Etiqueta: Lourenço Cazarré

  • A lenta flecha da beleza

    A lenta flecha da beleza


    Gostava do final do ano. Novembro anunciava os meses de férias, época boa para se ler o dia inteiro sem adulto incomodando, pai ou mãe, mandando fazer os deveres.

    Nos dias de sol forte escolhia a calçada da sombra, da estreita faixa de sombra junto à parede, para caminhar até a biblioteca. Ao passar por baixo das árvores, gostava de ver os estranhos desenhos que o sol – varando a galharia – fazia-lhe nos braços. Era como se ele fosse um sujeito tatuado, um pirata dos mares do Sul.

    Toda segunda-feira, depois do almoço, saía de casa para a fornalha da rua. Com dois livros debaixo do sovaco, olhos cravados no chão, pensava às vezes: quem me vê logo percebe que eu sou um intelectual.

    Cruzava sucessivas ilhas de luz e de sombra: calçada, árvores, calçada, marquises, calçada, postes, calçada, toldos, calçada, tabuletas.

    Chegando ao centro da praça, detinha-se por uns minutos no chafariz para admirar os negros peixes de ferro que esguichavam pela boca escancarada e os peixes vermelhos que, sinuosos, brincavam de pega-pega na água verdolenga do tanque.

    five koy fishes

    Dali podia ver a fachada imponente da Biblioteca. Uma fábrica silenciosa. Era assim que ele gostava de pensar: uma silenciosa fábrica de histórias interessantes. As estantes e mesas eram as máquinas. Os livros eram a matéria-prima. Os leitores eram os operários.

    Deixando o chafariz, dirigia-se ao banco da praça que ficava bem na frente da Biblioteca. Sempre que estava por ali, fazendo hora até que fosse aberto o portão, ficava observando o bando de gurias reunidas diante do velho edifício. Era muita guria bonita junta num só lugar.

    De quando em quando seu olhar era atraído para uma das retardatárias que atravessavam a rua correndo sem olhar para os lados. Vinha-lhe, então, um vago pressentimento: um dia, um auto vai atropelar uma dessas estabanadas.

    Quando a gigantesca porta de madeira maciça era aberta, elas enveredavam pelo corredor que levava ao interior do edifício centenário: dezenas de gurias de saia azul e blusa branca – agitadas, falantes – apertando as pastas escolares contra os seios nascentes.

    Ainda sentado, dando um tempo para que elas se instalassem nas mesas do grande salão, ele fechava os olhos e imaginava o atropelamento de uma delas. Via a guria estirada no calçamento de pedra, os encaracolados cabelos castanhos em volta do rosto pálido, os braços abertos, livros e cadernos espalhados e um fiapo de sangue escapando-lhe pela comissura dos lábios.

    Comissura, gostava da palavra. Ela aparecia em todo livro de aventuras que lia. Sempre tinha uma briga e alguém acabava sangrando pela comissura dos lábios.

    vintage books collection

    No caso da guria atropelada, claro, tinha que haver um pouco de sangue. Bem pouquinho. Se tivesse muito, ficaria nojento.

    Então ele se via correndo até ela. A pobrezinha abria a boca e tentava dizer alguma coisa, mas não conseguia. Lentamente, os olhos dela se fechavam. Pronto, estava desmaiada. Com a vítima nos braços, ele partia correndo em busca de socorro.

    Está certo, ele sabia que não era possível erguer uma garota com tanta facilidade e, menos ainda, sair correndo com ela no colo. Sabia que não se levanta do chão um atropelado. Isso ele aprendera numa aula de primeiros-socorros. A pessoa podia ter uma lesão na coluna ou uma fratura. Um osso quebrado podia, por exemplo, perfurar um pulmão. Morte certa.

    Mas digamos que, apesar de tudo, ele resolvesse correr com a guria nos braços. Bem, para isso, ele tinha de ser um cara forte para burro. O que não era o caso dele. Até que era bastante alto, mas muque não tinha.

    – Tu pareces mais um varapau! – dizia o pai dele.

    Bem, mas e se a guria atropelada fosse bem levinha?

    No dia em que decidiu que seria um escritor quando se tornasse adulto, o guri não atravessou a rua logo depois do sumiço da última menina. Permaneceu sentado no banco da praça, de olhos fechados, reflexivo. E se um dia tivesse que fazer uma redação sobre elas, o que escreveria?

    person holding book sitting on brown surface

    *

                  Uma cidade cheia de gurias.

                  As ruas estão eletrificadas. Gurias são fios desencapados. Se o sujeito trisca na mão delas, recebe uma baita descarga elétrica.

                  Gurias parecem pombas, não param de arrulhar. E falam muito rápido. Mudam de assunto a todo instante. Aliás, as frases delas não têm final. Umas não ouvem as outras. Falam tanto que, de vez em quando, no meio de uma conversa mais acesa, uma delas sente falta de ar.

                  Namoro é o assunto predileto delas. Todas vivem se exibindo, dizendo que os guris andam atrás delas, de joelhos. Até mesmo as mais feiosas. Na escola, durante o recreio, ficam horas e horas falando sobre meninos. Mas ninguém serve para elas. Um é exibido, o outro é nojento. O pior é quando dizem que o sujeito é asqueroso. E mentem na maior cara de pau. Dizem que recebem bilhetes apaixonados. Mentira deslavada. Um piá normal nunca vai se rebaixar a escrever um bilhetinho. Só se for um bocó. As mais descaradas inventam até beijos.

                  Elas não olham diretamente nos olhos da gente. Não encaram nunca. Olham de banda, e depois falam torcendo as mãos úmidas de nervoso. E se movem sem parar, têm bicho-carpinteiro pelo corpo. Parecem estar sempre com muita pressa, mesmo quando nada têm para fazer. Na saída da escola, elas gostam de andar em grandes bandos, falando pelos cotovelos. De braços dados, tomam a calçada toda, da parede à beirada. E saem varrendo. As pessoas têm que se equilibrar no meio-fio.

    Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas deixam um cheiro bom e um rastro luminoso como…

    woman putting her left arm on her forehead

                  *

    Olhou para os dois lados antes de atravessar a rua. Se fosse atropelado, nenhuma guria viria socorrê-lo. Tem isso: elas gostam que o cara se arrebente por elas, mas nunca juntariam do chão um sujeito machucado, ainda mais sangrando.

    Pelo corredor sombrio, dirigiu-se à portaria, onde entregou à funcionária os livros que havia retirado na semana anterior.

    – Tu és um leitor onívoro – a mulher sorriu por trás das lentes cortadas pelo meio.

    – Obrigado – respondeu.

    Teria de consultar o dicionário para descobrir o significado daquela palavra monstruosa: onívoro.

    De posse da carteirinha de sócio, com a entrega já carimbada, encaminhou-se para o salão.

    Naquele dia ficou inquieto com a presença de tantas gurias por ali. Nem se arriscou a olhar para os lados. Certamente elas estavam de risinhos, as patetas.

    Concentrou-se na escolha dos livros que levaria para casa.

    Em geral, escolhia pelo título. Mas levava em conta principalmente o número de páginas e o tamanho da letra. Livro grosso demais não era com ele. E nem livro de letra miudinha. Se o título lhe agradasse, e se o livro tivesse um número razoável de páginas – digamos, no máximo, trezentas -, ele o abria ao acaso. Lia um parágrafo e já sabia se gostaria ou não. Nunca se enganava.

    Abriu um dos livros mais grossos. Não pretendia levá-lo para casa, claro. Queria apenas se exibir, fazer com que as gurias pensassem que ele era um garoto-prodígio.

    assorted book lot

    Gostou do título daquele capítulo: A lenta flecha da beleza. Começou a ler pensando que fosse uma história de índios. Mas de saída, já na primeira frase, deu de cara com nove vírgulas. Era tanta vírgula que o sujeito ficava tonto, desnorteado, nem sabia para onde a história estava andando. Ah, e tinha muita palavra com mais de quatro sílabas. Tempestuosos, altissonantes, embriagadores. Odiava escritores que abusavam dos polissílabos. Aquele devia ser um livro igual a todos os outros de adultos: a história de um rapaz pobre apaixonado por uma moça rica. Ou vice-versa. Coisa bem chata.

