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    José Rodrigues Miguéis


    Como alguns outros grandes nomes da nossa literatura, nascidos entre finais do século XIX e os primeiros anos do século passado, José Rodrigues Miguéis (1901-1980) é, muitas vezes, esquecido, nos panoramas histórico-culturais que trabalham, quase sempre, numa busca de método e compreensão, por agrupamentos periodológicos, ou mal entendido (ou mesmo mal-lido, no sentido bloomiano do termo), na sua postura ideológica e crítica, segundo inserções e valorizações apologéticas que o lêem numa singularidade mitificante de excepcionalidade exemplar.

    Quanto a esses aspectos, podemos dizer que emparelha, quase completamente, com dois dos vultos mais importantes da nossa literatura, seus contemporâneos: Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro. O que os poderá unir, no sentido positivo, é um encontro nem sempre harmonioso, em torno da Seara Nova e, em sentido negativo, a tendência para se manterem esquivos a grupos e movimentos.

    José Rodrigues Miguéis (1901-1980)

    Com eles emparceiram também, por esta última razão, outros nomes contemporâneos, como José Gomes Ferreira e Irene Lisboa, que gravitam, desenquadradamente, em torno de enquadramentos que marcaram a época – sobretudo o segundo modernismo, o da Presença, e o neo-realismo, mas também o naturalismo, o primeiro modernismo e mesmo o surrealismo.

    Na sexta edição da História da Literatura Portuguesa de que é co-autor, juntamente com António José Saraiva, Óscar Lopes considera Miguéis o “ficcionista mais importante daquilo que designamos por realismo ético” (s/d [196-], 1058).

    Caracterizando e historiando esse tipo de realismo, diz o autor, no mesmo texto, que os autores que inclui nesse grupo deveriam, por nascimento, “aproximar-se da geração presencista […]; mas devido a condições óbvias que os isolaram ou inibiram no decénio de 30, a sua obra mais significativa coincide com o advento do neo-realismo e está condicionada, se não directamente por ele, quando menos pelos factores históricos que lhe(s) são comuns” (s/d: 1057).

    Primeira obra de Miguéis, publicada em 1932.

    Esta oscilação de pendores, entre um esteticismo modernista e uma moral de intervenção social, tê-los-á levado a uma busca de unidade “entre certos valores estéticos e certos valores éticos”, atreves de uma prática literária que Óscar Lopes designa por “realismo ético”, o qual se demarca de um “certo introspectivismo, certo metafisicismo grandiloquente alternativos em Presença”, por um lado “e, por outro lado,” do “neo-realismo, que encara as relações humanas como obedecendo a leis objectivas, consistindo a superação humana em delas se aperceber e tirar partido”, para se constituir como “um realismo social, em que o indivíduo figura, não como inatamente singular, nem como um modo transitório do Adão universal, mas como uma singularidade circunstancial e evolutiva” manifestando-se pela “afirmação de uma lei moral subjectiva e oposta à lei objectivamente histórico-sociológica” (pp. 1057-1058).

    Repare-se que este é um texto escrito numa época em que era difícil falar de “certas coisas” em Portugal. Não era muito viável um professor de liceu de então, que Óscar Lopes era, elaborar explicações muito extensas e completas sobre o que era o neo-realismo, como é que se poderia colocar no quadro da cultura e do conhecimento, do ponto de vista ideológico, aquilo a que ele chamava o “realismo ético”, pois teria de se evocar um paradigma marxista, para lhe poder contrapor um kantismo ou um neokantismo, assim como explicar mais miudamente de que modo é que modernismo era psicologista e metafísico em oposição a perspectivas sobre o homem mais atentas às constantes materiais, e, em suma, os paradigmas lukacsianos do “modernismo” e do “realismo crítico” se opunham ou se articulavam com o de “realismo socialista”.

    Assim, o ensombramento de alguma dúvida quanto à dimensão axiológica recai sobre as suas primeiras novelas, Páscoa Feliz de 1932, e Saudades para Dona Genciana de 1957 (depois recolhido em Léah – 1958), produção que, no entender de Óscar Lopes, “pode lisonjear o culto, então literariamente em moda, do acto gratuito dostoievskiano, numa apetência de crime-e-remorso que por fim aliena o protagonista de uma verdadeira responsabilidade” (p.1059).

    De facto, tal apreciação parece aplicar-se perfeitamente a uma personagem como o narrador de Saudades…, quando reflecte:

    “[…] a vida nada me oferecia além do Protesto. À falta de melhor enveredei resolutamente pelos meandros da Acracia. (O termo soava-me melhor do que Anarquismo.) Destituído de qualquer esperança de destino pessoal, sonhava pulverizar o nada em que vivia. […] Li com fervor Hamon, Jean Grave,  Kropotkine e Bakunine […]. Mas aborrecia os utopistas, os socialistas, os comunistas, todos os que pretendiam reorganizar a sociedade em bases novas […]. Sonhava sobretudo com o amor livre: uma revolução que desse a cada homem o direito de possuir a fêmea que lhe apetecesse e quando lhe apetecesse” (1968: 215-216).

    É nesse quadro que Uma aventura Inquietante, por exemplo, é considerado, muitas vezes, um romance que aproveita algumas das regras da narrativa policial para, quase a jeito de paródia, propor um novo horizonte ético, instaurando uma viragem no sistema de valores convocado segundo o qual toda a acção humana é julgada e responsabilizada face à realidade histórica, mesmo quando a referência subjacente é disfarçada ou surge sob evocações quase alegóricas.

    Cena do filme Saudades para Dona Genciana, adaptação do romance de Miguéis, realizado por Eduardo Geada e protagonizado por Virgilio Castelo e Rita Ribeiro.

    É desse modo, por exemplo, que muitas realidades belgas, no romance acima citado, lembram as portuguesas, ou o milagre da aparição virgem mãe de Cristo aos pastorinhos se realiza numa povoação chamada Meca, de um país que tem como capital Lisboa, mas onde os indivíduos que se movimentam para o “28 de Maio” e “fundam” o Estado Novo levam nomes enigmáticos ou são designados por iniciais, sobre as quais os exegetas se pronunciam interminavelmente, em O Milagre segundo Salomé.

    Numa edição posterior da obra já acima referida, Óscar Lopes reformula de modo curioso o horizonte crítico da recepção literária de Miguéis. Em boa parte, a reformulação deve-se ao desaparecimento da vigilância impendente sobre a dimensão ideológica e a referência política de todos os discursos, incluindo os culturais.

    Tendo acabado a censura, é possível apresentar o quadro da emergência e evolução do autor de Léah tendo em conta as coordenadas político sociais com as quais o seu discurso se articula, a partir do sindicalismo amplo de um órgão de comunicação social como A Batalha, em que pontificam vultos como Vitorino Nemésio e José Régio, e uma publicação eivada da mais ousada vontade de vanguardismo ideológico como a Seara Nova.

    Uma aventura inquietante, romance publicado em 1958.

    Não só é registada, agora, a sua crítica aos seareiros, pela “falta de conexão com qualquer movimento organizado de massas” que eles revelam, como é assinalado positivamente o seu afastamento, em 1931, “dos presencistas, com que também polemizou numa linha precursora do neo-realismo” e louvado o seu empenho social na “organização democrática de trabalhadores emigrados” nos EUA (cf. Saraiva e O.Lopes, 1996: 1027).

    Ao reavaliar, oportunamente, a sua obra, tendo em conta as publicações mais tardias, Óscar Lopes, nesta última edição da História de que foi co-autor (exclusivo responsável pela época em que se insere Miguéis, como nos informa a nota da página do registo do ISBN, patente na 17ª edição), considera O Milagre Segundo Salomé “uma simples sátira, à clef, das condições do colapso da 1ª República”, minimizando-o, quanto à preocupação ideológica e social por comparação com as suas restantes obras posteriores a Saudades para Dona Genciana.

    Ora, esta avaliação, do ponto de vista da história literária, não é consonante com a fortuna que algumas obras do autor de Páscoa Feliz conheceram recentemente. Efectivamente, pelo que se pode verificar nos comentários que em diversos sítios da rede aparecem sobre o autor e a sua obra, o interesse maior tem recaído, sobretudo, em O Milagre Segundo Salomé e, logo a seguir, em Saudades para Dona Genciana.

    Pelo que se percebe dos próprios comentários, essa fortuna recente deve-se, essencialmente, às adaptações que Mário Barroso e Eduardo Geada fizeram, respectivamente, das duas obras acima citadas. Diga-se, desde já, que o primeiro título, que podemos considerar a derradeira obra publicada pelo autor (há outras, mas são póstumas), tem sido o que maiores atenções têm merecido, dos leitores e espectadores que praticam crítica e análise dessas práticas expressivas ou artísticas, da parte dos quais têm surgido mesmo abordagens que equacionam a relação entre o literário e o cinematográfico bem como a proporia questão da adaptação.

    Para arrumar com algum simplismo uma questão que, a ser tratada, teria de ser desenvolvida, especificamente, noutro discurso, seguindo outro fio de interesses e atenções, pode dizer-se que a adaptação de Geada mereceu menos atenção (e, até, acolhimento) em grande parte porque os tempos eram outros, o olhar sobre o relacionamento interartístico era menos informado e, por isso, menos tolerante, razão pela qual o filme, ao qual não falta alguma grandeza e dignidade pela perturbação artística que convoca, acabou por ir sendo esquecido e, de algum modo, eclipsando o texto literário do qual pretendeu ser, entre outras coisas, uma leitura e uma resposta na continuidade cultural.

    Sobre a fortuna cultural que o cinema veio trazer ao último romance publicado por Miguéis, pode servir-nos de exemplo o resumo que Edimara Lisboa Aguiar faz para o trabalho que realizou sobre a adaptação feita por Mário Barroso:     

    O milagre segundo Salomé, publicado em 1975, foi adaptado ao cinema por Mário Barroso, tendo como protagonistas Ana Barroso e Nicolau Breyner.

     “O presente trabalho propõe a leitura da história a partir da literatura relida pelo cinema como questão relevante para se compreender o fascínio do espectador contemporâneo pelos filmes de época. Para isso, analisaremos a ficcionalização das aparições em Fátima por José Rodrigues Miguéis em seu romance O Milagre Segundo Salomée sua reordenação pela adaptação cinematográfica realizada por Mário Barroso” (2010: 305).

    Não só o romance é lembrado a partir do filme, que se apresenta como adaptação, como se entende a prática de adaptação como leitura, prática de crítica e comentário que, duas décadas antes, não era tão comum. O que, nas observações de alguns críticos do filme de Geada, eram reservas ao modo como a obra cinematográfica perdia o texto literário, as suas referências e a sua atmosfera, transforma-se, anos mais tarde, nas apreciações de como as diferenças são culturalmente significativas, pedindo-se ao filme que seja apenas a expressão conforme das suas possibilidades e das suas vontades de compreensão, independentemente da qualidade ser ou não reconhecida à obra actualizadora.

    É o que podemos verificar, por exemplo, nas afirmações de Diana Marlene Soares do Couto, feitas na sua dissertação de mestrado, apresentada à Universidade de Aveiro em 2009, sob o título O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros entre Miguéis e Barroso:

    “Consideramos que o filme foi uma interpretação livre do romance – Mário Barroso di-lo explicitamente –. Quantas vezes, na análise do filme, não demos por nós a pensar que “esta não é a Salomé”, ou “esta atitude nunca poderia ser tomada por Gabriel”… Isto apenas significa que, como já tivemos oportunidade de referir, o romance nos envolveu mais, nos conquistou, nos despertou a imaginação, nos fez viajar, pela estrutura, pelas linhas, pelas palavras… vivemos revoltas militares e políticas, apaixonámo-nos pelas personagens, pelos espaços, pelos meios envolventes, pela intriga, pela acção… fomos cativados pela eloquência, pelo estilo, pelo pormenor, pelo sarcasmo, pela ironia de José Rodrigues Miguéis. /O filme, apesar de ter sido uma interpretação livre de Mário Barroso, permite que coloquemos rostos às personagens e houve casos em que isso foi feito com sucesso.

    Com efeito, actores como Nicolau Breyner, Paulo Pires, Ana Bandeira, Ricardo Pereira vieram enaltecer José Rodrigues Miguéis e a sua obra O Milagre Segundo Salomé. Mário Barroso diz-nos que não sabe por que enveredou por esse desenlace, que não consegue encontrar nenhuma explicação, queremos crer que a razão não tem importância, que basta ter gostado do livro e ter resolvido fazer reviver uma obra que permanecia esquecida, que pouca gente conhecia. Ler o livro e ver o filme, um cruzamento com um só objectivo: O Milagre Segundo Salomé”(2009: 174).

    Não será possível encontrar todos os motivos que terão levado Carlos Saboga, argumentista do filme, a estruturar o seu argumento ou guião literário[1], muito provavelmente em estrita colaboração com Mário Barroso, da forma que o fez. Restará saber se, do filme, existe um registo equivalente ao que, na nota anterior, designámos por guião cinematográfico, segundo a terminologia proposta pelos mestres de tal matéria. 

    Idealizado na década de 30, Miguéis apenas viria a concluir este romance, em dois volumes, na década de 70 do século XX:

    Que o realizador toma as suas liberdades em relação ao argumento, não há dúvida. Os primeiros planos do filme, que assumimos como sendo uma sequência pré-diegética, integrável ainda no discurso do genérico, colam-se à sequência proposta pelo pré-texto verbal, formando uma espécie de prolepse em relação ao incipit do argumento literário. Procurando evitar a distorção interpretativa por unilateralidade subjectivizante, preferimos apresentar a sequência segundo as palavras que Diana Couto usa na sua tese:

     “Logo depois do título, um plano de conjunto relâmpago, em plongée, de três pastorinhos num terreno ermo, em estado de veneração, de joelhos a benzerem-se e a olharem para cima. Associamos logo estas três personagens, um rapaz e duas raparigas, aos três pastorinhos de Fátima. O efeito é esmagador: imaginamos logo que quem está no plano superior é a Nossa Senhora. Ora, eis que nos aparece logo, de facto, em contre-plongée, uma figura feminina vestida de uma capa azul claro, cobrindo-lhe também a cabeça, que, por estar contra o sol, se torna quase imperceptível, não sendo, pois, possível delinear-lhe os traços do rosto. O Milagre aparece logo na abertura do filme, como se, em forma de preâmbulo, pretendesse dar já uma informação ao espectador, como se quisesse que esta imagem da Aparição não saísse mais da sua memória” (2009: 119).

    Só depois aparece o “agora” – “Lisboa, por volta de 1917” – anunciado nas primeiras linhas do argumento literário, embora o sistema audiovisual permita acrescentar o repicar do sino ao texto que não o assinala. “A procissão de Santa Maria Madalena pela paz e pela redenção das meretrizes” (Saboga, s/d: 2) é o que surge, no filme, como sinédoque, num rosto de mulher velada, num primeiro plano/enquadramento (P1) como primeiro plano da sequência (P2) que depois de desvela, em planos na linha de profundidade (P3) nos planos sequenciais posteriores[2], aparecendo, como imagem estatuária, em tamanho natural, enquadrada no conjunto de devotos, fiéis e acompanhantes.

    É claro que este começo, em que uma prolepse anuncia, quase em genérico, o acontecimento que será a grande peripécia a partir da qual a acção dramática se intensifica, arrasta consequências para a dimensão temática do filme: propõe a questão religiosa, toda a dimensão cultural, ideológica e simbólica que o milagre arrasta, para o centro dominante da acção posta em cena.

    Assim, o actuar das personagens, quer na dimensão pública do campo, da rua, do salão e doutros espaços de convívio, quer na privada, dos actos íntimos e das paixões, aparece francamente sobredeterminada pela dimensão da crença ou mesmo do arrebatamento fanático. É verdade que o título da obra, que o filme importa integralmente do livro, quase o único acto em que lhe é integralmente “fiel”, pressupunha uma tematização em que a dimensão da religiosidade se poderia entender como dominante.

    A posição retórica do título pressupõe esse predomínio macroestrutural, de facto, mas o romance de Miguéis, de algum modo, joga com o efeito resultante dessa pressuposição em oposição aos elementos da narrativa que, tendo nela uma presença semântica e ideológica muito poderosa, manifestam uma apenas uma fraca relação com o sagrado ou uma vaga dependência da crença.

    Léah integra um conjunto de contos e novelas, publicado em 1958.

    De facto, é bastante curioso que, de um modo geral, as personagens do romance de Miguéis, incluindo a própria protagonista, crismada (para não dizer “carismada”) Salomé, muito profanamente (para não dizer sacrilegamente), nunca, ou quase nunca, (Salomé tem alguns rebates de religiosidade, depois do incidente traumático que a transformou em origem do milagre, sem que disso se apercebesse), se manifestam crentes ou preocupados com o sagrado. É claro que o filme, ao dramatizar apenas uma parte da acção que o romance narra, para obter maior coesão e concentração da acção, tem de propor a sua “leitura” dessa dimensão ideológica da temática presente na narrativa literária.

    Por isso, a dimensão ritual da religião, destacada logo nas primeiras imagens, emerge como demonstração de que a crença existe muito mais pela exteriorização histriónica do que pela adesão profunda das personagens.

    No plano da organização da narrativa como sequencialidade de acções encadeadas, o filme respeita, em geral, a ordem cronológica da apresentação dos factos, em sucessividade, pela instância narradora. É claro que alguns aspectos iterativos do romance, que Miguéis apresenta como ocorrências da vivência de rotina do casal Zambujeira/Salomé, quer em privado quer em público,  nomeadamente nos convívios de que são anfitriões, de onde resulta uma das mais sumptuosas e mais bem sucedidas sequências do filme, bastante longa, contendo, ela própria várias cenas ou sequências menores, em que se apresenta uma amostra da melhor sociedade, numa recepção que Cerqueira (Zambujeira, no romance) dá, em grande parte para apresentar Salomé, sua amante inteiramente assumida.

    Concentrada a acção num reduto temporal muito menos amplo do que o que se patenteia no romance, o filme refaz a ordem segundo a qual alguns acontecimentos se desenrolam, a relação de Zambujeira com Salomé acaba por ficar menos desenvolvida, coexistindo as aproximações entre Gabriel e Salomé com a continuação da relação que a protagonista mantinha com Cerqueira, o que no romance não acontece.

    O enredo dramático adensa-se, deste modo, na obra cinematográfica, de tal modo que aí se inverte o “final feliz” presente no romance, onde se anuncia quase a idílica união interminável de Gabriel e Salomé. De facto, o desenlace em que o tenente Braz (Azaredo, no romance) abate Salomé, Gabriel e o casal amigo que se encontrava em casa dele, vem alterar completamente o tom da construção da intriga, eliminando a dimensão optimista da comédia popular (que tende a premiar uma aprendizagem positiva da vida) e introduzindo o discurso disfórico pela nota trágica a culminar o enredo melodramático.

