-americanos, para posterior venda por contrapartida de Libras Esterlinas, evitando a sua queda nos mercados internacionais. Apesar do nível geral dos preços nos Estados Unidos não ter subido durante esses anos, a massa monetária criada pela Reserva Federal canalizou-se para o imobiliário e mercado de acções, onde se sentiu a inflação… Onde já vimos isto?

    Milton Friedman nunca nos explicou as razões para a grande depressão que se iniciou em 1929, em particular a impressão massiva de dinheiro e as políticas intervencionistas que agravaram a recessão – impostos sobre o comércio internacional, subsídios, proibição de ajustes salariais e regulação sobre os negócios. Para ele e a co-autora, a Reserva Federal não tinha impresso moeda em quantidades suficientes, deixando esse diabo à solta chamado deflação!

    concrete statues near wall

    No livro também não nos fala da recessão no início da década de 20 do século transacto, que se iniciou com piores indicadores que a Grande Depressão dos anos 30, mas que foi resolvida por redução de despesa e subida de juros (contracção da massa monetária) por parte da Reserva Federal. Nunca as comparou, tornando evidente o erro das políticas económicas – oculta-se quando não interessa.

    Temos agora duas correntes oficiais de teoria económica, ambas suportam intervenções estatais de todo o género, incluindo a impressão massiva de dinheiro em caso de recessão.

    Tais teorias económicas, apesar de serem um falhanço completo, são as únicas hoje ensinadas na maioria das faculdades do Mundo Ocidental. Apenas existem e são possíveis pela existência de dinheiro estatal, que pode ser criado em quantidades infinitas e com custos praticamente nulos – basta o apertar de um botão.

    As intervenções são sempre em nome do interesse colectivo: para “salvar o Euro”, para “evitar uma recessão pandémica”, para evitar a “fragmentação”.

    Quem não se recorda dos falhanços estrondosos destas teorias. Nos anos 70, tínhamos um fenómeno em total contradição com a teoria Keynesiana: inflação e desemprego. Um dos discípulos de Keynes, Paul Samuelson, autor do principal manual de Economia durante décadas desde a Segunda Guerra Mundial, louvava a Economia soviética, mesmo depois do seu colapso no final da década de 80 do século XX.

    close-up photo of assorted coins

    Quem não se recorda do nosso engenheiro das bancarrotas, quando o mandaram gastar sem freio após a crise do subprime em 2008? Sabemos como terminou a experiência Keynesiana: o Estado português esteve em risco de suspender pagamentos caso não aparecesse uma mão salvífica – o empréstimo do FMI e da União Europeia por contrapartida da emissão massiva de dinheiro.

    E a recente inflação, fruto das enormes quantidades impressas de moeda – que irá gerar uma recessão sem precedentes, em nome da necessidade de atingir um objectivo de 2% para a subida do nível geral de preços –, onde já lá vai o objectivo!?

    Em nome de recursos inimagináveis a favor do Estado, por forma a intervir de acordo com as “orientações oficiais” das duas correntes económicas, estamos a destruir a poupança, a fonte da prosperidade e do progresso humano.

    O sistema bancário controlado pelo Estado através do seu Banco Central impõe juros 0% ou mesmo negativos, enquanto a inflação oficial situa-se em torno de 10%. Esta inflação, criada em nome do “bem”, justificada pelas correntes económicas oficiais, apenas é possível porque existe dinheiro estatal, sem quaisquer restrições à sua emissão.

    Temos de voltar a possuir dinheiro sem controlo estatal, onde a taxa de juro seja determinada pela oferta e procura por poupança e que seja escassa, por forma a garantir o seu poder aquisitivo no futuro – uma verdadeira reserva de valor. Para se poupar tem de existir confiança de que essa moeda irá ter um valor estável nos próximos anos, décadas ou mesmo séculos. Caso contrário é uma sociedade que apenas pensa no amanhã e não programa a longo prazo.

    A queda de Roma deveu-se ao deboche dos imperadores – que retiravam o conteúdo de prata ao Denarius ou o ouro ao Áureo criado por Júlio César. Constantinopla sobreviveu mais 1.000 anos, em resultado da reforma monetária do imperador Constantino, que impôs seriedade à cunhagem, não ocorrendo qualquer desvalorização do Soldo durante quase 700 anos. Só assim, as pessoas podem poupar: se confiam na escassez da moeda.

    Com dinheiro estatal tal nunca será possível, por essa razão, o Bitcoin é a alternativa que se irá impor após a crise financeira que se avizinha. É escasso – apenas 21 milhões –, a sua mineração torna-se extremamente cara à medida que nos aproximamos dos 21 milhões, ou seja, não é possível expandir a oferta em resultado da subida do preço, como acontece com outros bens. E, por outro lado, não é controlado pelo Governo, a razão para a desgraça do Ouro, pois quando existem substitutos – notas e depósitos bancários -, torna-se possível a existência de reservas fraccionadas.