    Abandonando o livrão na prateleira, escolheu quatro ou cinco livros de aventuras, de capas coloridas. Depois, equilibrando-os nos braços magros, dirigiu-se à carteira mais afastada, no cantinho do salão. Só na hora de ir embora, escolheria os dois que levaria para casa.

    Com gestos cuidadosos distribuiu pela carteira os livros, abertos, como via fazerem os estudantes de Medicina ou Direito. Queria que as garotas pensassem que ele era um cara super estudioso.

    Armado o cenário, ele apanhou na pasta os cadernos de matemática e de português. Rapidamente, resolveu cinco continhas e, em seguida, fez uns exercícios vagabundos de análise sintática. Pronto, havia matado o dever daquele dia.

    Não, ele não era muito estudioso. Sempre fazia o dever o mais depressa possível para ter mais tempo de olhar fotos e mapas nas enciclopédias. Era louco por enciclopédias ilustradas.

    Se lhe perguntassem do que ele mais gostava na biblioteca, responderia que era o silêncio daquele lugar. Todos os que entravam ali, até mesmo as gurias mais novas, caturritas de nove, dez anos, logo começavam a falar em voz baixa.

    O silêncio do enorme salão só era cortado de quando em quando pelo estalido das folhas de livros que iam sendo viradas. Ah, claro, também tinha um piado bem fraquinho, irritante, que vinha das gurias, sempre rindo e sussurrando.

    book lot on table

    Mas, naquele dia, terminado o dever, ele não foi à estante das enciclopédias, como costumava fazer. Abriu e o caderno resolvido a escrever a redação que imaginara, pouco antes, quando estava em frente à Biblioteca:

    Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas exalam um cheiro bom e deixam um rastro luminoso como o de uma lesma.

    Não gostou do final da frase. Aquela palavra – lesma – não era legal. Foi à estante dos dicionários. Depois de consultar o mais robusto deles, um que tinha mais de mil páginas, voltou a escrever:

    Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas exalam um cheiro bom e deixam um rastro luminoso como o de um molusco gastrópode terrestre, cujo corpo é desprovido de concha.

    Também não aprovou. Era muita palavra difícil em apenas duas linhas de caderno: molusco, gastrópode, desprovido.

    Resolveu escrever um poema. Mas tinha um porém: ele não gostava de poema moderno, desses sem rima, bagunçados. Queria tudo rimado, certinho. Escreveu:

     A menina andarilha

    Nas tardes de verão

    Deixa um rastro na trilha

    Que nos leva ao alçapão

    Ficou melhor, mas incompleto. Porque, pensando bem, gurias não deixam só o rastro. Elas exalam também um cheiro, que é parecido com o de uma flor esmagada pelos pés de uma pessoa distraída. Não, não, o cheiro delas é o da lagoa, na época da seca, quando as águas ficam lustrosas de limo grosso. Melhor ainda: cheiro de pêssego maduro exposto numa banca de feira.

    red apple fruit on four pyle books

    Suspirou e fechou o dicionário.

    Vou ficar louco, se pensar tanto em gurias.

    Levou a mão à testa. Talvez estivesse até com uma pontinha de febre.

    Perguntou-se: onde está o problema?

    A resposta era simples.

    Ele não era poeta. Era um guri que só gostava de livros de aventuras.

    Rasgou a folha do poema.

    Escreveu:

    Era uma vez uma bela garota que cheirava a pêssego maduro. Um dia, quando atravessava a rua diante da Biblioteca, ela foi atropelada por um automóvel que trafegava em altíssima velocidade. Ao vê-la caída ao solo, um jovem intelectual que frequentava a referida biblioteca correu para socorrê-la. Percebendo que ela sangrava pela comissura dos lábios, ele a ergueu com a força de seus poderosos braços e…

    Lourenço Cazarré é escritor


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Meia encarnada dura de sangue

    Meia encarnada dura de sangue

    Tudo numa plastada de sangue… tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas coisas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos… como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!…

    “Contrabandistas”, Contos gauchescos 

    João Simões Lopes Neto


    Pois este meu avô, disse o Poeta, dava a alma por um dedo de prosa. Parece que estou a vê-lo, pequeno, não media mais de um metro e meio, sentado na frente da nossa casa ali no Corredor das Tropas, naquela rua que desce da igrejinha de Nossa Senhora da Luz, com a cuia de chimarrão na mão esquerda, chaleira tisnada na direita, catando entre os passantes apressados do fim de tarde alguém que quisesse jogar fora um pouco de conversa.

    Meninos de canelas embarradas, nós estávamos sempre pela volta, aproveitando a última réstia de sol, ou na calçada, brincando de esconde-esconde, ou no campinho, que demarcamos no terreno baldio. Era só juntar dois ou três ao redor de meu avô que interrompíamos a brincadeira. Para escutar.

    Foi com ele que aprendi a dar valor à conversação. Primeiro aquela lengalenga sobre o tempo, se vai chover, ou fazer frio, e depois as trivialidades – como lhe vai a família? Por fim, quando um dos passantes se mostrava decidido a seguir seu caminho, o velho começava um causo.

    white Chevrolet vehicle parked near building during nighttime

    Meu avô era brigadiano, não sei se já te disse. Passou anos e anos ao relento, sozinho, seja na nossa cidade, seja nas cidadezinhas da volta, atravessando madrugadas frias sem ter com quem trocar um só cumprimento. Porque esses vultos esquivos que vemos pelas trevas da noite, no geral, nada querem com um sujeito de farda, nem mesmo trocar um buenas.

    Por isso, creio, ele tinha aquela quase desesperada necessidade de estar sempre conversando. Sim, porque passava a manhã na venda do Corcunda, dando trela aos que entravam e saíam; e depois da sesta se ia para a barbearia do Português repassar os dramas do dia, do passado, da nossa cidade, de todo o Rio Grande.

    Tinha uma história para cada assunto, muitas para vários: creio que o amor e a morte eram seus temas preferidos, e também as catástrofes inexplicáveis desencadeadas por forças desconhecidas, e honra, dignidade e hombridade, lealdade e amizade, os valores que, dizia ele, estavam desaparecendo de nossa cidade e, de resto, do mundo.

    Então, numa dessas tardes, falavam de futebol. Alguém comentava o dinheiro estúpido que estavam pagando a um porto-alegrense cheio de bossa que gostava de dar chapéus, que driblava o marcador até que se esparramasse sobre a grama, e que arrematava enfiando a bola por entre as pernas do goleiro. Um carrasco!

    O meu avô mateava e sacudia a cabeça, descrente, contrariado, e já aceso para pegar a palavra, enquanto o outro seguia discursando, indignado, porque o tal cretino ganhava mais do que a maioria dos trabalhadores honestos, porque com um dinheirão daquele podiam alimentar umas quantas famílias de miseráveis.

    Aí, quando o outro se calou, o meu velho contou a história do crioulo. Sabia muitas histórias de futebol porque ele mesmo havia sido um jogador, um ponta irritante, daqueles pequenos que são como flechas e que, por não terem nem altura nem força, se obrigam a ser mais velozes e matreiros e mais gambeteiros e mais debochados, para irritar os laterais.

    two boy's playing soccer near building during daytime

    O velho dizia que naquele seu tempo, sim, aquilo era um esporte para homens, porque os juízes só marcavam falta se o cara sangrasse, e só expulsavam o agressor quando o outro ficava estirado sobre o barro, desmaiado. E falava de como eles se cuspiam e davam cotoveladas e socos e como gostavam de esfregar as agarradeiras nas canelas dos outros e demais barbaridades.

    Mas voltemos ao rio, deixemos as vertentes. O tal crioulo foi o primeiro jogador profissional da cidade. Não sei quando, mas creio que pelo meio ou pelo final da década de trinta, porque o meu velho contava que por esse tempo, esse sujo tempo em que os atletas começaram a ganhar dinheiro pela sua arte, ele já estava fora dos campos com os joelhos arrebentados.

    Pois o crioulo jogava pelo Grêmio Esportivo Brasil, o time dos negros e mulatos. O campo deles ficava nos banhados da Estação Ferroviária. Aos dezenove anos, era o maior driblador e fazedor de golos da época. Nem alto nem baixo, era magro como a peste, leve como a brisa e dançarino como as borboletas. E frio. Jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Calculista, ele não só queria fazer o golo, como queria também que seu marcador ficasse por terra, e gostava de ver o goleiro esmurrar a grama. Jogava rindo. Conheces o tipo, não é? Não era um sorriso, era mais um arremedo, uma máscara risonha que nada tinha a ver com o que lhe ia pelas entranhas. Ele ria daquele jeito só para enfurecer os adversários, para fazê-los perder a cabeça e começarem a querer matá-lo. Nada pior para o time da gente do que jogadores de cabeça quente. A gente grita que quer sangue – me mata esse filho da puta! – e eles partem para o pau, mas aí o jogador frio dá sempre aquele pulinho para o lado, aquele toque sutil, e ganha a parada.