    Assim, podemos dizer que o filme realiza duas operações macroestruturais, para introduzir o ritmo narrativo na sua dramaticidade e actualizar a avaliação ideológica na sua dimensão temática: a transformação do final feliz em patética pirueta trágica que os pregões finais dos ardinas sobre as aparições vêm reforçar; e a redução da temporalidade do romance, expandida desde a meninice de Zambujeira até à sua provecta idade, a um presente dramático em que ele, já sexagenário, (com o nome de Cerqueira), actua como amante da mulher que nunca conhecera como Dores e apenas reconhece como rameira que sobressai na “profissão” pela sua imensa beleza e uma “aura” de quase santidade.

    De algum modo, o guionista e o realizador optaram por retirar ao romance aquela dimensão que Cláudia Sousa Dias, num dos textos mais extensos e atentos que, recentemente, foram dedicados a esta obra de Miguéis, caracteriza do seguinte modo:

    “Na primeira parte, intitulada A Queda Ascensional, os Retrospectos descrevem os antecedentes das personagens principais que interagem durante a trama propriamente dita.
     Trata-se de um texto, de certa forma, atípico em relação ao resto do romance. O registo utilizado nesta secção da narrativa está recheado de juízos de valor, onde o narrador utiliza uma linguagem que apela ao sentimento a fazer lembrar os ultra-românticos, Victor Hugo, Camilo Castelo Branco ou Castilho, o que retira um pouco a qualidade literária ao texto. Contudo, logo após as primeiras cem páginas, o Autor abandona o tom persuasivo relativamente ao carácter de algumas personagens e adopta um estilo de prosa mais analítico e objectivo – sobretudo nos Entremezes de Gabriel Arcanjo – de onde sobressai a veia satírica e irónica do Autor, a tónica que irá dominar todo o romance.

    Assumem assim, os cineastas, a sua opção de actualizar o discurso narrativo retirando-lhe, na dimensão retórica, a ganga directamente argumentativa e, na poética, o pendor romanesco para ser biografia (acompanhando o evoluir da personagem ao longo da vida, como Dickens faz com o seu David Copperfield, por exemplo, instituindo o modelo, ainda que em tom de paródia às estruturas do melodrama), fazendo assim funcionar, com o máximo de intensidade, a dimensão dramática em torno da qual se estrutura a segunda parte da narrativa, aquela em que Zambujeira/Cerqueira é já sexagenário e a sua amante é já, plena e assumidamente, a esplendorosa Salomé.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa:

    Miguéis, José Rodrigues, 1968, Léah, Estúdios Cor, Lisboa

    Miguéis, José Rodrigues,2000/2002, O Milagre Segundo Salomé (I e II), Estampa, Lisboa

    Passiva:

    Aguiar, Edimara Lisboa, 2010, O milagre de 1917 na pena de Miguéis e na lente de Barroso

    Chion, Michel, 2001, Como se escribe un guión, Cátedra

    Couto, Diana Marlene Soares do, 2009, O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros  entre Miguéis e Barroso

    Dias, Cláudia Sousa, 2008, O Milagre Segundo Salomé de José Rodrigues Miguéis

    Saraiva, A. J. e O. Lopes, s/d [6ª ed], História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Saraiva, A. J. e O. Lopes,1996, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Vanoye, Francis, 1996, Guiones modelo e modelos de guión, Piados, Barcelona


    [1] Mais recentemente, os estudiosos da matéria têm optado por utilizar, para designar este nível de desenvolvimento do texto pré-fílmico, o termo  continuidade dialogada que, como diz sinteticamente Vanoye, “oferece a distribuição da história em cenas e sequências, a descrição das acções e o texto completo dos diálogos” (1996: 14) –  segundo Chion, em França esta é já considerada como guião (scénario) (2001: 208), sendo também verdade que, mesmo na América, é com um modelo muito semelhante que os grandes realizadores trabalham; o guião/guião cinematográfico (shooting script, découpage técnique e, não esquecer, roteiro, em português do Brasil) é um passo, ou, atendendo à hesitação na designação, uma série de passos finais que vão das elaborações narrativo/ descritivo/ dramáticas das fases anteriores, apenas um pouco mais extensas, às expressões mais próximas, que se possam conceber, de um texto escrito reproduzindo, integralmente, o filme acabado. Porque, como lembra Vanoy, na “inversão dialéctica própria de  todas as relações entre modelo e objecto […] também o filme se converte em modelo de […] guiões”, de tal modo que nas análises de objectos fílmicos  se trabalha “não tanto sobre guiões como sobre modelos de guiões, que proporcionam as películas terminadas e as suas transcrições” (1996: 21). A planificação técnica (que seria o modelo ideal de guião – aquele que Robbe-Grillet emula nos seus ciné-romans) só se pode considerar satisfatoriamente acabada, se tudo correr bem, quando o filme estiver acabado e tiver sido incorporado, no texto, o último pormenor registado pela “anotadora”, dando conta das próprias hesitações do realizador e das suas decisões finais.

    [2] O termo plano, no léxico português relativo ao cinema, pela sua longa dependência da terminologia francesa, é ambíguo, como naquela língua (antes de se deixar marcar pelo léxico anglo-americano do cinema, tal como já vai acontecendo entre nós) aplicando-se a três ordens estruturais utilizadas pelo discurso cinematográfico: a sincrónica/paradigmática, em que, por exemplo, o grande plano pode alternar (ou evoluir, num processo que o fará jogar com a dimensão diacrónica) com o plano de conjunto, ou o plano médio, diferenças que relevam do enquadramento do que emerge no campo da imagem, jogando com o fora de campo, ou seja o que fica fora do enquadramento (que registámos como P1 — que equivale,  grosso modo, ao paradigma verbal de shot, graduando-se entre o close-up e o long shot na cinematografia anglo-americana); a diacrónica, em que o plano é parte constituinte da sequência (que registámos P2 — equivalente ao paradigma shot/take anglo americano); e a sincrónica, in præsentia, em que o primeiro plano alterna com o de fundo, ou com o intermédio, ou seja, naquela diferenciação que emerge da ilusão da profundidade de campo (que registámos como P3 — oscilação que os textos anglo-americanos americanos designam por deep/shallow focus).

  • Pornografia: o erotismo que ousa o júbilo infinito dos sentidos

    Pornografia: o erotismo que ousa o júbilo infinito dos sentidos


    Não seria justo que, numa abordagem às produções marginais, àquelas produções das margens da literatura ou dos géneros do escrito, esquecêssemos as narrativas chamadas por­nográficas.

    Da anedota popular e brejeira até ao “espaço que nele é, simultaneamente, uma mime­sis puramente auditiva, confiada à narrativa do historiador, e de uma praxis, de Sade (Sade, Fou­rier, Loyola, Roland Barthes, Paris, Seuil, 1971, p. 150), a por­nografia existe (por vezes, cons­tituindo um tema absorvente e exclusivo, por vezes um elemento predominante da obra, de forma eminente, fascinante) e, contu­do, é quase sempre rasurada, ab­sorvida por esquecimento, por um adiamento que é tanto mais irritante quanto ela se torna om­nipresente em quase todos os ho­rizontes do que se chama erotis­mo, literatura “séria”, abjeccionismo ou narrativa romanesca.

    Justine ou les malheurs de la vertu, do Marquês de Sade, foi publicado em 1791.

    Os discursos de reconhecimento, aberto e liberal, passa, nesses ca­sos, por uma obsessiva indicação de velados efemismo e litotes (ah, como a linguagem dos liber­tinos triunfa aí, impondo secre­tamente o seu estilo), por vezes freudiza a hermenêutica ao pon­to de encontrar homossexuais e perversos por todos os recantos do segredo, mas vela essas evi­dências por uma racionalidade casta, deixando à palavra incó­moda (a obscenidade, o insulto, a nomeação marcada do elemen­to sexual, escatológico), o outro lado da fronteira, o território dos bárbaros, o espaço onde se fala a língua proibida, onde se agitam os corpos do prazer pa­gão.

    Sem pretensões de muita origi­nalidade, sem abdicarmos da abertura ao que, aberrantemen­te, vem sendo velado ou esqueci­do, por outro lado, parece-nos oportuno lembrar aqui, especifi­camente, essa margem. É claro que, no lugar que assumimos, não pretendemos chamar a nós uma obra como a de Sade – se por razões óbvias da sua força, ele será sempre um modelo de re­ferência revigorante, também é certo que, pelo peso que assumiu na civilização ocidental o lugar de escritor entre os “libertinos” do século XVIII nunca lhe poderá ser recusado. Deixando-o lá, mais fácil nos é evocá-lo como topos ecuménico de todos os cri­mes da linguagem irradiando, não obstante a estranheza, no in­terior do território do mesmo.

    A filosofina na alcova, publicada clandestinamente em 1795, e como obra póstuma, mas o marquês de Sade apenas morreu em 1814.

    O que nos interessa aqui reve­lar, como literatura pornográfica marginal, é a menos clara manifestação de texto efabulado ten­do como principal tema a sexua­lidade, manifestando-a, obceca­damente, como prática perma­nente da acção da personagem. Não a ocorrência casual uma en­tre outras da vida, como, por exemplo, a cena “realista” num romance de costumes, mas como função cardinal de uma sequência em que a tónica desse fazer sexual é constante, constituindo uma espécie de macrofunção a que poderíamos chamar “variação infinita do orgasmo”.

    Desse modo, poderíamos con­siderar pornografia o discurso sobre o sexo carregado com a alegria expulsiva e explosiva da palavra certa, atendendo a que a palavra certa da pornografia é a que agride os costumes oficiali­zados da mesma forma que o desvelamento do órgão, ou do acto realizado, nomeado.

    Não vamos aqui explorar deti­damente qual a função de tal lite­ratura. Ela sempre existiu inde­pendentemente de qualquer ex­plicação e justificação. Adiante­mos, contudo, que, muito intuiti­vamente, o texto pornográfico nos parece cumprir a função de todos os mitos ontogenéticos (so­ciais e individuais): falar à nossa racionalidade, instituindo um dizível, sobre aquilo a que a razão e o logos (na sua vertente mais evidentemente epistémica) não acedem.

    De certo modo, todo o paradoxal e obsessivo da porno­grafia (e sobretudo a menos cul­turalizada – estamos mesmo a evocar a mais popular, a que an­da em edições de cordel, pelos vendedores de rua, em brochuras dactilografadas) está em que substitui um fazer do desejo, por um dizer ou um dizer o fazer do desejo que aparentemente nunca é realizado. Poderíamos mesmo conjecturar, recorrendo a exem­plos de escritores clássicos que foram metidos no mesmo saco genérico de libertinos, que a por­nografia começa onde o deva­neio ou mesmo o delírio de Sade substitui o erotismo realista de Laclos ou de Restif de La Bre­tonne.

    Encarado nessa óptica, o pornográfico de Sade aponta­-nos, ainda que pelo caminho do terror gótico, para o campo do fantástico. Por outro lado, os inquéritos sobre a pornografia re­velam-nos que ela funciona, so­bretudo, como estimulante indi­vidual, quase sempre como re­curso onânico da busca do pra­zer. Só raramente, por revelação do prazer, indirectamente, é estimulante da re­lação sexual tendo em conta o outro, a dimensão heterossexual (e restaria ainda descobrir o mais complicado campo da pornogra­fia homossexual – ocultação dentro do oculto).

    Ligações perigosas, romance epistolar de Pierre Choderlos de Laclos. A autoria apenas por iniciais pretendia revelar o autor apenas para “conhecidos”.

    Explorando os poucos saberes sobre tão des­cuidado tema, talvez não fosse demasiado ousado propor como hipótese de trabalho uma inda­gação da pornografia tendo co­mo orientação a ideia de que a pornografia, contrariamente a algumas opiniões apressadas, es­tá francamente do lado do fan­tástico (característica de quase tudo o que é marginal) e não de um possível realismo exacerbado ou ultra. Nada menos pornográ­fico do que um texto naturalista, por exemplo.

    Assim como o herói estereoti­pado da grande aventura fantástica é previsível quase até à cari­catura na realização das suas ac­ções de reposição da ordem, o protagonista pornográfico é evi­dente até à transparência no seu percurso do prazer: cada contac­to que inicia, cada conversa que tem, cada acto que pratica só po­de ter um sentido – o orgasmo. E o orgasmo não tem limites no herói da história pornográfica, tal como o super-homem das his­tórias de reparação não tem.

    O importante, para este aventu­reiro do prazer, é conseguir mais uma relação, conquistar mais um objecto do mundo da sensualida­de, inscrever mais um (ou uma) parceiro na sua lista de relações. Não se trata, neste caso, de um exercício de sedução, de manifes­tação do poder, de uma expan­são de um encanto narcisicamen­te posto a funcionar e sempre a pôr-se à prova.

    Esse aventureiro (ou aventureira) é típico da men­talidade libertina, aparece na narrativa dos escritores liberti­nos do século XVIII e tem como grande modelo um Casanova, um Valmont. O herói da porno­grafia só muito raramente é um sedutor no sentido próprio do termo. Movendo-se num cenário de devaneio, fantástico, para ele o mundo está sempre cheio de corpos passíveis cuja abordagem é tão simples como respirar.

    Por uma razão muito pouco elabora­da, o homem cai sempre num meio onde as mulheres estão cheias de cio, são acessíveis a to­do o tipo de solicitação e abrem­-se-lhe a todas as investidas. Contudo, devemos reconhecer que, um pouco mais verosimil­mente, muitas das aventuras se­xuais pornográficas, embora ma­nifestem um imaginário de pre­dominância masculino, de visão erótica normalmente assumida pelo homem, apresentam como protagonistas mulheres.

    O pró­prio Sade tem a sua grande per­sonagem problemática em Juliet­te. As razões para essa escolha são óbvias: não só os objectos se­xuais masculinos são muito mais acessíveis à aventura rápida e in­consequente que a série de feitos da pornografia exige, como a mulher-sujeito é capaz de uma fiada de triunfantes assaltos que na acção viril se tornaria inverosímil ou excessivamente fantasio­sa. Com a protagonista mulher afasta-se um fantasma do pavor masculino: a impotência da infinita repetição… ao mesmo tempo sempre desejada e sempre negada pelo saber sobre a realidade dos limites.

    Na história pornográfica, a re­lação amorosa é entendida como contacto do corpo, como pene­tração, como orgasmo, quer de modo directo quer alusivo ou simbólico, mas fazendo ressaltar a dimensão do escândalo em relação à moral vigente.  É claro que o primeiro procedimento é muito mais duradouro: Sade ainda é escândalo, mas o Roman de la Rose pode ser estudado hoje como uma qualquer história de amor alegórica.

    Ligações perigosas foi adaptado várias vezes ao cinema, com destaque para o filme realizado em 1988 por Stephen Frears e protagonizado por John Malkovich, Glenn Close e Michelle Pfeiffer.

    A pai­xão, se nela existe, é dos actos se­xuais, que se objectualizam até secundarizarem os parceiros. Daí, normalmente, o outro desmultiplicar-se infinitamente, quer pelo aparecimento da orgia em que a variação dos corpos se dá em si­multâneo, ou pelo menos in pre­sentia (o que permite actualizar um outro elemento fundamental do pornográfico: o olhar que es­preita – o do terceiro que vê), quer pelo percurso-rota, ao lon­go do qual o ou a protagonista vai conhecendo novos corpos de objectualização do desejo.

    A palavra ou desenho são o veículo ideal para a transmissão da fábula pornográfica. Com o cinema, pelo estatuto de realis­mo que normalmente neste assu­me o acto sexual, o aspecto fan­tástico ou maravilhoso da porno­grafia perde-se. Pelo menos no registo em que o pornográfico tem surgido, em regime de sé­rie B, a expressão da sexualidade como pornografia fica diminuída. Em compensação, a palavra, o desenho das histórias aos qua­dradinhos, permitem o desenro­lar da imaginação, a singularizaçãodo pormenor, a sugestão do mais extraordinário acto, que o cinema tem dificuldade em re­criar.

    Por outro lado, a experiência subjectiva que é o orgasmo, a forma de o sentir, a localização da zona erógena de origem, tudo isso exige uma aproximação uma ampliação e uma identificação, sem perda, ao mesmo tempo, do todo do cor­po, que o cinema tem dificuldade em conseguir. Tornando visíveis os corpos, o cinema cria a alteri­dade da vivência e, em simultâneo, a identificação do prazer por parte do espectador desapa­rece, entra-se no campo da es­coptofilia pura, na abdicação do corpo próprio e do devaneio pelo percurso da identificação, e assume-se a demarcação do olhar pe­la revelação de uma relação real, alheia, surpreendida pelo “buraco da fechadura”.

    grayscale photo of woman with her mouth wide open

    A literatura e a BD, pela perda do estatuto de presentificação do estar lá, ape­lam muito mais ao devaneio do leitor, à recriação dos corpos pe­la fantasia (por vezes a descrição dos corpos é tão ambígua que ca­be lá qualquer figura)e, no caso da BD, a uma hiperbolização das poses e das partes do corpo, de tal forma forte que a ligação ao plano do fantástico se torna a so­licitação maior – quando não é o desenvolvimento de uma paródia libertadora em torno do eros.

    Desse ponto de vista, a pornografia pode ser, no caso de alguma literatura e de al­guma BD, um convite extrema­mente libertador, o que o cinema pornográfico normalmente não é pelo seu pendor meramente es­coptófilo.

    Pela intensidade corpórea do erotismo pornográfico, a litera­tura aproxima-se, evidentemen­te, da produção grotesca, da li­nhagem ousada do abjeccionismo literário, do horizonte da piada obscena, da anedota gros­seira, de todos os processos de li­bertação pela palavra. O pala­vrão, a obscenidade, o uso dos termos próprios para designar os órgãos sexuais, o processo esca­tológico de referência ao corpo, aproximam muito a pornografia da festividade pagã e carnavales­ca de que nos fala Bakhtine a propósito de Rabelais, ou os his­toriadores da cultura e das men­talidades a propósito do Carna­val ou do “riso pascal”.

    O realis­mo que muitas vezes se louva em tais expressões é, convenhamo­-lo, bem carregado de uma fan­tasia delirante em direcção a uma utopia, à busca de um paraíso perdido: o da infância do corpo inocente e carregado de apelos eróticos ou, mais genericamente, a uma inocência da espécie, do lado da natureza, num primiti­vismo de todos os consentimen­tos.

