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  • Mário Cláudio

    Mário Cláudio


    Um conjunto determinável e evidente de grandes vectores pode revelar-se, para quem tenha acompanhado a obra de Mário Cláudio como romancista, na engrenagem poética da sua criação ficcional[1]. Não funcionando todos os que consideramos mais pertinentes ao mesmo nível ou instância de discurso, não se revelando todos no mesmo plano textual, procuraremos apresentá-los de acordo com uma arrumação dentro desses planos. Tal discriminação apenas tem valor de matriz teórica, ou seja, apenas pretende conceptualizar hierarquizadamente um conjunto de mecanismos poético-narrativos pertinentes, que permitam tornar mais clara a formulação epistemológica tal como ela se gera enquanto verosímil na narrativa do autor portuense.

    Para uma melhor orientação sistemática de leitura, é segundo os diversos planos, dentro dos quais conceptualizamos o funcionamento dos discursos e dos textos, que congeminamos arrumados os fenómenos mais globais que nos parecem pertinentes na poética de Mário Cláudio, salvaguardando sempre que essa discriminação apenas tem valor heurístico tendo em vista a análise da obra. Quando emergem como efeitos poéticos não é sob essa discriminação, mas sim como enunciados, que significam na globalidade sincrética da dinâmica simbólica e imaginária, que vários códigos regulam, quer na produção quer na leitura. 

    Mário Cláudio

    No plano a que chamaremos do discurso romanesco (muito próximo daquilo a que Genette chama a narraçã0[2]) destacam-se, como processos dominantes da poética romanesca de Mário Cláudio, a ficcionalização do autor por um lado; e a articulação dos pontos de vista com as vozes que narram, por outro, numa dinâmica que não sendo propriamente a do paradoxo, é quase sempre a do desajuste. No plano da construção da narrativa propriamente dita, destaca-se a hipertrofia do descritivo, em claro diálogo/demarcação com os procedimentos do naturalismo oitocentista, acompanhada por uma usurpação do lugar do narrador linearmente épico por um sujeito poético que comenta e refracta as posturas e discursos das entidades da narrativa – narrador ou personagens.

    Do ponto de vista da história ou fábula contada, ganham relevo dois aspectos que são talvez os mais evidentes e fascinantes na produção de Mário Cláudio: o narrado aparece ou sob a caução da personagem histórica, que não é ficcional mas “biografada”; ou como matéria que a narrativa fabula reportando-se, de imediato, à crónica, simulando a clara intenção de construir um discurso historicamente factual, seja a matéria abordada a privada ou familiar, seja a do discurso memorialístico ou do diário, ou seja, ainda,  a do quotidiano que circula na comunicação de massas.

    O conjugar destes diversos mecanismos, de forma original e cada vez mais bem regulada, permite a criação de um dispositivo poético a que chamaríamos aparato estético da escrita como espectáculo da enunciação, o qual funciona do seguinte modo: um sujeito enunciativo aborda o documento, pretexto da história a construir, e transforma-o numa equação em que o objecto de ficção se destaca pela relação que mantém com a História do seu tempo, mas sob os efeitos de transformação do discurso poetizante do autor. Completa o efeito da espectacularidade o facto de uma das posturas preferidas de Mário Cláudio ser a da contemplação do álbum (ou do suporte de documentos em geral), compondo a partir do instantâneo fotográfico ora a aura da pose[3], ora a digressão da pequena narrativa anedótica, ora a perífrase da ampliação descritiva.

    A espectacularidade estética de que falamos tem em conta, sobretudo, dois factores dominantes na ficção de Mário Cláudio já aludidos acima: a importância da visualidade mesmo quando o discurso é argumentativo; e a passagem do instantâneo à pose e mesmo à composição descritiva por alongamento do discurso (a hipotipose). O início da narrativa que inaugura, por assim dizer, na obra do autor, o “ciclo romanesco[4]” propriamente dito, Amadeu, fornece-nos bons exemplos de ambos os processos segundo os quais a fábula se vai tecendo como romance ainda que, quase sempre, em constante de invenção poética, renunciando a ser linearmente narrativa[5]. Lemos, de facto, logo nas primeiras linhas:

    “A Casa é uma teoria volumétrica por entre vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar. Por torres e telhados se levanta, paredes de cal alternando com panos de muralha, e um bestiário a habita, nela cirandando ou em torno lhe correndo, heráldicos bichos esguios, indistintos da paisagem. Na construção, que não obedece aos caracteres do meio, um pouco ao revés de certa convicção de sangue da família, a vida se concentra na cozinha que ele virá a pintar. É uma quadra enorme e enegrecida, trespassada de aromas que compõem uma história culinária remontando muito além do clã, ao horizonte de raças de loiro baço, olhos de verde sequíssimo, deuses que nas faldas do Marão apenas reclamam exíguos sacrifícios de bagas de arbusto, pequenos mamíferos amedrontados. Amadeu percorre a Casa a grande velocidade, na espécie de tontura que lhe dá a infância, ingénuo do destino a conferir ao fogo que a brincadeira não sabe extinguir” (1993: 11[6]).

    Este excerto, que nos limitámos a “colher” das primeiras linhas da obra que nos parece ser fundadora da série que afirma Mário Cláudio como um dos grandes romancistas portugueses contemporâneos, é um perfeito exemplo dos vários mecanismos que estão na origem da arte (ou técnica) de composição que o caracteriza. Em primeiro lugar, é de notar a importância que ele dá à visualidade, patente pela própria abundância de um vocabulário que hiperboliza o visual, quase até à sua glorificação, quer pelo descritivo dominante, quer pelo uso do vocabulário típico das várias técnicas da construção do visual.

    Em segundo lugar, patenteia-se a posição privilegiada de uma perspectiva narrativa que nunca se submete à necessidade de sequencializar a acção segundo a exigência de sucessivas actuações ordenadas pela cronologia e verbalmente expressas pelo domínio do pretérito perfeito – ao contrário, dominam as formas do presente e do futuro. Tudo se passa, enfim, como se a voz do narrador, caracterizada por uma forte expressividade linguística e um notável aparato cultural, transmitisse um poder de conhecimento que, em relação ao objecto apresentado, não conhece limites: move-se para a infância da personagem, prevê-lhe o futuro, conhece os fundamentos genealógicos da família, o quadro cultural antropológico e os fundamentos míticos e simbólicos do imaginário que determinarão o futuro da personagem.

    Sem abdicar, em nenhum momento, dessa omnisciência de ponto de vista, o privilégio autoral de Mário Cláudio introduz, no entanto, uma imensa variação de sujeitos que colaboram com o narrador autoral, quer aparecendo como vozes independentes, quer fornecendo-lhe pontos de vista a partir dos quais a entidade mais recuada do discurso (a que se confunde com o autor enquanto enunciação primeira do discurso) desenvolve as suas digressões, por vezes em narrativas propriamente ditas, mas,  mais frequentemente, em descrições e discursos argumentativos e avaliativos.

    São bons exemplos dessa versatilidade os troços de narrativa em que um narrador homodiegético emerge, como diarista do trabalho do biógrafo de Amadeu que trabalha em Santa Eufrásia de Goivos. Alguns excertos desse diário permitem-nos acrescentar alguns traços esclarecedores relativos ao mecanismo de narração de Mário Cláudio.

    “Considera-se um biógrafo. Reúne documentos, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move. Falando do pintor Amadeu é de si que fala, por ele viaja até à infância, emerge à superfície das águas trazendo entre os dentes um pequeno tesouro cintilante. Mas é-lhe pouco exacto o itinerário, arrogante também. Vejo-o quando passo no corredor e esqueceu a porta entreaberta, de camisa impecavelmente alva, às vezes ao pescoço o foulard de seda natural, infantil ex-libris, a pena suspendida do papel, o braço esquerdo apoiado no cotovelo e sustentando o cigarro entre o polegar e o médio” (1993:16).

    Embora antepostas, as considerações afectam como um comentário o olhar momentâneo: e, obviamente, a ideia de uma imagem captada no instante é apenas a máscara do documento, de um instantâneo divisado pela nesga da porta, que inscreve, de facto, a pose bem elaborada do escritor.

    A recorrência do processo é notável, embora variem os mecanismos de perspectiva e os sentidos atingidos sejam diversificados. Por exemplo, em O pórtico da glória, o narrador, biógrafo da própria família, referindo-se ao seu tio-avô, refere-se-lhe como se o captasse numa fotografia de um álbum, tirando os efeitos temporais e de perspectiva mais surpreendentes, inclusivamente pela sugestão dos instrumentos de óptica que apoiam a visão:

    “Vejo-o à distância, empenhadíssimo em fiscalizar o funcionamento da fábrica, utilizando os conhecimentos técnicos, proporcionados pelo curso de engenheiro mecânico, intencionalmente abraçado, no afã de corresponder às urgências da acção em que a tribo se implicava. E distingo, reflectidas nas lentes de aros dourados, que nunca abandonaria, o rol de uma estrita lista de encomendas, que não consigo precisar em que época se teria cumprido. A tinta negra, porventura pela mão do defunto guarda-livros Evaristo Nunes, decorre sob o vidro que os aumenta os itens seguintes [e seguem-se seis linhas de enumeração]. E uma mancha de tristeza parece toldar a face de José Bolet, abreviado nome, que reivindicaria, e não logro precisar donde provirá ela, se da folhagem de um plátano que se agita, na tarde de magro sol, se de alguma agrura da alma a qual não achou aquilo que desesperadamente procura, mas que percebe quão inútil lhe será a desistência da frustração” (1997: 168).

    Compreende-se que, no horizonte deste processo, se revela a técnica naturalista, sobretudo se atendermos ao facto de que o biógrafo faz a “saga” (ou crónica, como o autor prefere chamar-lhe – e com razão, quanto a nós, pelo que iremos demonstrando) da própria família. Mas logo se patenteia como fundamento desta escrita a deriva para a fantasia através da qual se verifica quanto o processo do documento e da reconstrução do documento é uma impossibilidade para o narrador e um limite para o criador poético. Não teria de ser assim, forçosamente: não obstante as críticas dos seus detractores, o naturalismo procurava ser uma arte de representação do real e um discurso epistemológico de explicação dos factos documentados, exactamente através da descrição.

    Seja como for, o procedimento de Mário Cláudio, lançando mão dos mesmos materiais a que os naturalistas recorriam, parece querer mostrar quanto, no documento, o pormenor (a perspectiva do olhar do tio-avô, os óculos, as letras vistas através das lentes, a referência ao guarda livros e a própria enumeração do que essa lista continha) apenas serve de húmus ao devaneio, que se vem fixar no pormenor incerto (a “mancha de tristeza”, equivocamente atribuída a uma folha de plátano), não podendo aspirar a demonstrar nada no plano da realidade referencial.

    Quanto a este aspecto, Mário Cláudio, atento herdeiro dos pastiches camilianos, parece aproximar-se mais do espírito do nouveau-roman, fazendo do olhar que encaminha a descrição uma paixão dos sentidos, uma obsessão de onde parte a digressão poética. Curioso é que ela se exerça quase sempre como prospecção do passado, como um devaneio que procura reconstruir a vida como sonho, a partir dos dados que a crónica apresenta como factos na verdade ocorridos. O autor portuense parece estar inteiramente consciente disso, como o demonstram as linhas que em seguida transcrevemos, do romance também pertencente à “crónica familiar do autor”, Tocata para dois clarins, nas quais somos tentados a ver uma revelação, quase, de uma ars poetica:   

    “Inclino-me para estes dois retratos, agora, que constituem a prova visível, diria quase imemorial, daquela viagem de núpcias, num papel recortado, que o tempo, apesar de tudo, não tingiu do proverbial amarelo mitológico. E relembro-me, assestando a desmedida máquina «Kodak», em pleno Terreiro do Paço, a fim de colher, da Maria, a imagem que a retenha, em Lisboa, nos finais desse Novembro, soalheiro e frigidíssimo, de mil novecentos e quarenta” (1992: 77).

    Será difícil não ver, na sequência do que vimos argumentando, quanto a própria problemática que procuramos desenvolver se torna central no troço da narrativa que acabámos de transcrever: um “cronista” evoca, na presença de uma fotografia, o momento em que ela foi obtida; o acto de captação é visto como uma tentativa de “colheita” de um momento (“instantâneo”) imemorial; no entanto, a atenção do observador é avassalada pela memória, a figura agiganta-se, no conjunto da paisagem, e não só o momento se eterniza numa pose – no recordar! – como a composição aumenta, como se o tempo decorrido, um pouco à maneira da imagem que Proust constrói no final da sua Recherche, incluísse na figura o tempo, tornado volume no espaço; e o devaneio histórico cultural desenvolve-se, nas linhas seguintes, até ao final do capítulo onde, num remate que retoma o instantâneo – já tão evidentemente permeado de observações e juízos de valor – se encerra o instante, e tudo o que o amplia, deste modo, onde se constrói o parêntesis pelo jogo do “anacoluto” narrativo corrigido:

    “Ao encerrar este capítulo, porém, de uma espécie de privativa história universal, é como se me implantasse, de novo, defronte da minha noiva, ajustando o diafragma, medindo a distância, prevendo a incidência da luz, dentro em breve crepuscular. À invectiva da Maria, então, «Vamos lá, António, vê lá se te despachas», responderei com um segredo, balbuciando entre lábios, como nesse dia, duas palavras, apenas, «Um beijo», enquanto comprimo a molazinha do obturador” (p.80).

    No entanto, como já o dissemos anteriormente, não é só do documento visual que parte o discurso perscrutador deste procedimento de narração lírica. Ainda em Tocata… podemos ver, no capítulo II, o aproveitamento do discurso político do “Estado Novo”, citado como documento, mas lentamente transformando-se, pelo desenvolvimento de uma voz que se neutraliza pelo que nela ecoa de vozes que a glosam, parodiam, parafraseiam e amplificam, numa espécie de estrépito de ideologias em choque, soando em simultâneo.

    De algum modo, o documento artístico, em Rosa e Amadeu, sobretudo, e a correspondência pessoal (por vezes inventada), com especial ênfase em Guilhermina, sofrem tratamentos semelhantes como matéria de composição poética. O mesmo poderíamos dizer relativamente aos seus textos mais marcadamente históricos, As batalhas do Caia (1995) e Peregrinação de Barnabé das Índias (1998).

    Neles, sobretudo no segundo, não é tanto o documento fotográfico (que, apesar de tudo, está presente na crónica de Eça escrevendo “A Catástrofe” tal como aparece em As batalhas do Caia) que funciona como matéria-prima, mas o discurso da crónica, da História como crónica, seja ela a de um relato inventado (“A Catástrofe, de Eça de Queirós), seja a de um relato de viagem ou diário de bordo (o Roteiro da viagem de Vasco da Gama, ou mesmo Os Lusíadas).

    É neste contexto, evidentemente, que perspectivamos a galeria dos biografados. Eles são, tendo em conta o maior ou menor grau de veracidade histórica, documentos, a partir dos quais os discurso poético se desenvolve para interrogar sentidos da existência, dimensionar a problemática do humano como um sistema de tensões representadas como verosímeis – desde as personagens que indiscutivelmente viveram em épocas transactas (Amadeu Souza-Cardoso, Rosa Ramalho, Guilhermina Suggia, Vasco da Gama, Eça de Queirós) ou ainda estarão vivas (algumas das que coexistiram com as personagens historicamente mais recentes, o estudante que matou a namorada, no Porto, em 1994, designado por Henrique, em Ursamaior – 2000), até às que são “autênticas” na história familiar de Rui Barbot Costa, e que Mário Cláudio, personagem autoral[7] de Rui Barbot Costa, transfigura ao romanceá-las dando-lhes novos nomes e construindo um verdadeiro palimpsesto sobre a árvore genealógica real, constante em registos civis.

    Interessante, em quase todos os casos, é que à história contada se acrescente, por meandros de variados processos criativos de mundos em coexistência com outros mundos, o conto do contar a história. Assim, de certo modo, todos os narradores, incluindo o autor Mário Cláudio, são personagens sob penas várias, sofrimentos e paixões que, ou dizem respeito directamente às histórias biografadas, ou vêm complicar o processo de contar vidas vividas. Uma imagem esclarecedora desse dramatismo surge claramente na caracterização do biógrafo Papi, que acima transcrevemos. De facto, tudo se passa como se “a vida só fosse inteligível, pela vida de outro” e, desse modo, percebe-se claramente que o acto de enunciação seja um dos centros fundamentais da poética romanesca de Mário Cláudio.

    Essa importância dá-se a conhecer em todos os mecanismos já mencionados, a começar pelo processo de construção da espectacularidade estética que foi o que começámos por expor. No entanto, merece uma atenção especial o mecanismo verbal que constrói, em grande parte, essa espectacularidade. O sistema textual dominante para a construção do visual e para o engrandecimento aparatoso do documento é, quanto a nós, o descritivo. Evitando alongarmo-nos muito sobre as características de tal processo em Mário Cláudio, remetemos o leitor interessado para os dois artigos da nossa autoria que apresentamos na bibliografia.

    No entanto, convém que sumariemos os efeitos fundamentais que nos parece que a ordem do descritivo instaura nos romances de Mário Cláudio. Em primeiro lugar, parece-nos que, perdendo as coordenadas mais evidentemente textuais da narrativa, os romances do autor portuense esquecem o “objecto que se faz por si próprio”, no encadear das acções, como que comandado pelos feitos que constroem a fábula – a qual se valida como exemplum, minimizando, por isso, o efeito da verbalização – enfatizando, ao contrário, o dizer, pela valorização do comentário. Em segundo lugar, eles esvaziam o sentido da descrição como auxiliar da narrativa, a servir apenas de “quadro” à crónica, ou seja, de fundo secundarizado, à forma significativa das acções encadeadas.

    Quanto à primeira consequência, devemos constatar que ela arrasta resultados fundamentais de valorização poética da voz narrativa. Perdido o domínio da fábula – anulado o interesse do encadear de acções cujos resultados ora coroam os esforços, ora desafiam a personagem quando falha, fazendo apelo a mais acções – passa a dominar a surpresa do foco central do discurso: a enunciação. Deixa de interessar o que é contado – porque o narrador constantemente faz gorar as expectativas do leitor – para emergir sobretudo a luxuriância da narração.

    Quase se poderia dizer, para usarmos os termos de Lubbock, no seu já clássico The Craft of Fiction, que o telling (o contar) se torna a própria matéria do showing (o mostrar). Isso é evidente, muito especialmente, em A Quinta das Virtudes, o mais romanesco dos romances de Mário Cláudio, não só pelo ambiente oitocentista que, nele, mima o romance na sua época “clássica”, como pelos esboços de intrigas amorosas e de percursos vitais que se representam. Na história de amor de conteúdo mais dramático que o romance contém, de João Manuel e Teresa, verifica-se esse pendor  para minimizar a narrativa, pelo desinteresse que, a partir de um certo momento, o que se punha como horizonte dramático da narrativa, se banaliza numa série de eventos em que não surgem barreiras, não se verificam confrontos, não se desenvolvem conflitos, não se anunciam, como interessantes, nem peripécias nem desenlaces (cf A Quinta das Virtudes, p. 173-189).

    O que se avoluma é o sentenciosismo da voz narrativa, o cerimonial da estrutura retórica que apresenta a fábula, a presença, enfim, controversa, mais ou menos ritual, mais ou menos inesperada, do narrador, e mesmo a pomposidade dos actos de enunciação em que o “autor” se dá a perceber. Quanto a essa vertente, não é descabido aproximar Mário Cláudio de Agustina Bessa-Luís – no entanto, não nos parece que a “colheita” do jeito do autor seja directamente feita na prosa da sua actual conterrânea: antes diríamos que ambos têm uma fonte inesgotável numa das mais marcantes entidades do romance oitocentista portuense – Camilo!

    Finalmente, devemos acrescentar que esse sentenciosismo não é só o da enunciação de proveniência autoral. Há, nas personagens de o autor de Rosa, um pendor para o dizer de salão, de palco, ou de proscénio onde se enunciam dizeres que se tornam importantes, sobretudo pelo acto declamatório, para a posteridade – deixam de ser usos coloquiais para se tornarem sentenças ou dizeres, para ressoarem, em importância, pela sonoridade e solenidade. O pathos de tais palavras não está tanto no seu conteúdo, ou mesmo na sua forma verbal, como na pose declamatória, pelos silêncios ou vazios por onde irrompem, muitas vezes intempestivamente, ou sem grande relação lógica com a situação.

    turned on desk lamp beside pile of books

    Os diálogos entre João Manuel e Teresa, no troço de A Quinta das virtudes já referido, são disso um excelente exemplo. Mas ainda é mais notório o efeito barroco da oratória nos discursos das personagens num romance como Ursamaior, que procura representar, pela captação de uma situação dramática das prisões, a dimensão problemática das vivências humanas nos nossos dias. É disso um exemplo o discurso do passante desconhecido que impede Jorge de se suicidar e lhe diz, ao agarrar-lhe no braço: “Não faça isso, jovem, olhe que a vida não são apenas  maus momentos, ainda tem muitos anos à sua frente, Deus é grande, jovem, Ele olha por nós, nunca se esquece de nós, nem nas alturas em que parece abandonar-nos, não pense nessa loucura, jovem, pronto, pronto, já passou” (p.180).