    Por fim, outra questão: quase todos os economistas das correntes mainstream detestam o Bitcoin. É um bom sinal!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sardenha: não vi o Ricardo Salgado

    Sardenha: não vi o Ricardo Salgado


    Não podia morrer estúpido: na Sardenha, tinha de conhecer Porto Cervo, o local dos famosos, dos multimilionários e do nosso conhecido ex-banqueiro Ricardo Salgado – há uns anos, como sabemos, foi uma espécie de dono do regime.

    No ano passado, a imprensa lusa fez parangonas sobre as férias de Ricardo Salgado, enquanto decorria o seu julgamento. Beneficiou da lei que permitia aos arguidos com mais de 70 anos não marcarem presença em tribunal devido aos riscos associados à putativa pandemia. Por Porto Cervo, segundo fotografias na imprensa, andava ele descontraído, sem máscara e longe dos tais riscos – o “bicho” por lá não aparecia.

    crystal blue water on white sand beach

    Hospedei-me em Olbia, a cerca de 30 quilómetros de Porto Cervo, onde me foi possível encontrar um local para pernoitar a preços acessíveis. Em Porto Cervo, ou nas redondezas, os preços do alojamento são proibitivos. Acima dos 300 euros por quarto em cada noite.

    As estradas na Sardenha são miseráveis; mais se parecem com as estradas de Portugal nos anos 80, onde para percorrer 30 quilómetros se demora 45 minutos. É o oposto da Madeira – com a população a ganhar na sua maioria menos de 1.000 Euros por mês e governada por um tiranete –, onde existem túneis e estradas de luxo para qualquer lugar.

    O empreendimento de Porto Cervo está impecável, vivendas e apartamentos perfeitamente integrados na paisagem, com lojas de luxo em redor de uma marina, onde cada barco parece disputar a primeira posição em tamanho, esplendor e tripulação. Praticamente não se avistam carros de luxo.

    Não vi Ricardo Salgado. Também não vi o café a 10 Euros anunciado pela imprensa mainstream. Também não ouvi ninguém falar português de Portugal, apenas escutei o sotaque do país irmão: o Brasil. Não espanta, hoje aquele país possui uma das comunidades empresariais mais dinâmicas e numerosas do Mundo.

    Em relação à inexistência de portugueses, não há qualquer assombro: em 48 anos de socialismo, o regime encarregou-se de “abater” os empresários, enquanto elevava o peso do Estado na Economia, de 18% para mais de 50%, levando a dívida pública à estratosfera e destruindo o mercado de capitais. As empresas cotadas chegaram a valer 66% do PIB; valem agora menos de 40%, e o mercado está muito dependente de duas cotadas em mãos chinesas.

    Apesar do pesadelo instituído durante dois anos pelo facínora Mario Draghi, a Itália continua a ser uma das nações mais ricas do Mundo. Em Porto Cervo, as lojas de luxo são, na sua maioria, de marcas italianas. Também se vende iates de luxo por encomenda, igualmente de fabrico italiano. Ou seja, continua a existir um capitalismo vibrante, onde a indústria de luxo tem uma enorme preponderância e há capacidade industrial.

    Olho para a Itália, e à distância recordo Portugal. Fomos em tempos uma das nações mais prósperas do planeta; hoje, estamos a caminho de ser a nação mais pobre da Europa. Talvez esteja relacionado com a forma como nos relacionamos com o capitalismo e a riqueza.

    Continuamos a pensar que é fruto do acaso, da sorte, da vigarice e dos contactos certos, em lugar do esforço, da poupança, do risco, da excelência, do trabalho em equipa e da perseverança. Para nos aliviar a abjecção, não espanta o novo-riquismo com estradas e carros de luxo.

    Aparentemente, o único português que pode aparecer em Porto Cervo de Iate e aí alojar-se é um ex-banqueiro acusado de subornar os próceres do regime. Talvez por lá também apareçam figurões desse mesmo regime, com riqueza obtida à mesa do Orçamento do Estado e fruto do confisco dos demais portugueses.

    Mas, confesso, que não os vi; e também não vi Ricardo Salgado. Estará ele e os outros, por certo, em outras paragens paradisíacas.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As missangas do século XXI

    As missangas do século XXI


    De férias, aproveito para ler. Desde sempre, a História e a Teoria do Dinheiro foram temas que me fascinaram. Revejo o livro que mais me marcou a este respeito: The theory of money and credit, do economista Ludwig von Mises, publicado em 1912 em alemão.