    Era assim dentro do campo, implacável. Fora, era outra coisa. Um rapaz gentil, tímido, de fala mansa, cerimonioso. Sempre saía do campo de cabeça baixa, como que pedindo desculpas por jogar tanta bola.

    Trabalhava num matadouro. Mas não sei te dizer qual. Ficava para as bandas do Porto. Ele também morava por lá, na ruazinha que corre paralela ao canal e que devia ser naquela época ainda mais triste e suja. Morava com sua mãe, viúva. Durante a semana, gastava o dia dentro daqueles galpões sombrios – iluminados apenas pelo cintilo fugaz dos facões afiados – resvalando pelo chão ensanguentado.

    Era tão hábil com a faca quanto com a bola, dizia o meu avô. O negócio dele era a desossa. Desmanchava um boi em questão de minutos. E não deixava um só fiapo de carne nos ossos. Com a mesma precisão e elegância com que escapava dos coices do adversário, recuando o corpo apenas os milímetros necessários, ele destrinchava os animais.

    Aos domingos brilhava nos campos.

    Depois de perder quatro ou cinco jogos, de enfiada, os dirigentes do Esporte Clube Pelotas começaram a se perguntar se não estariam fazendo uma grande asneira em não aceitar jogadores de cor. E o meu avô dizia: está certo que esses negros são uns mandriões, e eu conheci não mais de sete que gostavam de trabalhar, mas a verdade é que nas safadezas, coisas como serenatas e jogos de bola, eles são bons. Então um inglês, que palpitava muito nas reuniões de diretoria, tanto encheu que acabaram aceitando conversar com o crioulo. Um dos diretores do clube, da família Almeida Guimarães, um cara que tinha tantos contos de réis quanto milhos há numa espiga, disse que cederia ao tal crioulo uma casa velha que tinha lá para os lados da Cerquinha. Se aceitasse o convite, podia morar lá de graça, enquanto servisse ao time.

    Então mandaram alguém falar com o rapaz.

    Moravam ele e a mãe num rancho de paredes vacilantes e teto de palha. Muitas vezes, nas cheias do rio, tinham que botar os trastes nas costas e sair para a casa de uns parentes, nas Terras Altas. Baixava a enchente, lá vinham ele e a mãe de volta. Mas não foi isso que o decidiu.

    Ele demorou muito para aceitar. Não que estivesse negaceando, como fazem esses jogadores de agora para ganhar mais uns trocados. Não! Gastou dois ou três meses pesando os prós e os contras porque sabia que a partir do momento em que concordasse em jogar pelo Pelotas não seria apenas mais um crioulo: seria o crioulo vendido. E o meu avô dizia: a gente de hoje não tem ideia do que se passou pelo coração do coitado, que nem mais dormia direito pensando no que fazer. Naquele tempo o valor dos homens era medido não pelo dinheiro que tinham, mas pela capacidade de manter a palavra empenhada.

    Por uma mulher, decidiu-se.

    Essa negrinha, que trabalhava numa casa de família, no centro da cidade, pesou mais que a honra ou o orgulho que ele pudesse ter. Se ficasse no seu time do coração, teria apenas os aplausos e os abraços de homens tão pobres quanto ele, ou mais, num desses melancólicos finais de tarde de domingo que trazem não só tristeza e neblina mas também a desesperada perspectiva de mais uma semana de trabalho duro.

    Nas incontáveis noites mal dormidas, sonhou com a casa da Cerquinha que já visitara, numa manhã de domingo, sentindo no braço esquerdo dobrado a pressão mais forte dos dedos da namorada, sonhou com a casa e se viu dentro dela, e fora, na soleira, dedilhando o cavaquinho, que ainda não possuía, numa noite de lua. Chegou a escutar o vagido de um anjinho que ainda não nascera. Sonhou, com um misto de orgulho e desvanecimento de proprietário, que passava as trancas nas portas e que se deitava ao lado da mulher, e que adormecia, como um homem normal.

    Aceitou. Aceitou porque se não aceitasse teria de continuar morando naquele casebre. E, como passaria a ocupar com a mulher o único quarto, sua mãe teria de dormir na sala, a sala cheia de goteiras.

    Disse que sim ao terceiro emissário.

    Faltava uma semana para o jogo.

    O tal inglês encarregou-se de espalhar o fato aos jornalistas e eles não pouparam nem tinta nem papel para execrar o mulato, para colocá-lo lado a lado com os flagelos da humanidade: Átila, Solano Lopez e todos aqueles caudilhos argentinos e uruguaios.

    Não teve mais paz. Não por causa dos jornalistas, pois os jornais não chegavam àquele canto da cidade, mas por causa dos risinhos, das piadas e das ofensas pesadas dos colegas de matadouro, mulatos e negros como ele. Esse era o desprezo que lhe dizia respeito.

    Aí ele perdeu a confiança em si mesmo, disse meu avô. Aquela mão que jamais havia tremido agora jogava a faca contra os ossos. E ele que nunca afiara o facão sem ter desmanchado uns três ou quatro animais precisava afiá-lo seguidamente.

    Sentia-se triste e solitário, acabado.

    Tinha o carinho da mãe e os afagos da namorada, mas a vergonha, que era muita e doía tanto, ele não poderia compartilhar com ninguém.

    white and blue soccer ball on green grass field during daytime

    O jogo seria no domingo.

    O acidente deu-se no final da manhã de sábado, quando estavam por fechar. Os outros já tinham saído, mal tocara o sino, mas ele ainda estava lá, sozinho, trabalhando. Não poderia acompanhá-los até o bolicho para a cachaça de todo o sábado porque sabia que não mais tinha mais direito a um lugar na beira do balcão. Não ouviria nem contaria piadas. Nem cantaria aquelas marchinhas. Não mais teria o direito de pedir emprestado o cavaquinho ao dono do boteco. Estava acabado para ele, era um vendido.

    Creio que foi uma lágrima, dizia o meu velho, que causou o acidente. Ele não dominava a faca como antes e aí, no instante em que a lágrima lhe toldou a visão, ele perdeu o comando da mão.

    Estava desossando uma carcaça no chão, como gostava de fazer, sobre a laje ensanguentada. Usava não só as mãos, mas também os pés descalços, para firmar a ossamenta. Quando a faca escorregou, ele não sentiu nada além de uma pequena ardência, quase uma cócega, na parte de dentro do pé esquerdo. A faca escapara e correra ao longo de todo o seu pé, do dedão ao calcanhar, abrindo um talho comprido. No primeiro instante, achou que tinha sido coisa pouca, mas então o sangue começou a manar, grosso, vermelho.

    Sozinho no pavilhão, ele escutava apenas o roçar da vassoura do negro velho que fazia a limpeza do pátio.

    Correu ao seu armário e pegou as botinas. Felizmente tinha vindo com elas. Quero dizer, viera com as botinas que usava nos sábados porque ao levantar, naquela manhã, não se dera conta de que era um homem marcado e que, por isso, não poderia ir para a cachaçada. Calçou-se. Rapidamente acabou o trabalho, sem se preocupar com o fio da faca, sem atentar para as pelancas grudadas nos ossos. Precisava ir embora logo. No vestiário, ao tirar o avental, notou que o sangue já escapava por entre os cadarços. Voltou ao pavilhão, tirou o calçado e verteu o sangue sobre a laje. Observou o ferimento: perdia sangue ainda. Lembrou-se de fazer um torniquete: pegou uma guasca. Tinha prática naquilo, não passava mês sem que alguém se cortasse feio. Ao sair, levava no bolso um pedaço de tripa seca. Já sabia o que teria de fazer. Na calçada, piscou os olhos para a luminosidade baça do dia e saudou o carroceiro que levaria a carne ao Mercado, mas não teve resposta. Aliás, o negro, acintosamente, virou-lhe a cara.