    A segunda consequência decorrente do uso da descrição, por sua vez, parece-nos apontar para o relacionamento do autor com a sua própria linhagem literária. Vemos nela, assim, um modo de Mário Cláudio citar, com ecos e consequências variadas, que podem ir do pastiche paródico à busca de linhagem literária, os modelos romanescos do século XIX. Poderíamos dizer, arriscando um pouco um juízo que colocará, eventualmente, importantes questões histórico-literárias que não conseguiremos deslindar aqui, que Mário Cláudio se propõe tomar os modelos do naturalismo, sobretudo os mais problemáticos (e, assim, deliberadamente, a descrição à moda do século XIX – em moldes mais ou menos paródicos, seguindo Camilo, mais ou menos empolgados, seguindo Júlio Dinis ou Arnaldo Gama) para instaurar a modernidade do seu lirismo romanesco. Curioso é que o recurso seja ao processo que, na crítica adversa, era considerado o maior prosaísmo do naturalismo.

    O pendor para o pormenor inútil, para o detalhe insignificante, para a minudência algo escatológica torna-se o processo pelo qual a verbalidade se dignifica como objecto estético, criando o espaço onde o acto de enunciação se declara como suprema virtude.

    No entanto, é preciso nunca esquecer que a valorização da palavra, a valorização do acto de proferir ou de escrever, instaura fáceis vaidades. Contudo, no fundo, o lirismo de Mário Cláudio não aspira uma pose ostensiva do eu escritor. E isso começa pelo Mário Cláudio que é e não é a entidade autoral.

    O jogo do homem autor e das suas faces deliberadamente ficcionalizadas e, em certos momentos, parodiadas poderia encaminhar-nos para a sempre estimulante questão do eu da escrita. E, neste caso, não apenas a perspectiva de um narrador, como toda presença poética do autor e das suas tonalidades mais profundamente líricas. O Je est un autre, de Rimbaud, ganha, na ficção de Mário Cláudio um adensamento de sentido que, por si só, mereceria um aprofundado trabalho e, talvez, exaustivos alongamentos, na busca das implicações que a posição da subjectvidade na escrita, tal como ele a pratica, pode arrastar.

    A aparente brincadeira instaurada logo em Amadeu, surgindo, na diegese, através da carta final do amigo do “autor” (qual?) a Mário Cláudio, enviada depois de uma recente ida à Quinta de Santa Eufrásia de Goivos, insere e eterniza a questão da autoria e o limite final da origem do discurso e da sua propriedade ontológica. É claro que, em grande parte, o problema só se pode colocar como paródia: daí que, entre as personagens que rodeiam Papi, “protagonista” parco em presenças na diegese relativa à escrita da “biografia” de Amadeu Souza-Cardoso, se anuncie já a referência a alguém que se prepara para biografar a Guillhermina; que Álvaro apareça como o correspondente do sobrinho de Papi;  que quem conta em primeira mão a história do biógrafo de Amadeu, dirija, em Amadeu, uma carta final a Mário Cláudio com um manuscrito que se adivinha ser o de Amadeu, que esse mesmo Álvaro seja citado  pela voz autoral em Guilhermina, como o autor da “biografia” de Guilhermina Suggia; e que Mário Cláudio lhe dirija uma carta, com a qual encerra Rosa e, mais amplamente, a Trilogia da Mão.

    Faz parte da mesma ficcionalidade que se dissemina pelo exterior dos universos diegéticos, o estado confuso em que fica desenhada a entidade autoral, no meio de uma intriga de “roubos” textuais. Assim, em Rosa conta-se como Álvaro afirma que “escrevera ele [..] a rebuscada história de Gulhermina Suggia, violoncelista, de que suspeitava se houvesse outrem apropriado, entretanto, já que nem ousa confirmar a quem pertence o texto publicado, se a ele próprio, se a um certo vampiro de relatos alheios” (1993: 319).

    No entanto, também parece certo que, a ser Mário Cláudio tal “vampiro”, não fica linearmente posto ponto final sobre a questão, pela admissão de que, como muitos outros autores, ele se ficcionalizou um tanto, incluindo-se, de modo pouco mais que alusivo, no universo que criou como ficção. Porque, nesse caso, temos de admitir que, por exemplo, esse mesmo Mário Cláudio, é uma entidade mistificatória que, do exterior da ficção – numa entrevista de 14 de Abril de 1985, no Jornal de Notícias, por exemplo –, compromete a verosimilhança de Guilhermina como bibliografia, ao dizer que é “um fantasma em termos de cartas, fotografia, recortes, e outras coisas desse tipo”, admitindo mesmo que usou muito pouco os documentos.

    Entre outras coisas, então, Mário Cláudio é uma assinatura pela qual responde a entidade civil de Rui Barbot Costa. Tem o seu copyright sob aquele nome, dá entrevistas sobre os seus livros, escreve crónicas sobre factos aceitavelmente reais, e afirma que a sua segunda trilogia, a de A Quinta das Virtudes, Tocata para dois clarins e O pórtico da glória é da crónica da “família do autor” (cf., por exemplo, Revista Ler Outono de 1990) em peças jornalísticas que apenas referem Mário Cláudio, como autor ou como entrevistado. A entidade Rui Costa apenas assinou um livro, que não é literário nem de crónicas, mas sim um “estudo sobre o analfabetismo”.

    Mário, pelo menos Mário, reaparece no último dos seus romances, aquele que não vive da ilusão “histórica”, ou da crónica historiográfica, mas se aproxima, antes, da crónica do quotidiano, Ursamaior. Aí, o preso transformista refere-se a outro preso a quem “o pessoal chamava «o escritor»”, o qual, segundo a sua observação era “um gajo sem nada de especial, nem alto nem baixo, barba grisalha, sobre o forte, mas com aquela barriguinha que aprecio nos homens maduros”. Face a uma gentileza desse «escritor», o transformista Cristiana baptizou o seu dedo do anel (tal como era seu costume – dar nomes de indivíduos de quem gostava aos seus vários dedos) “Mário” (2000: 91).

    Sem pretendermos resolver ou adiantar grandes passos relativamente à questão do autor na literatura, em especial no romance, pensamos que é em torno dessa entidade que se desenvolve uma das mais lúcidas buscas de Mário Cláudio, na elaboração de uma poética inscrita na própria prática da criação. O autor, assim concebido, não é apenas um suporte mais ou menos histórico apenso a uma série escrita, revelando o homem, enigma existencial. O autor, Mário Cláudio, é uma construção da escrita, em toda a sua dimensão retórica.

    Como tal, o seu ethos não é apenas a entidade civil, o cidadão que suporta, com a sua visibilidade social, política e ideológica o verosímil das suas obras. Ao contrário, a entidade que ganha foros de cidadania é o ente criado do interior da escrita. Não  como poeta visto por outros poetas, como Pessoa foi com os seus heterónimos, mas o ser irreal, fundado como verosímil pela coerência que vai criando ao transitar por toda a sua obra e pelos ecos que dela ressoam noutros actos de escrita e de comunicação.

    E é de dentro do virtual da ficção, das linhas do verosímil, que se constrói, aqui, o fundamento de uma ética e de uma praxis – uma voz que institui, com autoridade mas sem autoritarismo, os campos do possível. É aí que se constroem os quadros da crónica, onde é preciso reinstalar a História em cada momento, para que ela não surja como o cristal da verdade, rigidamente feita para sempre, lugar para não ser visto mas para dar a ver o sentido imposto de uma vez por todas.                          

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

     O corpus romanesco de Mário Cláudio que tivemos em conta para a elaboração deste nosso trabalho é constituído pelas seguintes obras:

    Amadeu (1984)

    Guilhermina (1986)

    Rosa (1988)

    Trilogia da mão (reunião dos três anteriores – 1993) 

    A Quinta das Virtudes (1990)

    Tocata para dois clarins (1992)

    As batalhas do Caia (1995)

    O pórtico da glória (1997)

    Peregrinação de Barnabé das Índias (1998)

    Ursamaior (2000)

    Deleuse, Gilles, 1983, Cinema I – L´image-mouvement, Minuit, Paris

    Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil, Paris

    Jorge, Carlos J. F., 1991“A ordem do descritivo, na narrativa e a mudança de dominante no registo discursivo”, In Actas do Forum de Literatura e Teoria Literária da UTADT 1991 – “La Description depuis le Naturalisme: un Changement de Dominante dans le Discours du Roman” (A Quinta das Virtudes, de Mário Cláudio – complemento da anterior) In Dedalus n.º 1, (actas do Seminário O Pós-modernismo na Literatura Europeia)


    [1] Temos em conta, aqui, apenas a produção de Mário Cláudio a que se tem chamado romanesca, até pela designação paratextual que acompanha, na capa dos seus livros, ou na bibliografia que antecede a obra. Não ficamos impedidos, no entanto, de citar o resto da sua produção, sobretudo quanto a aspectos que na crónica, no teatro ou na poesia se podem mostrar elucidativos dos traços que consideramos mais marcantes da sua ficção romanesca,  

    [2] cf. Genette, 1972: 72

    [3] Usamos aqui, de modo abreviado, os conceitos de instantâneo e de pose tal como Deleuze os desenvolve a partir de Bergson em Cinéma I  –  Límage-mouvement (cf. Deleuze, 1983: 13-15)

    [4] Apresentamos no final do artigo a lista das obras que assim designamos. Fica desde já esclarecido, no entanto, que tal lista é composta por aquelas produções que Mário Cláudio publicou como “romances”, de Amadeu (inclusive) em diante.

    [5] É de registar, no entanto, que o processo da visualidade como valorização do ponto de vista é extensível à produção de Mário Cláudio, sendo notável desde os primeiros momentos da sua produção – em Um verão assim, por exemplo – e parece-nos um dos mecanismos mais evidentes na sua poesia.

    [6] Citamos no texto as datas da bibliografia efectivamente utilizada. Apresentaremos, no entanto, no final a lista das obras que são objecto central deste trabalho segundo as datas da primeira edição. No presente caso, a data remete para a edição de Amadeu incorporada no volume Trilogia da Mão, publicada em 1993, na qual estão também incluídas Guilhermina e Rosa. Estas obras, embora agrupadas por vontade do autor num título de conjunto, continuam a constituir, para nós, romances independentes, pelo que as citamos sempre em itálico.

    [7] No seguimento deste nosso trabalho, a designação que aqui usamos ficará devidamente esclarecida.

  • O horizonte mítico do western em “Shane” de Schaefer e Stevens

    O horizonte mítico do western em “Shane” de Schaefer e Stevens


    O filme, Shane, realizado em 1953 por George Stevens, parece-nos uma obra extremamente estimulante para ser estudada de um ponto de vista comparatista. Em primeiro lugar, porque é em relação a criações surgidas dentro dos cânones dos sistemas artísticos, sobretudo literários, que a crítica muitas vezes procurou apreciar o filme, no que toca ao interesse estético, à valorização ética e à ponderabilidade ideológica e epistemológica – colocando-o entre as obras do género que aspiram  a um estatuto artístico, mesmo atendendo a que tem origem nos padrões da produção “clássica” americana de cinema, altamente determinada pelos processos da cultura popular de massas.

    Em segundo lugar, pela sua estreita ligação com a obra romanesca de Jack Schaefer – autor de qualidade pouco comum na produção literária que assumiu os temas e figuras do Oeste americano como matéria dominante ­–, que está na base do argumento a partir do qual foi elaborado o guião.

    Quanto à primeira ordem de questões, é de assinalar que, desde a sua estreia, a obra cinematográfica foi pensada e avaliada pelos críticos, nomeadamente Bazin (1961[1]: 150), tendo como referência canónica os grandes modelos genológicos da literatura – nomeadamente o romance de cavalaria, pelo que neste há de continuação dos valores característicos da epopeia, ou seja, os propósitos e os feitos positivos do herói enquanto padrão supremo, representativo dos ideais mais caros à comunidade em que se integra.

    Relativamente à valorização do filme, enquanto obra cinematográfica, dentro do universo cultural em que imediatamente emergiu, na época das suas primeiras exibições, é patente a perplexidade que gerou. No artigo de Bazin já citado, deparamo-nos com a problemática,  numa compreensão quase formalista das determinações genológicas, segundo modelos que, só mais tarde, com o estruturalismo, se tornaram usuais. O eminente crítico francês começa por traçar as grandes linhas daquilo que era a nova tendência do western do pós-guerra, nos termos que se seguem,  em que as motivações se explicitam em forma  de modelo hipotético: “digamos que o ‘superwestern’ é um western que teria vergonha de se limitar a ser ele próprio e procuraria justificar a sua existência através de um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica…para abreviar, por um qualquer valor extrínseco ao género, valor esse que, supostamente, o enriquece” (1961: 148).

    E, poucos parágrafos depois, referindo-se ao filme em questão, não hesita em o colocar como exemplar supremo dessa variante, então, moderna: “Quanto a Shane, ele constitui, por sua vez, o ponto extremo (la fin du fin) da ‘superwestrnização’. Com efeito, propõe-se, aí, justificar o western pelo…western. Os outros empenhavam-se em fazer surgir mitos implícitos, teses muito explícitas, mas a tese de Shane… é o mito. (…) A ‘superweternização’ levou tão longe a sua ultrapassagem que  volta a encontrar-se nas Montanhas Rochosas” (1961:150).

    Podemos deduzir destas palavras, e atendendo ao que conhecemos do filme, que o efeito mítico, de um herói carregado dos símbolos da sua própria plenitude, emergindo das Rochosas e voltando a desaparecer nelas, permite pensar a obra de Stevens como um cruzar de todos os valores mito-poéticos da matéria relativa ao pioneirismo e os aspectos formais dos sub-géneros épico-narrativos, como veremos adiante.

    Antes de voltarmos às considerações posteriores de Bazin, que nos conduzem, pelo que já se adivinha das citações anteriores, aos  outros pontos que queremos desenvolver – respeitantes à relação do filme com os géneros e as obras literárias de prestigiosa linhagem  – oiçamos  um outro estudioso, mais recente, John Saunders, que, já com uma ampla distância histórica, enquadra o filme que aqui abordamos numa perspectiva sócio-cultural mais ampla no seu livro, The Western Genre.

    Tal enquadramento  revela, em consequência de ter como objecto de abordagem uma obra típica do cinema americano, além de outros aspectos, duas vertentes ferozmente concorrentes: o sistema de produção, com a sua dominante económica; e o processo de representação, sob controlo do sistema dos estúdios, nomeadamente através dos seus códigos ético-estéticos altamente esteriotipados, em interacção simultânea com uma tendência poética e estética, aleatoriamente situada e com um poder de decisão extremamente variável, entre a fragilidade e a quase inoperância. O que poderíamos generalizar, corroborando o que observa Raphaële Moine, na sua abordagem à genologia no cinema,

     “ a produção de filme de género, que supõe, ao mesmo tempo, uma repetição de  traços característicos e uma variação, inscreve-se numa dialéctica de standardização/diferenciação. Ela é uma das combinações possíveis entre a lógica normativa e a lógica de inovação que caracterizam a produção e o consumo de «bens culturais» na cultura de massas” (2002: 61). 

    Voltando aos pontos de vista do estudioso inglês acima referido, a questão parece colocar-se com toda a pertinência dentro dessa perspectiva, no que diz respeito ao filme de Stevens: “Shane é frequentemente recordado como o  western arquétipo (archetypal), uma tentativa autoconsciente de reproduzir os temas e os caracteres familiares num estado clássico puro” (Saunders, 2001:13).

    Assim, dado  que o realizador, George Stevens, “não tinha qualquer crédito particular no western” (de facto, além de Shane, o único filme que realizou parecido com um western foi O Gigante, posteriormente, em 1956) e  não era mais do que “um muito respeitado artesão”, Saunders regista como digno de especial reparo o facto de o realizador ser considerado um “especialista na produção de bons proventos para os investimentos do estúdio” (2001:13).

    No que diz respeito segunda ordem de questões que nos propusemos tratar no início deste nosso trabalho, ou seja, a relação entre o filme e o romance de que é adaptação, pelo que nos confirmam os dados de investigação recolhidos pelo académico inglês que acabamos de citar, a fidelidade do primeiro à narrativa literária  é bastante grande – nomeadamente os diálogos, no guião de A.B. Guthrie Jr., são, muitas vezes, ipsis verbis os do romance (cf Saunders, 2001: 14). Ora, tal fidelidade, cujos limites abordaremos seguidamente, tende a ser – além do que toca à mimesis dramática já referida – do nosso ponto de vista, uma homenagem ao discurso ético-avaliativo (ideológico, moral e mesmo de quase religiosa admiração da criança pelo vislumbre da aura do herói) que o romance desenvolve.

    Não podendo ser marcadamente laudatório, segundo os processos verbais da retórica argumentativa, o filme (porque nele prevalece a acção e a ostentação dos traços físicos, como exigems as regras do género) desenvolve, para enaltecer positivamente o herói, o aparato dos adereços simbólicos, dos elementos ritualizados da acção típica e do emblematismo de certos traços icónicos.

    George Stevens, realizador de “Shane”.

    No que diz respeito ao dispositivo enunciativo também se encontram transposições.  Assim, por exemplo, na obra verbal, toda a evocação do “homem que vem de longe” é feita através de um  efeito de distância, não tanto espacial, como no filme se acentua, pela lenta aproximação do cavaleiro, na sequência inicial, mas temporal – do momento da narração para o momento evocado, no passado: “He rode into our valley in the summer of ’89. I was a kid, then…” (Schaefer, 1975: 1). Atendendo a que o romance é publicado em 1949, podemos aceitar que o discurso do narrador, confundindo-se com o da entidade autoral, coloca logo como abertura da história o cronótopo do western, enquanto rememoração nimbada de nostalgia: o homem maduro de hoje (tempo da escrita), com mais de cinquenta anos, evoca a criança que “in the clear Wyoming air (…) could see him plainly, though he was still several miles away” (1975: 1). De qualquer modo, o que se revela em ambas as obras é a estruturação de uma mensagem poética em que o Oeste se valida, como mito, pela evocação de um passado a que o herói pertence – e que, por essa pertença, só aí se valida plenamente.

    É evidente que, esse mesmo dispositivo, no filme,  como já o nota o próprio Saunders, sofre alterações: “a primeira pessoa narrativa da personagem que se torna Joey no filme dá aso, neste, a uma perspectiva mais objectiva, mas, apesar disso, vemos os eventos através dos seus olhos e os ângulos da câmara asseguram que, como ele, olhemos para cima, para Shane, em muitos momentos” (2001:14).

    Quanto aos procedimentos enunciativos autorais,  é respeitado, segundo Saunders, pela contagem que faz das sequências, o número de capítulos do romance do que resulta, grosso modo, dezasseis sequências, no filme, para dezasseis capítulos, no livro. A extensão do filme, comparativamente com os westerns típicos da época, apresenta-se mais longo, pelo que respeita das cenas do livro, inserindo na película uma ambiência mais romanesca do que a que é típica de outras obras cinematográficas do género, habitualmente mais marcadas pelo ritmo da acção – próximas, talvez, da dime novel de acção, que se publicava nos EUA desde segunda metade do século XIX.

    Em contrapartida, os traços mais exteriores da figura  do herói, tal como o filme no-la apresenta, afasta-se bastante da que sobressai do livro. De facto, neste, Shane “wore dark trousers…tucked into tall boots and held at the waist by a wide belt, both of a soft black leather tooled in intricate design. A coat of the  same dark material (…).The handkerchief (…) around his throat was black silk. His hat (…) was plain black (1975: 2). Mas não são só as roupas a acusarem a persistente dominância da cor negra. Quando desmonta, o recém chegado tira o chapéu e penteia o seu longo cabelo negro (p. 4).

    Traços do adereço e da aparência física que sublinham a  obscuridade quase enigmática do seu semblante, longamente descrito na cinco primeiras páginas, de onde sobressaem “the man’s eyes (…) bright and deep in the shadow of the hat’s brim” (p.5). Tal brilho será evocado, ao longo do romance, em situações cruciais, como na cena de pancadaria no bar com Morgan e os seus homens, onde a  acção de inesgotável energia parece ser um prolongamento do  semblante do herói quando se preparava para a refrega: “His face was clear, is eyes bright. He was somehow happy, not in the pleased and laughing way, but happy that the waiting was over and what had been ahead was here and seen and realized and he was ready for it”(1975:89).