    Não se segue daí que o escritor pornográfico seja vítima de uma ilusão inocente de retorno à vida primitiva. O que a pornografia equaciona muito bem, com uma exemplaridade que poucas ou­tras temáticas artísticas conse­guem, é a relação do animal que cada um de nós comporta com a cultura que o envolve.

    Se o silen­ciamento do animal, do primiti­vo é a prefiguração da morte, a melancolia e o acinzentar dos sentidos, a pornografia é a pro­posta da coloração da vida, do primitivo, do pulsional mais ime­diato. E as figuras do pensamen­to, os tropos de alongadas ima­gens que ela recria, não são as de um local idílico, mais ou menos amoenus, ou ajardinado e, simultaneamante, mais ou menos ameaçado pelo horrendo ou selvático, onde tudo se passaria segundo os princípios da “madre natureza”: são, sim, as de um júbilo dos sentidos, os de uma fruição feroz e egoísta, que tem a ver com o corpo e só com ele – onde a cul­tura aparece como fantasia em acréscimo ao corpo, recusando à sexualidade a finalidade procriativa, fazendo variar o acto num prodigioso exercício de negação da Natureza para melhor a afir­mar no plano do imaginário.

    Nota finais

    A História de O (de Pauline Rage – pseudónimo de um es­critor, ou de vários, de grande vulto na literatura francesa, su­põe-se…, que nunca quiseram desfazer a mascarada literária), desenhada pelo famoso autor italiano de BD Guido Crepax, chegou a ser editada entre nós…, mas a sua edição (ou o que dela resta) anda à venda pelas ruas, a preço de mercadoria sem público.

    Historia de O, por Guido Crepax, em edição da Marginália de 2006. Uma edição dos anos 70, pela Sérgio Guimarães tinha duas páginas censuradas.

    A quadrinização de Juliette, de Sade, apareceu agora em edi­ção de bolso, em França, deven­do-se a adaptação a Philippe Ca­vell e Francis Leroi.

    Apolline no Inferno, de Jean-Louis Vilier e Caprichos de Uma Noite, de Daniel Lebordais, Fragmentos Editora,

    respectiva­mente 1988 e 1987

    De momento, são estas as duas únicas obras pornográficas de ficção, relativamente actuais e com qualidade de escrita, apresentando-se como traduções de bom nível do texto francês, acessíveis no nosso mercado.

    Ao que parece, após uma oportunista inflação de obras “eróticas” com capas a condizer e avisos a confirmar uma pisca­dela de olho ao público adulto que comprava pornografia esti­mulante sob capa cultural de “erotismo” para apresentar por­nografia, onde na qual circulou Sade em edições pouco mais que selvagens, onde Apollinaire apa­receu traduzido em exemplares encerrados em embalagem de plástico, a moda deixou de pro­duzir lucro fácil.

    Os costumes não se abrandaram, ou melhor, a leitura da pornografia ou do “erotismo forte, para adultos” revelou agredir preconceitos muito mais profundos do que as simples proibições de tipo poli­cial. Essas obras, porque não re­sistiram num mercado livreiro normal, acabaram por ser reme­tidas para os alfarrabistas de rua, para os cordéis onde circu­lam já alguns “clássicos” dactilo­grafados e policopiados… textos terrivelmente estropiados e reve­lando mão-de-obra do mais bai­xo nível, de obras que fizeram moda em épocas de proibição, tais como Zaza Diabólica ou A Marca dos Avelares…

    Os dois livros que agora apre­sentamos, embora no melhor es­tilo pornográfico, procuram ir contra tal estado de coisas – ca­pas discretas, texto cuidado e um certo sentido da elegância, do “saber fazer” narrativo que dá encanto aos percursos demoníacos que apresentam.

    Apolline no Inferno, como te­ma fundamental, apresenta a busca desesperada de duas mu­lheres (mas não busca sentida, em algum momento, como de­gradante) dos prazeres da carne, num antro de jogos eróticos em que elas são as únicas parceiras lançadas para a satisfação dos desejos de um grupo de homens de aspecto ameaçador, revelando o encanto dos traços da estranhe­za social, das marcas do vício, da postura da brutalidade.

    Apolline no inferno foi editado em Portugal em 1988.

    Numa reviravolta que não ilu­de, as mulheres são permanente­mente nomeadas, mas os homens mantém o anonimato que faz de­les meros objectos de prazer… Pequeno truque com que se pre­tende ocultar a obsessão dos fan­tasmas masculinos, sob a apa­rência do prazer da mulher.

    Atendendo a que a heroína e principal incitadora é casada, te­mos o quadro da ruptura com os padrões fortemente evidenciada.

    Caprichos de Uma Noite, quan­to a nós, é uma história ainda mais sofisticada que a anterior.

    Além de apresentar todas as in­submissões que já apontámos no outro livro – a relação extra­-conjugal, sobretudo a da mu­lher, o sexo em grupo, a busca do prazer pela personagem femi­nina –, esta história revela ainda um outro factor de aliciação: o percurso da mulher numa noite de Paris e dos seus arredores, acompanhada à distância, pelo olhar fascinado do seu amante que actua como um espectador, mudando permanentemente de parceiros.

    O gosto com que está escrita a história, a qualidade que consegue imprimir à narra­ção de sequências normalmente encaradas de mau gosto, fazem deste livro uma obra muitíssimo agradável e de leitura nada cho­cante.

    O que ressoa sempre, no hori­zonte desta história, na dimen­são do percurso físico (onde a outra, Apolline no Inferno, era a obsessiva repetição do cenário do pôr em palco o sexo, numa boa aprendizagem de Sade), é a aventura da busca – há, efecti­vamente, qualquer coisa de Quê­te no deambular programado de Sylvie, pelas noites da cidade, pelos antros do prazer, pelas mo­radas da existência liberal e liber­tina.

    O que se pretende descobrir nesta viagem ao fim da noite pela estrada dos sentidos é a dimen­são suprema do amor do casal que acaba por ser alcançado pela heroína e pelo seu amante-comparsa.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

  • Ferreira de Castro

    Ferreira de Castro


    A posição de Ferreira de Castro (1898-1974), como escritor, tendeu sempre para uma afirmação de empenhamento político e/ou ideológico. Quer a problemática da situação social, quer a da convicção religiosa, impregnaram, de um modo evidente, os seus escritos, desde o primeiro momento.

    Por isso mesmo, ele inscreveu-se, ao longo da sua carreira, nos horizontes preceptivos do naturalismo, do neo-realismo e, nos momentos finais, nas tendências de um realismo didáctico-religioso, que marcou algumas produções europeias dos pós-guerras. Assim, duas ou três notas biográficas parecem-nos importantes, para entendermos um pouco melhor o escritor Ferreira de Castro.

    O enquadramento geográfico de origem é, no presente caso, um dos pontos a evidenciar em tais notas. Deve registar-se, sobre essa matéria, que o autor ora referido nasceu numa aldeia, então “remota e primitiva”, aonde nem mesmo o comboio chegava, para já não falar da escassez e primitivismo das estradas. Trata-se do povoado de Salgueiros, freguesia de Ossela, conselho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro.

    Ferreira de Castro

    Segundo o seu mais aturado estudioso, Jaime Brasil, essa origem determinará, em grande parte, o homem e o escritor, pois em tão humilde reduto, mal localizável no mapa, ainda hoje, habitava a família de Ferreira de Castro, ignota e recatada como o local de seu afinco. Modesta foi, na mesma tradição, a infância e a formação de José Maria Ferreira de Castro.

    É em relação a esse meio que ele consegue destacar-se primeiro. O suficiente para melhor o representar, sem, contudo, se distanciar a ponto de se afastar dele: numa época em que a Instrução Primária tinha dois graus, só ele e o filho do professor da escola, então, se candidataram ao segundo. É verdade que o realizou com sucesso, mas também é certo que as posses da família nunca lhe permitiram ir mais além.

    Adquiridas as aptidões básicas para ser capaz de se exprimir, com mais destreza do que os seus conterrâneos, adquirindo a capacidade da escrita desenvolta a que se entrega desde os primeiros momentos da adolescência, parte de Ossela antes de ter completado os 13 anos de idade, rumo ao Brasil, em 1911.

    Aí, entre os 14 e os 16 anos, dedica-se a uma precoce e invulgar actividade de escrita, que vai enviando para pequenos jornais e revistas de diversos estados do país sul-americano, enquanto trabalha como funcionário de um armazém, num seringal amazónico.

    Não menos surpreendente é que tenha escrito o seu primeiro romance com 16 anos de idade, acabando por publicá-lo no ano em que completou 18 anos. Vale a pena enumerar as suas obras mais precoces, que publica a um ritmo quase frenético, ao mesmo tempo que exerce a profissão de jornalista, quer no Brasil, até 1919, quer em Portugal, dessa data até 1927:

    Primeira obra de Ferreira de Castro, publicada quando contava apenas 18 anos.

    Criminoso por Ambição (1916), Alma Lusitana (1916), Rugas Sociais (1917-18), Mas… (1921), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil (1923), Sangue Negro (1923), A Boca da Esfinge (1924), A Metamorfose (1924), A Morte Redimida (1925), Sendas de Lirismo e de Amor (1925) A Epopeia do Trabalho (1926), A Peregrina do Mundo Novo (1926), O Drama da Sombra (1926), A Casa dos Móveis Dourados (1926), O Voo nas Trevas (1927).

    Um tal ritmo de actividade de escrita, feita, sobretudo a jornalística, para sobreviver e actuar, enquanto cidadão, no mundo, parece ser uma marca muito própria do escritor português, propondo um projecto verdadeiramente caro a certas facções do modernismo literário europeu, segundo as quais o acto poético-literário se apresentaria como fundamentalmente um impulso vital: mais do que pelo que representa, segundo um tal ponto de vista, o escritor intervém política, ideológica e socialmente pela actuação no mundo como escritor.

    Assim, não seria a vida e a existência social que explicariam a obra, como queria um certo biografismo tradicional, mais conformista, mas seria, antes, a obra, o fazer da obra, a luta pela obra, que ajudaria a explicar o homem. Como Miriam Cendrars diria de seu pai, Blaise Cendrars (não por acaso entusiasta tradutor de A Selva, de Ferreira de Castro) poderíamos nós dizer do autor de Emigrantes: “se o seu material era a vida, a vida do homem […] era a escrita” (1996: 82).

    Mas não é só pelo que demonstra da sua precoce e quase vital capacidade de produção que o corpus romanesco acima apresentado é significativo. Também o é por ter sido totalmente abandonado pelo autor que, logo no ano seguinte ao do último romance acima indicado, em 1928, publica a primeira das obras que considerará verdadeira e infinitamente suas: Emigrantes.          

    É importante reiterar o que dissemos logo no início desta breve apresentação. A posição de Ferreira de Castro, como escritor, tendeu sempre para uma afirmação de empenhamento político e/ou ideológico. Quer a problemática da situação social, quer a da convicção religiosa, impregnaram, de um modo evidente, os seus escritos, desde o primeiro momento. Por isso mesmo, ele inscreveu-se, ao longo da sua carreira, nos horizontes preceptivos do naturalismo, do neo-realismo e, nos momentos finais, nas tendências de um realismo didáctico-religioso, que marcou algumas produções europeias dos pós-guerras.

    No fundo, trata-se de defender, no plano do romanesco, a propagação dos “valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo” (Benjamin, 2006: 332; cf. tb. Benjamim, 2006:332-333). O romancista português mantém, em muitos dos seus romances, por via de uma história que desenvolve como o relatório de uma experiência, a sua profunda aprendizagem naturalista, embora se afaste, em certos casos, de alguns dos traços estilísticos mais evidentes da “escola de Zola” como, por exemplo, a sobrevalorização dos traços de carácter, ou a representação exaustiva dos estigmas fisiológicos, juntamente com a pormenorização intensa dos traços fisionómicos.

    Primeiro romance de sucesso de Ferreira de Castro, Emigrantes foi publicado em 1928.

    No entanto, mantém com ela marcas do reconhecimento, nomeadamente no apuro quase pictórico das descrições dos espaços, que, por assim dizer, caracterizaram os primeiros romances da segunda fase, nomeadamente aqueles que o celebrizaram como grande ædo da emigração, em harmonia com os contornos da acção e com os traços físicos e anímicos dos caracteres humanos (cf. cjfjorge, 2001).

    Pode-se deduzir, tendo em atenção o que sabemos do êxito e aceitação variável que teve a obra de Ferreira de Castro na nossa cultura, que tocamos um ponto fundamental para a compreensão da produção do autor. Para desenvolvermos as nossas considerações, não podemos deixar de abordar, ainda que brevemente, o modo como ele foi enquadrado, a partir do naturalismo, no panorama da nossa história literária. É evidente que, a opinião mais importante a que devemos dar atenção, quando se trata de perspectivar Ferreira de Castro na nossa história literária, no universo cultural em que a sua obra se moveu, é a de Óscar Lopes.

    Segundo ele, a obra de Ferreira de Castro, logo a partir do seu primeiro romance consagrado, Emigrantes, obteve uma ampla audiência (cf. in Saraiva e O. Lopes, s/d -17ª edição- :1025). Nas suas palavras, “Ferreira de Castro foi um dos mais populares e traduzidos escritores portugueses, o que se deve ao facto de os dois romances que mais o consagraram [Emigrantes e A Selva] ressumarem, apesar de todas as limitações de escrita, a sua própria dura experiência, mal conhecida, de emigração num seringal da floresta amazónica” (pp.1025-1026).

    Para tornarmos mais clara a perspectiva que queremos aqui defender, resumidamente, devemos comentar as palavras que citámos, de Óscar Lopes. Notemos, desde já, simplificando muito, que, se ele admira o valor documental de experiência humana do emigrante trabalhador braçal, logo restringe o valor pleno da obra pelas “limitações da escrita”.

    Por outro lado, acentua, com a devida simpatia, a aceitação popular que os romances tiveram por parte dos leitores “comuns”. É importante registar estes factos porque o crítico e historiador literário, se é parco nos encómios, chegando mesmo a ser restritivo na valorização, não deixa de manifestar simpatias e considerações positivas quando afirma que a obra do romancista “contém algumas das situações mais representativas do novo realismo social” (in Saraiva e O. Lopes, s/d-17ª edição: 1026). Cremos ter apresentado aqui, muito resumidamente, os dados e as conjecturas básicas para o breve enquadramento histórico-literário que pretendemos fazer.

    Como primeiro ponto a destacar, surge-nos o sucesso das obras de Ferreira de Castro junto de um público de leitores fiéis.

    Como segundo ponto a ter em conta, devemos sublinhar o facto de as obras de Ferreira de Castro terem deixado de ser integradas nos grupos ou escolas literárias do seu tempo, nomeadamente o modernismo e o neo-realismo; deixaram, assim, de ser lidas num sentido forte do termo, que inclui a valorização canónica.

    Como terceiro ponto, devemos ainda acrescentar que os seus textos, de uma maneira geral, deixaram de estar presentes nas antologias – quer entre os modelos de escrita do secundário, quer nos académicos, nas listas de obras para análise do ensino superior. Tudo se passa como se a produção do romancista tivesse mantido uma presença subterrânea relativamente aos valores do poético (a relação com as outras obras reconhecidas como artísticas pelos próprios escritores) e do literário (as qualificações necessárias para estar presente, como exemplar, nos elencos das escolas e universidades).

    Escultura em homenagem a Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis, inaugurada em 1966, para comemorar os 50 anos de percurso literário.

    Se admitirmos que um cânon literário é “uma lista ou elenco de obras consideradas valiosas, dignas de serem estudadas e comentadas por essa mesma razão” (Sullà,1998: 11), poderíamos admitir que, entre os valores de leitura e os de estudo e comentário se processou um divórcio no que diz respeito aos romances de Ferreira de Castro. Usando os conceitos de legível e escritível, que Barthes propõe para distinguir, grosso modo, o que separa o clássico, como objecto consumível, não problemático, do poético, que, pelo efeito estético, convida o leitor a não ser apenas um consumidor, mas a recriar ou a problematizar (cf. 1970: 10), podemos dizer que, segundo essa bipartição, Ferreira de Castro entrou no cânon da legibilidade, tendo sido proscrito do da escritibilidade.

    Enquanto elemento da legibilidade, ele tornou-se, como o provam as edições e o número de exemplares vendidos, uma espécie de campeão do cânon clássico; como proscrito da poeticidade, tornou-se um esquecido ou um desvalorizado.

    A perda das qualificações necessárias para estar presente, como exemplar, nos elencos das escolas e universidades, como acima evocámos, provém, talvez, do facto de ele ser um clássico deslocado, de ser demasiado legível no momento em que escrevia, não sendo possível ao reconhecimento escolar e académico enquadrá-lo na cultura do seu tempo, quer o escopo fosse o do modernismo, quer fosse o da postura ideológica no debate do seu tempo. De certo modo, é contra a legitimidade destes factos culturais que o nosso texto procurará argumentar.

    Ora, como no campo da cultura em geral, e da literatura em particular, a legitimidade é estabelecida exactamente pelas operações de canonização, a nossa argumentação não pode ser, evidentemente, dirigida contra os critérios de tal processo de reconhecimento.

    Procuraremos, antes, mostrar que talvez a razão de se terem excluído os romances de Ferreira de Castro dos cânones da poeticidade se deva a leituras equívocas. Ou por outra, dado o espaço parco de que dispomos, procuraremos lançar a dúvida sobre alguns passos do processo que levaram à exclusão de F. C. dos elencos que merecem ser estudados e comentados. Procuraremos, assim, instalar uma suspeita: a de se terem avaliado mal alguns aspectos da sua obra, no processo de legitimar a sua exclusão.

    Uma das razões pelas quais a obra do autor de Emigrantes se tornou muito popular foi a da sua acessibilidade aos leitores. Tal acessibilidade pode ser entendida, sem com isso se estar a raciocinar mal ou apressadamente, como uma excessiva obediência aos códigos do género, aos processos, já gramaticalizados, que fazem dum romance um mecanismo de legibilidade simplificada.

    Uma rápida síntese desses mesmo códigos, e dos que se lhes opõem, pode revelar-nos os dados básicos pelos quais se procedeu a uma depreciação poético-literária do romancista que aqui analisamos. Em primeiro lugar, devemos ter em conta que todo o modernismo português, incluindo o neo-realismo que, nesse ponto, se mantém aliado do próprio presencismo, procura valorizar aquilo que Óscar Lopes, na obra citada, chama os “impulsos impremeditados”(p. 1025), defendendo o “psicologismo” contra os “processos de reportagem”.

    Interior do Museu Ferreira de Castro, em Sintra.