    Hoje, a maioria dos estudantes de Economia não compreende o funcionamento do presente sistema monetário, nem tão pouco estudou ou se debruçou sobre o tema. São coisas esotéricas para muitos. Não podemos atribuir-lhes qualquer culpa, pois o ensino dá pouca importância a estas matérias, talvez porque interessa manter a ignorância generalizada.

    man in red and white plaid shirt wearing white scarf

    Eu próprio fui uma vítima deste sistema de ensino: poucas disciplinas tive sobre estes temas no meu tempo de faculdade; mas salvei-me: apesar de tudo, a experiência profissional e a minha curiosidade ajudaram-me a reconhecer a importância do dinheiro no aparecimento de sociedades prósperas e dinâmicas.

    Dentro desta temática, sempre me fascinou um episódio da nossa História: a troca de missangas por ouro e escravos, que os descobridores portugueses realizavam na costa africana. A pergunta que sempre subsistiu na minha cabeça foi a seguinte: qual a razão para uma troca voluntária aparentemente tão desfavorável para os africanos?

    Não devia ser desfavorável. E passo a explicar. As missangas eram pulseiras, podendo ser adaptadas para colares ou braceletes, construídas com pedaços de vidro. Tornaram-se preciosas na África subsariana, porque a tecnologia do vidro era então cara e pouco comum naquela região. Desta forma, tornaram-se dinheiro, ou seja, um meio de troca e uma reserva de valor.

    Os europeus – detentores de tecnologia capaz de produzir vidro em enormes quantidades – foram assim capazes de produzir missangas em enormes quantidades, utilizando-as como meio de pagamento para obter escravos e ouro. Saiu-lhes barato, e acabou por dar cabo das missangas como reserva de valor em África.

    gold and silver round coins

    O colapso do valor das missangas em África, em resultado das enormes quantidades introduzidas pelos europeus, acabou por ser uma tragédia para os proprietários das missangas originais. Os comerciantes europeus, capazes de as produzir em enorme quantidade e a baixo custo, operaram assim uma enorme transferência da riqueza para si.

    Para ser reserva de valor, o dinheiro tem que ser imune à putrefacção, corrosão, e outras formas de deterioração. Por isso, se alguém pensar em acumular riqueza sob a forma de maçãs, peixes ou laranjas, não se dará bem: no futuro, não será capaz de vender estes bens no mercado porque apodreceram ou perderam qualidades com uma eventual congelação – além de que o congelamento teria um custo que depreciaria o valor. Ou seja, devemos utilizar como reserva de valor algo que possua as mesmas características ao longo de anos, ou mesmo séculos, com baixo ou nenhum custo.

    Deste modo, para além de não se poder deteriorar, a reserva de valor exige também que o “dinheiro” seleccionado se mantenha escasso ao longo do tempo. Para tal, é necessário que a emissão do “dinheiro” não aumente de forma drástica ao longo do tempo; caso contrário, o seu valor de mercado irá diminuir drasticamente.

    Ora, as missangas funcionaram bem durante séculos, pois cumpriam os dois critérios: por um lado não eram deterioráveis e, por outro, a sua escassez estava garantida, atendendo à dificuldade em emitir drasticamente novas missangas. Em conclusão: antes da chegada dos europeus, a emissão drástica não era possível.

    Assim, para medirmos a força monetária do dinheiro devemos atender a dois aspectos: (i) o inventário, que consiste em tudo o que foi produzido no passado e deduzido do que foi consumido, e (ii) a produção que irá ocorrer no período temporal seguinte. O rácio entre a quantidade e a produção define a força monetária do dinheiro.

    O ouro transformou-se assim em dinheiro, durante longo tempo, fundamentalmente por possuir uma elevada força monetária, ou seja, a produção de um dado período tem pouco ou nenhum impacto no inventário existente.

    Praticamente todo o ouro extraído da natureza até à data encontra-se na posse de alguém, seja de um particular ou de um Banco Central. Por outro lado, a produção anual de ouro não supera os 2% do inventário, atendendo que a mineração é cara e difícil.

    Diga-se que outros metais não possuem esta força monetária, como, por exemplo, o ferro. Num dado ano, a produção é praticamente consumida, havendo, por conseguinte, pouco inventário; por outro lado, afectando capital e recursos humanos à sua produção, esta pode ser drasticamente incrementada, algo que não acontece com o ouro.