    Shane, romance de Jack Schaefer, foi publicado em 1949.

    Ora, no filme, os traços da personagem são bem outros. Os elementos luminosos, parecendo emergir da escuridão e do negrume sombrio, tal como erradia da fonte cintilante que são os seus olhos nem sempre perceptíveis, no livro, são substituídos por traços físicos, adereços e trajes brancos claros ou mesmo representativos da luminosidade, no filme. O  herói, Shane, na versão cinematográfica é, segundo uma generalizada perspectiva da crítica especializada, com a qual estamos de acordo, uma espécie de virtuoso cavaleiro andante que emerge do fundo montanhoso e selvático  com o aparato das  vestes muito claras, e montada com uma grande malha branca na parte dianteira da cabeça, que parecem anunciar, como índices reconhecidos da matriz temática dos livros cavalaria, a  missão de justiceiro que o norteia.

    O intérprete, Alan Ladd, é loiro, de olhos azul-claros, traz uma pistola de coronha de marfim e luzidio cano prateado, por sobre a sua veste de peles de antílope (buckskins), a evocar as dos pioneiros das primeiras sagas da fronteira, tão caros ao romanesco americano das origens (cf. Saunders, 2001: 16).

         De facto, é  importante frisar um pormenor que foi muitas vezes esquecido: a literatura foi ela própria criadora do mito do western, com os seus procedimentos específicos. O passado e o mito que o filme convoca, de modo implícito, ao fazer emergir Shane sob os aparatos evocadores do primeiro pioneirismo, o dos caçadores de peles, parece querer assegurar ao herói uma densidade temporal e cultural simbólicas. Não só, pelo seu emergir da distância, ele nos surge como um senhor dos míticos espaços da liberdade, como se patenteia, também,  carregado dos adereços dos homens que fundaram a marcha para o Oeste: os pioneiros vestidos de peles. Mas, com este acréscimo, Stevens adiciona um elemento cultural forte ao seu filme: a referência literária nacional. Porque, se o western se desenvolve, sobretudo, como complexa mensagem artística do cinema americano (tendo como antecedentes e contemporâneos, como narrativas verbais, quase só folhetins populares – a dime novel que, habitualmente, contava a saga de algum pistoleiro ou bandoleiro histórico, mais ou menos mitificado), o caçador pioneiro é uma das primeiras figuras emblemáticas da literatura americana. Ora, o que o filme parece evocar, com o aparecimento do seu herói, é esse passado de que, de algum modo, com espectacularidade ostentatória, o herói se reveste.

    Assumimos, por isso, que  Fenimore Cooper podendo ser visto como um fundador, quer da literatura dos EUA, ao narrar as aventuras dos heróis que participaram no desbravamento das terras e nos actos de afirmação da liberdade e da independência, quer da ideologia americana do horizonte aberto e a conquistar,  introduz, com os seus romances, os primeiros elementos da matéria temática, de amplas ressonância culturais, da marcha para Oeste e do progresso da fronteira civilizacional.

    Se, com a sua imensa saga dos caçadores de peles, não funda o Oeste como ficcionalidade (as terras selvagens eram, na época a que ele se refere, ainda muito a Leste) a acção de desbravamento, como prática do westerner, é iniciadapelo seu herói, Natty Bumppo, desde The Pioneers (1823). Ele é, assim,  uma das mais importantes entidades mitificadas da cultura que  constroem, com a sua acção, os conteúdos temáticos e as figurações expressivos que dão substância, posteriormente, quer como matéria narrativa, quer como figuras emblemáticas, às noções de pioneiro, fronteira, desbravamento. Sem elas, a expansão ideológica do mito do western  e a sua integração profunda na cultura americana não teria tido a força que teve, ou não seria mesmo possível. Quase todos os motivos e desenvolvimentos temáticos que o western veio a ter estão, de algum modo, contidos, de modo mais ou menos embrionário ou desenvolvido, na obra do autor de The Last of the Mohicans.

    Jack Schaefer (1907-1991)

    Na deslocação do pioneiro, o Oeste é o seu horizonte e, de certo modo, o seu Graal (se quisermos manter a aproximação sugerida por outros críticos), pois é nele, enquanto além, que estão os fundamentos e os princípios mais sagrados da liberdade e da lei que dela emana – e é preciso notar que essa harmonia buscada era, então, “vivida” pelo herói “branco” das leather-stocking novels de Cooper, no seu convívio pleno com os Moicanos. A glorificação desse espaço além fronteira manter-se-á um dos conteúdos mito-poéticos mais fortes da literatura americana, por muito tempo.

    Se a frase “Go west, young man…” vem de um político, Horace Greely, que assim pretendia oferecer um programa salutar para a resolução do problema do desemprego nas cidades de Leste, em 1837, o cantor do horizonte que ficaria lá para as bandas do Pacífico, em muito poemas, foi Whitman, no seu Leaves of Grass, de 1852.

    Ora, se o filme constrói o seu horizonte histórico cultural, sugerindo o além de onde Shane emerge e, no final, desaparece, como região mítica de quase sacralidade, invisível para lá das montanhas, através do cenário ostentado pelas panorâmicas, isso deve-se, por certo, ao facto de o género, no cinema, rejeitar, por motivos ainda hoje justificados (a dominância da matéria específica icónica, em detrimento da verbal, que tende a ser substituída por aquela – por exemplo), o discurso ético-avaliativo e argumentativo que tão bem cabe no romance, mesmo que ele tenha como matéria lendária o justiceiro do Oeste, homem mais de acção do que de palavras, de suprema rapidez a disparar. Demonstram bem essa possibilidade os parágrafos finais da obra de Schaefer:     

    He was there. He was there in our place and in us. Whenever I needed him, he was there. I could close my eyes and he would be with me and I would see him plain and hear again that gentle voice./ I would think of him in each of the moments that revealed him to me. (…) I would see again the power and the grace of a coordinate force beautiful beyond comprehension. I would see the man and the weapon wedded in the one indivisible deadliness. I would see the man and the tool, a good man and a good tool, doing what had to be done./ And always my mind would go back at the last to that moment, when I saw him from the bushes by the roadside just on the edge of town. I would see him there in the road, tall and terrible in the moonlight, going down to kill or be killed, and stopping to help a stumbling boy and to look out over the land, the lovely land, where that boy had a chance to live out his boyhood and grow straight inside as man should./ And when I would hear the men in town talking among themselves and trying to pin him down to a definite past, I would smile quietly to myself. For a time they inclined to the notion, spurred by the talk of a passing stranger, that he was a certain Shannon who was famous as a gunman and gambler way down in Arkansas and Texas and dropped from sight without anyone knowing why and where. When that notion dwindled, others followed, pieced together in turn from scraps of information gleaned from stray travellers. But when they talked like that, I simply smiled because I knew he cold have been none of these./ He was the man who rode into our valley out of the heart of the great glowing West and when his work was done rode back whence he had came and he was Shane”  (150-151)

    Não conhecemos nenhum comentário, quer ao livro quer ao filme, que se tenha interrogado sobre o enigmático nome do herói. No entanto, impõe-se-nos, perante este panegírico final, em que todos os processos retóricos da evocação estão atendidos (a distância temporal sublinhada, o empolgamento da afirmação da presença que a anula, a repetição que enfatiza o objecto de admiração, o uso do pretérito como processo narrativo concluso, da legenda e da figura lendária que se detém como entidade inteiramente dominada pela recordação – a ausência, enfim, do ente evocado, como processo de o tornar inteiramente captável pelo sujeito da percepção, que o presentifica como total interioridade da recordação), pensar que, de algum modo, é o brilho ofuscante, shineshine, glow, bright, são propriedades constantes do seu estar, em modalidades quer substantivas quer verbais –, que se revela por detrás (ou vindos da sombra, como algumas descrições deixam transparecer) do seu nome – Shane.

    De qualquer modo, em ambas as obras, a sugestão pode desenvolver-se com pertinência: porque, da figura aos actos, é como se o herói fosse a própria afirmação da presença enquanto força esmagadora da plenitude e da potência: o irradiar, shining, de Shane, no estar e no fazer. O que anuncia resume-se ao que dá a ver em si próprio, o seu brilho – o mistério ou enigma é o que fica para trás ou para além de si, num percurso em tudo similar ao de uma demanda arquetípica, como a do Graal, ofuscante.

    O  trilho da demanda de Shane, evidentemente, é o estabelecimento de um estado de ordem e de justiça, numa axiologia que, implicitamente, se assume como sendo de origem celeste. Após abater o bando de malfeitores, o cavaleiro desaparece no horizonte de onde emergiu – figurando assim uma harmonia entre o cosmos e a lei que parece reproduzir a conjunção entre a transcendência e a imanência que, numa perspectiva lukacsiana, por exemplo, seria o traço fundamental do herói épico.

    No romance, o delineamento desse valor supremo, que parece pairar numa transcendência que só o herói sabe traduzir para a acção imanente – colocando o seu braço, numa espécie de ritual sagrado, do lado certo  do litígio, transformando a sua acção e o  resultado desta na esfera da harmonia cósmica como feito resultante da busca – é percebido, como que vislumbrado, pelo narrador, de modo que, literariamente, é possível elaborar com elegância segundo um processo consagrado na tradição da narrativa verbal: a memória evocativa.

    De facto, a voz do narrador distancia-se, deixando transparecer, na maturidade, a evocação do seu perceber, enquanto criança, a acção das personagens adultas; e isso quer no que toca às observações mais elementares, relativamente aos comportamentos visíveis dos adultos cujas motivações se mantêm enigmáticas para a criança (que o narrador era, então, como personagem): “What happned in our kitchen that night, was beyond me in those days. But it did  not worry me because father had said it would be all right, and haw could anyone, knowing him, doubt that he would make it so.” (p. 103); quer no que toca à persistência das imagens construídas como ícones de valores pela criança, que se reformulam aparentemente inalteradas: “This was the Shane of the adventures I had dreamed for him, cool and competent, facing that room full of men in the simple solitude of his own invincible completeness.” (p. 137)      

    Regressando ao  texto de Bazin já acima citado, vejamos como ele se refere a  duas dimensões que constituem ordens discursivas  diversas a convergir no filme:

    “seria um esforço gratuito reduzir a essência do westerna qualquer das suas componentes manifestas. Os mesmos elementos encontram-se noutros sítios, mas não os privilégios que parecem estar-lhe ligados no western. É necessário que este seja qualquer outra coisa, e não apenas a sua forma. Cavalgadas, lutas, homens fortes e corajosos numa paisagem de austeridade selvagem não chegariam para definir ou circunscrever os encantos dum género. Tais atributos formais, através dos quais se reconhece vulgarmente o western, são apenas os signos ou os símbolos da sua realidade profunda que é o mito. O western nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão: a saga do Oeste existia antes do cinema sob formas literárias ou folclóricas, e a multiplicação de filmes, aliás, não matou a literatura western que continua a ter o seu público e a fornecer aos argumentistas os seus melhores enredos. Mas não há comparação entre a audiência nacional e limitada das «western stories» e a outra, universal, dos filmes que se inspiram nelas” (p.137).

    É evidente que a crítica que segue as pisadas de Bazin se concentra nos elementos formais do conteúdo do mito para desenvolver a caracterização do “filme do Oeste” em aspectos fundamentais que o colocam em paralelo aos modelos da narrativa literária: os do herói épico, os do conflito trágico e os da intriga romanesca (cf. Glucksman, 1966: 71-88). A perspectiva é frutuosa, como poderíamos ver evocando alguns  filmes de John Ford ou de John Sturges, por exemplo.

    Em Shane (livro e filme), no entanto, o facto de todos esses aspectos se cruzarem, na sua vontade de “superwesternização”, como sugeria Bazin, não significa que todos aí se encontrem plenamente desenvolvidos, ou no máximo das suas potencialidades: a dimensão mítica tem algo de “revisitada”; o trágico perde-se na ambiência banal da família de acolhimento e na perspectiva excessivamente romanesca do narrador ou do seu olhar enquanto criança; e o romanesco nunca se completa como dominante plena porque nunca desfaz a dimensão mítica construída como evocação.

    Assim, sem deixarmos de nos limitar ao filme e ao livro de que nos ocupamos aqui, vejamos como, sobretudo em relação ao western, a crítica, numa matriz em muito devedora a Hegel, tal como ela se reformula de Lukacs a Frye,  desenvolveu algumas abordagens que se fundamentam nos grandes géneros miméticos estabelecidos para a literatura: o dramático e o narrativo.  Segundo André Glucksman, são três, os níveis segundo os quais se pode ler o western: o épico, o trágico e o romanesco. No entanto, segundo ele, na origem coloca-se o mito: “o western é uma mitologia secularizada onde uma sociedade tenta reflectir as suas contradições na intenção de lhes compreender as origens” (1966: 71).

    Ora, a primeira imagem, ou, pelo menos a mais forte imagem da primeira cena ou sequência de Shane  (quer no livro quer no filme), é exactamente a saída do herói, dos horizontes desconhecidos, para o espaço humanizado dos “trabalhos  quotidianos” de uma quinta. Nessa sequência de imagens, construindo-se como cenário, em cruzamento com o nó da acção que é o aparecimento do herói perante aqueles pelos quais se vai pôr à prova, expande-se toda a iconografia daquilo a que Gluksman  chama, nesse mesmo texto, “o «comunismo primitivo»”, onde se processa “a humanização da natureza”, estado típico do “western épico” (1966: 71).

    No entanto, não é ao mito ou ao universo mítico que Shane retorna. Se o toma como fundo, depressa nos apercebemos que o mundo ali patente já atingiu o “momento da instauração da lei, momento esse em que a sociedade se divide na separação de poderes” (Glucksman, 1966: 71). Tal separação é complexa, relaciona-se com as contradições existentes entre o local e ao global, o primitivo e o civilizado, a cidade clã e a cidade estado, o poder político e o judicial, os interesses nómadas e os sedentários, a industrialização e sociedade agrária e, sobretudo, o herói e a comunidade que serve : “o bem dividiu-se, o herói entra na cidade como cavaleiro solitário, pacifica-a e depois deixa-a, sendo marginalizado por sua vez” (Glucksmann, 1966: 73).

    Quase todas essas contradições, que se cruzam patentemente em Shane, estão no cerne de  outras importantes abordagens ao western  que se desenvolvem a partir de Bazin, como a de Glucksmann, que temos vindo a citar, a de Bernard Dort, “La nostalgie de l´épopée” (1966)  e revelam ainda a sua pregnância  em estudos como os  de Jim Kitses, Horizons West, de 1969, e de Will Wright, SixGuns and Society, de 1975, que ordenam mesmo esses elementos de modo a constituir uma matriz mítica, explicitamente elaborada a partir modelo de Lévi-Strauss (cf. Raphaële Moine,2002: 51-53). 

    A imagem desse contradição pode ser encontrada no plano histórico-civilizacional, na conturbada relação do pioneiro com o ianque, por um lado, e com o farmer do Sul, por outro lado. Como Diz Vianna Moog: “o nortista ampliava para Oeste o seu espaço vital; o sulista avançava para o Norte e para Oeste. O pioneiro, aborrecendo igualmente o Norte e o Sul, não via de momento outro recurso senão avançar sobre o território dos índios e dizimá-los às duas margens do Mississípi”  (s/d: 189-190).

    Mas  já não é exactamente esse o estado da matéria, a ser reelaborada pelo mito, que se  apresenta no território onde Shane toma partido. Os índios, ali, já são uma ameaça distante, para lá das montanhas. No entanto, a tensão verificada decorre desse “depois do índios”. Ainda para utilizarmos as palavras de um historiador da cultura americana, como Moog, podemos dizer que a formulação do mito subjacente à estrutura temática de Shane resulta de que “o pioneiro afastava-se da heresia de Calvino para cair na heresia de Rousseau abolindo o pecado original e a culpa, (transferindo-os) às sociedades em que o homem é compulsoriamente obrigado a viver a integral responsabilidade dos desacertos do mundo e dos males que o afligem” (s/d: 193).

    Ora, o mito, sendo um material cultural trans-semiótico ( ou seja, representado e representável em diversas linguagens, por não ter forma fixa ou primeira em nenhuma língua ou sistema de representação – podendo apenas atribuir-se-lhe, por vezes, uma forma historicamente mais antiga), permite que o utilizemos como referência simbólica, pauta de valores e imagens poderosa, mesmo quando a matriz narrativa considerada primordial ( a versão conhecida mais antiga) não é aspecto dominante do texto concreto, ou mesmo o sistema de construção narrativa singular (ou recorrente, em vários casos singulares) que pretendemos observar.

    Os atores Alan Ladd, Jean Arthur e Van Heflin posam para uma foto publicitária do filme “Shane” 

    Como diz Raphaële Moine, comentando a operação lévi-straussiana de definição do mito, fazê-lo é construir “uma estrutura” que “leva  à desnarrativização dos mitos, à sua destextualização, reduzindo-os a paradigmas de elementos isolados, entre os quais são buscadas as oposições pertinentes” (2002: 50) – mas, diríamos nós, construir esses elementos e paradigmas é encontrar os pólos imaginários e simbólicos que nos permitem perceber melhor e valorizar mais os universos construídos pelas ficções. 

    André Bazin, no texto já citado afirma: “É fácil dizer que o western «é o cinema por excelência», porque o cinema é o movimento” (p.136). Procurando estabelecer o valor dos elementos constituintes dessa acção que, para a opinião consensual  que ele analisa, são fundamentais, o estudioso francês enumera um conjunto que nos parece de reter: a cavalgada, a cena de pancadaria e a integração desses constituintes da acção num determinado quadro geográfico; desse quadro podemos ainda salientar alguns traços que constituem um cenário de reconhecimento: a cidade feita de casas de madeira, a pradaria, os rebanhos de bovinos que pastam, os condutores desses rebanhos.

    A estes elementos que o  crítico francês enumera, podemos acrescentar, por nossa conta, outros que nos parecem fundamentais para a nossa própria exposição sintética: os bisontes, os índios, a floresta quase virgem, os desertos, as armas pendentes dos cinturões dos vaqueiros, a cavalaria armada em movimentos de batalha.

    O realizador George Stevens (de chapéu e óculos) no set de filmagem de “Shane”.

    De facto, na paisagem, por detrás dos elementos que podem ser enumerados de modo estático, evocando um espaço idílico ou primordial onde os nossos sentidos se fixam e assenta toda a tensão dramática, surgem os sinais do conflito que pode ter duas dimensões fundamentais: a da ordem que assegura a paz e a da ameaça que pode originar o caos. O universo presente  recorta-se com base em configurações discursivas que, poderíamos dizer segundo Greimas (s/d: 73 – entrada: Configuração),  emergem como produções semióticas de  níveis discursivos primários: o da história e o do mito.

    No plano da história a paz e a ordem tem como equivalentes a civilização e o discurso jurídico; o espaço selvagem e os povos “pré”-históricos são a ameaça e o caos. No discurso do mito, no fundamento tópico que o alimenta, é o sistema da tradição fundado nos laços de sangue, a lei anterior à organização da cidade,  o que representa a ordem; a legislação escrita, o exército, a estrutura civilizacional e tecnológica  são a origem do mal. 

    O que incomoda Bazin, quando se refere, negativamente, a Shane (filme) como superwestern, talvez resulte mais do modo romanesco como o mito é posto em perspectiva, do que o facto de “a tese de Shane… ser o mito” (cf. citação de Bazin no início do nosso artigo). Ora a marca do romanesco não se evidencia, em Shane, apenas ao nível do enunciado narrativo (quer do livro quer do filme), mas enuncia-se, também, ao nível da narração, da própria marca autoral que o romanesco implica, sobretudo pelos traços de distância que cria entre o ponto de vista (anos decorridos, valores do quotidiano banal) e o herói vindo do horizonte distante e que a esse horizonte regressa (na memória do narrador ou no para lá das montanhas). Bellour, ao comentar o texto de Bazin que temos vindo a referir, toca no centro dessa mesma questão: 

    o western, que Bazin tão justamente chamava o cinema por excelência, constitui-se de maneira autónoma numa arte da tradição em que tudo, a repartição dos filmes por géneros, o desenvolvimento prodigioso da indústria, o aparente apagamento dos autores por detrás de  uma criação colectiva e das mitologias comuns, tudo isso dava o sentimento de um certo jogo… O western (…) aparece na aurora do cinema americano, quando a conquista do Oeste mal acabava de se realizar; e esse humor lúdico que em maior ou menor grau se anuncia nos filmes, na atitude do herói em relação à sua vida, estrepita na relação que o autor mantém com o seu próprio filme, objecto,  em certo sentido,  de uma aposta no real ainda próximo e numa tradição (1966: 15).