    Simultaneamente, outros procedimentos que ganham valor poético são os da valorização do “mostrar”, pelo apagamento do “contar” (o narrador omnisciente deveria, segundo esse código modernista, desaparecer, ou reduzir-se ao máximo como “voz”); o da proscrição das axiologias (contra as teses asseguradas e validadas pela voz narrativa épica) em favor de uma ausência de valores seguros por uma voz de valor imperativo autoral – mesmo o neo-realismo, para defender as suas teses sociais, preferirá o processo de fornecer os dados da acção sem comentário do narrador, ou seja, apresentando os factos através de uma focalização diegética comprometida política e ideologicamente, mas suspendendo o juízo autoral.   

    Julgamos que os elementos e processos condenados pela crítica contemporânea de Ferreira de Castro se podem resumir aos que caracterizavam o romance clássico, ou seja, o romance naturalista que, tendo ele próprio constituído o seu cânone, se preparava para ser desvalorizado como previsível, datado, e legível pela crítica modernista ou modernizante.

    Tal legibilidade que, junto com o facto de abordar temáticas de dramatismo popular (que lhe reforçavam a legibilidade e, por outro lado, os vínculos com o naturalismo da tradição zoliana – que, como se sabe, era atenta aos dramas populares da “patologia social”), liga Ferreira de Castro ao naturalismo (como o próprio Óscar Lopes o reconhece – cf. 1986: 40-41), revela-se uma “facilidade de leitura” que reforça, pelo facto de Ferreira de Castro também não ter abdicado do excesso de “voz” épica (comentadora e judicativa), a suspeita que sobre ele recai por parte da crítica neo-realista.

    Publicado em 1930, A selva, com contornos auto-biográficos, é uma das obras de Ferreira de Castro mais aclamadas pela crítica.

    Dado que a descrição (pelo que manifesta de um exercício voluntariamente “autoral”, de léxico e sintaxe “culta”) e o seu funcionamento, segundo determinados moldes, é um dos processos mais comummente atribuídos o naturalismo, sendo um dos sinais a causar a “datação” das obras que o usam, é esse mesmo processo que iremos observar nos primeiros romances da segunda fase de Ferreira de Castro, segundo os propósitos já acima expostos.

    Devemos ter em conta, no entanto, numa conceptualização que iremos afeiçoando à medida da nossa argumentação, o que, na descrição, leva à construção dos efeitos de lugares e de espaços.  

    Começando pelas primeiras linhas do primeiro romance “reconhecido” pelo autor, Emigrantes, vejamos um exemplo que, relacionado com os princípios naturalistas e modernistas, nos pode ajudar a reavaliar a obra de Ferreira de Castro.

    As primeiras palavras do romance são as de uma descrição. Depois de apresentar uma ave, no seu esvoaçar, a descrição, motivada por esse movimento, desenvolve-se pela apresentação do pinhal e, seguidamente, da paisagem em que este se enquadrava. Só depois a descrição volta ao animal, revelando que este estava a fazer o ninho. A voz do narrador, que se presume ser a que descreve, assume a posição épica clássica na construção da ekphrasis documental.

    Mas o olhar que ele usa é o da personagem que, pelo que nos é revelado mais tarde, se desenvolve como protagonista. É essa personagem que nos é descrita exactamente na posição de observador do trabalho do pássaro. Descansando, à sombra de um pinheiro, vendo o trabalho da ave e toda a paisagem onde a actividade se inscreve, a personagem começa por ser apresentada através da sua recordação. A liberdade do esvoaçar da pega leva-o a evocar os seus tempos de menino, durante os quais se dedicava a apanhar ovos nos ninhos. Só regressa ao presente quando se detém a “contemplar a sua casita”.

    Segue-se a descrição da casa, da horta, dos campos que se estendiam “para lá do muro”. São estes que, fazendo-lhe surgir o desejo de os ter, introduzem o tema da emigração: era preciso emigrar para arranjar dinheiro para os comprar.

    Para abordarmos, desde já, o centro da questão sobre a qual queremos argumentar, reparemos que, se a voz que descreve é, indiscutivelmente, a do narrador “épico”, segundo o modelo naturalista que pretendia dar o enquadramento das personagens, o uso que aqui é feito de uma tão prolongada descrição (são quase quatro páginas), remete-nos para o “interior” da personagem. Se atentarmos bem no processo, podemos verificar que o mecanismo revelado neste passo não é o dos primeiros ensaios do “romance «dramatizado»” de que fala Dorrit Cohn,[1] mas sim o do “monólogo narrativizado” do romance realista com os seus processos bem desenvolvidos que permite apresentar a “fluidez íntima” da sua personagem “perante a experiência fugitiva” (cf. Cohn, 1981:140-41).

    Não se trata da narrativa auto-diegética, do percurso de auto-análise, como José Régio, entre outros, se propôs reactivar para construir os seus romances em torno de uma consciência. Contudo, este procedimento, se observado dentro dos códigos da época, não se revela menos moderno e produtivo. Sobretudo se atendermos ao modo privilegiado como é usado e a funcionalidade que tem, ao longo da narrativa, tal processo de F. de  C. parece-nos bem mais próximo dos usos modernistas que Virginia Woolf  lhe dá (em Mrs Dalloway, por exemplo) do que dos escritores de construções romanescas mais tradicionais.

    Publicado em dois volumes, A volta ao mundo teve a primeira edição em 1940 e 1941.

    Só por uma questão episódica de moda muito momentânea, que leva a enfatizar alguns dos processos que Proust usou, nomeadamente o  da narração autodiegética, se pode pretender ver um modernismo assente no romance de consciência (“dentro de uma cabeça”, como João Gaspar Simões emblematizou num subtítulo que acabou por tornar evidente o processo modernista) contra um tradicionalismo assente na modalidade épica da enunciação.

    De facto, é historicamente muito mais moderno o processo usado por Ferreira de Castro, que só se começa a desenhar, com clareza, num momento desenvolvido do realismo do século XIX, com Flaubert, sobretudo, mas também, intensamente, com os momentos mais ousados do naturalismo. Ferreira de Castro utilizará o processo, de modo quase exaustivo, sobretudo em duas narrativas romanescas: Tempestade (1940) e A Curva na Estrada (1950).

    Em ambas, o processo narrativo visa, sobretudo, obter, de modo hiperbolicamente intenso, o funcionamento da consciência dos seus protagonistas: o primeiro, pela exposição do processo de paixão amorosa arrebatada pelo ciúme, o segundo, pelo confronto de uma personagem face às ideologias políticas, dentro das quais se realiza o seu processo de fundação da personalidade enquanto militante político das esquerdas socialistas, na Espanha pré-franquista.

    Em ambos os casos, impulsos vitais e fantasmas superegóicos activam, como um turbilhão matricial, a formação dos traços inconscientes segundo os quais o fluir das consciências se vai manifestado nas suas rupturas trágicas, no dramatismo fantasiado das suas obsessões, que um narrador omnisciente, ou em focalização zero, vai apresentando. 

    Ferreira de Castro aproxima-se, quanto a este ponto, de Thomas Mann que, no século XX, segundo Cohn, é quem leva até ao ponto limite de todas as possibilidades a narração heterodiegética – de um narrador extradiegético, evidentemente.

    Por esse processo, manifesta-se a “superioridade do narrador”, quando comparado com uma personagem ou com um narrador autodiegético (que, para este efeito, é o mesmo), “relativamente ao conhecimento da vida interior da personagem e às capacidades requeridas para a descrever e avaliar” (1981:45).

    Na modalidade mais comum no século XIX, podemos falar, seguindo Cohn, de uma psico-narrativa, sempre que um narrador apresenta a vida interior de uma personagem de modo mais profundo e completo do que essa mesma personagem seria capaz de fazer, quer mantendo-se claramente dissociado da mente que “lê” ou “disseca”, quer apagando-se completamente, deixando-se absorver por ela.

    O modo de sustentar a tese, de desenvolver uma máxima ou enunciado de valor gnómico e hortativo, numa formulação ficcional, no caso de algumas das suas narrativas, deve ser encarado em duas vertentes: o da motivação de quem assim o formula, e o da sua validade no plano poético e noético.

    Instituto supremo, de 1968, foi o último romance de Ferreira de Castro.

    Esta dupla validação, se é importante na produção artística em geral, assume particular importância quando a obra realizada se ostenta como portadora de uma tese ou, como é mais frequente, de várias teses. Porque, de facto, se qualquer enunciado artístico não consegue separar a sua formulação estética, de apelo aos sentidos, de uma formulação que a torna objecto inteligível, da ordem do conhecimento, costuma ser apanágio da expressão artística, em geral, produzir a sua própria instância de verdade na fantasia, constituindo esta como instância suprema.

    Contudo, na formulação poética de tese, a dimensão gnómica surge em paridade com a estética. Por vezes, o seu peso é tal, sobretudo quando se trata de um assunto de “actualidade”, que se sobrepõe mesmo à valorização artística. Estão, nesse caso, narrativas de Ferreira de Castro que se constroem quase como documentários, ou relatos de situações sociopolíticas bem determinadas, dentro de reconhecíveis formulações ideológicas, das quais representam destacados exemplos A Lã e Neve (1947), A Missão (1954), e O Instinto Supremo (1968).

    Uma das características marcantes do trabalho literário de Ferreira de Castro,  a de ele se absorver profundamente numa inventio empenhada na reportagem e na documentação,  não tem tanto a ver com a sua oficina de escrita, como, sobretudo,  com o seu processo de busca de materiais. Isto torna-o um viajante em permanente busca de casos, tópicos e motivos emblemáticas para a construção da sua ficção, e um apaixonado antropólogo amador.

    Os dois últimos títulos por nós apresentados são reveladores do primeiro aspecto, dado que a acção do penúltimo se situa em França e a do último no Brasil. Mas é evidente que a eles são apenas exemplos mais recentes – não nos esqueçamos de que Emigrantes (1928) e A Selva (1930) se reportam à experiência brasileira, e A Curva na Estrada (1950) revela uma aturada atenção à política espanhola, além de uma cuidadosa documentação sobre a matéria.

    O aspecto do pendor marcadamente etnográfico e antropológico surge, sobretudo, a partir de Eternidade (1933), onde se observa uma aturada atenção à sociedade madeirense, e adensa-se  em três romances fundamentais como ilustração do género: Terra Fria (1934), narrativa quase esquemática, de tons épicos e melodramáticos, relatando um triângulo passional vivido por três habitantes de uma remota terriola de Trás-os-Montes, onde os sentimentos básicos se manifestam no quadro de uma sociedade a viver nos limites da escassez e da ausência de enquadramento político nacional,  em arredamento do processo histórico; A Lã e a Neve (1947), onde se reflecte todo o quadro ideológico, económico e político da Europa, em plena II Guerra Mundial, num microcosmo aldeão, no qual os confrontos políticos e as lutas de classes se desencadeiam ao ser introduzido o modo de produção industrial cheia de tiques tayloristas, no seio de uma população a viver, praticamente até à véspera, uma economia baseada na pastorícia, pautada pela rotina sazonal da transumância;  e O Instinto Supremo (1968), onde se narra o avanço de uma equipa de trabalho etnográfico, visando, em última instância, desbravamento, aculturação, com abertura de vias modernas e fundação de povoações no coração da Amazónia, num processo em que se patenteia como esse acto de aculturação, procedendo no sentido do domínio, nomeadamente da instalação da Lei e da sua força, procura  ostentar, na vanguarda, a pacífica movimentação do “cordeiro” – arrastando mesmo prosélitos prontos a serem abatidos, sem procurarem replicar contra a investida dos parintintins, sedentos de salvaguardarem o seu universo primitivo. 

    Um historicismo positivista latente parece “guiar ideologicamente” Ferreira de Castro, não só nestas obras de inclinações “etnográficas”, como naquelas em que, mais claramente, assumiu a atitude do repórter ou do viajante documentarista: Pequenos Mundos, Velhas Civilizações (1937), A Volta ao Mundo (1940 e 1944), As Maravilhas Artísticas do Mundo – Volume I (1959) e Volume II (1963).

    AS maravilhas artísticas do Mundo, uma obra monumental de Ferreira de Castro, publicada em dois volumes em 1959 e 1963.

    Neles, estão presentes os valores da civilização com base nos modelos axiológicos do Ocidentes, nomeadamente o reconhecimento da humanidade como universalmente idêntica. A descoberta desta identidade, no construir da civilização, partindo do desenvolvimento dos valores próprios, parece-nos constituir o centro ideológico dominante que norteia o humanismo modernista de Ferreira de Castro, elaborado pela atitude de compreender o Outro, na sua diferença de base, desde que se revele capaz de assumir os valores do progresso, que são os da civilização ordenada, segundo as dinâmicas do desenvolvimento técnico-científico, marcas da humanidade tendendo para o “uno”. Descobrir essa unidade, para lá de diferenças episódicas, no quadro de uma experiência empírica que a volta ao mundo faculta é, em nosso entender, uma formulação de máxima importância para a constituição da mentalidade moderna do pensamento histórico e filosófico do Ocidente.

    Não mais o “outro” empírico e experienciado se revela a face temível da alteridade (o Outro enquanto fantasma cultural, monstruosidade ameaçadora), mas, antes, vem ostentar a manifestação de uma variedade racionalmente previsível, teoricamente já anunciada pelo pensamento iluminista. O que surge, de modo inovador, como proposta humanista, é o ser diferente nos seus fundamentos culturais, mas idêntico na sua valorização ontológica. Ganha significado, desse modo, a visão do Outro como semelhante, admitindo o sentido de uma comunhão em que o universo seria uma frátria, ou um uniteísmo, à maneira de Fourier (cf. Barthes, 1971: 107), integrando pátrias, lugares das diferenças culturais. Fundamentalmente, no entanto, ao optimismo relativo que parece construir-se como uma conclusão entretecida no desenrolar da perigeia modernista, herdeira da utopia de Jules Verne, vem contrapor-se, em Ferreira de Castro, um pessimismo que se traduz, quase sempre, por um olhar fascinado pelos rituais e símbolos da morte, marcos do percurso para uma “vida eterna”.

    Ferreira de Castro em 1960, na Livraria Sá da Costa, na companhia do jornalista Alfredo Noales, do jornal República.

    Perpetuando, de modo dinâmico, a memória do autor, existe hoje, com localização em Ossela, um Centro de Estudos Ferreira de Castro, a funcionar em modo de Associação, tendo como sede a Biblioteca de Ossela. Esta foi construída pelo escritor em frente à casa onde nasceu.  Ambas foram por ele doadas à comunidade.

    A Associação foi constituída a 19 de Março de 2001, tem como principais objectivos a promoção internacional da leitura e do estudo da obra do autor e rege-se por estatutos próprios. Além de encontros, colóquios e outros eventos culturais, a Associação promove, com a colaboração da Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra, a publicação de uma revista dedicada a estudos sobre a obra do autor e temas afins, Castriana, da qual já se publicaram cinco números.    

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Andrade, J. P., Ferreira de Castro, in Coelho, J. Prado (org.), s/d, Dicionário de Literatura, Figueirinhas, Porto

    Barthes, Roland, 1966, Critique et Vérité, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1970, “Par où commencer?” in Poétique nº 1, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1970, S/Z, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1971 Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil

    Benjamin, Walter, 2006, A Modernidade, Assírio e Alvim, Lisboa

    Brasil, Jaime, 1961, Ferreira de Castro, Arcádia (A Obra e o Homem), Lisboa

    Cabral, Eunice, 1998, A Ilusão Amorosa na Ficção de José Régio, Vega, Lisboa

    Cendras, Miriam, 1996, Blaise Cendrars, l’or d’un poète, Gallimard, 1996

    Cohn, Dorrit, 1981, La transparence intérieure, Seuil, Paris

    Hamon, Philippe, 1991, La Description littéraire, Macula, Paris

    Jorge, Carlos J.F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço: para Uma Leitura Literária dos Textos de Viagens,  Ulmeiro, Lisboa

    Lopes, Óscar, in Saraiva, A. J., e O. Lopes, s/d, 17ª ed., História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Lopes, Óscar, 1986, Os Sinais e os Sentidos, Caminho, Lisboa

    Sullà, Enric, in Sullà (org.) 1998, El Canon Literario, Arco/Libros, Madrid

    Torres, A. Pinheiro, 1977, O Neo-Realismo Literário Português, Morais, Lisboa 


    [1] Assentamos a nossa argumentação em dois conceitos que, segundo  a crítica alemã,  designam os dois processos segundo os quais se tem desenvolvido mais produtivamente a revelação da vida interior das personagens: a “psico-narrativa” (cf. D.Cohn, 1981, 37-63), que é a revelação dos estados de espírito da personagem pelas palavras de um narrador omnisciente, mais ou menos interveniente; e o “monólogo narrativizado” que é a “transformação do discurso interior das personagens, tornando-se o discurso do narrador” (1981:122)  

  • Sartre e o cinema: notas para uma investigação

    Sartre e o cinema: notas para uma investigação


    Jean-Paul Sartre relacionou-se, de várias formas, com o cinema. Não o fez sistematicamente, nem com constância. Dado que foi a vários níveis que esse contacto se deu, de modo muitas vezes não explícito, parece-nos que é possível abordar as relações de Sartre com o cinema segundo duas perspectivas principais, ou seja, que melhor se harmonizam com o objecto a analisar.

    Uma, panorâmica, que tenderia a fornecer uma perspectiva geral dos diversos tipos de aproximação que o filósofo francês praticou relativamente ao cinema; e outra que, procedendo por eleição de uma dominante, privilegiasse um desses tipos, tornando-o central.

    Jean-Paul Sartre (1905-1980)

    Uma abordagem como esta segunda, tomaria, obviamente, as outras formas de contacto como secundárias ou até, mais organicamente, subsidiárias da dominante. Até certo ponto, é a este segundo modelo de abordagem que damos preferência, procurando compreender o modo como a importância atribuída pelo escritor ao cinema, notória, mesmo quando não explícita, em momentos e tipos de textos privilegiados de crítica literária, condicionou e influenciou a sua reflexão poética.

    Numa perspectiva mais complexa, mas, também, mais rigorosa e completa, parece-nos importante dar atenção a esse processo de condicionamento e de influência encarando-o como uma prática em que o escritor tem uma função activa, na recepção do novo meio.

    Sublinhamos, assim, o modo pelo qual o escritor Sartre se assenhoreou dos mecanismos discursivos do cinema, assumindo-os como procedimentos relevantes de uma poética da narrativa, capaz de entrar em diálogo com as que se forjaram a partir da literatura ou do teatro, e de sugerir a renovação dos procedimentos da narrativa verbal, nomeadamente a romanesca.