    O sucesso deste metal levou a que Bancos Centrais, governos e bancos centralizassem a sua propriedade. Hoje, estima-se que apenas os Bancos Centrais possam deter mais de 30% do inventário existente.

    grey concrete building

    Tal concentração de propriedade permite a emissão de substitutos, como notas ou cheques, deixando de existir a necessidade de transportar o ouro para realizar o pagamento, bastando a compensação junto do banco, movendo-se a propriedade do mesmo de um cliente para outro.

    Esta capacidade de emitir substitutos permitiu aos governos manipular o inventário do ouro. Para financiar a guerra do Vietname, os Estados Unidos emitiram uma enorme quantidade de notas de dólar sem qualquer respaldo em ouro. E, deste modo, a manipulação do seu inventário levou ao fim do ouro como dinheiro.

    Actualmente, estamos a viver o mesmo drama dos proprietários das missangas. A produção de nova moeda é quase infinita: Euros e Dólares norte-americanos podem ser produzidos com um simples apertador de um botão de computador, praticamente sem quaisquer custos. Isso gera uma transferência de riqueza a favor dos produtores de dinheiro: Bancos Centrais, governos, bancos e apaniguados, em detrimento dos produtores de bens e serviços.

    A força monetária das actuais moedas é mínima, pelo que a sua viabilidade a longo prazo é inexistente. Por outro lado, a alternativa proposta, a moeda digital dos Bancos Centrais mantém o mesmo problema: a sua produção pode ser aumentada drasticamente e sem custos.

    A razão de afirmar, vezes sem conta, que o Bitcoin é uma excelente reserva de valor deriva das suas características, que resolvem os problemas já anteriormente indicados.

    aerial photography of dump trucks

    Primeiro, a sua produção está limitada a 21 milhões de tokens; a emissão é muito cara, pois consome imensa energia, pelo que a produção está fortemente condicionada. Assim, a sua força monetária está assegurada.

    Segundo, a tecnologia em que assenta – o blockchain – elimina por completo a centralização. Cada node pode operar de forma individual e não é possível controlar mais de 50% dos nodes da rede. Em resumo, dispensa uma autoridade central e funciona de forma descentralizada.

    Por fim, ao contrário do ouro – que pode ser manipulado o seu inventário através de substitutos, i.e., o fenómeno das reservas fraccionadas –, o valor de Bitcoins total, e a quem pertence, pode ser auditado com uma simples ligação à Internet, impossibilitando tal prática.

    Isto para concluir, embora seja suspeito por estar nesta área, e mais ainda de férias, que continuo a pensar que a acumulação de riqueza em Bitcoins será altamente compensadora no futuro. Mais do que a moeda fiduciária dos Bancos Centrais, que se transformou nas “missangas do século XXI”.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O socialismo está a vencer…

    O socialismo está a vencer…


    Ao fim de vários anos, decido gozar um período de férias com a minha família. Regressámos ao princípio dos anos 90: metemo-nos num carro e partimos por essa Europa fora.

    Mas, apesar de tudo, os tempos já são outros. Viajar de carro tornou-se um luxo extremo. A gasolina nunca esteve tão cara. Aproximámo-nos dos míticos 500 escudos por litro (2,5 Euros), algo impensável há três décadas.

    Primeira paragem, a cidade onde vivemos quase 10 anos, onde os meus filhos frequentaram o infantário, a primária e parte do secundário: Barcelona.

    Em dois dias, com uma paragem num hotel de estrada à entrada de Madrid, chegámos. Apenas em Portugal nos cobraram portagem. O litro de gasóleo em Espanha, depois de aplicado o desconto de 20 cêntimos, situa-se agora em torno de 1,85 euros. Em Portugal, está em 2,2 euros. Algo que, enfim, não nos devia espantar, pois, como todos sabem, somos sumamente mais ricos que os nossos vizinhos espanhóis. Talvez seja esta a razão para ninguém levantar um dedo em protesto.

    Em Barcelona, estivemos três dias a rever amigos. Apesar de todos os ataques, a sociabilidade com outros seres humanos é das melhores coisas que levamos desta vida. A esta distância, e depois de voltar a viver em Portugal desde 2019, o que mais me surpreendeu foram os empregos das pessoas, algo que nunca tinha dado a devida atenção.

    Na capital da Catalunha, o grande desejo de qualquer pessoa é ter um negócio ou singrar numa grande empresa – sócio de uma grande sociedade de advogados ou de consultoria, sócio de uma auditora internacional… A burguesia catalã sempre me surpreendeu pela sua riqueza, aptidão para os negócios e obsessão com a educação dos seus filhos. Talvez isso explique a enorme diferença com Portugal: com uma população de apenas 7 milhões (70% da nossa), o seu PIB é superior ao de Portugal.