    Ora, julgamos que, hoje em dia, perdidos alguns dos preconceitos “estético-poéticos” que alimentavam a crítica dos anos 50 do século XX, observar a relação, ou mesmo a contradição, entre o cenário mítico convocado de modo dominante por algumas obras, e a sua reavaliação como matéria evocada na problemática do romanesco, sobretudo a que revela  a fractura entre o herói excepcional, quase celeste, e o universo da sociedade banal, do direito civil, não revela um pecado capital da actividade criativa.

    Brandon deWilde (1942-1972), interpretou Joey Starrett em “Shane”.

    Ao contrário, parece-nos que uma tal operação poética se revela, a essa observação crítica, extremamente produtiva para o redimensionamento teórico da “relação que o autor mantém com o seu filme”, problemática que parece ter sido considerada importante por Bazin, como o entendemos através das palavras de Bellour que acima citámos. Poderíamos perceber melhor o alcance e importância dessa operação, fazendo apelo à concepção de Jauss, segundo a qual a “experiência  literária do leitor” (neste caso, “a experiência cinematográfica ou fílmica do espectador”, também) se move no interior de um “horizonte de expectativas”. Assim, autores, leitores e espectadores necessitam, para fazer funcionar o sistema comunicativo das obras artísticas, de um

    “sistema de referências objectivamente formuláveis que, para cada obra, no momento da história em que ela aparece, resulta de três factores principais: a experiência prévia que o público tem género ao qual ela pertence; a forma e a temática das obras anteriores, das quais ela pressupõe o conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática, mundo imaginário e realidade quotidiana”  (Jauss, 1978: 49).   

    Talvez já não valha a pena insistir em todos os aspectos que, em Shane, são referências a um passado artístico-formal e expressivo  que lhe substancia a estrutura significativa. Limitemo-nos a sumariá-los segundo grandes tópicos: os antecedentes culturais e literários da valorização do pioneirismo, do desbravamento, da instauração da ordem e da glorificação do espaço aberto da fronteira; a valorização da figura do herói como praticante de uma demanda; o cenário em que os espaço civilizado e o território virgem se confrontam, valorizando-se pelo acentuar das suas características e dos elementos que o exemplificam; a segmentação do horizonte vivencial em três zonas fundamentais – o agora do conflito, onde a civilização se elabora, onde Shane tem de enfrentar os malfeitores/ o espaço aberto e livre, com o limite natural das montanhas, de onde Shane emerge e onde desaparece/ e o além, invisível, onde a tradição e o mito se misturam com a história, na vastidão da Nação.

    Ora, as determinações do género, segundo as quais os autores (romancista e realizador) fundamentam o seu discurso, tornam-se uma orientação para um público que tem das normas um conhecimento difuso, feito de aquisições culturais resultantes da repetição, não reflectidas. A forma e a temática constituem, também, uma sintaxe e uma semântica apreendidas da mesma maneira, estruturando um quadro de referências muito geral. O que fica em aberto, para outro sistema de relações, que é o reconhecimento da obra nova,  é a oposição entre a linguagem prática e a poética, e o mundo imaginário e o da realidade quotidiana; e, sobretudo no caso do cinema, que é o que determina o género, no que diz respeito ao western, o que se torna equivalente a linguagem prática e realidade quotidiana, é a produção do passado: de algum modo, esta acaba por substanciar a realidade histórica, o discurso real e mesmo banalizado, com que se diz a matéria reelaborada pela expressão artística.

    Assim, é exactamente o modo como o filme e o romance se singularizam, dentro do género e das restantes tradições de onde decorrem, que suscita a produtividade do género, da tradição formal e da temática. É porque Shana retoma o mito e as suas figurações centrais para as colocar nas representações de um quotidiano banal, que o confronto entre o herói e os malfeitores e, muito  especialmente, entre Shane e o pistoleiro contratado,  reformulam não apenas o “confronto entre bons e maus”, ou o “ajuste de contas”, segundo as regras do género, ou segundo sintaxes previsíveis.

    De algum modo, é o próprio horizonte mítico do western – tornado referência de grau zero, ou aquisição cultural estabilizada…e, portanto, “adquirida”, banalizada – que é reavaliado e reenquadrado. Ao contrário do que acontece com Ringo, em Stagecoach,  de J. Ford (1939), por exemplo,  o duelo não  integra Shane na cidade – expulsa-o para o além de onde veio. O conflito, que, por tradição, se centrava na defesa da comunidade contra estranhos ou fora-da-lei é, agora, interno à comunidade, e é um herói de passagem que o resolve. Pale Rider (1986), de Clint Eastwood, retomará essa tradição, quase numa “citação” directa de Shane.

    O espaço exterior à cidade é o da civilidade idílica, quase arcádica (sobretudo se pensarmos no conjunto de relações de ternura e mesmo de paixão em embrião, harmoniosamente resolvidas no pequeno rancho da família do narrador/Joey), sendo a cidade o palco das acções selváticas. Também são os pequenos ranchos que rodeiam a cidade onde se processa o quotidiano banal do trabalho benigno, opondo-se à ameaça do lazer preguiçoso e mesmo vicioso da cidade. E, para terminarmos este pequeno conjunto de observações sobre os aspectos característicos do género que são transformados inovadoramente em Shane, lembremos que o destinatário é incorporado, de forma muito criativa, na história – mais do que comparsa ou interveniente na acção, o narrador/Joey é o espectador in presentia.

    E esse traço poético de um novo modelo de enunciação, demarcando-se, no filme, como inovação dentro do género é, em muito, devedora ao facto de, antes de ser filme, Shane ter sido um livro no qual o narrador evoca não tanto os horizontes do Oeste, tal como ele existiu – mas os do western, tal como ele emerge numa memória encantada.

    Restaria dizer que o interessante, para nós, na abordagem do western sob a perspectiva de uma relação entre a literatura e o cinema, provém sobretudo do facto de, ao contrário de muitas outras grandes obras que estiveram na origem do cinema (D. Quixote, de Cervantes/Pabst, A Mãe, de Gorky/Pudovkin), os grandes momentos do género não terem assente a sua qualidade estética em obras literárias de reconhecido mérito cultural a servirem de “origem” ao argumento. Os textos literários, paraliterários ou escritos documentais  que estiveram na base de quase todos os grandes westerns não provinham de cânones culturalmente reconhecidos.

    A sua valorização não assentava, portanto, à partida, numa mais valia estética anterior, “originária”, que lhes servisse de caução ou auréola prestigiadora. Pensar o western como género narrativo poeticamente válido, em relação com a literatura, resulta de uma operação posterior, introduzida pela crítica, que procura olhar a linguagem da narrativa cinematográfica com os instrumentos conceptuais fornecidos pelas poéticas clássicas mais globalizantes (nomeadamente a de Aristóteles) e a própria teoria da literatura, como é entendida desde os formalistas russos (cf. Saunders, 2001: 8-12). Mas também é  motivo estimulante, para nós, no caso de Shane,  que uma criação romanesca, como o de Schaefer, tenha originado uma operação metapoética de tão interessante produtividade, ao desenvolver uma matriz narrativa, já poderosa no cinema, no campo romanesco que pouco ou nada a cultivava. 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa: 

    Schaefer, Jack, 1975 [1949], Shane, Bantam, New York

    Passiva:

    Bazin, André, 1961, Qu’est-ce que le cinéma ? III Cinéma et Sociologie, Cerf, Paris

    Bellour, Raymond, 1966, “Le grand jeu”, in Bellour,

    Raymond (org.),  Le Western, U.G.E-10/18, Paris  

    Dort, Bernard, 1966, “La nostalgie de l´épopée” , in Bellour,

    Raymond (org.), 1966, Le Western, U.G.E-10/18, Paris  

    Gluksman, André,  “Les aventures de la tragédie” in Bellour,

    Raymond (org.), 1966, Le Western, U.G.E-10/18, Paris  

    Greimas, J. A. e J. Courtés, s/d [1979], Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo

    Jauss, Hans Robert, 1978, Pour une esthétique de la réception, Gallimard, Paris

    Moine, Raphaële, 2002, Les genres du cinéma, Nathan, Paris                                                                            

    Moog, Vianna, s/d, Bandeirantes e pioneiros, Livros do Brasil, Lisboa

    Saunders, John, 2001, The Western Genre, Wallflower, London/NY


    [1] A data do artigo, recolhido em Qu´est-ce que le cinéma? Vol. III, é, de facto, anterior. Foi publicado no número dos Cahiers de Cinéma de Dezembro de 1955.

  • Clint Eastwood: os horizontes míticos em “High plain drifter” e “Pale rider”

    Clint Eastwood: os horizontes míticos em “High plain drifter” e “Pale rider”


    High plain drifter (1973) – em português, Os pistoleiros do diabo – e Pale Rider (1985) – em português, O justiceiro solitário –, dois filmes realizados por Clint Eastwood, têm, em comum com Shane (1953), de Georges Stevens, o grande campo de sentido em torno do qual as histórias giram: a chegada a um povoado quase isolado, geograficamente, e em crise social, de um herói enigmático e solitário – e a acção desse recém-chegado pela reposição da ordem, assente em valores transcendentes e míticos, relacionados com o para lá do horizonte que as montanhas circundantes traçam.

    A sequência da chegada do cavaleiro solitário, em Pale Rider (1985), depois do ataque da trupe de sicários do banqueiro, grande proprietário dos terrenos auríferos, contra o acampamento dos garimpeiros vivendo na precaridade, é a que mais lembra, ou evoca (levando mesmo a pensar numa citação), o filme de George Stevens, Shane (1953).

    Não é inicial, mas, sucedendo-se à cavalgada em grande parte filmada em picado, dos homens de mão de LaHood, compósito bando de “semi-mão-de-obra mineira”, “semi-malfeitores armados”, fica mais marcada toda a sua imponência de cavaleiro solitário, descendo pelas faldas, com destaque para a montanha que surge como o gigantesco limite de horizonte, ocultando todo o para lá da sua impositiva presença. Esta descida de uma altura que parece tocar o céu, opõe-se à anterior cavalgada dos malditos, que saem de uma floresta, vistos em plano geral, do alto, num ângulo a aproximar-se do picado, como se saíssem de uma caverna infernal.

    E isso é tanto mais evidente quanto a posição da câmara que acompanha o cavaleiro em traveling lateral ou de recuo, com pequenas variações focais, ora o apanha na posição angular horizontal, em planos médios e de conjunto ou, por vezes, em ligeiro contra picado: o ponto de vista da câmara situa-se, aparentemente, num nível inferior da encosta de onde o seu “olho”, a objectiva, em grande angular aberta para o limite do infinito, a montanha, capta o conjunto do cavaleiro, cavalo e porção da terra e da vegetação próxima do seu ponto de percurso e, por vezes, como que em pano de fundo, os pontos mais altos da falda estruturando um horizonte fechado, fazendo, por vezes, um pequeno recuo para acompanhar, de frente, o avanço do cavaleiro, outras, o plano médio é em ligeiro picado, com a câmara imóvel enquadrando o cavaleiro na sua movimentação para um destino, mirando-o por detrás, enquanto ele se encaminha para onde as palavras da adolescente clamando por auxílio, em salmo, parecem convocá-lo.

    O efeito dominante é, assim, o da pressuposição de um para lá dos picos, de um além de onde o cavaleiro desce, vislumbrados por efeito de uma forte iluminação, em que cavaleiro e cavalo já cobrem uma boa parte do horizonte e as faldas parecem um pano fundo próximo em que se enquadra, para acorrer à “chamada”. Fica bem patente como, a propósito do “cinema de Hollywood, e no western em particular, se pode dizer que o cenário da montanha funciona como um substituto da religião, um modo de introduzir uma dimensão espiritual secular” (Buscomb, 1998: 118) que pode articula-se, ou comunicar, com as regiões celestes.

    Sequência quase inicial, da descida e sequência final, a do duelo com os marshals, em Pale Ride

    A montagem pode ser entendida como simples construção de uma continuidade: primeiro aconteceu uma coisa, o ataque aos prospectores pobres, garimpeiros, na terminologia da actividade de prospecção artesanal, que se opunha à mais elaborada e de dimensão industrializante que os LaHood praticavam; depois, a oração da jovem Megan[1], quando enterra o cão que os assaltantes abateram, na sua bestial crueldade. A temporalidade, durante a prece, aparenta ser só marcada pela captação do passo do andamento do cavaleiro, em galope lento, e o salmo que Megan recita em montagem alternada: plano do cavaleiro/plano de Megan ajoelhada, alternando-se várias vezes, em repetição de imagens; o que tanto apela à sugestão de alternância de duas cenas ocorridas ao mesmo tempo, em lugares distantes; como de paralelismo, criando um plano transcendente, no qual, ao pedido de ajuda de Megan, se dá a aproximação de alguém que se sugere ser seu aliado ou adjuvante. Assim, a cavalgada do solitário responde à outra, colectiva, do bando, em paralelo, pela similaridade de movimentos para um destino, e pelas contrastivas diferenças em antíteses. Por outro lado, liga-se, num paralelismo modal e aspectualmente profético, à prece da ofendida, embora possa ter com esta uma simultaneidade temporal. O encontro apresenta-se como consequência, pelo menos na dimensão da justiça transcendente, em relação ao grupo de pistoleiros e como prolepse, em atendimento da prece, no que diz respeito ao encontro a realizar-se com a  jovem em busca de proteção.

    Comparando esta aproximação com a que Stevens apresenta no seu filme, já acima referido, diz-nos Fran Benavente:

    “Megan (Sydney Peny) a adolescente protagonista do filme, que ocupa a posição equivalente a Joe Starrett de Shane, caminha por um bosque brumoso que apenas deixa passar alguns raios e luz. Leva o cadáver do seu cãozinho nos braços. […] Do percurso em senda algo misteriosa, passamos para as mãos da rapariga, que acaba de enterrar o animal. […] O imaginário da tumba manifesta-se.A rapariga coloca um tronco de árvore como se fosse uma cruz, e inicia uma oração que assinala a falta, o vazio, que reclama uma presença. «Nas lendas orientais a cruz é a ponte ou a escada pela qual os homens sobem até deus (…); situa-se no ‘centro do mundo’ é a encruzilhada entre o céu, a terra, e o inferno» escreve Mircea, Eliade  (Tratado de história de las religiones. Madrid: Ediciones Cristandade, 2000, p. 429)./ Fala-se de milagre, Em seguida, o anelo, em forma de oração, desloca-se pela montagem, como um eco que ressoa nas paragens montanhosas. A oração sobre a tumba invoca uma imagem que aparece de forma evanescente, por encadeamento, como resposta à palavra formulada. A imagem do herói, ainda precária, ainda não se materializou completamente. Tal não acontecerá até que a oração termine. O «predicador» surge da paisagem; […] fantasma conjurado do próprio lugar do sepulcro, de onde jazem os mortos” (2017: 300).

    Os encontros processam-se numa ordem que dá primazia ao plano da factualidade mais banal, ou seja, primeiro, como qualquer viajante que vem de longe, o recém chegado dirige-se à cidade onde se depara com  o garimpeiro Hull, e alguns membros do bando de LaHood e, só mais tarde, ao visitar o acampamento, a convite de Hull, encontrará Megan cuja oração, como vimos acima, parece tê-lo chamado.

    De facto, a vinda do cavaleiro enigmático, parece ser convocada pelas preces da jovem habitante da aldeia de  prospectores humildes, numa montagem que não só sublinha a simultaneidade de aparição do ginete com a enunciação da prece, mostrando, ora Megan, ora o cavaleiro, como torna essa junção simbolicamente significativa, pois da parte mais longínqua do horizonte, em imagens que alternam com as duas séries anteriores, surgem as imagens luminosas do céu, cerrado de nuvens, antecedendo a chegada do cavaleiro[2].

    Depois do ataque ao acampamento quando Hull se dirige à cidade mineira para obter as coisas que faziam falta no acampamento, inclusivamente em resultado do assalto, quatro membros do bando que invadira a aldeia mineira, atacaram-no com cabos de machado em exposição na loja do retalhista. Para surpresa de todos, intervenientes e espectadores, é salvo pela intervenção do cavaleiro que usa um quinto cabo, disposto na  entrada do armazém, para travar os atacantes. Como reconhecimento Hull convida o desconhecido para jantar em sua casa.

    Quando se aproximam, a sua namorada, Sarah Wheeler, com quem coabita, numa relação a que poderíamos chamar pré-marital, escuta Megan, a sua filha, que lia, em voz alta, o livro bíblico do “Apocalipse”, também chamado “Livro da Revelação”. No momento em que ela pronuncia a visão do que continha o quarto selo — “And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him” (Book of Revelation, chapter 6, verse 8; King James Version – KJV)[3] — o cavaleiro misterioso, que nunca terá nome, aparece, sobre o seu cavalo, no enquadramento da janela perto da qual ela lê.

    Ghost riders in the sky, por Vaughn Monroe.

    “[…] Uma força, um certo desejo, atrai Sarah do exterior; olha pela janela esperando um advento.  A rapariga acaba a sua leitura no momento em que a sua mãe se chega à janela, atraída por aquele que está a chegar. […] No umbral [que forma a janela] aparece a figura do forasteiro como resposta à frase bíblica, recém pronunciada, . Dessa forma se aquilata o universo mortuório que acompanha o herói, o qual é designado directamente como «a morte»” (Benavente, 2017: 301).

    Quando o desconhecido muda de roupa, no quarto de Hull, este verifica que ele tem nas costas a marca de vários tiros, rodeando a região vitalmente vulnerável do pulmão e do coração. Aquele homem tinha, de facto, os indícios de poder “ter sido morto”, mas não dá explicações sobre isso ao anfitrião. Quem não o toma por aparição, mais ou menos numinosa, é Sarah. Antes o olha com uma admiração, misto de fascinada e temerosa, e, a entendê-lo dentro dos modelos bíblicos, podíamos ver o seu encontro, já antecedido por todo o simbolismo que envolveu a sua imagem e a sua chegada, como uma derivação do “Cântico do cânticos”[4], expressão, neste caso, do seu desejo carnal.

    Mesmo quando o vê um pouco depois, encontrando-se ele já lavado e envergando nova roupa, da qual fazia parte um colarinho de padre, ou pregador, ela aceita-o e venera-o como representante de  uma igreja (Preacher, epíteto que passa a ter o valor de seu nome próprio), mas mantém sempre um olhar eroticamente interessado sobre ele. Facto muito parecido com o que ocorre com a sua filha, ainda que, nesta, tudo tenha uma tonalidade mais mística, ou talvez, ingénua ou infantil. 

    Na sua tentativa de estudar a Bíblia do ponto de vista do crítico literário, Northrop Frye, ao procura apresentar o modo como os seus “elementos ergueram um enquadramento imaginativo ­- um universo mitológico, como eu lhe chamo – dentro do qual a  literatura Ocidental operou até ao século XVIII e continua, em laga escala, a operar ainda” (Freye, 1983: XI), abre-nos um campo teórico de indagações que, como acabámos de ver nos parágrafos anteriores, tem  um forte halo de intensificação semântica  no cinema e, em particular, no western, até finais do século XX. Tal como manteve na literatura ocidental, pelo menos até meados do século passado. Facto que nos é dado a ver em obras como as de Faulkner, de Dostoievsky ou de Martin du Gard (para dar exemplos alargados a toda a literatura Ocidental), mesmo quando a descrença generalizada numa ordem regida por uma transcendência divina se manifestava em representações que dramatizam essa perda mais ou menos, ou não a dramatizam de todo. Algumas obras de Steinbeck, como The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira cf. Apocalipse 14: 19-20) e In Dubious Battle, (Luta Incerta), cujos próprios títulos evocam esse enquadramento mito-ideológico, desde o texto antigo até ao elementos simbólicos e narrativos que são retomados em Paradise Lost de Milton  no século XVIII[5], remetem-nos para uma presença forte desse universo mitológico na cultura americana, na qual o western se integra, ainda que a posição dos autores seja de suspeição ou de dúvida relativamente aos tópicos que constituem artigos de fé.