    Foi direto para casa. Almoçou e deitou-se, mas sem tirar as botinas, e manteve o pé sobre a guarda da cama.

    A mãe dele saiu do quarto com a sombrinha pendurada no braço:

    – Por que tu tá desse jeito, com as perna pra cima, se recém almoçaste?

    – Pra descansar os músculos, mãe. Amanhã tem jogo.

    – É, mas isso deve de fazer mal pro estômago. Tem tempo, faz isso mais tarde.

    – A senhora vai sair?

    – Sim. Vou benzer o filhinho da Matilde. O guri anda com a barriga floxa faz uma semana.

    Quando sua mãe saiu, ele calculou que teria meia hora no máximo. Levantou-se, pegou a bilha e verteu água na bacia de latão. Foi depois para baixo da bergamoteira florida, no pátio,

    Lavou o pé. O ferimento já não sangrava. Voltou à sala. Procurou no guarda-louça o caixote de marmelada no qual sua mãe guardava as coisas de costura. Escolheu uma agulha que servia, de furo largo. Pegou debaixo do colchão sua faquinha afiada e com ela tirou um tento da tripa, fino que nem barbante. Meio metro, mais ou menos. Daria. Então costurou o lado do pé, do dedão ao calcanhar. Uma costura bem apertada. Guardou a faca e recolocou a caixa de marmelada no guarda-louça sem portas.

    Calçou as botinas.

    Lembrou-se então da bacia suja debaixo da árvore. Correu até lá. Chegou justamente a tempo de jogar a água em cima do canteiro porque sua mãe já estava entrando pela cozinha. Passou a mão para limpar uns poucos respingos vermelhos.

    – Ué, já tomaste banho? Tão cedo?

    – Não, mãe, eu só lavei as mãos e o rosto.

    – Tu tá meio esquisito, hoje, guri!

    – É, tô preocupado com o jogo de amanhã.

    – É o que eu sempre digo: não tem bicho mais burro que homem. Durante a semana passam se gastando lá no serviço e no fim de semana, que Deus fez pra gente descansar, se metem na gandaia com as sem-vergonhas ou na cachaça. E agora, pra piorar, ainda tem esse tal de jogo de bola. Mas burras mesmo são as mulheres, que nunca deixam de parir outros homens.

    a person laying in bed with their head on a pillow

    Ele deitou-se e afundou num sono pesado, inçado de pesadelos. Sonhou que estava em campo, mas que não conseguia correr porque não tinha mais o pé esquerdo. E pela volta, por trás da cerca, homens riam e debochavam e gritavam: aí, perneta vendido, agora mesmo é que eu quero te ver fazer um golo.

    Foi acordado pela mãe, à tardinha.

    – Tá na hora do banho.

    – Não vou tomar banho hoje, mãe.

    – Ué, por quê? Deste agora pra relaxado? E a tua noiva, o que vai dizer?

    – Não vou até lá, mãe. Tô meio cansado hoje.

    – Não é nada disso, guri. Vai ver que tu brigou com ela! Alguma coisa tu tá tentando me esconder, mas eu vou descobrir porque a mim tu não me engana. Eu te conheço desde que não tinhas dentes e fazias cocô preto. Não te esquece que eu te fiz dentro da minha barriga. Sei tudo de ti, até mais do que tu mesmo. Agora, anda tomar banho antes que eu te meta a vara de marmelo.

    Quase não dormiu naquela noite. Só fechou os olhos quando viu, por entre os postigos, a chegada do sol, que nascia lá para cima, na lomba da Quinze.

    Almoçou cedo e saiu para o estádio. Teve sorte porque um carroceiro lhe ofereceu carona. Era um mulato claro que não parou de falar todo o trajeto. Pedia-lhe golos, muitos golos, porque o negócio era arrebentar com os almofadinhas da Avenida. Foi em silêncio, calado, porque não poderia dizer que faria golos, sim, muitos golos, mas que esses golos seriam para o time dos almofadinhas da Avenida.

    Pediu ao carroceiro que o deixasse a uma quadra do campo. O homem insistiu, queria ter o prazer de levá-lo até o portão. Não! Que parasse ali mesmo. Precisava passar antes na casa da namorada, mentiu.

    Desceu e fez o resto do caminho a pé. Meio às tontas procurou o portão de entrada dos sócios e atletas, onde jamais negro ou mulato algum havia pisado, a não ser os faxineiros, e, embaraçado, teve que dar uma longa explicação ao porteiro, um sujeito de bigodes de pontas reviradas. Estava nisso quando foi abraçado por um senhor muito alto, com jeito de alemão, que o arrastou até os vestiários e gritou para os homens seminus que ali estava o novo companheiro, o grande craque. Procurou um canto de banco, onde estava mais escuro, para tirar a roupa. Tinha vergonha em mostrar sua nudez marrom a todos aqueles brancos. O mesmo sujeito claro voltou, falando alto e gesticulando, e o rapaz demorou a entender que ele queria saber o número do seu pé para lhe dar chuteiras novas. Agradeceu. Disse que jogaria com as suas, velhas, desbeiçadas. O homem dos olhos azuis riu, disse que sim, mas que, pelo menos, era preciso dar um brilho nelas. E ordenou a um negrinho, que estava sentado em sua caixa de engraxate, que lustrasse aquelas chuteiras acalcanhadas.

    gray steel locker room inside the room

    Como se vindo de outro mundo, distante, chegava-lhe aos ouvidos o zunzum do próprio vestiário, marcado aqui e ali por risadas nervosas. Lento, renitente, sem olhar para os lados, envergou a camiseta amarela que desde menino se acostumara a repudiar.

    Percebeu, quando o engraxate ergueu para ele uns grandes olhos cheios de uma luz negra, que o menino tinha visto o enorme talho costurado com tripa. Colocou o pé direito sobre o esquerdo enquanto vestia as meias brancas. E depois permaneceu cabisbaixo enquanto o guri lhe lustrava as chuteiras.

    – Vai doer muito, seu moço.

    – Cala a boca, moleque! Cuida do teu trabalho!

    O menino continuou a lustrar, levantando de quando em quando os olhos para o jogador.

    – Tá pronto, seu moço.

    Então, espantado, ele viu o garoto se abaixar e beijar o bico reluzente da chuteira.

    – Não importa de que lado o senhor vai jogar. O que interessa é que o senhor é que vai fazer os golos.

    Então houve um lampejo, e apenas pelos olhos eles se entenderam: caminhavam contra o vento e o frio em uma interminável procissão de corpos vergados e rostos escuros, um atrás do outro, campo fora, tendo como destino lugar nenhum.

    two pairs orange-and-black Umbro shoes

    O que mais eu lhe posso dizer, meu amigo, perguntava meu avô neste ponto da narrativa. Pouca coisa, respondia ele próprio. Só que o mulato fez uma festa. Marcou três. E olha que os caras bateram nele! Saiu com os olhos escondidos debaixo de inchaços, um talho no supercílio. Apanhou muito dos seus antigos companheiros, mas em momento algum pediu para sair, como fazem esses frescos de hoje em dia. Foi até o apito final. E esbanjando categoria. Parecia um toureiro se esquivando daqueles animais furiosos. E dava chapéus neles, bola pelo meio das pernas então era mato! E os caras chutavam não a bola, ele, e ele só dava de banda, e a chuteira passava. Três golos, sabe o que é isso?

    Foi o último a deixar os vestiários porque não queria que lhe vissem a meia empapada de sangue. Naqueles tempos eles próprios tinham que arranjar quem lavasse o fardamento. Saiu do estádio sem que ninguém, além do engraxate, tivesse descoberto seu segredo.

    E como não queria que mais ninguém soubesse, especialmente sua mãe, foi até a casa onde trabalhava sua namorada e por sobre o muro, no fundo do pátio, entregou a ela a meia encarnada, dura de sangue seco, como uma espécie de dote, penhor, hipoteca.

    Lourenço Cazarré é escritor


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Que Camões nos proteja!

    Que Camões nos proteja!

    Informa-me um amigo português que um jornal daquela terra de navegadores [o Diário de Notícias] vai publicar semanalmente uma edição em “português brasileiro” e que manterá um sítio no qual colocará, todos os dias, notícias de interesse da vasta parcela de brasileiros que por aí vivem.

    Num primeiro momento, leva-se um susto porque se trata de algo que soa estranho. Ou seja, uma empresa noticiosa se propõe a traduzir informações escritas, em tese, na mesma língua.