    Sagrada Famiglia cathedral during daytime

    Para minha surpresa, os tempos parecem estar a mudar. Uma das minhas amigas, que tem um negócio de promoções em jornais, é uma grande proprietária de imóveis em Barcelona. Segundo me explicou, durante a putativa pandemia, o governo de Espanha decidiu impor um tecto às rendas praticadas em determinadas áreas da cidade.

    Esta medida foi “vendida” como uma forma de “partir os dentes à especulação desenfreada” – já ouvimos isto algures… nunca compreendi a obsessão pela fixação de preços, pois nunca resultou. Ninguém se pergunta se, por exemplo, a 800 euros existem inquilinos disponíveis; se sim, por que razão o proprietário é obrigado a cobrar apenas 650 euros? Tem de realizar caridade em nome de quem?

    Por outro lado, muitos inquilinos protestam agora contra o possível aumento de 10% ou mais das rendas no final do presente ano, em virtude de uma taxa de inflação em dois dígitos. É sempre surpreendente que nunca se acuse o Governo de ser o principal responsável dessa mesma inflação, vertida directamente da impressora de notas do seu Banco Central. Ao Governo pede-se o confisco puro e simples dos proprietários.

    Parece que Espanha regressa ao Portugal pós-revolucionário, em que os proprietários se viram impossibilitados de aumentar as rendas em linha com a inflação. Qual foi o resultado? Um parque imobiliário completamente decrépito, em particular nas cidades de Lisboa e Porto.

    A ténue liberalização das rendas e o sucesso do alojamento local fizeram reverter parcialmente esta desgraça. Não será por muitos anos: o socialismo, entranhado nos nossos dirigentes, encarregar-se-á de reverter os ventos favoráveis que se registaram neste sector nos últimos anos.

    No barco para a Sardenha, aproveito para dar uma olhada na imprensa nacional e internacional. Nada de novo. O representante máximo da República, que pisa há mais de dois anos a Constituição que jurou defender, decide ir de férias ao Brasil e visitar um candidato pouco recomendável, em lugar de realizar a visita oficial. A imprensa mainstream, como previsível, rejubilou com o mergulho na praia de Copacabana. Parece que foi o melhor momento da visita: o tronco nu, os calções de banho, a pele e o cabelo molhado.

    Leio, também, que vários aeroportos europeus se encontram perto da ruptura: caos, filas e cancelamentos de voos parecem ser a norma em pleno período de férias. É sempre enternecedor verificar que a imprensa mainstream nunca aponta o dedo aos confinamentos a pretexto de um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%. A culpa parece ser do SEF, os que matam ucranianos à pancada, e da falta de funcionários.

    Entretanto, os meus olhos passam por um panegírico, num estilo canino, ao ministro das Infra-estruturas, o tal que enterrou mais de 4 mil milhões de euros na bancarroteira nacional. Parece que foi assinado por alguém que se diz jornalista.

    Por fim, a revolta dos agricultores holandeses, em protesto contra o fecho de 30%, ou mesmo mais, de explorações agrícolas decretado pelo Governo holandês. Parece que o objectivo é reduzir as emissões de poluentes, como os óxidos de azoto, em 50% até 2030. O socialismo continua a prosperar: planeadores centrais decidem quanto e quem pode produzir, em nome do combate às alterações climáticas que ainda ninguém provou que seja um fenómeno ou mesmo causado pelo Homem.

    Tal como na revolta dos camionistas no Canadá, noto a total ausência desta revolta na imprensa mainstream, sempre do lado dos facínoras e aspirantes a tiranos.

    Chego a uma conclusão: é melhor nem ler notícias. Fico-me pelos livros.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lembram-se do Cisne Negro? Cheira que está perto…

    Lembram-se do Cisne Negro? Cheira que está perto…


    Primeiro, era “temporário”:

    • A 27 de Maio de 2021, a Secretária do Tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janel Yellen, afirmava: “Segundo a minha opinião, a recente inflação que estamos a sentir será temporária. É algo não endémico…”;
    • No final de Agosto de 2021, o presidente do Banco Central norte-americano, Jerome Powell, dizia que a recente subida da inflação era um fenómeno transitório;
    • A 28 de Outubro de 2021, a presidente do Banco Central europeu, Christine Lagarde, comentava que “… a recente subida da inflação na zona Euro acima da meta de 2% é temporária e espera que as pressões inflacionistas diminuam no próximo ano”.
    black swan on water

    Depois, de “temporário” passou para “afinal, veio para ficar”:

    • No final de 2021, a Secretária do Tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janel Yellen, alterou o discurso: o processo inflacionário tinha deixado de ser temporário;
    • Em Março de 2022, o presidente do Banco Central norte-americano, Jerome Powell, reconheceu que a inflação era um problema que necessitava de medidas drásticas;
    • No início do presente mês, a secretária do tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janet Yellen, admitia que estava errada acerca da inflação.