    Um dos cronótopos mais fecundos que Bakhtine usa é o do idílio (Do grego eidýllion, «quadrinho», pelo latim idyllĭu-, «poema pastoril; idílio»), dentro do qual, por problematização da “perda”, se desenvolve, por exemplo, o romance de aprendizagem, em estreita relação com a narrativa pastoril, ou o romance regionalista. Não o é apenas, no entanto, pelo que permite circunscrever e determinar de tempo e espaço enquanto coordenadas do lugar, coordenadas intimamente ligadas às vivências assumidas como valores antropológicos e que a literatura incorpora ( “a adesão orgânica, a dedicação de uma existência a um lugar – a terra de origem – com os seus recantos, as suas montanhas, os seu vales, pradarias, ribeiras e florestas natais, a casa paterna” – Bakhtine, 1978,:367), que o conceito de idílio é produtivo. É, também, pelo seu jogo com outros cronótopos referidos por Bakhtine (o cronótopo da estrada, o do encontro) ou, por vezes, pensados a partir dos seus (como o do exílio, que podemos conjecturar, em relação de oposição, com o do idílio, projectando, sobre este, o do encontro e o da estrada) que nos encaminhamos, muitas vezes, para a construção teórica de algumas figuras caracterizadoras dos sub-géneros temáticos da literatura. (Jorge, 2010: 136)  

    Se recorrermos às propostas teóricas de Bakhtine, podemos dizer que a Bíblia impõe à cultura americana , com forte relevo no cinema e especial intensidade no western, a matriz de um cronótopo já de si complexo. De facto “a correlação essencial dos intercâmbios espácio-temporais” de que ele fala (Bakhtine, 78: 237) mantém uma permanente tensão entre as duas instâncias fundamentais: a espacialidade dos settelements, lugares  de assentamentos coloniais, pequenos povoados em torno dos quais se desenvolvia uma comunidade, quase sempre conduzida por uma ideologia cristã, que era a sua base ética e de  ordem social; e a temporalidade  da deslocação, da viagem, da travessia. Os índices do tempo, revelam-se em espaços, e os espaços, são medidos e percebidos segundo o tempo.

    A estrada dos pioneiros, por exemplo, tem como modelo, quase simbólico, a “pista de Oregon” com as suas caravanas, e como representação da motivação dos exploradores, a “corrida ao ouro” na Califórnia. Ambos os filmes de Eastwood estão relacionados com estas variantes do cronótopo da estrada, assim como com cronótopo do idílio, entendendo-o como aquele “em que se processa a adesão orgânica, a ligação de uma existência e dos seus acontecimentos a um lugar” e relaciona-se com o “recanto em que viveram pais e antepassados e viverão filhos e netos”. É claro que a sua junção nos dá a grande composição cronotópica do Western.

          Torna-se necessário esclarecer, sobre o cronótopo do idílio que este “micromundo, se sustem a ele mesmo” e, tal como noutros universos que podem ser considerados, estes espaços, no western, “não estão ligados a outros lugares” (cf. Bakhtine, 1978: 367). Pelo menos na aparência, ou numa certa restrição de dimensão do desejável, do modelo exemplar…e é na transgressão dessa regra que os westerns do modelo de Shane, têm o valor dinâmico, e a intensidade dramática. Porque eles consubstanciam, pelo modo como valorizam um dos elementos aparentemente ausente do idílio: a estrada, como trilho, ou rota.

    Reintegrando-o como nova instância, a do horizonte mítico dentro do idílio. Todos estes traços permitem delimitar, tendo em conta a importância composicional da variante, um subgénero, manifestação histórica e nacional do idílio, que é o povoado retirado do tempo histórico e que evoca, como espaço mítico, um universo exterior, de onde vêm os impulsos da mudança, e os agentes repositores da ordem. Podíamos chamar-lhe cronótopo do settelement ou dos assentamentos coloniais, opondo-o, por emparelhamento, ao que que enfatiza a pista, para a descoberta, ou a rota ou mesmo a corrida, para a ocupação ou a apropriação.[6]

    Como notam alguns estudiosos da narrativa cinematográfica popular, em grande parte, aquilo a que se chamou a cinematografia, ou a filmografia da Série B, uma das tensões que surge no confronto de valores, é a que assenta na divisão entre a “cartilha” pela qual se pautam os agricultores, ou garimpeiros pobres, enfim, todos aqueles que vivem do seu trabalho, e residem nos meios rurais, e os textos de lei que servem de referência aos habitantes da cidade: embora o registo codificado comum seja a Bíblia, as fundamentações evocadas divergem. Uma outra partilha de pauta de valores assenta na que existe entre os que sobrevivem em campo aberto (o tão evocado open range, dos criadores de gado, mas também dos vaqueiros e dos fora-da-lei), nos qual se confundem os grupos que vivem laborando num relativo nomadismo.

    O tipo de herói que temos aqui, prioritariamente, em consideração, a partir dos filmes de Eastwood, mas também o de Stevens, identifica-se com o grupo nómada, pelo seu modo de vida itinerante e independência relativamente a qualquer comunidade, mas assume a defesa dos valores humanos básicos (direito à vida, à liberdade, à dignidade), antes de mais, em grande parte os da LEI, a Lei vigente, emanada da sociedade civil no seu sentido mais amplo e, no limite, pratica um respeito pela transcendência religiosa, sobretudo relativamente aos princípios explícitos no discurso que dela emana (através do texto bíblico — Gospels ou Old Testament —, ou de outros discursos claramente decorrentes deste: a palavra dos padres, pregadores, entidades santificadas pelos colectivos a que pertencem). Daí o facto de estes heróis se identificarem, muitas vezes, com as entidades míticas da cavalaria celeste, presentes nos romances de cavalaria.

    A marca identificadora do espaço fechado, universo com limite no horizonte, é a cadeia de montanhas, em muito equivalente e parecida com a que fecha os horizontes da região onde se movem as personagens do filme de Stevens, Shane. No seu esforço aparentemente objectivante, de extrair toda a força alegórica da realidade sensível, numa procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, este tipo de narrativa faz variar os pontos de vista a partir dos quais “o referente” da paisagem surge, com o seu cerco de montanhas como “um «universo imaginário» uma versão singular do mundo” no fundo uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente” ficcional, captado pela objectiva se afirma como um universo fechado como uma realidade social e física “com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).  

    O filme de Stevens estrutura e fundamenta o seu horizonte histórico-cultural, sugerindo o além de onde Shane emerge e, no final, desaparece, como região mítica de quase sacralidade, aquilo que Mircia Eliade designaria por “as regiões superiores, inacessíveis ao homem, as zonas siderais,” que “adquirem os prestígios do transcendente” aonde “só chegam alguns privilegiados” e para onde “se elevam as almas dos mortos” (Eliade, 1978: 129)[7]. É preciso notar que nos dois westerns de Eastwood que aqui comentamos o justiceiro misterioso vem dessas altitudes remotas e regressa a esses espaços de ascensão, apresentando sempre certos sinais ou marcas que o ligam directamente ao mundo dos mortos, surgindo entre nós como aparições ou mesmo fantasmas.

    Esse além invisível, para lá das montanhas, surge, no cinema, através do cenário ostentado pelas panorâmicas e pelos planos de conjunto com grande ou extremamente grande afastamento focal. Isso deve-se, por certo, ao facto de o género, no cinema, rejeitar, por motivos ainda hoje justificados (a dominância da matéria específica icónica, em detrimento da verbal, que tende a ser substituída por aquela – por exemplo), o discurso ético-avaliativo e argumentativo que tão bem cabe no romance, mesmo que ele tenha como matéria lendária o justiceiro do Oeste, homem mais de acção do que de palavras, de suprema rapidez a disparar. Demonstra bem essa possibilidade o parágrafos final da obra de Schaefer: “He was the man who rode into our valley out of the heart of the great glowing West and when his work was done rode back whence he had came and he was Shane”  (150-151)[8]. O que o cinema traduz, na expressão de Stevens, por um longo plano de Shane, a cavalo afastando-se em direcção às montanhas, similar a e inverso plano inicial, em que se aproxima, vindo das regiões montanhosas. Assim fazem, também, os cavaleiros solitários dos dois filmes de Eastwood.

    Como diz Collot, num outro texto:

    “O horizonte é um limite de abertura, não uma vedação. Dá à paisagem os seus contornos e a sua aparência, mas, igualmente articula-a com o algures indeterminado; pelo que, recuando indeterminadamente, ele abre-a para o ilimitado. Se, por um lado, desenha uma fronteira, por outro lado fá-la permeável: o horizonte  dá ao lugar a sua identidade, mas ele coloca-o em relação com todos os outros, e, virtualmente, com o mundo inteiro, que é o “horizonte de horizontes” (Husserl)”.

    Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro, para espanto dos nosso olhos” (Collot,1989: 174) é o da epifania,  que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência, mas que, ao mesmo tempo, absorve pela força da sua presença. Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[9]. Este procedimento, que foi muito caro e Joyce, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, apresenta-os como reveladores do que que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca  traços emotivos e afectivos a ela ligados.

    Por esse procedimento, qualquer dessas aparições  era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito. Parece-nos evidente que este efeito de aparição (com o seu correspondente contraponto, a desaparição) resulta com muito maior facilidade no cinema do que no romance, por exemplo, embora, depois da afirmação estética e poética do cinema, muitos tenham sido os ficcionistas, como Dos Passos ou Faulkner, por exemplo, que procuraram produzir o efeito através da palavra, a partir do próprio Joyce.[10]

    Como já dizíamos, a propósito do filme de Stevens, há um efeito mítico de um herói carregado dos símbolos da sua própria plenitude, emergindo da Sierra Nevada  (cenário postulado, atendendo a que o universo diegético é a Califórnia, como em Shane eram as Montanhas Rochosas) e voltando a desaparecer nela, o que nos permite pensar a obra de Eastwood, tal como a do cineasta anterior, como um cruzar de todos os valores mito-poéticos da matéria relativa ao pioneirismo, e à fundação dos povoados, e os aspectos formais dos sub-géneros épico-narrativos (cf Jorge, 2005), como veremos melhor adiante.

    Um aspecto que se revela em ambas as obras, de Stevens e de Eastwood, é a estruturação de uma mensagem poética em que o Oeste se valida, como mito, pela evocação de um passado a que o herói pertence – e que, por essa pertença, só  se afirma plenamente como retorno potencial, ou mesmo putativamente, fantasmático. Essa  característica  é ténue, no filme de Stevens – ainda marcado pelo efeito de memória evocativa com os seus contornos retóricos de discurso verbal produzido pelo romance de Schaefer –,   mas que emerge com toda a força nos de Eastwoood. Aspecto que se torna muito mais evidente quando destacamos High Plains Drifter (O pistoleiro do diabo) de 1973. Se acrescentarmos a este cotejo comparativo, o que resulta do confronto  entre os sistemas de enunciação da narrativa, que apoia, pelo tipo de sujeito que a suporta essa dimensão mítica, a objectiva mecânica, e dos que resultam de enunciados verbais, torna-se-nos evidente que, esse mesmo dispositivo enunciativo, no filme,  como já o notara o próprio Saunders, e já por nós sublinhado no referido texto sobre Shane, sofre alterações que facilitam, ou quase apelam, para as sugestões do sobrenatural e do fantasmático, pela sobrecarga de presença sensível que as suas representações, mais ou menos fantasiosas, propiciam[11].

    Podemos reafirmar, com ele, que a entidade responsabilizada pelos valores éticos e epistémicos do filme é menos conotada como um Sujeito da verdade, notando que “a primeira pessoa narrativa da personagem do livro, se torna Joey” personagem dramatizada na mise-en-scène cinematográfica, o que,  “no filme, dá aso a uma perspectiva mais objectiva, mas, apesar disso, vemos os eventos através dos seus olhos e os ângulos da câmara asseguram que, como ele, olhemos para cima, para Shane, em muitos momentos” (2001:14), o que nos faz vacilar relativamente à fonte mais segura do discurso positivo e esclarecedor.

          Contudo, há uma mudança de quase 180º, na fundamentação e valorização ética e mito-religiosa, nos filmes de Eastwood de que vimos falando, dos heróis recém-chegados, de modo algo misterioso, sendo o seu comportamento, também, razoavelmente enigmático. Enquanto o herói de Stevens (nesse aspecto alterando mesmo, nos adereços e complementos talismânicos, o romance homónimo) é uma espécie de virtuoso cavaleiro que chega de um horizonte circundante e não domesticado, com um aparato de signos e talismãs que evocam o pioneirismo como uma missão de cavaleiro andante, vestido com um traje  que lembra os cavaleiros  sem mácula, dos romances de Chrétien de Troyes[12] não  faltando ao seu cavalo a gigantesca malha branca que sugere, nele, as míticas qualidades de um unicórnio, perseguindo um destino com inquebrantável perseverança; os heróis que Eastwood compõe ostentam os valores da justiça virtuosa, mas segundo um aparato ético mais próximo daquilo que as igrejas bíblicas tendem a apontar como marcas do diabo.

    Conviria, talvez, ver, neste, o recuperar de uma faceta do satanismo, de dimensão astral, no seu tom luciferino, em substituição do angelismo branco de que Shane está carregado. Shane pede bebidas sem álcool, no bar, ao passo que o Pregador, por exemplo, apesentando-se como tal, aceita bebidas alcoólicas “a partir das 9 da manhã”. Igualmente, o herói de High Plains Drifter (O Pistoleiro do Diabo), não deve nada ao angelismo seráfico, é brutal, bebe e é agressivo. Neste, a relação com o além é mais difusa, mas a sua presença vital, carnal e activa, manifesta-se sem negar as relações com o mundo dos mortos. No entanto, o registo é mais realista.

    A sua deriva arrasta-o, das terras altas, possivelmente de longe, dado que o título é o viajante das planícies ou terras elevadas, mas na planície estagnada junto ao lago de águas mortas, o seu centro de atracção é o cemitério, e a sua atenção fixa-se numa campa sem nome. No entanto, com ele vem a morte e a vingança, exercendo-se numa cidade junto ao lago, chamada Lago, e que tem, a circundá-la, complementarmente ao lago, uma cadeia de montanhas, de onde o vagabundo, o cavaleiro, errante, vem: dessas montanhas que, como diria Pierre Jourde, são “a forma telúrica por excelência; a terra elevada, o material terrestre colocado em relevo, em três dimensões, de tal forma que exaltam a sua espessura e a sua consistência”, impondo ao olhar “uma presença, concreta, compacta, que barra o horizonte e encerra o espaço” (1991: 58).

    Mas a característica do trilho de chegada do cavaleiro que vem das terras altas, não é, tão intensamente como em Pale Rider, a descida das regiões ignotas, embora elas também sejam ponto de origem, menos enfatizado do que neste último, é certo, mas presentes. É, sobretudo, o ponto de passagem, o cemitério já nos arrabaldes da cidade, junto ao lago.

    Na passagem por este lugar dos mortos, o cavaleiro avança lentamente, como que perscrutando as campas. A continuação da narrativa, nomeadamente as imagens de recordações ou pesadelos, podem ligar-se a estas imagens iniciais, bem como a sequência final, da partida do cavaleiro: ao passar no cemitério, o marshal anão, prepara-se para identificar uma campa sem nome, quando o cavaleiro misterioso se cruza com ele e, perante a perplexidade que este manifesta na expressão, o visitante, antes de pôr o cavalo em andamento mais rápido, diz-lhe que ele bem sabe qual o nome que deve estar na lápide:  Jim Duncan

    O trilho da demanda de Shane, recém-chegado a uma região de pequenos agricultores que colonizavam Wyoming, é, sem dúvida, o modelo dos dois filmes de Eastwood, nos seus traços gerais. Os colonos lutam contra os grandes criadores de gado, e o objectivo de Shane, ao envolver-se no conflito, é a tentativa de obter ordem e justiça, numa axiologia que, implicitamente, se assume como sendo de origem celeste. Este percurso é, praticamente idêntico ao do Pregador de Pale Rider.

    Após abater o bando de malfeitores, o cavaleiro desaparece no horizonte de onde emergiu – figurando assim uma harmonia entre o cosmos e a lei que parece reproduzir a conjunção entre a transcendência e a imanência que, numa perspectiva lukacsiana, por exemplo, seria o traço fundamental do herói épico (s/d[196…]66-67)[13]. A activação desse valor supremo, que parece pairar numa transcendência que só o herói sabe traduzir para a acção imanente, realiza-se pelo seu braço, tal como nos romances de cavalaria medievais, sempre do lado certo  do litígio, transformando a sua acção e o  resultado desta na esfera da harmonia cósmica como feito resultante da demanda.

    Mono Lake, Califórnia, palco de filmagens de High Plains Drifter.

    No caso do High Plain Drifter, a intriga difere ligeiramente, sobretudo na pormenorização da fábula: o herói chega para redimir, pelo castigo, a quase totalidade dos habitantes da cidade, e pela humilhação, os outros que, pelo seu silencia ou pela anuência, foram, cúmplices de um crime e de uma vivência de culposa ignomínia. É claro que a identificação, por fortes sugestões, nos sonhos maus do cavaleiro recém-chegado, com o marshal anos antes assassinado, torna a figura deste justiceiro muito próxima da pura fantasmagoria.

    E a sua justiça raia quase o rigor do fio da navalha: deixa matar os instigadores do assassinato do antigo agente da lei, pelos próprios assassinos deste, que, entretanto regressam da prisão para onde os tinham mandado forjando um delito que as autoridades estatais puniram; mata os assassinos com os mesmos processos com que eles tinham assassinado o marshal deixa uma censura e um aviso aos restantes cidadãos, que se cumpliciaram pelo silêncio. Para já não falar da sua enigmática intenção ao ordenar aos habitantes de Lago que pintem todos os edifícios da sua cidade de vermelho, tendo ele próprio pintado no marco com a designação da cidade, LAGO, colocado no caminho de acesso, um outro nome que cobre o original, HELL, com a mesma tinta vermelha.

    De facto, “quando tem uma conotação negativa, o vermelho cristão está quase sempre associado aos crimes de sangue e às chamas do Inferno” além de que “os teólogos” o associaram a “vários vícios” entre os quais se contam quatro dos pecados capitais, a saber, a “ira”, a “soberba”, a “luxúria” e a “gula” e, “mais banalmente” mas em decorrência do sistema erudito, “o vermelhos é associado a tudo o que lembra a violência, a devassidão, a traição e o crime” (Pastoreau, 2019a: 123). Ora é bom relembrar, a este respeito, que o grande código que está presente no western, mais do que em qualquer sistema artístico ou tendência narrativo-fabulatória, é a Bíblia: o”Velho Testamento” e os “Evangelhos”.

     Registemos, neste ponto, a quase enfatização do alegórico em High Plain Drifter, em detrimento do real – que. noutros aspectos, até parece cultivar –, no que diz respeito à recriação da cidade enquanto espaço edificado. Ela é tratada claramente como lugar de uma cenografia, ou mesmo como um plateau de filmagens. O recém-chegado usa-a para projectar os seus humores, sem qualquer consideração por qualquer dos habitantes, tratando-os como actores ou mesmo títeres.

    A cena do treino de tiro é bem exemplificativa disso, quando os figurantes humanos são emparelhados com os bonecos de palha. Por outro lado, exceptuando os culposos habitantes, com estabelecimento comercial ou funcionários da empresa de exploração mineiras, alguns residentes já idosos, a cidade é particularmente desértica, e parece não ter existência nos arredores. Não há crianças, não há mineiros, nem cultivadores de terrenos.

    Fran Benavente, numa apresentação que transcrevemos como recapitulação resumida da nossa análise, declara o seguinte:

    “Assim, pois, do passado surge uma violência transbordante, que deve ser exorcizada no presente, reduplicada e, em consequência desactivada. E, neste caso, essa reduplicação patenteia-se deste uma evidente encenação, desde a construção de um cenário. Monta-se todos um dispositivo para reeditar o momento do passado. Pinta-se o  povoado de vermelho, e o inferno convocado, no momento da sua morte, pelo representante da lei que fora assassinado, torna-se presente. Sobretudo  na noite, quando as chamas inundam tudo, e o inferno já se apresenta palpável. […] Assim se produz a reduplicação da cena original, a violência reescreve a violência. O final do filme estabelece o sentido da narrativa. Uma vez cumprida a vingança, uma vez saldada a dívida original, o forasteiro pode ir-se. O fantasma já pode ser nomeado. O nome que não tínhamos, ainda, conhecido, vem encher a imagem, e, agora, sim, está inscrito na lápide. O espectro pode descansar em paz e a comunidade pode voltar a reconstruir-se. A figura reingressa no reino fantasmal, pode voltar a desvanecer-se no horizonte, na mesma paisagem fluida que abre o filme” (2017: 295-297).