    Pouco depois, mais calmos, temos que admitir que são grandes as diferenças entre o português europeu e o linguajar brasílico.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    A tradução em si já é um baita pepino. Ao se referirem à quase impossibilidade de verter um texto de uma língua a outra sem que se perca parte do sentido original, sentenciam os inventores da pizza: traduttore, traditore.

    Como seria a coisa entre “dois” idiomas que têm o mesmo nome?

    Vamos por partes, como diria o esquartejador no matadouro.

    Imagino que os dirigentes do jornal certamente fizeram estudos sobre a viabilidade dessa empreitada. Torço para que sejam bem-sucedidos!

    Ocorre-me, de início, que duas das nossas maiores diferenças linguísticas vêm do futebol: a divisão entre “adeptos” e “torcedores” e entre “times” e “equipas”.

    Aliás, por falar no esporte bretão, dele vem grande parte do nosso atual intercâmbio: há incontáveis jogadores brasileiros por aí, enquanto por cá pululam os treinadores lusos.

    Nas vezes em que fui a Portugal costumava frequentar as bancas de revistas porque aqui, em Brasília, sumiram. Melhor dizendo: transformaram-se em lanchonetes.

    Por que ia às bancas? Porque gosto de ler jornais e, em Lisboa, podia comprar vários.

    Aqui os impressos estão virando raridade.

    Recentemente, num voo para o Rio de Janeiro, desfraldei um exemplar de O Globo. Na fila dos que entravam no avião, todas as pessoas com menos de trinta anos me olhavam intrigadas, perguntando-se: para que serve essa imensa bandeira (tabloides aqui são raros) de papel borrado?

    Voltando. Nas minhas passagens por Portugal, sempre pensei que deveria haver um sítio jornalístico para os nossos exilados em Lusitânia, que são multidão. Uns 5 por cento da população local, dizem. É muita gente!

    Na base do puro palpite, acho que esses nativos de Pindorama querem, antes de tudo, notícias da sua “terrinha”.

    Mas não será “terrinha” uma expressão privativa dos filhos do país do bacalhau?

    Os brasileiros também precisam muito de notícias sobre o país no qual vivem, em especial dos órgãos públicos aos quais precisam recorrer no seu dia-a-dia.

    Mas quem é o brasileiro que vive em Portugal?

    Quando por aí passei, pareceu-me que o grupo mais numeroso dos brazucas (assim são chamados aqui os que moram nos Estados Unidos) seria o daqueles que, com menor escolaridade, exercem funções mais modestas.

    Percebi que há também muitas pessoas com mais estudo, saídas da classe média, na maioria jovens, que se lançam como empreendedores ou profissionais liberais.

    Há, ainda, uma ala de pessoas de mais idade, quase sempre aposentadas aqui (seriam reformadas aí), que escolhem viver seus anos outonais sem os muitos sobressaltos das nossas maiores cidades.

    Posso imaginar, por fim, que há ricos também, embora as más línguas digam, por aqui, que esses, na maioria, preferem Miami, a Meca Mundial da Cafonice.

    Traduzo: cafonice é mau gosto extremo.

    Os conterrâneos que encontrei por aí elogiavam, antes de mais nada, o sentimento de segurança. Podiam, em Portugal, flanar pelas ruas, mesmo à noite, sem grandes preocupações.

    Eu também pensava o mesmo. Nos anos de 2016 e 2017, quando fui a Lisboa, sentia-me como se estivesse caminhando na minha cidade (Pelotas, 300 mil habitantes, muitíssimos luso-descendentes) no começo dos anos 1970.

    Retornando à edição brasílica do periódico lusitano: 600 mil pessoas formam um belo público-alvo, como diriam publicitários ou marqueteiros tupiniquins.

    Mas quem serão os tradutores? Tudo nos leva a crer que serão brasileiros conhecedores do idioma de Graciliano Ramos. Não sei se lusos, mesmo tendo residido por muitos anos no Brasil, conseguirão trocar o infinitivo pelo gerúndio.

    a large ornate ceiling with a stained glass window

    É missão dificílima.

    Ouvi alguém (um brasileiro, claro) dizer certa vez:

    – Sempre que leio um texto acadêmico rabiscado em português de Portugal tenho a impressão de estar enfrentando um trabalho escrito originalmente em finlandês e traduzido, depois, por um húngaro.

    Não chego a tanto, mas penso, sem ser íntimo de gramáticas e dicionários, que os imensos Machado de Assis e Eça de Queiroz escreviam em uma língua que parecia a mesma. Hoje, sinto que é considerável a diferença entre as duas escritas (no jornalismo, na literatura).

    Publicar, em Portugal, um jornal para os que nasceram na nação dos sambistas, além de ser uma árdua tarefa, certamente será uma grande diversão.

    Que Camões nos proteja!

    Lourenço Cazarré é um escritor brasileiro


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • A segunda morte de Miguela de Alcazar

    A segunda morte de Miguela de Alcazar


    A primeira publicação de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar ocorreu em meados de 1991, quando um amigo de peladas de futebol de salão do Clube da Imprensa, Vicente Sá, poeta e jornalista da área de Cultura, me convidou para escrever um folhetim para o BsB Letras, suplemento literário de um semanário de distribuição gratuita no Distrito Federal.

    Acho que já tinha uns capítulos escritos, mas não estou certo disso. O fato é que me comprometi a partejar um capítulo de umas quinhentas palavras por semana. E foi o que fiz, metralhando de madrugada num computador pré-histórico que me custou uma boa grana. Título da época: Morte no Brasília Palace.

    O primeiro capítulo saiu em 28 de abril de 1991. Depois, vieram 21 semanas, sem pular uma só, até que no dia 15 de setembro apareceu o derradeiro. Tenho todos esses hoje amarelados fascículos nos meus arquivos implacáveis. Para mostrar aos inimigos, se a isso for desafiado.

    Lourenço Cazarré

    Passaram-se uns dez anos e um dia falei a um amigo, Jorge Schelb, sobre o folhetim. Ele se interessou, quis ler. Passei-lhe então uma cópia. Ele leu, ou mentiu para mim que leu, e me incentivou a recuperar aquela historieta, dando a ela mais altura, largura e profundidade.

    Foi assim que, em 2001, o livro começou a crescer. Trabalhei nele por alguns anos, vitaminando episódios, apimentando diálogos e retocando os personagens. Mas sempre me rindo muito porque A Misteriosa morte de Miguela de Alcazar é, antes de tudo, um livro de humor. Ou dito de outra forma: é uma sátira aos romances policiais.

    Confissão de leitor: durante décadas consumi literatura policialesca. Comecei com o belga Georges Simenon, em 1972, quando comprei, numa promoção da Livraria Mundial, em Pelotas, dez volumes protagonizados pelo detetive Jules Maigret. Depois, li os americanos Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

    Voltando ao Miguela. Em 2009, com o apoio do Fundo de Cultura do Distrito Federal, o livro foi publicado pela editora Bertrand Brasil. Pelo que sei, não teve lá uma vendagem muito boa. Talvez até se possa dizer que foi péssima. Mas a verdade é que o panfleto teve uma boa recepção por parte da crítica. Guardo cópias de várias dessas resenhas positivas. Para mostrar aos inimigos, se isso eles me exigirem.

    Pois bem, rolaram mais alguns anos e lá por 2017 conheci em Lisboa um escritor português, Pedro Almeida Vieira, autor de romances históricos e crónicas que se passam no Brasil (Assim se pariu o Brasil e O profeta do castigo divino). Encontramo-nos no Chiado, ao redor de um bacalhau, Pedro, Enio Squeff e eu. Enio é um artista plástico gaúcho radicado em São Paulo que ilustrou livros meus e do Pedro.

    Edição original em livro de ‘A misteriosa morte de Miguela de Alcazar’, publicada no Brasil em 2009.

    Algum tempo depois, falei para o Pedro sobre A misteriosa morte. Confessei a ele que nunca havia ficado satisfeito com as frases que inventara para o personagem coadjuvante, o lusitano senhor Joaquim Manoel Batota.

    Mal comparando, o Batota, o gerente de um hotel de Brasília, é feito da mesma matéria-prima que Watson, o auxiliar de Sherlock Holmes.