    A opção por tal perspectiva deve-se ao facto de que nos parece ser importante ter em conta, na obra do escritor, a sua relação privilegiada com a palavra e o texto ficcional verbal. Assumimos, quando nos colocamos nessa perspectiva, que o elemento linguístico foi dominante, ou mesmo exclusivo, como elemento material, na actividade criativa de Sartre, e consideramos, em acréscimo, que sobre o poder representativo da palavra se debruçou atentamente o Sartre crítico e teorizante.

    photography of camera reel film

    Ora, é tendo em atenção essa predominância que tomamos, como aspecto fundamental, sobretudo, o modo como o cinema inspirou ou ajudou a construir algumas das mais importantes conceptualizações do autor relativas à criação literária e, sobretudo, romanesca.

    Acreditamos ser possível seguir um percurso paralelo ao nosso e verificar como, nas próprias criações literárias de Sartre, a narrativa se encontra marcada pelas leituras que o romancista terá feito, consciente e mesmo inconscientemente, do cinema e dos esquemas narrativos que ele patenteia como novidade para a arte do relato ficcional.

    Contudo, acreditamos, até certo ponto, que essa prática não teria sido tão inspiradora e marcante para as vanguardas literárias como a sua actuação como crítico. Utilizando um exemplo, com muita brevidade e esquematismo, dado que voltaremos a ele adiante, como questão central da nossa argumentação, podemos dizer que é a leitura, enquanto crítico, que Sartre faz do romance americano, de Dos Passos, de Faulkner, de Hemingway ou de Sherwood Anderson, bem como o seu modo de ler “negativamente” La fin de la nuit, de Mauriac, ou entusiasticamente L’étranger, de Camus, que marca profundamente a inflexão tomada, daí em diante, pela narrativa literária francesa e, em eco, eventualmente, a narrativa de alguns escritores de países europeus e mesmo americanos – não tanto os dos Estados Unidos, é claro, como os da América Latina.          

    Por outro lado, parece-nos oportuno lembrar, desde já, um texto de Sartre que nos remete para uma espécie de equação, para algo similar ao desenvolvimento de uma fórmula racional a partir de um certo número factores dados, que nos sugere, por comparação, quase figurativamente, aquilo queremos apresentar como sendo o seu modelo privilegiado de reflexão poético-crítica.

    É a um texto de Les mots que recorremos, por isso, antes de mais, dado aí ser central, para o narrador autodiegético, a relação do homem de palavras com os outros discursos, sobretudo os não verbais, ou com aqueles que só parcialmente o são.

    Tudo isto, é claro, num processo de autobiografia reflexiva, incidindo, principalmente, sobre o “nascimento do escritor”. Não só emerge, no culto do cinema, uma visão da sociedade, das hierarquias e das classes, apreendida quase como um imperativo categórico de raiz emocional e afectiva, que permite ao autor afinar as categorias discretas do mundo, como se evidencia o culto da palavra, na sua demarcação e promiscuidade relativamente à imagem fílmica[1]. Somos quase levados a identificar, nos termos dessa paradoxal adesão, o oximoro de raiz afectiva.

    “Ao meu defunto pai, ao meu avô, familiares dos balcões de segunda, a hierarquia social do teatro dera o gosto pelo cerimonial: quando muitos homens estão juntos, cumpre separá-los por meio de ritos, ou então há chacina. O cinema provava o contrário, […] o seu público tão mesclado parecia reunido por uma catástrofe. […] Vi Zigomar e Fantomas, As proezas de Maciste, Os Mistérios de Nova Iorque: as douraduras estragavam-me o prazer. O Vaudeville, teatro fora de função, não queria abdicar da sua antiga grandeza: até ao derradeiro minuto, uma cortina vermelha de borlas de ouro mascarava a tela; davam três batidas para anunciar o começo da representação, a orquestra tocava uma ouverture,o pano levantava-se, as luzes extinguiam-se. […] Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte me pertencia, como a todos. Éramos, eu e ela, da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze e não sabia falar. […] Inacessível ao sagrado, eu adorava a magia: o cinema era uma aparência suspeita que eu amava perversamente pelo que ainda lhe faltava. Aquele fluxo rumorejante era tudo, era nada, era tudo reduzido a nada […]; mais tarde, as translações e as rotações dos triângulos lembravam-me o deslizar das figuras sobre a tela, amei o cinema até na geometria plana. Do preto e do branco, eu fazia cores eminentes que resumiam em si todas as outras e só se revelavam ao iniciado; encantava-me o invisível. Acima de tudo, gostava do incurável mutismo dos meus heróis. Ou antes: não eram mudos, já que sabiam fazer-se compreender. Comunicávamos pela música, era o rumor da sua vida interior. A inocência perseguida não se limitava a exprimir ou a mostrar a sua dor, impregnava-me dessa dor com a melodia que saía dela; eu lia as conversas mas ouvia a esperança e a amargura, surpreendia pelo ouvido a dor altiva que não se declara. […] não era eu aquela jovem viúva que chorava na tela, e, no entanto, ela e eu tínhamos uma só alma: a marcha fúnebre de Chopin[…]. Como eram felizes aqueles caw-boys, aqueles mosqueteiros, aqueles polícias: o futuro deles estava ali, naquela música premonitória, e governava o presente, um canto ininterrupto confundia-se com as suas vidas arrastava-os para vitória ou para a morte […] o entrecruzamento de todas essas imagens, de todas essas velocidades e, em baixo, a corrida infernal da «Corrida para o Abismo», trecho extraído da Danação de Fausto e adaptado para o piano, tudo isso era uma só coisa: o Destino.[…] Decidi perder a palavra e viver em música” (s/d [1964]: 90-93).

    Uma tão longa citação justifica-se. De facto, parecem-nos estar patentes, nos enunciados que recolhemos de um excerto bastante coeso, do livro de Sartre que mais se assemelha a uma autobiografia, dois aspectos centrais de uma reflexão poética, que, conjecturamos, o filósofo francês terá aprendido como espectador de cinema: o facto de uma forma de linguagem ficcional ou mimética estar em estreita relação com os códigos e valores culturais que lhe enformam a enunciação; e a evidência de a narrativa  cinematográfica ser contrapontística e temporal, ou seja, assentar no valor opositivo e dinâmico da montagem e da sequencialidade das imagens visuais, de tal modo que se lhe afigura  como semelhante à sintaxe musical – confundindo-se mesmo com esta.

    A imagem mental percebida no cinema é, assim, uma espécie de despojo diurno, retalho de ícones, acções e falas, de que se alimenta o próprio devaneio fantasista do narrador autobiográfico, como ele reconhece algumas páginas adiante, no mesmo texto, quando se recorda de si próprio, na infância, encarnando heróis extraordinários, em mímica solitária, na penumbra do quarto onde a mãe tocava piano (p. 94).

    Tudo se passa, aparentemente, como se a enunciação cinematográfica se originasse num dizer proveniente de um “fluxo rumorejante” que “não se limitava a exprimir ou a mostrar a dor” da personagem, mas, sobretudo “impregnava” o narrador da “dor com a melodia que saía dela”. Além do mais, parece-nos curioso reter o facto de o fluir das imagens se associar à música, sendo representado por estas, no imaginário de Sartre, um sistema de referências de valor mítico. O facto é tanto mais curioso quanto, no seu texto, L’imaginnaire, a imagem cinematográfica não ser referida pelo filósofo francês, sendo, curiosamente, a da música valorizada como representação preferencial do devaneio, logo a seguir ao teatro e à pintura.  (cf. Sartre, 1966: 150 e 362-371).

    Essa substituição – metafórica, do nosso ponto de vista – preconiza, num funcionamento que resumimos sob a designação conceptual de premonição esquemática, o modo como se torna inconsciente, ou mesmo recalcada, a aprendizagem do modelo de enunciação que acima referimos. O entendimento do cinema que Sartre desenvolve, desde a infância, enquanto forma expressiva que marca profundamente o seu discernimento estético, assenta no modelo que a memória narrativa de Les mots desenterra da do passado.

    Esse esquema associativo funciona, nele, como um imperativo categórico: dita-lhe um modo de conceber e entender o tempo e o ritmo da narrativa, ou até mesmo a instância enunciativa da narrativa romanesca, mas mantém-se “i-nomeado”, como que em ângulo cego, ou inconsciente. É como se o emergir teórico do seu discernimento, educado pelo cinema, mantivesse, em amnésia, a matéria em que o seu critério poético se funda funcionando como premonição esquemática. Julgamos útil darmos um exemplo do modo como se evidencia essa sua aprendizagem, mesmo quando não diz a sua origem, de acordo nossa congeminação de o Sartre crítico e teórico da literatura ser, como leitor, um atento observador das formas e dos procedimentos do cinema, incorporando a poética do filme numa recepção activa, mesmo quando não explícita.

    Assim, tendo em vista reforçarmos o nosso argumento, parece-nos avisado citar alguns passos da apreciação crítica que o escritor francês faz de alguns romancistas, sobretudo americanos. Sobre John Dos Passos, por exemplo, afirma [1938]:

    “Fez tudo para que o seu romance parecesse apenas um reflexo [porque] a sua arte pretende ser demonstrativa […]: mostrar este mundo, o nosso. Mostrá-lo simplesmente, sem explicações nem comentários” (Sartre, 1968: 14). A tónica é colocada num determinado processo de enunciação que Sartre parece ter sido dos primeiros, entre os críticos franceses, a realçar como procedimento narrativo específico, moderno e valorizável pelas características que o distinguem. Antes de o nomearmos, para melhor o distinguirmos, convém observar como ele é recorrente, ainda que matizado, nos textos de crítica literária do escritor francês. Assim, por exemplo, sobre o modo de Dos Passos apresentar os acontecimentos, diz-nos o crítico: “O acontecimento do romance é uma presença inominada: não se pode dizer nada dele porque se está a fazer […]: em nenhum momento se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada[…]. Mais um passo e tornaríamos a encontrar o famoso monólogo do idiota de O som e a fúria. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível” (1968: 16-17). De tal modo o predomínio do mostrar é decisivo como técnica detectada pelo crítico que, mesmo quando julga vislumbrar a opinião, ele a vê como que emergindo sob o regime do cénico no sentido luboquiano do termo, forma do espectáculo mostrado mas não dramatizado (cf. Lubbock, 1926: 67-69). Assim, lemos em Sartre: “Dos Passos finge que nos apresenta gestos como acontecimentos puros, como simples exterioridades, os livres movimentos dum animal. Mas é apenas uma aparência: de facto adopta a opinião pública para nos expor o ponto de vista do coro” (1968: 20).

    black and white lamp with tripod

    A expressão final do enunciado acima citado fornece-nos a designação do conceito que aqui está em causa, como categoria fundamental do processo narrativo: o ponto de vista.

    A questão de fundo que, quase sempre, se coloca, relativamente ao ponto de vista ou focalização, é a da localização e amplitude gnómica da perspectiva adoptada. Podemos ainda acrescentar, depois do conhecimento que a narratologia desenvolveu sobre a matéria, desde os anos 30 do século passado até hoje, que é quando a perspectiva ou focalização se torna restrita, quando ela corresponde ao exercício tecnicamente vigiado de uma tomada vistas, que a questão se torna conceptual e teoricamente interessante para o romance. É então que o romancista procede tal como a fotografia ou o cinema fazem, inevitavelmente, para existirem simplesmente.

    Ou melhor, para nos situarmos no cerne da questão tal como ela é vivida por Flaubert, Henry James e, em geral, o romance modernista de pendor mais ou menos naturalista: o que está em causa é o assumir, pela narrativa, da perspectiva monocular, já com um passado clássico na pintura, e reformulada, como problemática actual para os artistas do século XIX, sobretudo de Courbet a Cézanne.

    Com essa problemática são incorporados, como tópicos importantes para a narração, todas os motivos e conceitos que esse aparato de visão do mundo arrasta, sobretudo depois da afirmação da sua modalidade de dispositivo mecânico tal como emerge sob a forma de câmaras fotográficas e, mais tarde, de cinema.

    Sem enunciar nunca esse mecanismo, comentando sempre as narrativas que critica como se nunca lhe ocorresse o funcionamento dessas máquinas óptica feitas exclusivamente para captarem espaços, gestos e cenas como pontos de vista singularizados e neutros, Sartre parece falar delas em perífrases.

    Numa crítica ao romance Sartoris,de Faulkner, contemporânea da que citámos acima, sobre Dos Passos, datada também de 1938, diz-nos Sartre: “[…] Deixei de poder aceitar o homem de Faulkner, é um trompe-l’œil. É uma questão de iluminação. […] Quando esperamos tempestades são-nos mostrados gestos, demoradamente, minuciosamente. […] Aqui, os gestos (calçar as botas, subir uma escada, montar a cavalo) não pretendem mostrar, mas esconder. Observamos tudo o que possa revelar a perturbação […] mas os Sartoris nunca se embriagam, nunca são atraiçoados pelos gestos” (1968: 7-8).

     Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

    A omissão que Sartre pratica, relativamente às máquinas de captar imagens, parece-nos formular-se como gritante ausência num discurso tão cheio de dissimulação como o que ele encontra em Faulkner: tudo se passa como se as longas descrições que faz, do modo como os romancistas americanos praticam as captações gestuais e cénicas, servissem mais para ocultar o mecanismo implícito como modelo do processo de construir a focalização, do que para o revelar. 

    O texto que escreve em 1968, sobre L’engrenage, que publicou como guião, em 1948, revela que ele próprio reconhecia que a técnica do ponto de vista apontava para uma ligação entre o cinema e o romance: “O argumento de L’engrenage foi escrito em 1946. O que me divertia, inicialmente, era transpor para o ecrã uma técnica que os romancistas anglo-saxónicos utilizavam frequentemente antes da guerra: a pluralidade dos pontos de vista. A ideia estava no ar… No filme que eu imaginava não só a cronologia se encontrava alterada como a própria personagem, Hélène, aparecia sob aspectos exteriores diferentes, de acordo com o ponto de vista que a apresentava” (1996: contracapa).

    Não está Sartre a falar do procedimento básico do cinema, quando fala da pluralidade de pontos de vista? Não seria extraordinário que o fizesse, dado que, além do guião já citado, que nunca foi posto em filme, Sartre escreveu alguns que foram realizados cinematograficamente, nomeadamente, Les jeux sont faits, de Delannoy e Freud, de John Huston.

    O que nos parece curioso e sintomático é que Sartre, sendo obviamente um intelectual conhecedor do cinema e dos seus mecanismos, fale da transposição para o ecrã da pluralidade dos pontos de vista, depois de Citizen Kane (1941), como se fosse sugestão sua. Inverte o percurso, mesmo em 1968, daquilo que toda a crítica, já então, seguindo as próprias sugestões críticas do Sartre de 1938, considerava, pelo menos desde Claude-Edmonde Magny em L´age du roman americain, uma influência decisiva do cinema sobre o romance.

    É claro que poderá ser evocado, aqui, o precedente da crítica anglo-saxónica, quando preconiza, desde Henry James, que “a arte do romance começa apenas quando o romancista pensa na sua história como uma matéria a mostrar, de tal forma que ela se contará a si mesma” (Lubbock, 1926, 62; cf Bourneuf e Ouellet, 1976: 109-110) ou quando preconiza que “o autor” pode falar “através de uma das pessoas do livro” (Lubbock, 1926, 68).

    Essa será, aliás, a tónica de Sartre quando avalia a arte de Mauriac, negativamente [1939]. Vale a pena citar um passo para que se veja o fundamento da apreciação: “A  consciência da protagonista [que Mauriac apreesenta – Thérèse] representa o binóculo graças ao qual o leitor pode lançar uma olhadela ao mundo romanesco e a palavra «ela» dá a ilusão dum recuo do binóculo; lembra que esta consciência reveladora é também personagem de romance, representa um ponto de vista privilegiado e realiza para o leitor este voto caro aos amantes: ser ao mesmo tempo ele próprio e outro distinto de si […] Mauriac aproveita-se desta indeterminação para nos fazer passar insensivelmente dum ao outro aspecto de Thérèse […]: «Ela não podia não ter consciência da sua mentira: contudo apoiava-se nela». Esta frase mostra bem a traição constante que Mauriac exige de mim” (Sartre, 1968: 37-38).

    wooden ladder by bookshelves

    Este excerto é de extrema importância para os factos que aqui queremos observar, por ser representativo de duas tendências que se conjugam, em Sartre, de modo extremamente problemático: a tendência tradicional da crítica francesa, e a nova tendência, que se constitui como prelúdio àquilo que Barthes virá a chamar nouvelle critique. A primeira tendência subdivide-se em duas frentes: a académica e a impressionista.

    A primeira dessas frentes preocupava-se, sobretudo, com a génese das obras, ou com a dimensão filosófica que a obra teria na época que a vira nascer, e a segunda atendia, sobretudo, aos aspectos morais ou psicológicos. Quanto à nova tendência, tal como o fará, alguns anos mais tarde, o estruturalismo emergente da nouvelle critique, interessava-se pelos problemas postos pela questão ponto de vista na narrativa.

    Deve notar-se que esta última tendência, nos anos 30 do século XX, ainda era pouco mais do que novidade na crítica anglo-saxónica, e ainda estava incipientemente teorizada pelos formalistas russos. Ora, Sartre julga as dimensões genéticas, filosóficas, éticas e psicológicas do romance de Mauriac, praticando os objectivos da tradição, mas, para o fazer, aplica observações que se fundamentam, sobretudo, na sensibilidade que crítico tem à manipulação do ponto de vista.

    Não nos deve ser indiferente registar, também, acompanhando ainda essa mesma ordem de ideias, que, alguns anos depois da publicação dos artigos de Sartre sobre os romancistas americanos e Mauriac, que acabamos de citar com alguma brevidade, se multiplicam “os artigos assinados por Albert Laffay e Doniol-Valcroze” que enfatizam, sobretudo, a questão do ponto de vista.

    O que é digno de registo, em sequência do que vimos argumentando, é o facto de se constatar que esses artigos são “frequentemente influenciados pela filosofia sartriana” e, simultaneamente, “inspirados pela estética comparada do romance e do cinema” (Bourneuf e Ouellet, 1976: 111).  

    Bourneuf e Ouellet registam ainda como importante concomitância aos fenómenos acima referidos, para enfatizar a importância crescente do interesse pelo estudo do ponto de vista na narrativa, a publicação de L’age du roman américain de Claude-Edmonde Magny, em 1948. De facto, a primeira metade dessa obra intitula-se «Romance americano e cinema» e, nela, podemos encontrar muitos argumentos que parecem decorrer directamente das observações que Sartre havia feito uma década antes sobre o romance americano.               