    E, por fim, de “afinal, veio para ficar” veio o “pânico”:

    • Na manhã de 15 de Junho, antes da efectivação da subida das taxas de juro pelo Banco Central norte-americano, o Conselho do BCE reunia-se de emergência, anunciando uma nova ferramenta, denominada: “anti-fragmentação”. Traduzindo: o BCE passará a imprimir dinheiro e a comprar obrigações apenas para os estados em apuros;
    • Na tarde de 15 de Junho, o Banco Central norte-americano subiu a sua taxa directora em 0,75% (75 pontos base), a maior subida desde 1994!

    Cheira, portanto, a fim de festa.

    Tal como escrevi em artigo anterior, no passado dia 19 de Abril, a visita de um Cisne Negro poderia ocorrer a qualquer momento. Isto não é uma surpresa. As afirmações dos responsáveis pela situação a que chegámos é a surpresa. Como podia ser uma surpresa?

    O que esperavam do resultado de imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã?

    O principal Banco Central do mundo, a Reserva Federal norte-americana, imprimiu 4,75 biliões de Dólares norte-americanos (USD) desde o final de 2019, o equivalente a 22 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) português (0,22 biliões de USD) e cerca de 20% do PIB norte-americano (23,5 biliões de USD).

    Ao mesmo tempo, obrigava-se a sociedade a ficar em casa, sem nada produzir, distribuindo cheques e pagando todas as necessidades com dinheiro proveniente da impressora de notas. Anunciava-se então um final feliz: “tudo ia acabar bem”!

    Evolução dos activos totais (em biliões de USD) do balanço da Reserva Federal norte-americana entre o final de 2019 e Junho de 2022. Fonte: St. Louis Fed. Análise do autor.

    Os sinais de fim de festa são agora evidentes.

    No último dia 10 de Junho, para o mês de Maio, a inflação nos Estados Unidos situou-se em 8,6%, um máximo de 40 anos. Na Zona Euro, para o mesmo mês, a inflação foi de 8,1%.

    Entretanto, apesar das minúsculas subidas de juros por parte dos Bancos Centrais, o mercado de dívida pública começa a dar sinais de pânico.

    A rendibilidade implícita das obrigações emitidas pelo Estado Federal norte-americano com maturidade a 10 anos rompeu o máximo de 2018, um pouco acima de 3%. Agora, situa-se em 3,3%, um máximo de 11 anos. Importa notar que esta subida foi muito rápida: em pouco mais de 2 anos subiu de 0,4% para 3,3%.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações norte-americanas com maturidade a 10 anos negociadas no mercado secundário entre Janeiro de 2008 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Este é um dos grandes problemas que se depara aos Bancos Centrais: continuar a manipular, no sentido descendente, as taxas de juro pela compra massiva de obrigações com dinheiro de monopólio pode gerar uma inflação sem precedentes.

    Esta subida também afectou os países do sul da Europa, os denominados PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha). Agora, assistem à queda do preço das suas obrigações negociadas no mercado secundário, elevando o juro implícito e tornando incomportável o custo de futuras emissões.

    Durante o último dia 14 de Junho, as obrigações gregas e italianas com maturidade a 10 anos chegaram a ser negociadas a 4,7% e 4,2% respectivamente, um máximo de mais de 10 anos.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações italianas com maturidade a 10 anos negociadas no mercado secundário entre Janeiro de 2008 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    No final de 2021, a Grécia era o país mais endividado da Zona Euro, com um rácio de dívida pública vs. PIB de 193%, seguido da Itália, com 151%, e de Portugal, com 127%.

    A título de exemplo, com um dívida próxima de 300 mil milhões de Euros, em caso de uma subida de 1%, Portugal sofre um acréscimo de 3 mil milhões de Euros de encargos com juros, cerca de 25% do custo do Serviço Nacional de Saúde.

    No caso do Japão, este rácio encontra-se agora em 266%, sendo talvez o maior sinal de alarme do desastre que está a acontecer no mercado de dívida pública. Recordemo-nos que o Japão leva quase oito anos de avanço com este tipo de políticas monetárias, tendo iniciado a compra de activos financeiros por emissão de dinheiro em 2000.

    Em face de uma dívida tão elevada, o Banco Central japonês determinou que o juro implícito das obrigações com maturidade a 10 anos não podia superar, imagine-se, os 0,25%! Hoje é praticamente o único comprador destes títulos de dívida pública.

    Com esta política está a destruir o Iene japonês. Em 2022, cai 13% frente ao USD e encontra-se num mínimo de mais de 20 anos!