    Aliás, já que falamos do ajudante, não custa nada dizer algumas palavras sobre o principal personagem do livro, Campestre de Campos Campelo, um jovem jornalista gaúcho recém-chegado ao Planalto Central. Anarquista e debochado, é ele quem narra a confusão que ocorre durante um Seminário Internacional de Escritores Policiais, que não se realizou em Brasília em meados dos anos 1970.

    Voltando ao Pedro. Depois de ler o original, ele decidiu a participar da brincadeira. Mais que isso, eu diria que ficou muito entusiasmado diante do desafio de assumir a grave missão de dar à dicção de Batota a parecença de uma fala realmente lusitana. E de plantar, aqui e ali, flores de sarcasmo português pelo meio de um folhetim tupinambá.

    Seguindo. Pode-se dizer, sem medo de errar, que este é também um romance sobre alguns dos muitos sotaques da língua portuguesa. Título da resenha do poderoso O Globo: “Uma divertida homenagem à literatura”.

    Pois muito que bem, todos os escritores que participam do tal Seminário falam português, com diferentes sotaques brasileiros.

    A russa Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáia, por exemplo, fala exatamente como o vigarista cearense – conhecido nos seus anos de degredo na Sibéria – que consertava relógios, no escuro, usando só os cotovelos.

    Primeiro capítulo publicado em 28 de Abril de 1991 no BsB Letras do folhetim então intitulado ‘Morte no Brasília Palace‘.

    Já a inglesa Lady Águeda Christine pratica o mineirês, um jargão no qual a palavra você perde o v. Aliás, os mineiros, quando conversam, ficam o tempo todo girando. “Aí, ela virou pra mim e disse”. “Aí, eu virei pra ela e disse”.

    Já o belga Sim et Nom se socorre do carioquês, dialeto em que os esses deslizam, os erres derrapam e o esse final é trocado pelo x (pronuncia-se doix, treix).

    Vem depois o americano Dax Chamber, conhecedor do gauchês, um linguajar meio espanholado, cheio de metáforas campeiras (quase sempre grosseiras), cujos falantes, em todas as suas frases, metem um bah e um tchê, expressões que não têm significado algum.

    O chinês Foo Li Shi Man fala como um paulistano, ou seja, alguém que chama os outros, o tempo todo, ou de mano ou de meu. Ah, e que pronuncia cinqueinta por ceinto.

    Só agora, passados trinta e tantos anos, vejo que não dei um sotaque específico ao argentino Jorge Luís Bugres. Se o desse, hoje, seria o curitibano, difícil de satirizar porque as pessoas da capital do Paraná pronunciam perfeitamente todas as letras como elas parecem dentro de uma palavra.

    São conhecidas por falarem corretamente a frase “leite quente da dor de dente”, brincadeira que não pode (obviamente) ser reproduzida em um texto (obviamente) impresso.

    Pois bem, agora, durante vinte e duas semanas, se é que a matemática não em engana, Pedro e eu trabalhamos na versão final, que é essa que os leitores do PÁGINA UM tiveram diante dos olhos. Sinceramente, espero que nossos improváveis leitores tenham se divertido tanto quanto nós, ao escrever. Trocando (a trocar) e-mails todas as semanas, fomos afinando a ironia e a zombaria, a mofa e a galhofa. Rindo sozinhos diante do écran (tela) luminescente, destilamos doses de veneno bem maiores que as das edições anteriores.

    Uma das recensões do folhetim policial aquando da sua publicação original em livro.

    Como se sabe, escritores do Brasil gostam de falar mal do seu país tanto quando os portugueses adoram atacar a mítica Terrinha (vide Eça).

    Agora, nos unimos, Pedro eu, para, pela primeira vez na História da Humanidade, apresentar uma novela policialesca escrita por gajos separados por quase oito mil quilômetros de distância. Sim, senhoras e senhores luso-falantes, orgulhem-se: nós saímos na frente. Porque não se sabe de iniciativa semelhante levada à frente por americanos e ingleses, que, como dizia Oscar Wilde, são separados por um oceano e por uma língua.

    Assim como nós, na falta de coisa melhor para fazer, imagino que aqueles que passaram os olhos por essa história deram algumas boas risadas. E, se houve alguém que não soube ou quis apreciar esta obra de finíssimo e sutil lavor, nele daremos, Pedro e eu, como sugeriu Machado de Assis, uns valentes piparotes.


    Leia todos os capítulos de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

  • Eça de Queirós, Rússia e Brasil

    Eça de Queirós, Rússia e Brasil

    Título

    Ecos do Mundo

    Autor

    Eça de Queiroz

    Editora (Edição)

    Editora Carambaia, Brasil (2019)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Um dos maiores escritores da língua portuguesa do século 19 – tinha do outro lado do Atlântico um rival (e adversário?) de idêntico quilate: Machado de Assis -, José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) foi também um formidável cronista que por décadas colaborou com inúmeras publicações de seu país e do Brasil.

    A observação implacável dos fatos, calcada em informações idôneas; a construção de perfis de grandes homens públicos; o esquartejamento impiedoso das idiossincrasias de certas nacionalidades e a análise acurada das tendências políticas e comportamentais de sua época; tudo isso – temperado por uma prosa elegante e uma ironia corrosiva – marca as crônicas jornalísticas do criador de Os Maias e A ilustre casa de Ramires.

    Em 2019, a editora Carambaia lançou no Brasil o livro Ecos do Mundo – reunião de 40 crônicas – que nos permite descobrir quanto o trabalho diplomático de Eça certamente contribuiu para que se tornasse o grande articulista que glosou, como fina inteligência e implacável sarcasmo, os principais acontecimentos do seu tempo.

    Essa obra traz artigos que podemos dividir em quatro grandes blocos. No primeiro, temos oito crônicas que fazem referência ao Brasil ou a brasileiros. No segundo, aparecem oito composições sobre a Inglaterra, país no qual o diplomata morou por 14 anos. No terceiro, há mais oito escritos sobre assuntos da França, onde Eça de Queirós atuou por 12 anos. Finalmente, na quarta parte, vêm 16 escritos sobre 13 nações.

    Golpes de tacape

    Ao final da leitura, a primeira pergunta que pode ocorrer ao leitor dos nossos dias é: como Eça de Queirós – ainda que sob pseudônimo – pode escrever o que escreveu sem perder o emprego no Ministério dos Negócios Estrangeiros?

    Sim, porque é incontável o tanto de ferozes e certeiros golpes de tacape que desfere contra civilizações, países, potentados e culturas. Mesmo quando traça um retrato simpático de alguém, como é o caso do Czar Alexandre III da Rússia, Eça não deixa de ser incisivamente crítico.

    “Ora, o Czar é um autocrata onipotente e de uma onipotência sem igual na história, pelo menos na história da Europa civilizada. Mesmo nas grandes civilizações asiáticas, os soberanos não dispõem de um poder tão incircunstrito”.

    Já a fotografia que Eça faz do mais extenso país do mundo é ainda mais vitriólica: “A Rússia é de fato uma velha casa asiática com uma varanda rasgada sobre a Europa… Um pouco do ar da Europa penetra então pela varanda levando o rumor de nossas ideias, de nossas inovações morais. Mas é um ar que mal passa das grades. E quando as portas da varanda se fecham, só há dentro um oriente antigo e muito estranho, que nós não podemos compreender”

    O livro todo

    A inclinação natural de alguém que escreve um artigo sobre Ecos do Mundo é a de pedir ao editor do jornal (hoje, blog) a mera transcrição dos trechos mais surpreendentes, certeiros e divertidos. Ocorre, porém, que esses belos trechos são tão numerosos que, no fim da conta, melhor seria reproduzir o livro todo, crônica a crônica.

    Vamos aqui nos concentrar principalmente na Rússia – onipresente na mídia mundial desde que há cerca de dois anos desencadeou uma “operação militar especial” para “desnazificar” a Ucrânia – e no Brasil.

    Maior que a Europa

    Comecemos por uma análise que Eça faz do trabalho de um jornalista do Times, de Londres, que escreveu sobre vários países da América do Sul, entre eles o Brasil, do qual traça um retrato favorável.

    Transcreve Eça do jornal britânico: “Doze milhões de homens estão perdidos num Estado que é maior que toda a Europa; a receita pública que é de doze milhões de libras esterlinas é muitos milhões inferior à de Holanda e Bélgica; com uma linha de costas de 4 mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de 2.600 milhas, o Brasil exporta em gêneros a quarta parte menos que o diminuto reino da Bélgica”.