    O cenário citadino mais semelhante ao deste filme, que conhecemos, em westerns, é o de Warlock (1959) – em português, O homem das pistolas de ouro –, de Edward Dmytrick, mas o pequeno lugarejo cercado de colinas, tem actividade, há minas, pessoas que figuram como possíveis trabalhadores das minas, vaqueiros, que são, aliás, o grupo que causa problema, os comerciantes activos, um hotel a funcionar, com hóspedes visíveis e tudo isso. Coisa que não acontece no filme de Eastwood: quase todas as pessoas presentes num quotidiano em que não se observa qualquer labuta, são as que já existiam no tempo do marshal que foi morto, e que parecem estar ali apenas para penitência. A cidade de Lago parece apenas uma excrescência ao lado do cemitério, uma dependência deste que domina a  planície, ou uma sua extensão.

    Warlok, vista do alto da colina sobranceira, pelos marshall e acompanhante recém-chegados: o pequeno mundo, ou lugarejo…com a sua matriz de actividade fundamental, a mina, assinalado pelo fumo.

    O  complemento que o forasteiro  lhe dá, mandando os habitantes pintá-la de vermelho, torna-a ainda mais evidentemente alegórica, tomando-a como um pórtico ou uma antecâmara do Inferno (HELL, é o nome que ele escreverá sobre LAGO, na tabuleta que marca os limites dos arredores da cidade). Paul Simpson, numa breve apreciação do filme aponta para algumas linhas temática e de estruturação narrativa que são de considerar aqui: “um gótico sobrenatural que se tece em torno dos temas de High Noon, 1952, (O comboio Apitou Três Vezes)” de Fred Zinnemann, tomando-o como referência” (2006: 74).

    O que, de facto, nos faz reforçar a ideia que, desde Shane, pelo menos, o horizonte mítico incorpora várias fontes que estão na origem dos valores que foram sempre evocados como bases da construção da “América” (com o significado de USA): a fundamentação bíblica, a sagração dos pioneiros enquanto mitos, e a acumulação de arquétipos de figuração dos pioneiros, como civilizadores, construtores, sobretudo, de um estado de direito inspirado pelo “Antigo Testamento” e pelos “Evangelhos”. Para a iconográfica mitificante do pioneiro, ou peregrino[14] civilizador, muito contribuiu, como fonte, o western cinematográfico, razão pela qual as obras mais recentes tendem a citar amplamente os “clássicos” do género, sobretudo quando andam em torno das origens míticas e dos horizontes que se criaram em torno destas. Quer sejam elementos de difusão da doutrina quer seja os espaços de culto, de oração ou de cerimonial fúnebre.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

    N.D. Versão alargada de  uma comunicação aceite em 28 de Janeiro de 2020 para o congresso internacional Mediterranean Studies Association, prevista para Maio desse ano, mas adiada para data a confirmar.


    [1] O Pregador parece ter chegado em resultado da prece de Megan na qual ela cita o Salmo 23 da Bíblia (apresentamos o salmo completo, em português – que não é dito integralmente – e no qual Megan intercala manifestações dos seus próprios sentimentos: Salmos 23: “1 O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. 2 Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. 3 Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. 4 Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. 5 Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. 6 Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias”).

    [2] Podíamos evocar aqui, em complemento da  tentativa de configuração da figura do cavaleiro solitário, enquanto alegoria, a canção clássica do estilo country escrita em 1948, nos EUA pelo compositor Stan Jones, (Ghost) Riders in the Sky: A Cowboy Legend, normalmente designada apenas por Riders in the Sky: Letras: An old cowboy went riding out one dark and windy day/Upon a ridge he rested as he went along his way/When all at once a mighty herd of red eyed cows he saw/A-plowing through the ragged sky and up the cloudy draw/Their brands were still on fire and their hooves were made of steel/Their horns were black and shiny and their hot breath he could feel/A bolt of fear went through him as they thundered through the sky/For he saw the riders coming hard and he heard their mournful cry/Yippie yi ooh/Yippie yi yay/Ghost riders in the sky/Their faces gaunt, their eyes were blurred, their shirts all soaked with sweat/He’s riding hard to catch that herd, but he ain’t caught ‘em yet/’Cause they’ve got to ride forever on/ that range up in the sky/On horses snorting fire/As they ride on hear their cry/As the riders loped on by him he heard one call his name/If you want to save your soul from hell a-riding on our range/Then cowboy change your ways today or with us you will ride/Trying to catch the devil’s herd, across these endless skies/Yippie yi ooh/Yippie yi yay/Ghost riders in the sky/Ghost riders in the sky.

    Fonte: Writer/s: Stan JonesPublisher: Kobalt Music Publishing Ltd., Lyrics licensed and provided by LyricFind . Tradução: Instant Grammar Checker.

    Cavaleiros Fantasmas correndo no céu

    Um velho vaqueiro foi montar/em um dia escuro e ventoso/No céu, porém, a noite ficou/rubra num clarão/E viu passar num fogaréu um rebanho/com olhos vermelhos no céu/Um arar através do céu áspero/levanta a tração da nuvem/Suas marcas ainda estavam em fogo/e seus cascos eram feitos de aço/Seus chifres eram pretos e brilhantes/e sua respiração quente que poderia se sentir/Um relâmpago de medo atravessou/ enquanto trovejou através do céu/Ele viu os cavaleiros que vinham duramente/e ouviu seus gritos de tristeza/Yippie yi oh/Yippie yi yay/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Suas caras desoladas, seus olhos borrados/suas camisas embebidas todas com suor/Eles cavalgam forte para pegar aquela manada/mas ainda não conseguem alcançar/Porque começaram a montar para sempre/nesse nível acima no céu/Nos cavalos que bufam fogo/eles montam ouvindo seus lamentos/Enquanto os cavaleiros galoparam sobre ele/ouviu-se um chamada pelo seu nome/Se você quiser conservar sua alma/do inferno de uma equitação conosco/Então hoje mude suas maneiras de ser vaqueiro/ou connosco você montará/Tentando coletar o rebanho do diabo através destes céus infinitos/Yippie yi oh/Yippie yi yay/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu” (vd. aqui).

    [3] “And when he had opened the fourth seal, I heard the voice of the fourth beast say, Come and see. And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him. And power was given unto them over the fourth part of the earth, to kill with sword, and with hunger, and with death, and with the beasts of the earth.” Revelation 6:1-17 KJV (King James Version).

     Numa versão portuguesa podemos ler o parágrafo versicular da abertura do quarto selo: “E, quando abriu o quarto selo, ouvi <a> voz da quarta criatura, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo verde*, e o quem se  senta em cima dele tem por nome morte; e o Hades seguia atrás; e foi-lhes dada autoridade  sobre a quarta parte da terra, para matarem  com espada, e com fome, e com morte, e por intermédio as feras selvagens da terra” (Bíblia, vol II: 569; Tradução de Frederico Lourenço).

     *A cor do cavalo é designada de várias formas: no “Apocalipse” 6:7,8, da tradução Almeida Corrigida, aparece o termo amarelo; Pale em inglês, amarelo, em português (as legendas portuguesas do filme apresentam-no como esverdeado…o que corresponderá, eventualmente à designação verdâtre, a partir de alguma versão francesa, correspondendo, em geral, a várias versões francesas que se refiram ao “Apocalipse”; sendo outra possibilidade da designação alternativa, portuguesa – ou francesa – dada nas legendas do filme, o termo glauco). Numa nota feita para o versículo 6.7, Frederico Lourenço acrescenta: “não sendo, é certo, a cor habitual dos cavalos, a palavra «verde» (klôrós) poderá talvez significar aqui «pálido» (p.569). Pode-se pensar na coloração atribuída aos cadáveres dado que o animal é cavalgado pela morte. Esclarecedoramente, escreve Michel Pastoureau: “Aquoso, viscoso, não saturado” é um “verde negativo” que “é também por vezes um esverdeado. A cor não é, então, viva nem pura, antes acinzentada, mortiça, esbranquiçada. Na imagens como na realidade, essa tonalidade esverdeada  – que o latim medieval exprime pelo adjectivo subvirdis – é sempre inquietante, se não mortífera. É a cor do bolor, da doença, da putrefacção e sobretudo das carnes decompostas. É também por isso a cor do cadáveres e, por uma relação analógica, tão habitual na Idade Média, a cor das almas do outro mundo, que deixam o país dos mortos para virem à terra atormentar os vivos e o seu direito à vida eterna” (2019: 122-123).

    [4] “Voz de meu irmãozinho! Eis que ele chega, saltando nas montanhas/ pulando nos montes,/saltando sobre as colinas/Semelhante é meu irmãozinho à gazela/ou à corça de veados nas montanhas de Baithel,/Eis  que ele está de pé atrás do nosso muro/por detrás do nosso muro,/Espreitando pelas janelas,/Espreitando pelas persianas” (tradução de Frederico Lourenço, Bíblia, vol IV, Tomo 1 2018: 63).

    [5] Verso 104 [p.6].

    [6] Rio Vermelho (em inglês: Red River), 1948 western, dirigido por Howard Hawks e Arthur Rosson, podia ser um bom exemplo dessa amálgama, de actividades nómadas mais ou menos respeitadoras dos valores humanos básicos, religiosos e legais.

    [7] Esta visão pode ser completada pelo que Eliade nos diz, na mesma obra: “[…] a montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam nos dessas montanhas – míticas ou reais –situadas no Centro do Mundo, visto que a montanha sagrada é um […] Axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo […]” (1978: 51).

    [8] “Ele foi o homem que cavalgou  até ao nosso vale, vindo do coração do imenso Oeste cintilante, e quando acabou o seu trabalho regressou ao lugar de onde tinha vindo e ele era Shane”.

    [9] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, com defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado  por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV – Tradução nossa, CJFJ: “Stephen explica, em Stephen Hero que a apreensão da beleza envolve o reconhecimento da integridade, plenitude, simetria e esplendor. Aqui ele aproxima-se da estética de Gerard Manley Hopkins e da sua filosofia de haeccitas (‘thisness’ – [‘istismo’]). Joyce demonstra a maneira pela qual o objeto contemplado é revelado: a sua alma, seu “quêismo”, salta-nos de sob a cobertura da sua aparência. A alma do objeto mais comum, cuja estrutura é  ajustada deste modo, parece-nos radiosa [sublinhado nosso]. O objeto atinge a sua epifania. (cf. Stephen Hero, capítulo XXV).

    Cf tb. Bernard Richards, in `The English Review’.

    O conceito aparece  menos explicitado em The Portrait of the Artist as Young Man, 1916.

    [10] O final do conto, “The Dead” do livro Dubliners, p. e. com a quase fantasmagórica percepção da presença de um morto na sua evocação. O início do romance Sanctuary 1931, que, muitas vezes, quase parece  o texto de de uma planificação cinematográfica, é o seguinte: “From beyond the screen of bushes which surrounded the spring, Popeye watched the man drinking. A faint path led from the road to the spring. Popeye watched the man a tall, thin man, hatless, in worn gray flannel trousers  and carrying a tweed coat over his arm – emerge from the path and kneel to drink from the spring.” — 1965 p. 5, Penguin/Modern Classics, Midllesex,  

     “Por trás do biombo formado pelas moitas que cercavam a nascente, Popeye observava o homem que bebia. Mal definida trilha levava da estrada à fonte. Popeye vira o homem – sujeito  alto, magro, sem chapéu, metido em surradas calças de flanela cinza e tendo no braço o paletó de tweed –, emergir da trilha e ajoelhar-se para beber”. — Santuário / William Faulkner; tradução de Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

    [11] É claro que se joga aqui, com uma conceptualização que sugere que a fantasia (Phantasie*) com reforço fantasmático pode apelar para a aparição assombrada, ou simplesmente assombração (Phantom*), que, segundo a teoria freudiana (em textos como “Le créateur littéraire et la Fantasie” — in Freud, 1985: 29-46) são efeitos com que jogam persistentemente os ficcionista mas que se destacam, em toda a dimensão da sua ambiguidade, nos filmes de Eastwood, mesmo quando não fazem desse tema uma matéria central da suas história como é ocaso dos dois filmes em que aqui enfatizamos. Mas igualmente noutros, como The Outlaw Josey Wales (O Rebelde do Kansas), 1976, o tema do regresso do mundos mortos ou o da inexplicável evanescência (Josey Walls “morre” segundo os registos que os rangers tomam, para fazer constar no estatuto civil do perseguido    fora-da-lei), estão presentes, ainda que num registo mais realista.

    *Cf., p. e., para mais amplo esclarecimento, Mardem Leandro Silva, (2014: 41-42) in: “[…]fantasia se refere à imaginação, cenário imaginário e 42 representação, tal como Freud a faz valer. E para ser exato, o termo alemão que Freud utiliza é Phantasie, que em português é traduzido e dicionarizado como fantasia. Em francês, o Phantasie é traduzido como fantasme e, como fantasme, possui os mesmos sentidos que fantasia em português. O termo fantasma em alemão não se traduz por Phantasie, mas sim por Phantom, e a significação também é bem distinta, se refere a espectro e a algo que assombra. Em francês, fantasma se traduz por fantôme e segue a mesma linha de significação. Em Freud (1919/1996l), o termo Phantom aparece no texto Das Unheimlich, em português, O Estranho. Nesse texto, o campo semântico do familiar (heimlich) permite inferir que se trata de “[…] um lugar livre da influência de fantasmas.” (p. 243). Ora, se o heimlich não seria habitado por fantasmas, o unheimlich poderia ser pensado como o lugar da própria influência do fantasma? Freud não se ocupa dessa articulação, para ele, o conceito de fantasia era suficientemente eficaz para lidar com a problemática tanto clínica quanto teórica.”.                                                                                                                                               

    [12] Poeta/ficcionista francês, do séc. XII, autor (possivelmente a partir de versões orais das tradições, por vezes designadas “matérias”, bretãs e celtas) das mais conhecidas narrativas do Cavaleiros da Távola Redonda. É provável que nos Estados Unidos essas narrativas fossem mais divulgadas pela versão que aparece em Le Morte d’Arthur ou Le Morte Darthur,  escrito, no século XV, pelo inglês Thomas Malory.

    [13] Na edição indicada é recomendável, para um melhor esclarecimento da matéria, a leitura das páginas de 61 a 76.

    [14] Usamos o termo no seu sentido mais amplo, obviamente: o que atravessa terras desconhecidas ou a elas se dirige.

  • António José Forte

    António José Forte


    António José Forte (1931-1988) é uma aparição poética de rara qualidade nos horizontes ideológicos e culturais do Portugal do pós-guerra. Não se notabilizou pela extensão da obra escrita – e muito menos vasta foi a sua produção publicada. Entre outras coisas, até lhe aconteceu ter a sua escrita cercada por um “mimo estilístico” que esteve muito em moda no tempo de Salazar: a censura – actividade de tão zelosos prosélitos que conseguiu manter-se intocada na famosa primavera marcelista e anunciava-se incólume no “programa democrático” do Spínola pós 25 de Abril.

    Há hoje, em 2022, quem tente revovar a actividade em nome da “ordem” democrática a que poderíamos chamar demucratura.

    De facto, um dos textos que melhor marca o grito ascensional de Forte, delimitando os cordões extensíveis do seu ringue de combate permanente, intitulado “Um Palito para Alfred Jarry”, embora fosse extremamente curto, levou um corte de quase 50%. Ficou, assim, silenciada uma das mais breves, incisivas e lúcidas apresentações que jamais foi feita, na nossa terra, desse pai de toda a produção literária que encabeçou o modernismo, num grito de maldição à “literatura” e à cultura, do teatro do absurdo au surrealismo, passando pelo dadaísmo.

    Apenas aí se tocava na arquipersonagem Ubu, comentando-lhe as mandíbulas insaciáveis e a mentalidade escroque, tal como ela aparece na trilogia de Jarry, mas foi o suficiente para os inquietos marcelistas, de tal forma as entidades burlescas das peças tinham semelhanças com as que dominavam (e dominam, diga-se de passagem) a cena política e financeira portuguesa contemporânea. De facto, um dos excertos cortados, no texto que acabou por não ser publicado, dizia o seguinte:

    ó cabecinhas, barrigas-de-petróleo, patriotas encuecados de ideal borrado, crocoloditas de pança encortiçada, mandibulantes de carniça operária, grandes escritores de tinta da china maricas – esse Pão que todos os dias nos rebenta na boca logo de manhã, e depois à mesa, e na cama à noite, e sempre, enquanto este tempo de Ubus não for empurrado para o alçapão – «nobres para o alçapão, magistrados para o alçapão, financeiros para o alçapão» – Alfred Jarry de seu nome de letras crepitando no organismo da fêmea do super-macho e escrito no espelho de cada um, esse Pão com vidro moído por dentro para dar aos generais, com fumo para entrar nos olhos dos cães de guarda da paisagem…” (Forte, 2003: 125).

    Uma das dificuldades de escrever, hoje em dia, acerca de Forte e da sua poesia, advém, em grade parte, de pouco se ter escrito sobre ele, desde os primeiros momentos em que a sua poesia saiu a lume, ao longo de, praticamente, trinta anos. De algum modo, a excelência e a altura da sua poesia consumia-se, em surpresas e espantos, no próprio momento, não deixando rasto de comentário, nem lastro para debate posterior. Não era deliberadamente, para obter essa ausência de contradiscurso ou análise crítica, mas resultava assim. Tudo se passava como se o acto poético, muito em modelo dadaístico, se consumisse no próprio momento da sua encenação poética única.

    De pequenas dimensões, os seus opúsculos líricos, esparsos, outros poemas seus publicados em revistas, raramente se apresentava a sua escrita à atenção de uma crítica mais morosa, que procurasse aquilatar da originalidade do poeta, ou correlatar as intervenções de Forte com os antepassados com que mais evidentemente mantinha laços, sobretudo por essas ligações se apagarem, quase, face ao emergir do seu dizer, como uma urgência de grito e de diferença, por sobre as ameaças de abismos e de espantos siderais.

    Não obstante a justeza de uma opinião como a de Herberto Helder, que o pronuncia como uma “voz não plural, nem derivada, nem devedora” e possuidora da “sua própria tradição”, por essa mesma urgência irreprimível que caracteriza os seus escritos e o modo circunstancial de emergirem – como discursos que não podem ser adiados nem silenciados –, a “inteligência fundamental do mundo” que, nele, se abre “imemorial e dinâmica”, segundo o mesmo Herberto Helder, tem relacionamentos óbvios com escritores, escolas e grupos que o antecederam, ou que foram seus coetâneos, com os quais a sua obra pode ler-se em estado de diálogo.

    Há alguns nomes e pontos de referência que podem ser enumerados, porque ele próprio se lhes refere. E essas referências são as do absurdo tal como Jarry o via e desenvolvia em patafísica (ciência que se dedica a estudar “as leis que regem as excepções” e a explicar “o universo suplementar ao que conhecemos”), o dadaísmo e o surrealismo. Outros contactos são menos explícitos, mas podem ser conjecturados. Em concomitância com a própria tradição que o surrealismo instaura, A. J. Forte deixa-se seduzir, de modo notório, na sua produção, pela ficção fantástica e maravilhosa, pela visão anarquista do mundo, e pela alquimia. São notórios, nos seus escritos, traços desses grandes territórios do imaginário e das formações discursivas.

    Quanto ao fantástico, não é difícil notar, nos seus textos, a relação com alguns pontos de referência, quer sejam de origem folclórica, quer se desenvolvam como produção culta, nas vertentes do gótico, do macabro ou do absurdo, quer emparceirem com outras produções que têm como destinatários os mais jovens. Hans Cristian Andersen, Isidore Ducasse, Baudelaire e Franz Kafka parecem emergir como sombra tutelares e, em seguida, dissolverem-se, para surgirem em novas virtualidades, em muitos dos seus textos, em que não falta, também, a presença da simbologia alquímica, como nos aparece, por exemplo, em “Sereníssimo”:  “A passo de leão até à primeira rosa/ de cor em cor até ao fim da terra// antes de mil anos e de mil olhos cegos//num silêncio de neve a arder/de cidade em cidade/até um nome em carne viva//…

    Uma referência especial a não esquecer, é a da inspiração beat, como reacção à poesia “culta”. As ressonâncias beatniks, sobretudo a de Ginsberg, manifestam-se pelo lirismo de protesto, cheio de apelos à acção enérgica (ainda que sem causa, pelos menos de moldes tradicionais…pelo que a causa parece ser o próprio acto poético), propondo “a sinceridade acima da arte, a intensidade imediata acima da forma” (Brown, 1973: 300). 

    Relembremos aqui, de acordo com o que dissemos anteriormente, que, não obstante o entusiasmo que o seu nome sempre gerou entre os companheiros de geração, sobretudo entre todos aqueles que fizeram parte do grupo do café Gelo, não são muitas as abordagens críticas ou analíticas à sua obra. É verdade que havia todo um impulso de reconhecimento, aprovação e sintonia entre os seus leitores.