    Para terminarmos estas notas, que ficarão apenas como um roteiro para uma futura investigação, gostaríamos de relembrar, algumas palavras de Sartre sobre Dos Passos que acima citámos, para as confrontarmos com outras e, em seguida, comentarmos os dados observáveis nesse confronto: “[nunca] se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada […]. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível”.

    Acrescentaríamos a esta palavras, aqui reformuladas em síntese, os seguintes comentários de Sartre sobre Camus: “O que [Camus] aproveita de Hemingway é, portanto, a descontinuidade das suas frases cortadas que se ajusta à descontinuidade do tempo.

    Agora compreendemos melhor o estilo da sua narração: cada frase é um presente” (1968: 103). As palavras de Jean Bloch-Michel que, entre outros romances modernos, comentam L’étranger, de Camus, procurando apresentar os   denominadores comuns ao romance moderno, poderiam servir de comentário historicamente reflectido às sugestões de Sartre: “O cinema criou uma nova espécie de narrativa que tem, nomeadamente, como particular, o facto de a sua sintaxe  comportar apenas, pela força das coisas, um modo e um tempo: o indicativo presente […] Todas estas características da narrativa visual se encontram na literatura de hoje. Antes de mais esse obsessivo presente do indicativo que é o único tempo utilizado, aliás, e a cuja monotonia fatigante se acrescenta a da apresentação objectiva dos factos” (1963: 97-98).

    turned on projector

    Uma tal proposta crítica, apresentada já em época de aprendizagem da nova crítica, na qual já se esboça a referência, enquanto horizonte, ao estruturalismo, ecoa, de algum modo, um comentário feito por Sartre a Camus, no texto já por nós citado, publicado, originalmente, vinte anos antes: “o procedimento de Camus é muito rebuscado: entre as personagens de que fala e o leitor, Camus intercala um tabique de vidro. […] O vidro parece deixar passar tudo e só intercepta uma coisa, o sentido dos gestos. Falta escolher o vidro: será a consciência do Estrangeiro. É, com efeito, uma transparência: vemos tudo o que ele vê. Simplesmente, foi construída de maneira a ser transparente para as coisas e opaca para os significados […]. Alguns homens dançam atrás de um vidro. Entre eles e o leitor interpôs-se uma consciência, quase nada, uma pura translucidez, uma passividade pura que regista todos os factos” (1968: 101-102). Este vidro não poderia ser o da objectiva e, então, o modo de Sartre falar nele apresentar-se como outro circunlóquio, no qual o objecto obsessivamente latente fica, mais uma vez, esquecido? 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bloch-Michel, Jean, 1963, Le présent de l’indicatif, Gallimard, Paris

    Bourneuf, Roland, e Réal Ouellet, 1976, O universo do romance, Almedina, Coimbra

    Lubbock, Percy, 1926, The Craft of Fiction, The Travellers’ Library, London

    Sartre, Jean-Paul, s/d [1964], As palavras, Unibolso, Lisboa

    Sartre, Jean-Paul, 1966, L’imaginaire, Gallimard, Paris

    Sartre, Jean-Paul, 1968, Situações I, Europa-América, Lisboa

    Sartre, Jean-Paul, 1996, L’engrenage, Folio/Gallimard, Paris   


    [1]  Citamo-lo, como os outros textos do autor que aqui apresentamos, em português, pela maior homogeneidade que o uso de uma só língua permite ao discurso expositivo.

  • Mário de Carvalho

    Mário de Carvalho


    Mário de Carvalho tem uma obra significativa. A sua extensão torna-se evidente pelo número de títulos publicados ao longo de quase trinta anos com bastante regularidade. Mas, o mais importante, é a qualidade e coerência que encontramos na sua produção literária.

    Como nota singular, destaca-se a tendência quase exclusiva, nos volumes publicados, à data da elaboração deste texto, para o conto, a pequena historieta, ou, quando muito, a narrativa de extensão média a que poderíamos chamar novela.

    Mário de Carvalho, em 2021.

    Mesmo no interior de quadros narrativos mais amplos, que o autor publica com o registo editorial de romances, formando o índice paratextual de uma proposta de leitura, ou o horizonte dentro do qual a obra é proposta pelo autor ao leitor, a linha estruturante do conjunto é, quase sempre, invadida pela profusão de casos e de pequenas ocorrências anedóticas, que ajudam a construir o ambiente social e, por vezes, a constituir o contorno ou perfil do carácter da personagem.

    De algum modo a poética narrativa de Mário de Carvalho assume, com nitidez, ou mesmo com o traço grosso do gesto caricaturante, a evocação de uma tradição narrativa, cuja origem se perde se nas brumas do tempo, desde o emergir dos traços da nossa cultura, nos espaços que hoje designamos por Ocidente, entre o Velho Mundo das maravilhas orientais, e o Novo Mundo construído a partir de ousadias e mesmo transformações cometidas mar afora.

    Primeira obra de Mário de Carvalho, em 1981.

    Os modelos da fantasia de tradição mediterrânica, desde os mais antigos como o d’As Mil e Uma Noites, ou o chamado romance alexandrino, até às narrativas de aventuras e às intrigas dialogadas ou epistolares, que proliferaram no século XVIII europeu, são as fontes que, mais do que os cânones do romance, ou mesmo do conto clássico (Balzac, Tcheckov, Maupassant), passando por Cervantes, Lope de Vega ou Molière, estão presentes, na sua obra. Vislumbra-se, como matéria-prima básica, no horizonte cultural que a enforma, a ênfase no acontecimento, a espectacularidade dos eventos, a valorização da peripécia.

    Tudo isto se verifica, igualmente, mesmo no teatro que deu à estampa (ou no argumento cinematográfico – prática em que o autor também se experimentou), onde a tendência para uma dimensão minimalista do enredo central e hegemónico é traço evidente. O que nos leva conjecturar, numa apreciação que consideramos pessoal, que a sua incursão em outras matérias de expressão, como o teatro ou o argumento cinematográfico, dá-lhe uma versatilidade, não só na fabulação como, também, na proliferação e articulação dos elementos do enredo, que muito valoriza a sua criação narrativa.

    Se pretendermos apresentar, como ponto de partida a desenvolver, a divisa capaz de ostentar, sem exagero nem eufemismo, as características mais importantes da sua obra, com o fim de despertarmos o interesse dos virtuais leitores desprevenidos, com uma correcta informação, podemos dizer que as narrativas de Mário de Carvalho misturam, com um equilíbrio extraordinário, a exigência realista do romance de crítica social e ideológica, a sátira social, a fantasia irreverente da história popular, mesmo aquela que se conta boca a boca, a provocação paradoxal da imagem surrealista e a sugestividade do imaginário do realismo fantástico, com as suas inquietantes alegorias e parábolas.

    Somos levados, ainda, a acrescentar que os traços acima referidos emergem de modo variado, e em proporções desiguais, em cada livro que publicou, para um melhor esclarecimento das características que, em geral, tornam a sua obra inconfundível.

    De facto, nem sempre a manifestação de cada uma daquelas características aparece com a mesma evidência. Por exemplo, nas colectâneas de contos que publicou no início da sua carreira literária, o fantástico era o traço dominante, ao passo que, nos textos mais recentes, a exuberância do fantástico e da imagem surrealizante minimiza-se, para dar lugar a uma escrita de registo mais predominantemente realista.

    Publicado em 1994, Um deus passeando pela brisa da tarde é o seu mais conhecido romance do género histórico.

    Uma das opções que caracteriza o universo ficcional de Mário de Carvalho, é a de enveredar por modelos narrativos a que, desde o romantismo, com maior ou menor consenso entre criadores, críticos e estudiosos da matéria se tem chamado romance histórico.

    Trazendo à luz toda problemática que envolve tal subgénero narrativo, a propósito de um dos mais longos textos, correspondentes à fase de produção mais recente de Mário de Carvalho, afirma Maria de Fátima Marinho (in O Romance Português pós-25 de Abril, P. Petrov (coord.), 2005):

       “Parodiando o romance histórico tradicional de que acaba por ter algumas características, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde ultrapassa a simples reconstituição do passado onde se inseria uma história de amor mais ou menos romântica para desvendar os modelos arquetípicos de uma sociedade sem tempo específico e sem lugar determinado” (p. 207).

    Deverá dizer-se, em acréscimo à apreciação que acabámos de apresentar, que, do nosso ponto de vista, a reconstituição adquire a capacidade representativa indicada, exactamente pelo rigor com que a reconstituição é feita, ou seja, pelo modo como cada um dos componentes, do universo construído assenta nos modelos da administração imperial romana tal como os conhecemos pelos registos literários, artísticos, documentais e arqueológicos, que foram cautelosamente recolhidos pelo autor.

    De facto, uma das marcas do seu trabalho, enquanto narrador, é a persistência com que faz intervir, junto com o mecanismo da mistura de géneros, tradições, temas e estilos, cautelosa e, por vezes, minuciosamente, de tal modo que a distanciação paródica gera uma postura face às tradições literárias e culturais com que lida e a que lança mão, fortemente inspirada pela irreverência. E o resultado é bastante importante para gerar as marcas estilísticas, poéticas e estéticas que caracterizam Mário de Carvalho.

    No fundo, o seu modo próprio, entre intensamente fantasioso e cautelosamente crítico e realista, é o da sátira, se, nesta designação, acautelarmos a ênfase no centro semântico que etimologicamente a marca: a satura, cuja ideia fundamental é a mistura.

    A enumeração da sua obra, título a título, permite-nos observar, quase sempre, as opções de género dominantes em cada publicação, bem como algumas das implicações temáticas e ideológicas que aí se manifestam[1]. Da enumeração que deles façamos, ressalta que, a um ritmo quase trepidante de publicações, se veio sobrepor a publicação mais espaçada, com intervalos mais regulares.

    Faz parte dessa alteração de ritmo, a persistência na elaboração de narrativas mais longas – menos contos e mais romances. Aparecem, nestas fases de publicação mais espaçada de narrativas, as peças de teatro.

    Publicado em 2003, este romance foi galardoada com o Prémio PEN Clube.

    Uma preocupação pela representação do quotidiano actual, em modelos de representação razoável e consensualmente realista, vai ocupando cada vez mais lugar na ficção de Mário de Carvalho. A História, o conhecimento do passado e a sua transposição para os quadros da ficção vai-se tornando, cada vez mais, regulada pelos pactos da verosimilhança da narrativa realista.

    Tudo parece passar-se como se a tradição narrativa anterior aos códigos da formação da narrativa realista clássica a que já fizemos referência fosse absorvendo os cânones balzaquianos e tcheckovianos, propondo um modelo de representação do mundo e dos seus valores, liberta dos pesos excessivos da verosimilhança, mas sem a esquecer, para melhor poder fazer do acto de representar um modelo de paródia, irreverência e entendimento crítico do universo material, social e ético que representa.

    Por um lado, a partir da tentativa de representação do espaço colonial, através de episódios e situações de guerra, durante as lutas travadas pelas independências, a expressão dos processos políticos e confrontos ideológicos é assumida, mais amiúde, como tópico das suas narrativas. Por outro lado, a preocupação com a presença do elemento representativo, do pormenor bem conseguido, introduz, nas histórias de Mário de Carvalho, uma atenção à imagem da classe média citadina dos nossos dias, que só raramente foi igualada na literatura portuguesa.

    Mas é nos seus romances históricos que essa atenção ao pormenor se tornou pedra de toque de um fazer profissional inconfundível, por vezes assumindo o estatuto de um traço estilístico inimitável. Para esse fim, é muito comum, na produção do autor, uma documentação factual bastante rigorosa, a sustentar a credibilidade do universo evocado, a procura do léxico característicos dos mundos sociais que evoca, a referência aos grandes elementos simbólicos e míticos dos ambientes e meios referidos, bem como a cautelosa reconstituição dos espaços geográficos, naturais e urbanos.

    Desse trabalho de atenta reconstituição não resulta, porém, o relatório ou a descrição segundo os moldes de uma enciclopédia vertida para a base de sustentação das histórias contadas.

    O procedimento particular que torna notável, e mesmo inconfundível, o trabalho de reconstituição histórica de Mário de Carvalho é o resultado do entretecer desse léxico minuciosamente restaurado, em tons de enunciação narrativa em que estão presentes as marcas ideológicas e culturais da instância actual que as produz.

    Após de publicar na Vega e na Rolim nos anos 80, Mário de Carvalho permaneceu mais de duas décadas na Caminho. Em 2012 mudou todo o seu catálogo para a Porto Editora.

    Mesmo quando são os protagonistas que contam as suas histórias, é evidente, no desenrolar das suas exposições, os modelos de discurso pós-românticos e modernistas. Mesmo quando as matrizes imitadas, para evocações de outras eras, são as dos textos canónicos, da religião, da lenda ou da historiografia coeva, a sobreposição de imagens paradoxalmente aproximadas são construções eminentemente surrealistas.

    Para não nos alongarmos muito, na apresentação de exemplos que o leitor terá a oportunidade de colher em futuras leituras, relembremos apenas um dos títulos acima enumerados, que até pelo lugar de destaque, em frontispício da obra, emblematiza o procedimento referido: O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana.

    Parece ficar sugerido, no livro mais romanesco publicado pelo autor, A Sala Magenta, que um registo menos exuberante de evocação de universos ficcionais se afirma na sua obra. Um pendor para a reconstrução de ambientes e vivências actuais, apresentados de modo quase decorrente dos códigos do realismo clássico, afirma-se claramente neste seu romance.

    A ostentação desse percurso, na narrativa singela de um estado amoroso, vivido na quase evanescência de uma relação, alerta-nos para a eventual reavaliação crítica e reformulação dos procedimentos modernistas que, nas últimas décadas, têm sido hasteadas em nome de uma situação “pós-moderna”.

    No fundo, como afirmam algumas vozes de postura mais simplista e redutora, o que romancista tem de fornecer ao leitor é uma boa história, contada de fio a pavio, sem grandes desvios e tortuosidades, distinguindo claramente as vozes enunciativas, de modo a oferecer um alto grau de legibilidade.

    E, de certo modo, em A Sala Magenta é esse o percurso aparente de uma personagem cuja complexidade psicológica se patenteia com clareza no desenrolar da narrativa, cineasta desencantado com o seu próprio vazio, encaminhando-se para um estado de alcoolismo sem retorno, arrastando uma perna estropiada pela acção do anárquico vandalismo urbano, em busca de uma fixação amorosa para a qual não consegue arranjar justificações.

    Cada vez mais forte, sobrepondo-se a uma nitidez de contornos a que nenhum leitor impaciente poderá levantar objecções, vai emergindo um tom de fundo, um resíduo que parece querer devorar todo o universo sobre o que se espalha e que acaba mesmo por ser a única réstia do tal estado amoroso que o protagonista desenvolve nos encontros quase castos e silenciosos que tem com uma mulher: a cor magenta da sala onde se encontra com ela. Que não há remissão para o vazio dessa vivência evidente mostra-o a tentativa falhada de suicídio, no final do romance. Poderia aqui ressoar o sibilino verso aprendido do poeta? Se te queres matar, por que não te queres matar?

    Mário de Carvalho em 2021, aquando do lançamento da sua mais recente obra.

    O universo evocado neste último romance, a figura do cineasta, o qual nos aparece como putativo realizador, mas, em muitos traços, parece mais o argumentista criador, parece apontar para uma outra evolução mais recente do narrador brilhante que é Mário de Carvalho: a marca do cinema na obra do escritor.

    Embora não nos tenhamos detido, até agora, com a devida atenção, nos textos que nos parecem apontar para essa evolução desencadeada pela contaminação de trabalho para o cinema, podemos dizer que, por exemplo, em O Homem do Turbante Verde (2011), a história que dá título ao livro, e os contos que aparecem no mesmo volume, apontam para o registo do argumento, ou mesmo da sinopse cinematográfica, tal como acontece nas produções designadas por ele “crononovelemas”, nome que dá ao livro que reúne duas das suas novelas anteriores,  em que se revela a oscilação entre o registo documental do documentário e o artifício da crónica enquanto visão do mundo, com laivos de telenovela.

    Professor Emérito da Universidade de Évora


    [1] Contam-se os seguintes títulos na obra de Mário de Carvalho, que, tudo indica vão aumentar: Contos da Sétima Esfera (1981); Casos do Beco das Sardinheiras (1981); O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana (1982, Prémio Cidade de Lisboa); A Inaudita Gerra da Avenida Gago Coutinho (1983); Fabulário (1984); Era Uma Vez Um Alferes (1984); Contos Soltos (1986); E se Tivesse a Bondade de me Dizer Porquê? (1986, em parceria com Clara Pinto Correia); A Paixão do Conde de Fróis (1986, Prémio Dom Diniz, ex aequo); Os Alferes (1989); Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano (1991); Água em Pena de Pato. Teatro do Quotidiano (1992); Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994, Grande Prémio da APE 1995, Prémio Fernando Namora, 1996 e Prémio Pégaso de Literatura, 1996); Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto (1995); Apuros de Um Pessimista em Fuga (1999); Se Perguntarem por mim não Estou seguido de Haja Harmonia (teatro, 1999, Grande Prémio da APE); Contos Vagabundos (2000); Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina (2003, Prémio PEN Clube 2004, Grande Prémio de Literatura, itf/dst); O Homem que Engoliu a Lua (infanto-juvenil, 2003); A Sala Magenta (2008); A Arte de Morrer Longe (2010); O Homem do Turbante Verde (contos, 2011); Quando o Diabo Reza (2011); Não Há Vozes, não Há Prantos, (teatro, 2012); O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel (novela, 2012); A Liberdade De Pátio (contos, 2013); Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão (ensaio sobre arte de narrar, 2014); Novelas Extravagantes (2015); Ronda das Mil Belas em Frol (2016); Cronovelemas (2017), Burgueses Somos nós Todos ou Ainda Menos (2018); O que Eu Ouvi na Barrica das Maçãs (2019); Epítome de Pecados e Tentações (2020); De Maneira que é Claro… (2021, Grande Prémio de Literatura Biográfica da APE).

    A amplitude da aceitação e reconhecimento da sua obra constata-se nas colaborações em que se envolveu, quer no levar à cena das suas peças teatrais, quer ainda o seu seu trabalho como argumentista, qualidade que o levou a cooperar enquanto tal com os realizadores Luís Filipe Costa, José Fonseca e Costa, Solveig Nordlung, José Carlos Oliveira, Gonçalo Galvão Teles e José Barahona; além de ter sido professor convidado da Escola Superior de Teatro e Cinema e da Escola Superior de Comunicação Social, durante vários anos e ter orientado pós-graduações em escrita de teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e várias oficinas de escrita de ficção.