    Evolução de Iene japonês (JPY) cotado em Dólares norte-americanos (USD) entre Janeiro de 1998 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Esta é a situação que irão enfrentar em breve os dois principais Bancos Centrais, o norte-americano (Reserva Federal) e o europeu (BCE): ou combatem a inflação seriamente ou tornam os estados e os bancos comerciais insolventes, destruindo, ao mesmo tempo, a moeda e o poder de compra dos cidadãos – precisamente o que os japoneses agora enfrentam, em que compram do exterior tudo mais caro, em resultado da depreciação do Iene japonês.

    Apesar da nova crise de dívida soberana – capaz de destruir o sistema monetário que surgiu com o final dos acordos de Bretton Woods (1971) –, a imprensa tem-se dedicado a anunciar o “desastre” que se abateu sobre as Criptomoedas. A correcção de mais de 60% do Bitcoin faz notícia todos os dias.

    Parece que perdemos a perspectiva das coisas. Esta loucura monetária iniciou-se no início de 2020, em que a maioria dos activos financeiros subiu à boleia de uma impressão de dinheiro sem limites.

    Medido em USD, entre o final de 2019 e o último dia 15 de Junho, as duas principais Criptomoedas – o Ethereum e o Bitcoin – subiram 851% e 214% respectivamente. Foram seguidas pelo Petróleo, com 89%, e pelo Nasdaq 100, com 33%. Para o mesmo período, o Euro perdeu 7% e o Iene 20%!

    Variação (%) de oito activos financeiros, medidos em Dólares norte-americanos, entre finais de 2019 e 15 de Janeiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    É assim alguma surpresa que as Criptomoedas sejam os activos financeiros que mais corrigem?

    Continuo a prever que em caso de descontrolo do mercado de dívida pública norte-americana – isto é, caso ocorra uma subida vertiginosa da taxa de juro implícita (maturidade a 10 anos), por exemplo, de 4,3% para 5% em poucas sessões –, os mercados de acções e de obrigações poderão sofrer um autêntico cataclismo. Algo a que nunca assistimos.

    Como é óbvio para todos, o dinheiro não desaparece. Quando começar a sair dos mercados de dívida e de acções, em caso de pânico, os investidores vão dar-se conta que o Bitcoin é a verdadeira reserva de valor, pois não tem risco de contraparte.

    Na verdade, quando alguém tem um Bitcoin numa carteira digital, este activo é seu, não depende da solvência de nenhuma entidade, seja um banco comercial, um Banco Central ou um estado. Quando o pânico se instalar, podemos assistir a subidas vertiginosas no mercado de Criptomoedas e de Matérias-Primas, o refúgio do dinheiro em fuga.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Economia: um mundo ao contrário

    Economia: um mundo ao contrário


    Vivemos num mundo de contradições: a Educação é universal, as sociedades nunca estiveram tão bem preparadas, o Ensino Superior “democratizou-se”, mas, no entanto, as falácias e os sofismas prosperam.

    A desinformação sobre temas económicos e de mercados financeiros nunca foi tão gritante. Aos nossos olhos, uma elite de banqueiros centrais, burocratas e políticos vendem, todos os dias, patranhas sem qualquer contraditório. A sociedade acredita acriticamente em tudo o que lhe dizem, como se fossem dogmas; eles são os novos presbíteros que nos conduzem à salvação.

    Os bancos deixaram de ser bancos. Em lugar de entidades que procuram atrair as nossas poupanças, protegendo ao mesmo tempo a nossa privacidade, são agora gigantescas máquinas de burocratas, directamente ligadas à autoridade tributária. A maioria das suas receitas provém da especulação com títulos de dívida dos Governos, em lugar da tradicional intermediação financeira.

    clear glass ball on ground during daytime

    Enquanto isso, dizem eles, por exemplo, que as Criptomoedas apenas servem para lavar dinheiro e consomem muita energia. Mas “esquecem”, ao mesmo tempo, de esclarecer que, afinal, com as Criptomoedas todas as transacções são rastreáveis – ao contrário do dinheiro físico – e que o consumo de energia é essencial para um processo de mineração sério, em lugar de um simples apertar do “botão”, que é como os bancos centrais produzem dinheiro.

    Recordemos o charlatão Alves dos Reis, que imprimia notas iguais às do Banco de Portugal, tendo levado, durante algum tempo, uma vida de luxo em Lisboa. Após ter sido descoberto, foi condenado a 20 anos de prisão, dos quais 12 em degredo.

    Contudo, agora, os bancos centrais imprimem moeda sem limites – como se viu, em particular, nos anos de 2020 e 2021 –, algo não possível com o Bitcoin. Mas a “culpa” da inflação, dizem, é da guerra na Ucrânia.