    No entanto, talvez pelo facto de as suas publicações serem breves e esporádicas, as considerações aprofundadas para compreender a sua prática poética ou estética quase não existiram, o que é lamentável, dado que teria sido interessante que os intelectuais, poetas e críticos do seu tempo tivessem reflectido sobre a matéria publicada, e sobre os factos culturais que levaram à sua escassez.

    Mais recentemente, algumas tentativas têm sido feitas, como nos revela, por exemplo, o texto de Maria José Vitorino Gonçalves, realizado no âmbito de um mestrado em ciências da educação, ao rastrear algumas das abordagens mais abrangentes à sua obra:

    Ligado ao movimento surrealista, e ao segundo grupo do Café Gelo desde logo se identificou com o abjeccionismo, “um ponto do espírito onde, simultaneamente à resolução das antinomias, se tome consciência das forças em germe que irão criar novos antagonismos” (Pedro Oom). Neste grupo se integraram Hélder Macedo, Mário Cesariny, Ernesto Sampaio, Herberto Hélder, Manuel de Castro,Virgílio Martinho, Benjamin Marques, Pepe Blanco, Henrique Varik Tavares, João Rodrigues, António Gancho, José Escada, Gonçalo Duarte, António Areal, Manuel d’Assumpção, João Vieira. Ao Café Gelo desse tempo se refere, em 1986, em artigo publicado no JL: “Dada tratado por tu, o surrealismo olhado nos olhos, e sempre o trapézio voador do humor negro Todos os dias alguém na véspera de partir para Paris”. Na Lisboa da Ditadura, na palavra véspera moravam ao mesmo tempo o desejo de liberdade e a demora no efectivo acesso a outros mundos. Como aponta Maria de Fátima Marinho (2002[1] : p. 288-289): “segundo Cesariny, o grupo que se reunia, por volta de 1956-59, no Café Royal e no Café Gelo, estava votado a um “abjeccionismo conjuntural”. O termo abjeccionismo fora criado por Pedro Oom. Com a sua introdução, o autor de Actuação Escrita pretendia determinar a existência de uma dialéctica constante que transformaria o ponto supremo dos surrealistas numa tese, sujeita a uma antítese e a uma síntese futura, síntese esta que daria lugar a uma nova tese, numa dialéctica infindável. António José Forte coloca-se voluntaria e conscientemente sob a tutela da teoria abjeccionista de Pedro Oom. Incapaz de responder á pergunta carismática do abjeccionismo “O que pode um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”, o autor de 40 Noites de Insónias refugia-se no absurdo e no non-sense. ”A aventura, para António Maria Lisboa , é o conhecimento poético. Para Forte, é antes acção poética, identificada com a Liberdade, a Revolta, o Desespero que a justificam e instauram como fundamento maior da posição abjeccionista. Para ambos, fundamental, pois “seria irrelevante qualquer actividade intelectual quenão fosse antes de mais uma aventura [no modo] de viver” (Fernando B. Martinho: 1985, p.90[2]). Em 1970, é significativa a presença de António Barahona da Fonseca, António José Forte, Eduardo Valente da Fonseca, Ernesto Sampaio, João Rodrigues, Manuel de Castro, Maria Helena Barreiro, Pedro Oom, Ricarte-Dácio, Virgílio Martinho na antologia Grifo).

    No fundo, ele acaba por constituir-se como exemplar pleno de uma tradição, quase sem ruptura, na grande espiral do grito abjeccionista, com o qual a arte procurou apresentar a sua própria versão de intervenção no mundo: na política, na economia, nos salões e, em geral, em todos os convívios para os quais era convocada a mais radical presença perturbadora. Em ruptura com tudo o que era o passado canonizado, a literatura, a poesia, mesmo a modernista de tradição simbolista, Forte encarna, como poeta, a prática da maldição e da rejeição da cultura. 

    Porém, não devemos esquecer que o acto de ruptura praticado tem os seus pontos supremos no esticão abjeccionista, ou no inconformismo beatnik, através do angustiado “uivo”,   

    (“I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked, dragging themselves through the negro streets at dawn looking for an angry fix, Angel-headed hipsters burning for the ancient heavenly connection to the starry dynamo in the machinery of night”),

    como canta o célebre trecho do poema “Howl”, tão frequentemente recordado, aparecendo quase como prosopopeia de uma geração focalizando, pelos olhos de Ginsberg , em longa enumeração, o caos e a desarmonia, patente no lista interminável  dos vencidos pelo sistema, dos abandonados pela civilização e proscritos pela cultura. Esse grito é complexo e pregnante, e não deve ser lido como uma atitude de apagamento pela ignorância…

    Ao contrário, como a própria prática poética e cultural de Forte o demostra, a ruptura dá-se em relação ao que muito bem se conhece. A cultura a sacudir tem de estar bem presente no bardo abjeccionista. Porque, conhecer, respeitar e admirar, eventualmente, o clássico, a tradição, não é sinal de submissão, ou veneração. Em contrapartida, o mais profundo respeito que o acto abjeccionista cria é o de se bater por uma diferença, por todos os meios, que vão da paródia e achincalhamento até ao grito de protesto contra a hipocrisia que se esconde sob a capa de uma cultura literária e bem educada, que recusa ver e/ou valorizar os procedimentos de ruptura que estão no interior de toda a criação poética, incluindo a canónica.

    É assim que o próprio Forte a vaticina, lapidarmente, no poema que escreveu, desafiadoramente, em prosa, intitulado “Uma Faca nos Dentes”: “A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica”.

    Este sentido do desafio radical, da colocação, da postura poética em estado de riste, face a um mundo de desconjunções permanentes, desenvolve-se, em Forte através de paradigmas ideológicos muito precisos: uma exigência de cidadania sem vontade de concessões a qualquer espécie de mediocridade ou de raciocínio conformista; uma exaltação da amizade em limites muito para lá do cumprimento das boas regras; e um reconhecimento da função do poeta dificilmente circunscrita nas cartilhas de qualquer escola ou grupo.

    Diga-se, desde já, quanto a este último caso, que as suas referências explícitas – a António Maria Lisboa e, através dele, à mais próxima e absoluta emergência do surrealismo; a Jarry e, com ele, através de Ubu, à intromissão da poesia na vida e à tomada de posição poética face a todas as investidas dos agentes históricos; e a Dada, em afirmação da disposição inquebrantável para todas as desobediências – revelavam admirações, mas nunca submissões.

    Porque, para Forte, mesmo na pessoa integral e serena com quem qualquer conversa pessoal era sempre o prazer de um convívio franco e aberto, uma busca como a poética não podia, em nenhuma circunstância, ser assumida como banalidade. Sob os seus desígnios é que a amizade, a intervenção cívica, a relação com os outros e a escala dos valores se estruturam pela emergência do amor. Porque essa poesia, como ele o vê muito bem através da evocação de Dada, é a que faz acontecer a vida como integral surpresa, a que é sempre um acontecer e não admite cristalizações: “Houve uma revolução Dada que está ainda a haver, mas não haverá nunca uma exposição Dada” (“Exposição Dada”, Folheto de 1982 – in Forte, 200: 121).

    Sobre a amizade, ele é bem explícito, quando se refere aos grandes convívios fundadores de todo um movimento poético em torno do surrealismo, no Café Gelo, no texto “Um exemplo (há vinte anos) – O Café Gelo e o chamado Grupo do Café Gelo”, que se manteve inédito até à edição, póstuma da recolha (possivelmente muito incompleta) feita sob o título de Uma Faca nos Dentes (2003).

    Jovens, alguns adolescentes, todos rebeldes, a crítica à cultura vigente era a actividade quase constante. E a exaltação de «Orpheu», do surrealismo, uma prática quase Dada, os valores por que orientavam os ataques à literatura, às artes, à política, incluída nesta a oposição progressista. São  estes valores o núcleo de atracção e repulsão que definirá personalidades, que as ligará por laços de camaradagem e amizade, que unirá personalidades em projectos literários falhados a maior parte deles, em projectos revolucionários também falhados quase todos, mas que afinal, desaparecidos do Café Gelo, continuam ao longo dos anos a manter uma idêntica atitude inconformista” (2003: 142).

    A intervenção cívica do poeta, que se exprime, por exemplo, em “Poema”, por “esta cabeça em fúria do poeta” (2003: 97)  transforma-se em “Desobediência civil” em nome da qual o a voz cantante pode afirmar:

    eu passo de bicicleta à velocidade do amor

    atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça

    para oferecer aos revoltados” (p. 96).

    Mas a sua expansão plena talvez deva ser evocada através do poema que dedica a Cohn-Bendit, como ilustração da incontornável fatalidade de termos o encontro marcado com a História, como se da morte se tratasse – não podemos querê-la nem evitá-la:

    António José Forte trabalhou na Fundação Calouste Gulbenkian, chegando a ser encarregado das famosas bibliotecas itinerantes.

    Deves ter razão

    e certamente a História não tardará a pôr-te os cornos

    um corno vermelho e outro corno negro

    grande e delirante cornudo

    minotauro bufando

    e investindo à altura do sexo

    Sou pela razão ardente dos teus cornos!

    Pisaste bem o rabo de deus

    mordeste bem o pescoço do diálogo

    enfiaste admiravelmente bem

    primeiro um corno depois o outro

    no Cu Pró Ar da política

    que era o que ela estava a pedir

    Como detonador e mais nada já sabes

    «porque ninguém representa ninguém»

    e «a Poesia deve ser feita por todos»… (2003: 61).

    Contudo, do Forte que eu conheci, como poeta, muitos anos antes de ter conhecido a afável pessoa com quem mantinha intermináveis conversas, nos dois ou três cafés em que nos encontrávamos, na zona da Trindade, junto com outros amigos, todos já menos jovens, mas ainda intolerantemente presentes, desse Forte mítico que, para mim, antecedeu a pessoa serenamente fascinante que ele era, ficou-me para sempre a imagem de um mundo catastroficamente atravessado pela sua visão poética:

    Herberto Helder prefaciou Uma faca nos dentes, em 1983, a antologia de António José Forte, publicada originalmente em 1983.

     “Descerão por paredes sangrentas

    e subirão do asfalto (….)

    com um estandarte negro seguro nos dentes

    e descerão sempre cada vez mais e cada vez de mais alto

    até chegar à orla do inferno e chorarem as últimas lágrimas

    e partirem de vez” (2003: 46).

    É que, para a dor visionária de estar sempre nesse “tempo em que os generais falavam” (2003: 31), houve apenas, em Forte, exclusiva e rigorosamente, como compensação, o amor, mesmo que ele fosse sempre perdido e só depois do sonho encontrado:

    alguma coisa onde tu corresses

    numa rua com portas para o mar

    e eu morresse

    para ouvir-te sonhar” (2003: 41)

    Quando, em finais de 1988, soube da morte de António José Forte, só uma frase me veio aos lábios, com o arrepio da tristeza: “Ainda tínhamos tanto que falar, ele ainda tinha tanto para dizer…

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Brown, John, 1973, Panorama da Literatura Americana do Século XX, Dom Quixote, Lisboa

    Forte, António José, Uma Faca nos Dentes, 2003 (nova edição), Parceria A.M. Pereira, Lisboa


    [1] MARINHO, Maria de Fátima, – «Surrealismo» In: História da literatura portuguesa / dir. Óscar Lopes, Maria de Fátima Marinho. – Lisboa : Alfa, 2002. – Vol. 7, p. 269-302

    [2] MARTINHO, Fernando J. B., «António José Forte: uma faca nos dentes», Colóquio Letras Nº 86 (Julho 1985). – p. 89-90.

  • Raúl Brandão

    Raúl Brandão


    THE SORROW OF LOVE (versão de 1892)

    by: W.B. Yeats

    (Tradução de André Carlos Salzano Masini)

    Sobre os telhados a algazarra dos pardais,

    Redonda e cheia a lua – e céu de mil estrelas,

    E as folhas sempre a murmurar seus recitais,

    Haviam afastado o mundo e suas mazelas.

    Então chegaram teus soturnos lábios rosas,

    E junto a eles todas lágrimas da terra,

    E o drama dos navios em águas tempestuosas

    E o drama dos milhares de anos que ela encerra.

    E agora, no telhado a guerra dos pardais,

    A lua pálida, e no céu brancas estrelas,

    De inquietas folhas, cantilenas sempre iguais,

    Estão tremendo – sob o mundo e suas mazelas.


    Este poema de Yates, que citamos quase com valor de epígrafe, balizando a amplitude conceptual e os valores temáticos dos objectivos a que nos propomos, sempre teve, para nós, a qualidade exemplar de um modelo de construção do imaginário e dos procedimentos poéticos mais marcantes de uma primeira fase dos modernismos[1] europeus, quando ainda se deixavam afectar profundamente pelos valores românticos. Esses procedimentos processam-se em dois campos, pelo menos, cujas características esclarecemos no mesmo número de parágrafos, numerados 1 e 2.

    1 — Por um lado, procuravam a hiperbolização do esforço objectivista, apostado na entrega do elemento referencial emblemático dos conteúdos emotivos e estéticos, de modo a evitar ou pôr completamente de parte o tom declamatório da expressividade construída numa espiritualidade imaterial, emulando, muitas vezes, de modo banalizador, o vocabulário filosófico ou os conceitos científicos.

    Davam, assim, a ver os valores, os sentimentos e as próprias ideias, pelo recurso aos elementos perceptivos, por um vocabulário fortemente remissivo para objectos do mundo, singularizados, intensamente imagísticos, sobretudo visuais ou, remetendo o ideado, por um jogo de sentido contextualizado, para o imaginário construído a partir das referências exteriores tomadas como ícones.

    Um pouco à maneira dos cineastas, que emergem no momento histórico em que os modernismos se afirmam, o esforço poético vai no sentido de usar as imagens como constituintes elementares das mensagens, quase como se fossem significantes de uma língua pictográfica, uma vez que, pelo processo de captação fílmica “o mundo exterior, em toda a sua massa, perde o seu peso, é libertado do espaço, do tempo e da causalidade, e reveste as formas da nossa própria consciência […] e as imagens sucedem-se com a fluidez de sons musicais” (Mustemberg [1916] 2010: 163).

    No seu esforço aparentemente objectivante, assumem uma procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, desde o autor a cada um dos seus leitores, surgindo “o referente do poema” como “um «universo imaginário», uma versão singular do mundo”, no fundo, uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente poético” se afirma como “a coisa com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).   

    Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro para espanto dos nossos olhos” (Collot, 1989: 174) é o da epifania, que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência.

    Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[2]. Recusando a transmissão dos estados afectivos pelo recurso à terminologia descritiva dos sentimentos (“coração”, “alma”, “dor”…), procuravam valorizar o procedimento epifânico, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, reveladores do que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca traços emotivos e afectivos a ela ligados. Por esse procedimento, qualquer dessas aparições era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito.

    2 — Por outro lado, o recurso revalorizado do procedimento expressivo/ emotivo da apóstrofe, já tão caro aos românticos (cf. Culler, 2001: 150-153), é construído como uma comunicabilidade privilegiada do sujeito da enunciação do discurso poético com os elementos perceptíveis, tornando-o mesmo capaz, num jogo de tentativas, de reconhecimento e alienação (o reconhecido torna-se outro) de atingir a sua essência ou um para lá deles que se revela, que surge como uma aparição.

    Este jogo de apropriação e perda do objecto pelo sujeito é expresso pela fenomenologia, contemporânea dos modernismos artísticos, do seguinte modo: “A coisa, tal como me é dada pela percepção, está sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, «ela indica por antecipação, um diferir de percepções, cujas fases, passando constantemente de uma para outra, se fundam na unidade de uma percepção» (Husserl, Ideen II)” (Lyotard, 1967: 23).

    A pequena encenação feita por Yates de uma micro-paisagem, que pode ser entendida como um texto em dois dípticos, articulados por uma emergência que surge como aparição, ou mesmo revelação, é do tipo da que é usada profusamente, por Raúl Brandão, em quase todos os seus textos, mas que ressalta, como mais evidência, nos seus escritos documentais ou de características, quase, de reportagens jornalísticas. É a estes, sobretudo aos que publicou em volume, sob os títulos, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas, que daremos especial atenção, embora tenhamos como objectos textuais, em plano secundário, outras suas obras, incluindo as de ficção.

    O modelo básico de encenação da paisagem em ponto pequeno que usa Yates permite-nos evidenciar o esquema representativo elementar, bem como os procedimentos poéticos que o possibilitam e valorizam, tendo em conta a posição do sujeito de enunciação, o universo representado e o discurso que o representa.

    Assim, como elemento de abertura, temos o primeiro díptico, constituído pelo texto da quadra inicial, que nos revela um universo objectual imediato, desde os pardais em algazarra, até ao pano de fundo das estrelas e das copas das árvores, servindo de barreira, pelo arredamento, às ameaças e agruras do mundo; em charneira, como segundo elemento e ponto de articulação dos dípticos, temos o primeiro verso da segunda quadra em que se apresenta a intromissão de um destinatário privilegiado, um tu, objecto eventualmente de desejo (os lábios, no original inglês, são “red” e não “rosas”[3]), portador, já, dos sinais de ameaça, pela sua soturnidade, a qual se revela plenamente, no horizonte criado pela emergência da interlocutora, na continuidade dos seus lábios, em todas as desgraças antes ocultadas.

    Como diz Michel Collot, no seu estudo acerca da estrutura de horizonte, recorrente na poesia moderna, “na paisagem dos escritores modernos, o horizonte figura, frequentemente, pelo seu vazio ou pelo seu recuo, esse inalcançável objecto do desejo” ­­– a que Buñuel chama, também, “obscuro” –, uma vez que “o mundo se organiza na base da exclusão de um objecto interdito que, tal como a paisagem, não se dá a ver senão recalcando um invisível no horizonte” (1989: 126-127).  

    Além do funcionamento da epifania, enfatizada, ou mesmo ostentada, pelo acto de apostrofar[4] a recém-chegada, percebe-se que, na organização do mundo representado, se processa um jogo na estrutura do horizonte, ao dar mais importância, ou menos, aos objecto da percepção imediata, e aos que, ora se anunciam em plano de fundo, como uma virtualidade, ora se revelam, pela aproximação, como parte e efeito da epifania. Este mecanismo é arvorado de forma hiperbólica num imenso número de enunciados da obra de Raúl Brandão.

    A variante textual mais característica neste tipo de ocorrências é a da descrição, assumindo nós que, na esmagadora maioria dos casos em que os textos de Raúl Brandão são não-ficcionais, a descrição surge francamente assumida pela focalização do narrador autoral.

    É de uma das obras que escolhemos como objectos principais da nossa abordagem, como acima esclarecemos, Os Pescadores, que extraímos o excerto que deterá, primordialmente, a nossa atenção, por nos parecer que nele encontramos o mecanismo fundamental em que assenta o discurso de Brandão a que chamamos documental, emergente, persistentemente, nos livros em que a dominante do conjunto é a função referencial/ informativa, tendo, como objecto central, o contexto (cf. Jakobson, 1965: 214)[5]:

    “Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas, some-se e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra uma nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo. / Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O sol desce pouco a pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa nos meus pés, na espuma ensanguentada e chega ao sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora, direitos ao céu (Brandão, 2014: 64)”.

    Este texto apresenta-se, num dos capítulos iniciais da composição heteróclita de Os Pescadores, intitulado “Pequenas Notas”, na secção que ele designa por “Pores do Sol”, que é constituída por um conjunto de parágrafos, espaçados entre si quase em moldes de versículos, dos quais reproduzimos dois, integralmente. Pela sua orgânica e composição, a secção que contém este parágrafo demarca-se da maioria das outras que compõem o livro.

    Não tem um fio sintagmático ou narrativo condutor e a sua unidade temática ou referencial é das mais diáfanas ou imponderáveis, semelhante apenas, quanto a esse último aspecto, à secção seguinte, intitulada “Nevoeiros”. Caracteriza-se por ostentar o seu desprendimento dos factores que constituem o contexto sócio-económico referenciável que está em quase todos os outros capítulos do livro: cidades piscatórias, variedades animais, aspectos geográficos ou tipos humanos.

    No entanto, nele vamos encontrar o modelo da construção de horizontes que vigora em quase todos os seus livros, mas, muito em particular, nos que aqui referimos especialmente, As ilhas Desconhecidas e Os pescadores. A preocupação, nestes textos, é delinear os enquadramentos cósmicos, as cercanias e os limites terrestres, oceânicos e celestes em que as figuras se perdem no invisível.