    Foram-lhe atribuídos em Itália os prémios Giuseppe Acerbi (Passegia un dio nella bresa della sera) e Citá de Cassino (I sottotenenti).

    A 9 de Junho de 2014 foi agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.

    A 22 de novembro de 2021, foi agraciado com o grau de Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

  • O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool

    O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool


    Teria muitas maneiras possíveis para começar a falar das relações entre o vinho e a literatura, evocando a sumptuosidade do passado que me desse a razão pelo seu prestígio de todos os textos; porém, ocorre-me, com persistência irracional e, por isso, respeitável, a Odisseia, que atribuímos a um autor mais ou menos mítico: Homero.

    Não é tanto a figura mais importante da história contada que nos ocorre, no entanto. É um outro ser primevo, titânico, com o qual Ulisses (ou Odisseus) se confronta que nos parece justo evocar em primeiro lugar. Nele se resume, parece-nos, a oscilação imaginária que o vinho evoca na literatura: o movimento entre a alegria e a fatalidade.

    people tossing their clear wine glasses

    De facto, Polifemo, o ciclope, tal como nos aparece na narrativa das épicas viagens, embora não seja personagem de prolongada presença, é entidade de um percurso vastíssimo. Sendo primeiro a potestade que aprisiona os viajantes, ele transforma-se, por aceitar o delicioso néctar que Ulisses lhe oferece, naquele que exulta na alegria da embriaguez, adormece na segurança ingénua de um poder que não se reconhece em risco, e desperta na angústia de se ver ludibriado e cego.

    Terá Polifemo atingido a visão suprema, a inteligibilidade da mente em comunhão com o supremo saber, o deleite jubilatório do contacto com o divino? Nunca o viremos a saber. Contudo, parece ser esse um dos apelos fascinantes que o álcool lança: passar uma ponte, sofrer uma perda irreparável e chegar a um lado qualquer a um encontro decisivo cujo esplendor dificilmente se comunica aos outros.

    Tudo se passa como se um vislumbre de plenitude inundasse o ser embriagado, mas, em consequência, este perdesse as referências da sensibilidade visual. Resta o inefável do tacto, do odor, do paladar, como se os sentidos se dispersassem por todo o corpo, e este palpitasse na confusão de um caos vertiginoso.

    Mosaico na Villa Romana del Casale retratando Ulisses dando vinho a Polifemo.

    Omar Khayyam, poeta persa nascido há pouco menos de mil anos, escreveu numa das suas maravilhosas quadras (ou Rubayat, designação da forma estrófica que dá nome, segundo a tradição, ao livro que nos deixou):

                            Quando oiço falar em coisas ditosas

                             De que gozarão os Eleitos, respondo apenas:

                             “Creio no vinho e no dinheiro contado!

                             O som do tambor só me agrada à distância…”

    Tal posição, que nos revela quanto há de religioso, ou, pelo menos, de místico, no vinho, merece ser considerada atentamente. Ela mostra-nos não só quanto o sujeito poético acredita na perfeição do universo a que o vinho dá acesso, numa racionalidade que tem paralelo, apenas, na que evoca o dinheiro, mas também quanto na bebida alcoólica se encontra de impulso para a criação imaginária.

    Contudo, antes dele, os poetas gregos e latinos não tinham uma visão tão parcialmente favorável acerca do vinho. Se, por um lado, gabavam o néctar que provinha dos reinos de Baco, por outro reconheciam como o uso do vinho podia ser indício ou mesmo origem da destruição e da decadência. Mil anos antes de Omar Kahyyam, há pouco menos de dois mil, portanto, Juvenal cantava em pequenos poemas satíricos o triste espectáculo que os ricos davam nos jantares em que se empanturravam e embriagavam.

    Na vida dos escritores, segundo nos revelam algumas biografias, o álcool foi muitas vezes um elemento decisivo, mas ambivalente: nele procuraram inspiração e consolo autores como Faulkner, Hemingway, Sartre ou Carlos de Oliveira. Por ele quase todos se vieram a destruir. E quase todos tiveram a consciência da ambivalência que se desenvolvia na bebida.

    Ernest Hemingway

    Hemingway, por exemplo, encontra no vinho um motivo central para muitas das histórias que situa em Espanha. Contudo, sabe tirar proveito desse mesmo motivo para desenvolver o percurso passional de muitas das suas personagens através do modo como bebem, das bebidas que bebem, das quantidades que ingerem.

    Reconheçamos que, apesar de tudo o que dissemos, não é apenas como bebida que o vinho surge na literatura. Nem é desse modo, julgamos, que ele aparece como grande tema. O cultivo da vinha, a produção agrícola que está na origem da bebida, são motivos centrais na criação de universos de vivência e de conflito de algumas das mais importantes narrativas modernas, quer nos lembremos de autores portugueses quer evoquemos autores estrangeiros.

    Não nos sendo possível enumerar todas e apresentá-las num breve resumo, limitamo-nos a referir-nos a algumas que nos parecem mais importantes, não só pela grandeza dos autores evocados, como pelo facto de serem, de um modo geral, escritores que foram muito bem acolhidos pelos leitores.

    Antes de mais, parece-nos justo lembrar, pelo valor quase emblemático que teve na literatura americana, de modo a ter-se tornado uma obra de amplo acolhimento mundial, traduzida para dezenas de línguas, As vinhas da ira, de John Steinbeck. Neste romance, nunca a vinha é representada como o valor positivo, produtora do fruto que dá alimento e prazer aos homens.

    Capa da primeira edição de As vinhas da ira, de John Steinbeck, publicado originalmente em 1939.

    Ao contrário, a planta e mesmo o fruto de onde é extraído o néctar que, segundo o texto bíblico, devia significar e estimular a paz e a concórdia entre os homens, aparece como o símbolo do trabalho agrícola mecanizado, objecto para onde convergem interesses, ganância e esperanças defraudadas, acabando o território onde cresce a vinha por ser palco do explodir de todos os ódios e rancores que os intervenientes acumulam ao confrontarem-se.

    Até certo ponto, a vinha como palco da luta social, a produção agrícola que culmina no vinho como mecanismo onde se revelam os confrontos sociais, tal como é tratada por Steinbeck, deve ter sugerido a Alves Redol o motivo de base uma das mais curiosas narrativas por ele produzidas. Referimo-nos aos romances que ele escreveu sob a designação geral de Ciclo Port Wine.

    Caso único na sua obra, o autor desenvolve os trágicos confrontos sociais que marcaram as relações sociais de trabalho na época salazarista em três volumes, como uma epopeia organizada em tríptico. Por outro lado, caso raro na obra do romancista, ele sai do universo ribatejano e procura como quadro da intriga que desenvolve em três amplos painéis, a região do Douro vinícola. Os romances são, por ordem na trilogia, Horizonte cerrado (1949), Os homens e as sombras (1951) e Vindima de sangue (1953).

    Trilogia do denominado Ciclo Port Wine, de Alves Redol, publicado entre 1949 e 1953.

    É interessante registar que, quase pela mesma época, um outro grande escritor português, Miguel Torga, abordava os trágicos confrontos humanos na região duriense, no seu romance Vindima (1945). Ligado a um movimento literário anterior ao neo-realismo a que Alves Redol pertence plenamente, Torga aproxima-se, no desenvolvimento das paixões humanas que desembocam no confronto violento, de alguns princípios daquele movimento literário.

    Contudo, é interessante e de notar que não é só esse abandono da posição alheia à dimensão sociopolítica que caracterizou, em geral, a obra de Torga que aqui se faz sentir: também é relevante que seja Vindima o único romance escreveu. Numa obra tão vasta, cultivando os mais variados géneros, esta excepção merece ser cuidadosamente anotada, embora não seja este o lugar para procurar tirar todas as conclusões que daí advêm.

    Na tradição portuguesa, as duas obras que referimos anteriormente merecem um destaque especial. Se o vinho é cantado com alguma brejeirice por poetas portugueses, entre eles o próprio Torga, ou referido como bebida celebrativa ou mesmo origem de desregramento de costumes no romance, como acontece nos banquetes dos padres em O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, a dimensão do vinho e da vinha como símbolo da condição humana aparece pela primeira vez plenamente desenvolvida nos romances de Torga e de Alves Redol.

    Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, foi originalmente publicado em 1947.

    Mereceriam ainda uma referência rápida algumas obras que, embora por razões que explicitaremos em seguida não cabem neste pequeno conjunto, se revelam importantes narrativas em que a problemática do álcool é abordada.

    Devemos registar, em primeiro lugar que a razão principal para não as termos escolhido como conjunto principal se deve ao facto de não tratarem do vinho propriamente dito, nem das tarefas relacionadas com a produção da bebida ou do cultivo do vinho.

    Mas sentimos que não poderíamos deixar de lhes fazer referência porque, pela qualidade e importância das obras, dentro da produção de autores que foram dos maiores da literatura mundial, seria um esquecimento quase imperdoável.

    O primeiro, até pela ordem cronológica, a merecer referência é A taberna (L´assomoir – o balcão, o lugar onde se bate, com os copos, com as moedas, com as mãos), de Zola. É na taberna que o grande autor francês do século passado apresenta o quadro das condições de vida das classes trabalhadoras em Paris.

    O segundo, respeitando ainda cronologia, é Terna é a noite, de F. Scott Fitzgerald, romance típico da geração perdida americana, dos anos 20 do nosso século, que narra como o álcool contribui para a desagregação de uma intensa relação amorosa.

    E o terceiro, último na referência para o destacar pela grandeza, é Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, intensa narrativa em que a bebedeira do “herói” se mantém ao longo de quatrocentas páginas. Por esta história, de inesgotável simbolismo, percebemos que a condição humana que a mescalina revela é mais do que existencial ou social: aponta já para a relação directa com os deuses, com as entidades do além, com os mistérios em que se encerra a morte.

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Mia Couto

    Mia Couto


    O escritor Emílio Couto, sempre dito Mia – e como tal reconhecido –, nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Filho de pais portugueses, próximo, desde muito jovem, das lides e práticas das letras, até pelo convívio com o seu pai, Fernando Couto, poeta e colaborador de uma das mais importantes revistas culturais moçambicanas, Paralelo 20, Mia Couto começou a publicar poesia ainda adolescente.

    Passando adiante de um sublinhar de precocidades que poderiam, até, nada significar, registemos como marco importante para o desenvolvimento da sua actividade de escritor, o primeiro livro que deu à estampa em 1983: Raiz de orvalho.

    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 24/08/2013 – Coluna Monica Bergamo: palestra do escritor moçambicano Mia Couto para o Fronteiras do Pensamento, no teatro Geo. Na foto, Mia Couto. Foto: Greg Salibian/Folhapress – ILUSTRADA

    Conjunto de poemas onde se encontram pontas do filão inventivo, temático e verbal, que virá a desenvolver, tais textos apresentam-se segundo um processo formal discursivo que abandona logo de seguida.

    O verso e a composição ostensivamente lírica são preteridos em favor da formulação que se torna típica do seu labor: a narrativa curta a que, de um modo geral, podemos chamar conto. No entanto, tal prática não configura, dita assim, simplesmente, a realidade global que é a sua obra.

    Com efeito, se é o conto que se revela como a sua forma privilegiada de expressão, pelo modo como domina a sua representação narrativa o escrito breve, tendo evidente um acontecimento bem desenhado, envolvendo o destino ou um lance importante da vida de pelo menos uma personagem, é verdade que, noutros modos de expressão, ensaiou, e muito bem, os seus passos.

    Capa da 2ª edição de Vozes anoitecidas, primeira obra de Mia Couto publicada em Portugal, em 1986.

    Resumindo o conjunto da sua obra num panorama breve, podemos dizer que, depois da sua estreia em poesia, se afirmou com a publicação de dois livros de contos, Vozes anoitecidas (1986) e Cada homem é urna raça (1990), “o primeiro destes granjeando-lhe notoriedade não só em Moçambique como também em Portugal e noutros países, nomeadamente devido às traduções para inglês e italiano” (Laranjeira, 1995: 144).

    Contudo, ao dar à estampa um livro de crónicas, Cronicando (1988), resultado da publicação periódica na comunicação social, apresenta-nos um conjunto híbrido de pequenas narrativas “exemplares”, quase histórias para serem lidas como apólogos, e digressões reflexivas em que o rápido registo da situação serve de exemplum.  

    Se algumas peças desse conjunto, que foi publicado em Portugal em 1991, podem ser lidos como contos, pelo modo como domina uma situação fortemente marcada pela intriga, outros têm de ser encarados de modo diferente.

    Forçoso será perspectivar, a partir desses textos menos evidentemente enquadráveis num género, a forte componente discursiva que a voz da enunciação apresenta nos textos de Mia Couto. Verifica-se neles, de um modo curioso, a voz que constrói a história ou gera a situação discursiva entrar no universo representado, por vezes quadrando-se numa personagem, para, em seguida, num golpe de geometria textual, sair a comentar a História em que a estória emerge.

    A partir do seu primeiro romance, Terra sonâmbula (1992), um projecto que, desde há anos, o seduzia, pode afirmar-se que, em Portugal, se desenvolve “um verdadeiro culto por Mia Couto, expresso no fascínio que a sua figura exerce, a que não é alheia a ausência de pose intelectual, a simplicidade nos encontros com o público, durante os quais prefere contar histórias pícaras ou dramáticas do quotidiano de Moçambique, a falar da sua obra” (Laranjeira, 1995: 144).

    Cremos que, nessa figura assim constituída, do escritor que vai crescendo na sua escrita, se desenham os contornos principais daquilo que torna este autor uma entidade fascinante pela forma como deriva na senda da permanente fractura, da constante e irónica distância dicotómica: percurso que se desenvolve na unidade da obra e na duplicidade cultural, vivendo a ambiguidade que instaura a vários níveis numa espécie de paródia da especularidade, ou alegria do discurso de sentidos equívocos.   

    De facto, as narrativas de Mia Couto “colocam em situação de exposição, confronto e análise as várias culturas e crenças do homem moçambicano” como já sugeriram alguns críticos (cf. Laranjeira, 1995).

    O humor incómodo é, sem dúvida, um dos elementos a ter em consideração mas, se admitimos que essa exposição afecta o universo histórico referencial da suas histórias (romances e contos), temos de admitir que também o universo do sujeito da narração, o narrador mais ou menos autoral, ou cronista que chega a identificar-se como Mia Couto é exposto aos níveis mais profundos da sua crença: aqueles em que a palavra se motiva, a sintaxe se compõe e os alicerces da representação se fundam.

    Primeiro romance de Mia Couto, Terra sonâmbula, foi publicado originalmente em 1992.

    A sequência das suas restantes publicações vem demonstrar-nos que a vereda escolhida, para desenvolver obra em meio de culturas, em abismo de línguas, é o mecanismo fundamental da poética de Mia Couto.

    Em 1994, publica Estórias Abensonhadas, em 1996 dá à estampa o romance A Varanda de frangipani e, no ano seguinte, Contos do nascer da Terra. Cada vez mais, ao longo da sua produção, domina aquilo que poderíamos chamar a dupla ruptura: com as normas da tradição ilustre da literatura portuguesa, sua cultura de origem,  por apelo ao regime do fabuloso – como faz abertamente, por exemplo, no seu último romance, em que o narrador, Kindzu, é um morto cujo diário foi encontrado – mas sem optar, exclusivamente, pelo fabulário africano; e com as normas da língua portuguesa sem se decidir, como se patenteia, por nenhuma língua moçambicana.

    No entanto, tal posição de ruptura é sustida como ruptura, não como abandono. O que se exibe é o rasgão, ou a fractura. Mia Couto não abandona o terreno da literatura que se desenvolveu como uma das grandes forças de coesão cultural a partir da Europa. Se repararmos bem, por exemplo, o morto narrador apela imediatamente para uma das figuras tutelares da literatura em língua portuguesa (brasileira, talvez não por acaso), que é Machado de Assis, com o seu Memórias póstumas de Brás Cubas.

    Se formos atentos às rupturas que desenvolve serena e persistentemente, cada vez com mais frequência, em relação à norma da língua portuguesa (tomando como padrão uma escolaridade avançada e um acordo ortográfico a obter), verificamos que ele rompe pelo excesso de domínio da língua, buscando as rupturas nos limites do possível.

    Quanto a este último aspecto, podemos dizer que Mia Couto fractura a unidade do “padrão” pelas marcas da influência dos esquemas de colocação de afixos (sejam eles prefixos sufixos ou mesmo infixos) à maneira banta. De facto, o que ele representa, na própria aventura da escrita, é o acto vertiginoso de conduzir uma língua (que até é a sua de origem – e não dizemos materna porque ele, no seu radicalismo semântico, nos lembraria que não foi gerado por nenhuma língua) até à curva onde range, por ímpeto causado pelas estruturas e esquemas mais gerais, de línguas com as quais está em contacto de bilinguismo.

    A sua opção é a de uma sub-reptícia ousadia em língua dupla, sob a capa da plenitude de uma só língua, com a intromissão, pontual e amplamente anotada, de uma ou outra palavra de origem moçambicana. Também aqui sabemos que Mia soube guardar e salvar honrosos parentes, idos mas presentes: pensemos sobretudo em Guimarães Rosa que tanto prezava a língua alemã, inspiradora dos palavrões compridíssimos com sabor a sertanejo, a índio, a cafuzo e mesmo a piar de ave ou bicho de pantanal, pelos quais ele brindava a nossa imaginação.

    De facto, quando Mia Couto nos apresenta o seu léxico português, ele não faz mais do que tentar ousadias de mistura, que resultam em novidade e produtividade de expressão. Por exemplo, nada impede “antemanualmente” de ser português, excepto o não se usar. Talvez não se tenha usado.

    Trilogia de As areias do imperador, obra do género histórico, rara na bibliografia de Mia Couto.

    No entanto, este mecanismo tão elementar da nossa língua que permite fazer advérbios de tudo (e isso, Pessoa, por exemplo, tinha-o descoberto claramente) permite a entrada de estruturas morfo-sintácticas das línguas bantas mais comuns em Moçambique na língua portuguesa.

    O filão africano desta laboração já é muito rico. Mia Couto revela conhecer-lhe muito bem as realizações – o que não é de espantar, pois um dos cultores desse modelo (embora de modo menos sistemático, em nosso entender) foi Luandino Vieira, escritor angolano com o qual o autor moçambicano mais jovem tem francos parentescos.

    Reparando bem, o que aqui acabamos por fazer é o elenco canónico de alguns pontos destacáveis de entre os grandes escritores que pelo mundo fizeram crescer o português como língua, que a consolidaram, que a mantiveram viva. Isso fica claro e ninguém melhor do que Mia Couto o sabe fazer, como tentaremos mostrar em breve encerrando a nossa apresentação deste novo grande escritor.