    Dizem-nos também que estão a combater a inflação com juros próximos de 0% e subidas de 0,5%. E com isto, enfim, a inflação já se aproxima dos dois dígitos – ou está mesmo acima em alguns países da União Europeia. Em paralelo, diabolizam as StableCoins – exigindo que sejam ainda mais reguladas –, quando se sabe que estas são usadas em projectos DeFi (finanças descentralizadas) remunerando acima da taxa de inflação.

    Evolução da taxa de inflação (%) na Zona Euro entre Junho de 2021 e Maio de 2022. Fonte: Trading Economics.

    Há dois anos, os “peritos económicos” informavam-nos que a deflação era algo diabólico, trágico mesmo.

    Que argumentos eram utilizados para tal conclusão? As pessoas, quando tal acontece, atrasam o seu consumo, esperando por preços se tornem ainda mais baixos no futuro. Caso tal aconteça, a contracção económica está ao virar da esquina. Funestíssimo! A razão para a loucura monetária que estamos a viver.

    Há muitos anos, quando os computadores não paravam de descer de preço, algum consumidor foi tentado a não comprar algo que necessitava de imediato? Alguém no seu perfeito juízo deixa de comprar um bem ou um serviço porque agora custa 100 e daqui a um ano 95?

    Não será isto, afinal, beneficiar os pobres e desfavorecidos, pois o poder aquisitivo da moeda que têm no bolso incrementa? Não é a subida da produtividade, fruto da acumulação e inovação capitalista, que pode fazer resultar em preços mais baixos para todos? Verdades que desapareceram!

    Na Constituição Portuguesa diz-se também que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte”. Isto é verdade?

    black Android smartphone

    Vejamos. Os bancos podem utilizar de forma impune o sistema de reservas fraccionadas – ou seja, concedem crédito a particulares e empresas a partir da emissão de moeda a partir do “nada”, diminuindo, desta forma, o poder aquisitivo do dinheiro que temos no bolso.

    Isto é uma óbvia agressão à propriedade privada.

    Não obstante, esta prática está perfeitamente legalizada e é responsável pelas crises financeiras que atravessamos, cada vez mais acentuadas.

    Segundo consta, o fenómeno da inflação resulta da evolução de um índice de preços definido por uma agência governamental:

    Será mesmo assim? Não deveria ser a evolução da massa monetária?

    Se imaginássemos que o Alves dos Reis, com as suas fantásticas notas falsas, decidia comprar maçãs no mercado de Lisboa sem qualquer preocupação em relação preço, o que iria acontecer? Correcto: o preço subia!

    Os vendedores sabiam que Alves dos Reis as compraria mesmo que subissem o preço. E com isto levava que a propriedade privada das outras pessoas fosse afectada, atendendo que, com a mesma quantidade de dinheiro, passariam a comprar cada vez menos maçãs.

    fan of 100 U.S. dollar banknotes

    Na prática, é isto o que está a acontecer com toda a massa monetária emitida nos últimos dois anos pelos Bancos Centrais. Já todos repararam, certamente, na subida do custo de vida dos últimos dois anos: comida, preços das casas. E até nos activos financeiros – excepto as acções dos bancos –, incluindo as Criptomoedas, subiram expressivamente e sem cessar.

    Não será isso uma “prova” de que massa monetária, emitida do ar, “correu” para esses bens, provocando subidas exponenciais do seu preço?

    A título ilustrativo, o Ethereum subiu 1.349% e o Bitcoin 340%. Qualquer cidadão se apercebe que os preços sobem, de forma inexorável com o aumento da massa monetária; mas, todavia, segundo a versão oficial, a inflação é algo temporário e desaparecerá em breve.

    Sabemos ser um consenso que consumir agora é preferível a consumir no futuro. Mas conceder um crédito significa que alguém realiza um sacrifício no presente para consumir no futuro; e por isso exige um preço, por exemplo, de 5% ao ano. Porém, agora só o podem fazer no mundo das Criptomoedas, através de projectos DeFi.

    Variação (%) do preço (em euros) das principais Criptomoedas e das das acções de bancos entre o final de 2019 e 8 de Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Porque na Economia dos Bancos Centrais temos taxas de juro reais negativas – que significa taxas de juro nos bancos inferiores à inflação –, e este é um fenómeno de mercado que veio para ficar, uma nova verdade.

    Ora, não será evidente que esta situação resulta da compra de títulos de dívida, a partir de moeda emitida do “ar”, provocando a descida da rendibilidade desses títulos, inclusive para um valor negativo?

    Mas isto também se passa, em certa medida, com a Segurança Social. Em breve explicarei como…

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.