    Mais adiante, o filho de Póvoa do Varzim se refere à Suíça, “que tem dois milhões de habitantes e juntamente os mesmos dois milhões de libras de receita, e vive em condições de prosperidade, de liberdade, de civilização, de intelectualidades bem superiores à tenebrosa Rússia, com seus 80 milhões de libras de receita e os mesmos 80 milhões homens”.

    Populações

    Esses números certamente causam uma grande surpresa nos leitores de hoje porque, como vimos, em 1880 (data da publicação da crônica), a Rússia tinha uma população quase sete vezes maior que a brasileira.

    Porém, enquanto o último censo brasileiro apontou, em 2023, a existência de 203 milhões de habitantes, estima-se que a pátria de Tolstói, Tchecov e Gógol teria agora cerca de 143 milhões de habitantes. Mesmo que possa haver alguma imprecisão nesses indicadores, o certo é em pouco menos de um século e meio a população russa cresceu 80 por cento, enquanto a brasileira multiplicou-se por cerca de 17 vezes. Dito de outra forma: o Brasil tem atualmente a sexta maior população do mundo, enquanto a Rússia fica em nono lugar.

    Aliás, dizem as más línguas que aquilo que os russos mais desejavam, com a guerra que desencadearam em 2022, era incorporar à sua estatística mais 43 milhões de cidadãos (mulheres, crianças e homens ucranianos).

    Economias 

    Ao longo desse tempo, a posição das duas economias também se alterou radicalmente. Nos anos 80 do século 19, a produção russa de riquezas era quase sete vezes maior que a brasileira. Hoje, o Brasil, nona maior economia do mundo, tem um PIB de 2,1 trilhões de dólares, ao mesmo tempo em que a Rússia, a décima-primeira, produz o equivalente a 1,8 trilhão de dólares

    Se nós, brasileiros, temos muitas reclamações quanto ao desempenho do nosso país, que jamais cresce no ritmo que desejamos e consideramos possível, o que podem pensar os russos da sua própria nação?

    O czar mujique

    Eça dedica à Rússia dois longos artigos. No primeiro deles esboça um até generoso retrato do Czar Alexandre III, conservador empedernido que pôs abaixo todas as iniciativas modernizadoras seu pai, Alexandre II, combateu qualquer influência vinda da Europa e agarrou-se firmemente à fímbria do manto da Igreja Ortodoxa.

    Nesse texto, Eça revela que o grande (1m90) Alexandre III preferia a vida familiar à da Corte, veraneava na pacata Dinamarca e pouco frequentava São Petersburgo por medo de seu explodido por uma bomba, como seu pai.

    “Do mujique tinha a robustez enorme e malfeita, o andar bovino, o olhar cismador. Os seus prazeres eram os trabalhos rudes dos homens do campo, em luta com a natureza áspera – desbastar mato, derrubar árvores e rachar lenha”. E, mais adiante, crava um prego: “O imperador substituía a pequenez do gênio pela imensidade da aplicação”.

    Guerras e roubalheiras

    Num dos artigos mais extensos do livro – na verdade, a reunião de seis crônicas escritas entre abril de 1877 e março de 1878, intitulado “Rússia e Turquia” – Eça de Queirós analisa a guerra entre aquelas duas nações.

    Sobram alfinetadas para os dois países em conflito, mas as mais corrosivas são às destinadas aos russos.

    “Outros atos desagradáveis têm sido praticados no exército russo; assim, o comissário-geral dos fornecimentos acaba de ser fuzilado sem processo. Esse funcionário estimável introduziu na farinha uma quantidade de cal que realmente não era possível deixar de lhe meter algumas balas no peito. Uma certa quantidade de cal na farinha, como uma certa quantidade de pau campeche no vinho, são procedimentos razoáveis que dão honra, grandes proveitos e ordinariamente uma condecoração. Mas uma tal porção de cal, que torna a farinha mais própria para pintar paredes do que para fazer pão, é realmente abusivo, e o conselho de guerra foi apenas justo dando àquele funcionário uma disponibilidade… na eternidade”.

    E acrescenta: “As falsificações dos comissários, a vergonhosa qualidade das rações, a insuficiência dos socorros sanitários, a desorganização das ambulâncias, das pagadorias, de tudo; os hospitais apinhados, a imbecilidade visível dos generais – não são condições para aumentar o respeito pelo regime autocrático”

    Talvez relinchando

    A crônica mais hilariante, sem dúvida, vem no bloco brasileiro. Seu título: “Aos estudantes do Brasil: sobre o caso que deles conta Madame Sarah Bernhardt”.

    Deus poupou a divina Sarah (1844-1923) do aprendizado do português porque, caso tivesse lido essa crônica de Eça no original, certamente teria sentido uma forte inclinação para o cometimento de um ato extremado, como o de beber um frasco de formicida. Diretamente no gargalo.

    A grande atriz concedeu uma entrevista tão extensa quanto imodesta ao Fígaro que seu título, segundo Eça, deveria ser: “História da minha missão e da minha influência civilizadora na América do Norte e do Sul“.

    Nela, candidamente, Madame Sarah relata suas viagens pelo mundo. Diz que na sua passagem pelo Canadá “o meu trenó andava seguido e acompanhado por todos os senadores e deputados”. O escritor lusitano deita e rola: “E bem podemos, pois, pensar que as duas câmaras eletivas seguiam Madame Bernhardt funcionando, providas do seu presidente e dos secretários, e da tribuna, e do copo de água…”

    Madame Sarah passa também pela Austrália, onde morre, no palco, em quase todas as peças que interpretava. Registra o português: “De tal sorte que se ela não cessasse de morrer… a Austrália seria hoje uma província da França… onde o último inglês estaria comendo o último canguru à sombra do último eucalipto”.

    Mas o melhor de sua graça zombeteira ele dedica aos brasileiros. Relata dona Sarah que, na sua visita à terra dos tupinambás, “os estudantes arrancavam os sabres e distribuíam cutiladas, porque os não deixavam desengatar os cavalos, meter os ombros aos varais e puxar eles a minha carruagem”.

    Eça descreve o episódio: fecha o tempo na frente do teatro, apresenta-se um policial que quer evitar o ridículo pátrio, mas é ferido pelos estudantes. A esses estudantes o autor se dirige no fecho do artigo: “… depois de duras cutiladas naqueles que vos queriam salvar do humilhante serviço, desengataste as éguas de Sarah, lançaste aos ombros democráticos os tirantes de Sarah, e puxastes a caleche de Sarah, trotando, talvez relinchando!”.

  • Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!


    Se há alguma novidade na relação entre Brasil e Portugal nesses últimos duzentos anos – depois que aquele jovem fidalgo dado a aventuras galantes resolveu criar uma nova nação – é a inversão do fluxo dos viajantes.

    Desde a incursão pioneira de Pedro Álvares Cabral, os lusitanos nunca deixaram de viajar à Terra de Santa Cruz. Vieram aos milhões. As últimas levas significativas talvez sejam as decorrentes da descolonização da África no começos dos anos 1970.  

    Porém, o que se nota agora, nos últimos dez ou vinte anos, é a alteração radical da corrente migratória.

    Existem números provando isso.

    As cidadanias lusitanas concedidas a brasileiros pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros nos últimos anos são somadas em dezenas de milhares.

    Todo ano, incontáveis jovens brasileiros chegam a Portugal em busca de empregos melhor remunerados – e olha que os salários por aí, sabemos todos, não são lá essa maravilha!

    Também desembarcam aposentados que recebem pensões que, mesmo depois de transformadas em euros, ainda podem ser consideradas razoáveis.

    Por fim, aparecem os casais com filhos em idade escolar que pensam economizar um belo dinheirinho todo mês se colocarem os filhos nas escolas públicas portuguesas.

    Para certos brasileiros, em especial os de classe média que perdem renda, ser obrigado a matricular as crianças em colégios do Governo é algo tão assustador quanto cair na malha fina do Imposto de Renda.

    Pois bem, arrematando: estimativas apontam que os brasileiros residentes em Portugal, atualmente, seriam entre 180 e 200 mil.

    O direito de ir e vir

    São muitas as explicações para essa nossa hoje fortíssima inclinação por voltar à viver na Terrinha dos ancestrais. Uma delas, bastante singela, é o fato de que em Portugal se pode sair à noite sem medo de ser assaltado ou assassinado.