    É bom acrescentar, apesar de tudo, antes de passarmos à apologia de uma nova odisseia da escrita pelo próprio autor, que a aventura de Mia Couto tem, também, uma dimensão continental. Faz parte de uma importante tradição africana, recente mas profunda, buscar caminhos para a emergência ampla da sua expressão escrita. O caminho para essa abertura tem-se revelado, no entanto, bastante escabroso e, no mínimo, tem apresentado complexas dificuldades.

    Mia Couto, durante o discurso de entrega do Prémio Camões em 2013.

    Muitas das línguas africanas não são facilmente grafáveis; muitos países africanos dificilmente poderiam optar por uma língua dominante (para já não falar da complexidade dos dialectos que algumas têm); e a escolarização, a partir de todas essas dificuldades, manifesta-se como mais um escolho a obstruir o caminho. A solução prática tem sido o recurso às línguas dos colonizadores que, para fins práticos e de instrução básica, se mostra satisfatória.

    Perante esta última solução para a escolaridade, muitos escritores optaram por exprimir, numa espécie de tradução possível, o manancial cultural de que eram portadores e recriadores, em francês, inglês, português e mesmo, num ou outro caso, em alemão.

    O resultado não é nada desprezível. Só em língua portuguesa podemos citar obra acabada e plena de um grande poeta, Craveirinha, de quem os “puristas” não costumam ter nada a dizer de mal, ou de um grande romancista que nos parece difícil questionar nesse terreno, Pepetela.

    Mas, mais importante ainda, parece-nos o facto de o Nobel africano, Wole Soyinka, escrever algumas das suas magníficas peças num inglês que os entendidos reconhecem ser de um nível verdadeiramente shakespeareano. Contudo, uma outra linha africana, vinda de um controverso, mas magnífico narrador, também ele nigeriano como Soyinka, chamado Amos Tutuola, tem proposto uma aventura de deriva e transformação da língua do colonizador por força da intervenção da língua africana em que autor se exprime.

    E, isso, segundo ele, seria muito mais trabalho de uma inspiração poética, do que de um deliberado esforço de tradução. É nesta última linhagem que Mia Couto, na sequência de outros grandes autores africanos, se vem inscrever.

    Tão bem ou melhor do que qualquer dos seus mestres e émulos, o autor de que aqui falamos, multiplamente premiado, sabe defender essa posição. Fá-lo, no entanto, mais no terreno de quem conhece e defende a língua portuguesa contra imobilismos, do que de quem pretende a invasão da língua veículo.

    O livro de contos O caçador de elefantes invisíveis, publicada no ano passado, é a mais recente obra de Mia Couto.

    Não podemos entender de outro modo a dimensão irónica da sua frase: “Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro de margens. Como um rio manso e leve, tão educado que não levante poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparência que, verdade autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela conservada”.

    É assim, deste modo, como percurso ou mudança que a língua se lhe afigura e só no processo desse percurso a língua pode ser criadora, no sentido forte que a literatura lhe anexa. É ao agitar a língua que a vida da mesma se assegura. Tal ideia volta num outro texto, pela figura da estrada.

    Com esta, desenham-se, também, com clareza, já não tanto os limites de uma gramática normativa, como as fórmulas poéticas da criação: “Acontece que o mundo é sempre grávido de imenso. E os homens, moradores de infinitos, não têm olhos a medir. Seus sonhos vão à frente de seus passos. Os homens nasceram para desobedecer aos mapas e desinventar bússolas. Sua vocação é a de desordenar paisagens. (…) É que o pé, posto em viagem, anula a condição terrestre. Em troca, o chão se vai desnudando: na alma humana surgem as pegadas do planeta. Afinal, os carreiros, esses teimosos surgentes, não servem apenas para levar os viajantes. Eles próprios se movem junto com a travessia. Deste modo, os lugares se visitam entre si, recordando-se do tempo em que o universo estava todo no ventre de uma pequena gotinha”.

    Talvez muitos vejam, nestas últimas imagens, a visão de um biólogo que, academicamente, Mia Couto é. E nós concordamos, mas pensando que um biólogo se confundirá com o biófilo (repare-se que, biófilo, além de significar “o que ama a vida”, em biologia designa é o ser parasitário, que vive nos organismos vivos) que todo o grande poeta é, mesmo ao saudar a morte.

    Contudo, a imagem que gostaríamos de enfatizar é a dos que vêem no trabalho literário de Mia Couto uma ousadia maior: a de afirmar e defender, em situação de fractura e distância, a vitalidade de uma língua, capaz da grande transformação de travessia, dos desvios regeneradores e criativos: a desviagem.

    É essa postura que ele mantém, até aos últimos livros que publicou e que se revelam incontestáveis êxitos literários e verdadeiros best sellers. É desse modo que uma língua pode unir povos, ser uma riqueza cultural, ser una porque nos entendemos com ela, e múltipla porque ajuda a construir as diferenças que nos libertam.


    Bibliografia:

    Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, Lisboa

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Hélia Correia

    Hélia Correia


    Hélia Correia é uma das mais prolíferas escritoras portuguesas contemporâneas. Isto, por si só, não seria importante, se ela não fosse, ao mesmo tempo, uma das mais criativas e originais nos vários géneros literários que cultivou.

    É de destacar, efectivamente, que, se a autora de A Casa Eterna se tem notabilizado como romancista, talvez, em grande parte, por ser este o género que mais atrai o público leitor e que por tanto, se abre a uma maior comunicabilidade, a verdade é que ela tem cultivado, com grande perfeição e rigor, os outros géneros básicos que costumamos considerar como constituindo a repartição integrante do vasto campo da literatura: o texto teatral e a poesia lírica.

    Hélia Correia. Foto: © Graça Sarsfield

    Mas não fica por aí, o talento multímodo da autora que aqui consagramos. Notáveis são, também, os textos que escreveu para a infância, os quais parecem, muitas vezes, uma inevitável extensão da sua prodigiosa capacidade de efabulação, em busca de um público mais alargado.

    Neles se desenvolve o seu imenso dom coloquial e oratório, como que em terra onde é mais propícia a fantasia desbridada e exuberante, do que naquela em que os adultos assentam os pés.

    Devemos notar ainda que a importância da  reflexão poética, sobre o trabalho literário, tem sido muito coerentemente defendida pela autora em entrevistas ou em breves excursos no interior da sua própria criação.

    Parece-nos pertinente, antes de continuarmos esta nossa breve apresentação da obra da autora, dar a conhecer o corpus publicado por ela, até à presente data:

    Os papagaios de Natal e outros contos, a estreia de Hélia Correia, em 1977, aos 28 anos, foi para o público juvenil.

    Ficção

    O separar das águas (1981)O número dos vivos  (1983); Montedemo (1983); Villa Celeste (1985); Soma (1987); A fenda erótica (1988); A casa eterna (1991); Insânia (1996); Lillias Fraser (2001); Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra de Alexandre Herculano (2004); Bastardia (2005); Desmesura: exercícios com Medeia (2006); Contos (2008); Adoecer (2010); Vinte degraus e outros contos (2014); O separar das águas e outras novelas (2015); Obras escolhidas (2015); Um bailarino na batalha, 2018.

    Poesia

    A pequena morte/Esse eterno canto [em díptico com Jaime Rocha] (1986); Apodera-te de mim (2002); A terceira miséria (2012); Acidentes (2020).

    Teatro

    Perdição: exercício sobre Antígona seguido de Florbela (1991); O rancor: exercício sobre Helena (2000); A teia (2013); As troianas (2018).

    Para a Infância

    Papagaios de Natal e outros contos (1977); A luz de Newton (1988); Sonho de uma noite de Verão (Shakespeare) – versão infantil (2003); Mopsos, o pequeno grego – O ouro de delfos (2004); Mopsos, o pequeno grego – A coroa de Olímpia  (2005); A ilha encantada – versão infantil de A tempestade de William Shakespeare (2008); A chegada de Twainy (2011).

    Prémios:

    A casa eternaPrémio Máxima de Literatura, 2000.

    Lillias FraserPrémio de Ficção PEN Clube, 2001 e Prémio D. Dinis, 2002.

    Bastardia – Prémio Máxima de Literatura, 2006.

    Adoecer– Prémio Fundação Inês de Castro, 2010 e Prémio Especial do Júri Máxima de Literatura, 2011.

    A terceira miséria – Prémio de Poesia das Correntes D’Escritas, 2013.

    Prémio Vergílio Ferreira, 2013 – pelo conjunto da sua obra literária.

    Prémio Camões, 2015 pelo conjunto da sua obra literária.

    Prémio Literário Guerra Junqueiro, 2021 pelo conjunto da sua obra literária.

    Acidentes Prémio de Poesia PEN Clube, 2021

    Lillias Fraser, o romance que consagrou Hélia Correia.

    Coloquialidade, oratória hiperbólica e desenfreada imaginação bem podem ser as insígnias desta surpreendente escritora, tal como já referimos.

    O espanto, face a essas qualidades, leva os críticos, quase sempre cheios de razão, a associar a sua produção às mais variadas tradições culturais e literárias.

    Dessas ganharão base, provavelmente,  as características  da escritora que se desenvolvem entre uma luminosidade quase apolínea da construção da frase, e uma capacidade de construção do discurso ou dos episódios narrativos pautada pelo rigor da lucidez e apelo demoníaco do absurdo e da irracionalidade.

    Alguns chamaram a esta torrente criativa  uma escrita “camiliana”, pela sua dimensão paradoxal, apaixonada,  luciferinamente luminosa e, simultaneamente, carregada de máculas da sombra e do mistério. Justifica mesmo, alguém, que “essa era uma maneira de dar nome a uma impressão de solidez”, dado que há sugestão camiliana “em qualquer escrita de desapiedada concentração conflitual”[1].

    Outros apontam uma opção pelos processos caros ao surrealismo, ou ao visionarismo da alquimia, ou ao esoterismo gnóstico, como o que Maria Gabriela Llansol representa, sem que, contudo reconheçam, nesses traços, uma filiação definitiva  da autora de A casa eterna.

    O que fica quase sempre patente, na sua criação, seja ela ficcional, para adultos e para crianças, seja dramática ou lírica, é a capacidade de fazer emergir uma atmosfera etérea em que todos os acontecimentos narrados, ou todos os objectos e espaços descritos nos aparecem de uma forma que exalta a estranheza e insólito da sua própria ocorrência ou da sua simples presença.

    Outros, ainda, vêem na notável versatilidade do seu imaginário uma marca dos grandes cultores do realismo fantástico. Ocorre compararem-na aos grandes mestres latino-americanos do género, quando acontece unir, à notação da ocorrência mais banal,  a desenfreada representação das virtualidades fantásticas dos seus seres, ora angélicos, ora satânicos, ora ainda entes lançados em obscuros e labirínticos roteiros. Vem mesmo a propósito, para alguns críticos, a evocação de Gabriel García Márquez, para caracterizarem determinados processos narrativos da autora.

    Tal evocação parece muito pertinente, pois uma das marcas mais fascinantes da escrita de Hélia é domínio e versatilidade com ela faz fluir, em contrapontos ou encadeamentos, os mecanismos da enunciação narrativa.

    Grande parte da ambiência fantástica, da introdução insidiosa do terror, da atmosfera da perfídia ou do medo, é criada pela ausência de uma consciência autoral credível, ou de uma personagem estruturadora dos princípios do real, ou verosimilmente defensora dos valores de verdade. O seu discurso narrativo, como o de alguns dos grandes mestres do realismo fantástico, é sempre percebido como o discurso de “outra pessoa”,  institucionalmente não-credível: os grupos femininos, o colectivo aldeão, o saber gnómico atribuído a entidades enigmáticas.    

    A terceira miséria, obra de poesia galardoada com o Prémio Correntes d’Escritas em 2013.

    Este último traço remete-nos, por outro lado,  quase sem surpresa, para uma tradição gerada pelo confluir das várias correntes do fantástico europeu, que tem o seu culminar em Kafka. Por muitos traços, sobretudo os que sustentam a sugestividade da sua ficção, a obra de Hélia Correia poderia ser comparada à do escritor checo de marcada origem judaica.

    Em todas as suas histórias surge a acentuada intromissão do improvável, do surpreendente e do fantástico, sustidos pela perspectiva de uma personagem, ou de um narrador exterior à intriga mas que só raramente se apresenta como inteiramente credível.

    É como se fossem abertas, mais estrondosa e incontrolavelmente do que é comum entre os ficcionistas, mesmo os que perlaboram em torno do surpreendente, as portas à aceitação das regras da efabulação, pela suspensão das regras da credibilidade.

    O cenário privilegiado pela autora é, quase sempre, o do campo, com a sua variante do pequeno povoado rústico. É através desses microcosmos que o estado da civilização de uma região ou de um país, ou universo das grandes urbes, são avaliados.

    Mesmo as histórias localizadas aparentemente na cidade, como é o caso de Soma, acabam por ter alguns dos seus momentos cimeiros nas zonas rústicas ou campestres. Esta tópica preferencial, alerta-nos para uma dimensão importante na obra de Hélia Correia que, por vezes, é esquecida, pelo facto de as dimensões de inquietação mística ou gnóstica, ou mesmo as da transfiguração fantástica se evidenciarem: a sua preocupação político-social.

    De certa forma, num nível muito lato e demarcado de sectarismos (que, por vezes, comenta com ironia, distância, condescendência ou simpatia), a obra da autora de Lillias Frazer efabula, a partir de postulados ora alegóricos ora satíricos, visões do mundo que se colocam veementemente como críticas aceradas aos absurdos e contradições dos nossos modernos estados democráticos. E, nessa dimensão do libelo crítico, podem ser entendidas muitas das suas incursões no plano histórico, que ora colocam sob observação as condições sociais da mulher, ora evidenciam os confrontos de classe.   

    Estas tomadas de posição têm merecido algumas considerações entusiásticas, sobretudo da parte da crítica que se inscreve nos horizontes ideológicos e epistemológicos de feminismo. Pela posição que ocupam nas sociedades tradicionais, que são os espaços sociais preferidos pela autora, a ênfase da leitura “feminista” pode justificar-se. Mas, por outro lado, são muito pertinentes as observações que tendem a valorizar outras representações dos dinamismos sociais.

    Efectivamente, por exemplo, os confrontos geracionais emergem em muitas das suas narrativas, quer pela constituição das imagens de fascínio, de recusa  ou de receio que os indivíduos duma geração criam, em relação aos de outra, quer pela desmontagem dos laços familiares e de domínio que se prendem, igualmente, a essa dicotomia.

    Acidentes, a mais recente obra de Hélia Correia.

    Os microcosmos que constituem, habitualmente, os cenários onde se desenvolvem as suas intrigas, remetem para a figuração, por vezes em moldes insólitos, dos mecanismos sociais, económicos e políticos.

    Frequentemente, as dinâmicas de relacionamento são activadas pelo confronto de classes percebido pelos seus traços mais evidentes: o trabalho manual versus trabalho intelectual, reformados versus trabalhadores, patrões versos empregados ou empregadas, classe senhorial versus serviçais. Apresentando-se, quase sempre, em cenários sociais restritos e pouco desenvolvidos tecnologicamente, esses confrontos ganham, frequentemente, um traço insólito, ou mesmo uma luz de inquietante estranheza.

    A última página do seu último livro, constituído por poemas e intitulado A terceira miséria,  imediatamente antes do índice, apresenta uma lista de nomes de autores e de títulos. 

    Exprimindo, aí, uma  dívida confessada, que vai de Ésquilo a Maria Gabriela Llansol, passando por Nietzsche ou Holderlin, a autora remete-nos para um último grande tópico que pretendíamos aqui enfatizar: a memória dos clássicos. É isso que explica o título deste longo poema dividido em 32 secções: «A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda».

    O passado, para Hélia Correia é um retorno às fontes da poesia, sobretudo pela expressão lírica e pela escrita para teatro. Nesses géneros, tem privilegiado o diálogo com os clássicos gregos, um diálogo que também está presente nas histórias que escreveu para leitores mais novos e que têm como protagonista Mopsos, o pequeno grego.

    Essa paixão pela Grécia, desde há muito presente na obra desta autora, desagua agora neste livro de poesia, onde a Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, paradoxo que faz parte da nossa cultura mas também do nosso posicionamento político: «Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita».


    [1] Cf. Fernando Venâncio, Colóquio Letras 123/124 p.385

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Poeta angolano Abreu Paxe em encontro sobre escrita literária

    Poeta angolano Abreu Paxe em encontro sobre escrita literária


    Realiza-se esta tarde, pelas 17:00 horas (de Lisboa), mais uma sessãodo seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeira, e que conta com o apoio do PÁGINA UM.

    A sessão de hoje conta com a participação especial do poeta angolano Abreu Paxe, nascido em 1969 no vale do Loge, município do Bembe, tendo-se licenciado no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa, onde é agora docente de Literatura Angolana.

    Abreu Paxe

    A sessão pode ser acompanhada via ZOOM.

    Em parceria como o Centro de Formação de Escolas António Sérgio, este Seminário encontra-se certificado como Ação de Formação de Curta Duração (ACD), ao abrigo do Despacho 5741/2015 de 29 de maio, para efeitos de progressão da carreira docente, designadamente de educadores de infância, docentes dos ensinos básico e secundário e de educação especial. A inscrição deve ser feita aqui.

    Caso um assistente queira um certificado de participação para fora de Portugal (onde esta certificação não tem efeitos na carreira docente), bastará que o indique na inscrição.

    O PÁGINA UM associou-se ao seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeiras, a saber: Universidade Católica, Universidade Aberta, Faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, Universidade Complutense de Madrid, Universidade do Minho, UNINT-Università degli Studi Internazionali di Roma, Universidade Fernando Pessoa, Universidade Lusófona, Univeridade da Madeira, Universidad Libre de Infantes, Universidade de Santiago de Compostela, Associação Portuguesa de Escritores, Centro Cultural Eça de Queirós, Centro de Estudos Ferreira de castro, Centro de Estudos Regianos, Centro de Estudos Graal (USC), CISESG, CISLE, IECC – Instituto Europeu de Ciências da Cultura – Padre Manuel Antunes, Academia Lusófona Luís de Camões (SHIP), Instituto Fernando Pessoa (SHIP), Letras Com(n)Vida (plataforma inter-institucional), Observatório da Língua Portuguesa e portal TRIPLOV.

    O PÁGINA UM também irá disponibilizar, durante as próximas semanas, as gravações de uma selecção criteriosa de eventos já realizados, integrados em ciclos de literatura, promovidos em conjunto pela Universidade de Lisboa e a Universidade Fernando Pessoa (Porto).