    Em Lisboa ou no Porto, brasileiros oriundos de grandes e médias cidades podem desfrutar de um valor que perderam nos anos 1960: o simples, velho e bom direito de ir e vir após a queda do sol.

    Mas onde, como e por quais motivos a coisa começou a desandar para esta nação gigantesca que, nos diziam orgulhosos os professores primários dos anos 1950 e 60, logo seria o país do futuro?

    São muitas as razões, sejam elas alevantadas por acadêmicos de capelo e beca ou por cachaceiros de botequim. Vejamos umas poucas.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    População

    Comecemos pela explosão demográfica.

    A população brasileira saltou de 70 milhões no final da década de 1960 para 143 milhões em 1991. Mais que duplicou em três décadas, fato que certamente não se repetiu em nenhum outro país.

    Diante da grandiosidade desse número só resta perguntar em português claro e direto: Foi possível construir escolas e hospitais para tanta gente em tão curto espaço de tempo?

    A ocupação das cidades

    Paralelamente à bomba demográfica, Pindorama registrou outro fenômeno social igualmente devastador e também de dimensões bíblicas: a urbanização acelerada.

    A população vivendo nas cidades brasileiras, que era de apenas 12 milhões de almas (31 por cento do total) em 1940, saltou para cerca de 137 milhões (81 por cento da soma) no ano 2000. Para simplificar, decuplicou em sessenta anos.

    Logo, imensos círculos de moradias precárias se estreitaram em redor das metrópoles regionais e das cidades de médio porte, estrangulando-as.

    Daí decorreram, dizem os estudiosos, a desorganização das cidades, o trânsito caótico, a poluição da água e do solo e a violência desembestada.

    De novo, aqui, podemos indagar: Conseguiriam os nossos governantes, mesmo que dotados de poderes mágicos, acomodar a avalanche humana que nos chegava dos campos?

    aerial view of green field and city during daytime

    Corrupção e incompetência

    A bomba demográfica e a urbanização descontrolada, como vimos, podem ser dimensionadas. Há, porém, outros fenômenos que não podem ser exatamente delimitados porque ocorrem nas brechas e desvãos da administração pública. Como, por exemplo, corrupção e incompetência.

    Nós, brasileiros, sempre críticos, temos a tendência de achar que a nossa corrupção é a maior e a mais sofisticada do mundo – ler noticiário recente – e que a nossa incompetência gerencial não têm similares no vasto universo.

    Pode ser que sim, pode ser que não.

    Os portugueses, por exemplo, em tempos remotos, conheceram muito bem a corrupção, quando ela grassava à solta nas muitas colônias daquele império que se estendia por quase todo o globo.

    O voo da penosa

    Dizem os economistas brasileiros que há cerca de meio século o país não cresce de forma sustentada. A nossa atividade econômica caracteriza-se pelos voos de galinha. Ou seja, decola por um aninho ou dois para aterrissar logo a seguir, dando com o bico no chão e perdendo penas, em mais uma recessão.

    Isso quando a penosa não voa para trás.

    Detalhe sórdido: esses voos galináceos não são propriedade de um só grupo político, não. Ocorreram tanto nos desgovernos de direita quanto nos de esquerda.

    Mas será mesmo que o Brasil deu efetivamente com os burros na água? Há exemplos internacionais mostrando isso?

    shallow focus photograph of black and gray compass

    Espanha e Coreia

    Para demonstrar o nosso insucesso econômico nos últimos 50 anos, alguns analistas recorrem aos exemplos de Espanha e Coreia do Sul.

    Em meados da década de 1970, cidadãos do Brasil, Coreia e Espanha tinham rendas médias semelhantes. Hoje, coreanos e espanhóis dispõem de ingressos duas ou três vezes maiores que o nosso.

    Ações governamentais concretas explicariam essas diferentes performances. A Coreia, por exemplo, revolucionou seu sistema de ensino e criou grandes grupos industriais que hoje atuam – em dimensão planetária – na fronteira tecnológica.

    Já a Espanha ingressou na endinheirada Comunidade Europeia e, com os generosos fundos comunitários, renovou sua infraestrutura e melhorou todos os seus indicadores sociais. Como fez Portugal.

    O Brasil, isolado numa América Latinha que parece ter feito uma opção preferencial pela imobilidade, continuou a correr. Mas parado no mesmo lugar.

    É por isso que, hoje, comentam economistas impiedosos, exporta um transatlântico carregado com soja em troca de uma canoinha com computadores.

    Que falem os imigrantes

    Mais interessante que debater tema tão surrado – por que o gigante permanece deitado no berço esplêndido? –, seria tentar adivinhar o que diriam os milhões de portugueses que, nesses séculos todos, se transferiram para o Brasil.

    O que nos contariam os mais modestos participantes – quase sempre muitos jovens – dessa epopeia?

    O que esperavam encontrar na imensa terra selvagem e desconhecida para onde seguiam?

    Como era viajar mais de um mês – vendo só água e horizonte – sobre o mar do solerte Ulisses?

    O que mais afligia aqueles que se viam obrigados a deixar a terra áspera e dura que os partejou, a língua de todo o dia e os parentes amados?

    woman in purple and white floral shirt sitting on white bed

    Alfredo e Henriqueta

    No meio desse povo retirante, estavam meus avós maternos: Alfredo e Henriqueta, nascidos na aldeia de Santiago de Piães, no Concelho de Cinfães.

    Na primeira década de 1900, separadamente, eles desembarcaram em uma cidade do extremo Sul brasileiro, então muito rica e industrializada, chamada Pelotas, que hoje tem 300 mil habitantes.

    Lá, ajudados por conterrâneos já instalados, deram início à vidinha. Trabalhavam duro. Meu avô era padeiro, tarefa que lhe consumia grande parte da noite, mas também mantinha uma grande horta onde – durante o dia – plantava hortaliças para o consumo da família e para venda aos vizinhos. Minha avó, considerada florista de boa mão, enfeitava casamentos e batizados para reforçar o caixa da família.

    Com rédeas curtas e pancadas, educaram os rebentos para que não se tornassem vadios ou debochados. As recriminações e advertências, obviamente, vinham no mavioso linguajar dos lusos. Criaram seis filhotes. Outros três morreram na infância, como era comum na época.

    As crianças só conseguiram atravessar as cinco séries do Curso Primário, mas paralelamente tiveram aulas de Mecânica, Contabilidade e Corte e Costura. Tornaram-se mecânicos, costureiras, comerciárias e operárias.

    Alguns dos netos chegariam à Universidade nos 1970.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    O silêncio

    Eram gente de pouco palavrório.

    Minha avó só relatava às filhas brasileiras, para assustá-las, o medo imenso que sentia, quando pequenina, caminhava sozinha por escarpas nevadas ouvindo bem próximos os uivos dos lobos.

    Nem ela nem meu avô falavam dos parentes que haviam abandonado na Terrinha. Vô Alfredo deixou para trás mãe e três irmãs.

    Uma só frase

    Minha avó portuguesa ficou paralítica aos 47 anos e penou por mais de duas décadas sobre cadeiras e camas até que a bondosa Velha-com-a-foice veio resgatá-la deste Vale.

    Meu avô português, de bigodes de pontas retorcidas, olhos verdes e vasta e lustrosa careca, morreu aos 57 anos, meses antes do meu nascimento.

    Da cantante língua lusitana só me ficou uma frase, dita e repetida por minha avó.

    Na penumbrosa saleta da casinha de madeira onde morava, presa à cadeira de balanço, vó Henriqueta não podia me impedir – guri irrequieto de seis ou sete anos – de dar incontáveis saltos mortais no sofá de molas arrebentadas.

    walking boy wearing blue denim jacket under the bridge

    Contrariada, porque era uma velha muito brava, que nunca fizera um só carinho nos seus filhos machos ou beijado suas filhas fêmeas, resmungava:

    – Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Assim, neste momento, enquanto rabisco sobre esses tais duzentos anos, a imagem mais forte que me vem à mente é a da minha avó aleijada, com a mão esquerda torcida como a garra de um pássaro contra o peito seco, me mirando com seus frios olhos cinzentos e resmungando com o sotaque de Maria Lionça:

    – Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas, A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e A longa migração do temível tubarão branco


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.