    Não é muito difícil apontar aqui a estrutura do horizonte encenado. Num plano muito afastado, uma imagem compósita de elementos referenciáveis de modo empírico, com réplica probatória no discurso científico, como “o sol” e “as nuvens”, um fenómeno empiricamente identificável pelas comunidades humanas, “o pôr-do-sol” e as aparências mais ou menos fantasiosas, esquematizadoras e esteticamente transfiguradoras: “a barra onde poisa o sol” “as manchas acobreadas que figuram as nuvens” e, subitamente, o “desaparecimento, ressurgimento e explosão do sol” – ruptura intempestiva que constitui o primeiro momento epifânico, como que uma prestidigitação das forças cósmicas que manipulam todo o horizonte: sol, águas do oceano e nuvens.

    Um deíctico anafórico, remetendo para todo conjunto de acontecimentos, mais ou menos reais, mais ou menos transfigurados pelo fantástico, do parágrafo anterior, que acabámos de apresentar, introduz o processo de enquadramento do momento final da aparição que conduz à metamorfose plena, à apoteose epifânica. O sujeito da enunciação, focalizador de todo o quadro em processo de encenação, reconhece o estado de sonho em que mergulhou, fazendo-o imaginar, num momento pontual, em enquadramento banal (três horas da tarde, mar manso e sol a brilhar), o jogo de transformações profundas introduzidas pela luz a reflectir-se na água, formando uma estrada que liga o (banal) areal ao infinito, criando, assim, uma via doirada que vai deste mundo (a “meus pés”) doloroso (a “espuma ensanguentada”) até ao sol.

    O terceiro membro epifânico assenta num vocativo, deíctico apostrofante que introduz um interlocutor até então ausente e insuspeitado: “Ó meu amor”. E, completando a apóstrofe, vem a veemência de um apelo à crença na aparição revelada de um caminho que conduzirá o sujeito e a sua amada ao céu.  

    Toda a dimensão cósmica que se evoca pela voz autoral é propiciada, por assim dizer, pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. No entendimento de Fontanier, que já referimos acima, em nota, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).

    Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/ leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/ leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço da anunciação, que, antes, faz parte do mundo ficcional diegeticamente construído. Como se fosse uma licença poética resultante de um estado emocional, o universo real é arrastado do exterior, referencial, para o interior, representado textualmente.

    Curioso é que esse espaço encenado surja segundo uma modalidade textual fundada em controvérsia e alimentando uma dinâmica da beligerância ao longo de todas as poéticas, pelo menos desde Horácio na sua Epistula ad Pisonis ou Ars Poetica: o sistema descritivo. “Uma descrição é” segundo Hamon, “o lugar de encenação duma confusão que é o saber das palavras e o saber das coisas, o lugar em que o leitor é interpelado pelo duplo saber que é o do léxico e o enciclopédico” pelo que “o limite de uma descrição não depende da natureza do objecto a descrever, mas da extensão do stock do léxico do descritor, que entra em competição de competência com o do leitor” (1993: 43).

    No interior de uma narrativa, ou como é o caso presente, na situação encenada de uma voz autoral procedendo a um relato em que revela experiências pessoais e situações em que se lhe patenteia um panorama paisagístico de que é espectador, relativamente imóvel, mas emocionalmente envolto, a apóstrofe pode vir desse narrador enquanto sujeito de enunciação autoral, que por esse gesto se torna auto-diegético. É o que acontece em quase todos os enunciados descritivos das narrativas de viagens de Brandão.

    Retrato de Raul Brandão e Maria Angelina, por Columbano Bordalo.

    Quando presentificam uma situação em que se insere, como personagem/ actor, vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinatário (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação, tudo se passa como se não fosse para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra, das quais, muitas vezes, não sabemos nada, nem sequer se foram “criadas” para aquela situação, ou se se dirige a um leitor imaginário, tão ficcional como aqueles, ainda que num plano discursivo superior, ou seja, o nível da enunciação.

    Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28). O que acontece, nestas circunstâncias, é que a relação de “autor/leitor” é ficcionalizada. De tal modo assim é que, quando a voz autoral surge em discurso directo, ficamos sempre na dúvida: falará ele com as suas personagens ou usa-as apenas para exibir as suas apóstrofes (quer de elogios quer de imprecações) a um destinatário de plano enunciativo superior, ficcionalizando a sua própria posição, ou procurando arrastar o leitor para dentro da ficção.

    É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/ poeta e um enunciatário/ leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação os elementos fantásticos do imaginário. É claro que a “relação” e o “lugar” onde o autor e o leitor se encontram só miticamente é que se pode considerar “real”, porque, como sabemos, eles existem diferidamente. Só por iluminura glorificante é que o bardo aparece a “dizer” a sua obra, instalado numa aura declamatória.

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    Das notas tomadas sobre a ilha do Pico, n´As Ilhas Desconhecidas, encontramos um bom exemplo disso realizado por R. B.:

    “Agora completo o quadro: com os montes hirtos e negros por trás, neste fundo extraordinário, neste panorama dilacerado, parto duma imaginação estranha, parado e cinzento, é que fica bem aquela vida dum dia e duma noite, o cortejo grotesco de fantasmas vociferando de porta em porta, com as bocas escancaradas de riso. Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais do que uma ilha – é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo – é outro Adamastor como o das Tormentas. / Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim negro e dramático, roído da cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia” (s/d: 77).

    Não falta aqui, na construção literária deste horizonte, a evocação da competência lírica do narrador autoral, a qual cabe bem dentro da caracterização que Fontanier faz do quadro (tableau), como variante da HYPOTYPOSE no seu tratado, Les figures du discours. Este surge como variante modal daquela figura, resultando do desenvolvimento extremo da descrição, “quando a exposição do objecto é tão viva, tão enérgica”, que resulta desse estilo “uma imagem, um quadro” (Fontanier, 1968: 390).

    Repare-se que, se recorrermos à terminologia adoptada por Adam e Petitjean (1989: 48-59), este narrador simultaneamente autoral a actoral, move-se no interior da sua pintura, arrastando, no seu acto ilocutório, o próprio processo de modalização, assumindo-se como autor do acto pinturesco que completa e revelando-se, ao mesmo tempo, nele, muito mais como o sujeito perplexo, que tacteia e percepciona, com hesitação (cf. Adam e Pettitjean: 52) a paisagem que, em postura autoral, seria esperado apresentar sem tibiezas.

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    Lá estão todos os índices da dúvida e da perplexidade, nas rupturas sintácticas, onde um Fontanier encontraria, talvez, o zeugma, o anacoluto, ou a inserção, mas que bem poderiam descritas como anacolutos, ou mesmo sínquises. Todo o primeiro período do primeiro parágrafo está construído com rupturas da sequência sintagmática que se tornam, elas próprias, figurações do discurso buscando a lógica da representação face à erupção do panorama surpreendente. Também não faltam, lá, os cortejos grotescos de fantasmas e os mistérios. Ao verbalizar a sua decisão de “terminar o quadro”, ele está, de modo implícito, mas dramatizado, a buscar a expressão ostensiva, chocante, para alguém (muito provavelmente o leitor) a quem dá a ver” o descrito, através da descrição e a “ouvir” a perplexidade da percepção, através do discurso. O ambiente criado é o da emergência do surpreendente, na descrição realista, resultando que “a fronteira entre animado e não animado (é) posta em causa e não é gratuito o saturar a descrição de pormenores que antropomorfizam a natureza e criam um clima de angústia” (Adam e Petitjean, 1989: 55).

    O próprio autor, aliás, é peremptório no teorizar a sua própria preceptiva. Logo no incipit do capítulo “Pequenas Notas” de Os Pescadores, no primeiro parágrafo que se segue ao título da secção “Pores-do-Sol” escreve: “Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas todas variadas, com tintas novas e imprevistas.

    É um espectáculo extraordinário” (2014: 63). E, logo adiante, a entidade autoral enunciadora especifica o seu modelo de trabalho, ao apresentar a ocorrência de duas variantes, talvez em dois momentos distintos, talvez numa variação de perspectiva que solicita a copresença do destinatário, pela dupla demarcação deíctico-demonstrativa, (“este”, “outro”): “Agora este, teatral, com longas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro [este e outro são itálicos nossos] que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero — e a montanha roxa, ao fundo, prestes a desvanecer-se” (2014: 64).

    Sobre esta matéria, pronuncia-se Vítor Viçoso, num registo hermenêutico muito próximo do nosso, ainda que com maior brevidade, quando, na Edição de Os pescadores por nós utilizada, escreve:

    “Percorrer a costa com os «olhos da alma» implicava para o autor do Húmus revelar a paisagem e os seus povoadores, servindo-se recorrentemente do registo dos gestos pictóricos («Se eu fosse pintor», diria enfaticamente), como representação da sucessão de instantes eternizáveis, numa fusão entre o sujeito do olhar e o objecto. A paisagem, mais do que um mero deleite «turístico», é aqui uma inscrição que mobiliza em cada fragmento todos os sentidos do seu corpo na captação do instante encantatório e emerge também como uma peculiar produtora de sentido no âmbito de uma autognose” (Brandão, 2014: 17).

    O modelo utilizado, para o exercício de demonstração de R.B., acto cicerónico de apontar, é o do teatro. Em ambos os casos, na visita guiada e no teatro, há um público a quem o enunciador, autor ou actor, se dirige. Mas transformar o exercício de mostrar literariamente uma paisagem inscrita no horizonte, num discurso aparentemente cicerónico, num acto encenado em que o escritor se revela no papel de pintor é levar a autoridade autoral a um patamar de refinado exercício hiperbolicamente ostensivo. E é, também, carregar os mecanismos de demonstração e revelação de todas as potencialidades poéticas da remissão do discurso para os patamares referenciais, quer os da realidade empiricamente aceitáveis e realistas, quer os do plano do fantástico e do onírico, misturando os dois planos da referencialidade, ao ponto de os confundir.

    O mecanismo básico do mostrar, da monstração ou mostração, como poderíamos dizer, por neologismo conceptual, é o da dêixis, que, numa narrativa ou discurso alongado, também pode ter a função de anáfora. Os vocábulos normalmente utilizados são os pronomes pessoais, os demonstrativos, os advérbios de ligar e tempo. A sua função fundamental é referir e, por isso, como todo o discurso de Raúl Brandão demonstra bem, tem como sentido fundamental o apontar, são como palavras-dedos que podem apontar para outra parte do discurso, mas também para o que está fora do discurso e até apontar para acontecimentos anteriormente ocorridos. Mas, o mais importante é que podem apontar para mundos possíveis, do mesmo modo que apontam para o nosso universo existencial.

    Como diz Collot, os dêicticos fazem uma referência a um aqui e agora ilusório, porque a referência verbal (ou mesmo a icónica, como, por exemplo, o desenho de um dedo a apontar, ou uma seta desenhada, sem qualquer outro contexto gráfico-pictórico) “não é situável num sistema de verificações (“repères”) espácio-temporais fixas e universais. Ela depende do ponto de vista do locutor: reenvia para um mundo, e não para o universo – para horizonte que é a unidade renovadamente singular de um Eu-aqui-agora” (1989: 190).

    Repare-se que este esforço de dirigir o discurso, explicitamente, para este aqui e agora em que estou eu, completa a estrutura actancial da apóstrofe, desafia-me enquanto leitor, imaginariamente, para o momento registado e para o do registo, do escrito, sendo eu, aqui e agora, leitor, aquele que só pode aceder a essa encruzilhada espácio-temporal num momento duplamente diferido: em relação ao momento da escrita e, reforçadamente, porque o da escrita também difere do representado, ao momento da vivência.

    Mas, fazer esta convocação, é elaborar o sistema mais amplamente dialógico que a criação literária pode ter. A proposta de Bakhtine para construir a compreensão dessa intercomunicabilidade é a seguinte:

    “Imaginemos uma conversação entre duas pessoas, na qual as réplicas da segunda não sejam ouvidas, mas de tal modo que o sentido geral da conversação não seja alterado. O segundo locutor está invisível, as suas palavras faltam, mas o seu traço profundo determina todas as palavras pronunciadas pelo primeiro. Sentimos que se trata, aí, de um diálogo, embora apenas haja um único locutor, e que esse diálogo é extremamente tenso, porque cada palavra expressa responde e reage ao locutor invisível, indica a existência, fora de si, da palavra do outro não formulado” (1998: 272).

    rock formations

    No fundo, a entidade convocada, parece ser um lugar vazio, o espaço enigmático, do eu indagante, perplexo que remete para a potencial presença e cumplicidade do leitor, que estará para a descrição como o autor estava para a descriptação da paisagem experienciada (não estando em causa que ela seja obrigatoriamente do universo empiricamente experienciado, podendo ser, também, imaginada, de um mundo possível ficional).

    Raúl Brandão, no excerto acima apresentado, propõe-nos uma metodologia, o esboço de uma poética da descrição, segundo a qual os “quadros” literários deveriam ser “pintados”, recorrendo a uma espécie de didascália de encenação em que o apelo ao leitor se processa quase despudoradamente.

    Encadeia, assim, um segundo modelo de ars poetica, ou, melhor, uma ars dicendi a conjugar com a literária: a teatral/espectacular. Poderíamos dizer que por esta exposição chega mesmo a provocar o seu destinatário que no presente caso deveríamos, talvez, chamar narratário, para especificar melhor o destinatário do discurso — embora nos pareça que, além disso, caberia bem um reforço expressivo neológico, que poderia ser descri(p)tário, atendendo à necessidade de definir como o que recebe a descrição e, com ela, a descriptação do Mistério.

    Em acréscimo a essa vontade de esclarecimento metodológico, ele procura pela mistificação, como a que aparece na descrição da ilha do Pico, onde usa a informação do cicerone turístico (As Ilhas Desconhecidas começaram por ser um diário de viagem com foros de roteiro turístico – como o são, de certo modo, Os Pescadores, ainda que contendo mais matéria ficcional) criar os efeitos poéticos de profunda expressão lírica engendrando um objecto visualizado de modo quase patético como se pretendesse, por esse procedimento, criar uma homologia entre o paradoxal vivenciado pelo escritor e discursivo lido/ visionado pelo leitor da descrição.

    É o que ele faz relativamente aos mistérios da ilha do Pico. Começa por apresentar os mistérios do modo prosaico que, ainda hoje, usam os guias/ roteiros turísticos, quando falam dessa designação tão enigmática, embora rodeie a sua apresentação de um halo de enigma: “Esta ilha [… ] é negra até à entranhas [… ] A fuligem caiu sobre a vasta terra e só de quando em quando um grande plaino cinzento, os mistérios, sucede ao negrume como a lepra ao incêndio” (p. 67)[6]. Depois de alongar a sua descrição por outros aspectos da ilha, regista, ao aproximar-se da região que costuma ser designada por “mistérios” do Pico, o regresso do motivo, incluindo de modo subtil, mas dramático, o seu putativo interlocutor, o leitor, através da segunda pessoa do plural:

    “Rasgam-nos, dilaceram-nos de alto a baixo, as grotas, cavadas pelas torrentes. Severidade e negrume, a que de vez em quando sucede o grande plaino cinzento dos mistérios. Depois do mistério da baía aparece o mistério de S. João e o grande mistério da Silveira, que nos acompanha e dura quilómetros pela estrada fora, dando à paisagem um aspecto fantástico. É o Pico na sua verdadeira expressão. Cinzento e negro, sempre cinzento e negro, o negro da terra, o negro dos montes cada vez maiores, e o cinzento estranho dos mistérios, vastas necrópoles onde a terra e a pedra estão sepultadas sobre* o mesmo lençol cinzento. / É esta paisagem Mineral que dá carácter à ilha magnética. Sumiram-se os retalhos dum verde tenro entre o negro calcinado e vulcânico — mais verde — mais tenro —só resta a desolação imensa. Lembro-me daquela baía do Mistério, isolada e cinzenta, morta que espera todos os dias os mortos, as cinzas dos naufrágios dispersos no oceano. Só me restam na memória as vastas extensões cadavéricas devoradas pela lepra e com montes em osso ao fundo” (p. 74-75).

    [* Resta-me a dúvida: será gralha ou “efeito” de estilo, a confundir o que está em cima com o que está em baixo? C.J.]

    Não é demais acentuar o profundo manipular dos sentidos referenciais e semânticos operados, em nome de uma visão que o destinatário (um dos nós, da segunda pessoa do plural que se mistura com o singulativo do sujeito que mais parece apontar e referir com os seus elementos deícticos ou demonstrativos “Esta… aparece… é…”) deverá partilhar inclusivamente nas suas dimensões fantásticas ou enigmáticas (de que baía de Mistérios se trata, e que ocorrências tremendas estão na memória do narrador?)

    Só depois da torrente de mistérios é que surge a explicação quase decepcionante dos “mistérios”. Diz R.B.: O mistério é o resultado de erupções da base do Pico (mistério de São Jorge, por exemplo) cobertas como um pequeno líquen, a urzela, que se propaga em vastas extensões cinzentas, dando a impressão de uma lepra que corrói a terra, dum mundo morto e amortalhado” (s/d: 75). A quem é dirigida esta prestidigitação. À alteridade autoral indagadora do Cosmos, ao presumível leitor, cúmplice de um devaneio?

    Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge).

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    Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150). A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo ponto, “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151) partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o sistema de enunciação do lirismo propriamente dito, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.

    Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:

    “O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973, p. 245).   

    É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica.[7] Também é de considerar, persistentemente, que nem sempre a apóstrofe surge num embrião de diálogo explícito, como numa interpelação clara. Pode ser cultivada, como é o caso mais frequente em R.B., pelos procedimentos dos dêicticos, incluindo a anáfora que, muitas vezes, não aponta o cotexto, mas sim o contexto referencial inscrito no acto enunciativo, criando uma presença ilocutória, tão desmarcadamente aqui e agora do descritor/ enunciador, que se torna quase tão fantasmagórica como os fantasmas que ele assinala no espaço referido. Um outro exemplo de Os Pescadores:

    “Oito horas. Mais uns minutos e descerra-se a cortina vaporosa: dissolvem-se os últimos fantasmas e o panorama surge como uma aparição do fundo do mar. / Ei-lo diante de mim. Primeiro a costa, ao longe violeta e vermelha, mais longe roxa e diáfana, mais longe ainda perdida na bruma. […] …tudo isto feito de pó, e sempre duas tintas predominantes, a do mar azul e a do céu azul” (p. 73).

    Parece que sempre o mesmo modelo norteia a visão constantemente, nas descrições, e a comparação com o processo fílmico, do ponto de vista fenomenológico pode ajudar-nos a compreendê-lo melhor se atendermos ao que nos diz Colin McGinn, no seu The Power of The Movies — How Screen and Mind Interact, lembrando-nos que no cinema “vemos a imagem e vemos a referência, mas os dois objectos perceptuais são entidades contrastantes: um é bidimensional, o outro é tridimensional; um é desmaterializado, o outro não; um está parado no tempo, o outro não; e assim por aí fora” (p.86); sugerindo que há mais contrastes, acrescenta, um pouco adiante, que “em muitas tomadas de vistas (shots)[8] o primeiro plano [ou próximo, ou aproximado] está nítido e o plano de fundo [ou o pano de fundo, ou o cenário, ou….a paisagem] está desfocado […]” (p.88).

    Esta transformação, esta captação da imagem a partir do seu referente no mundo parece constituir um dos mecanismos básicos que Brandão refere de modo quase sempre explícito no seu sistema descritivo, patenteando-nos o autor/ descritor no acto de apresentação, o seu aqui e agora, e a passagem do mundo tridimensional e ponderoso para a forma da imagem apresentada: “a cortina vaporosa”, os “fantasmas”, achatamentos dos objecto do mundo cruzam-se com o descarnamento dos elementos que emergem como uma “aparição” vinda dos abismos: a costa são cores porque tudo isto “é feito de pó” e “tintas”. Parecem quase os “materiais” de que fala o Próspero shakespeariano, na Tempestade, ao referir-se ao mundo encenado: “We are such stuff / As dreams are made on[9]”.

    library shelf near black wooden ladder

    E, falar do sonho é constante em Raúl Brandão, como o faz, por exemplo a propósito do Pico: “Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido” (s/d: 75). Sonho que é, no fundo preparado por um estado quase permanente de devaneio, como no-lo revela um pouco adiante, algures, imprecisamente, talvez entre o Corvo, e as Flores:

    “Meu deus, como eu vejo tudo! Ficam-me os olhos nos carreirinhos que não sei aonde vão ter e por onde passa um homem com o burro de carga; ficam-me os olhos presos a certos sítios e a certas casas […]. E fica-me a alma nestes barcos de todos os feitios que chegam e partem…Para onde? Para onde? Sei lá para onde! Para sítios que nunca vi — para a cor e para a luz” (s/d: 97).

    Se recorrêssemos às categorizações de Bakhtine, para conceptualizar os procedimentos dos autores para construírem os seus mundos possíveis marcados por um tempo e por um espaço, seríamos tentados a falar dum especial cronótopo da encruzilhada – do cruzar do sonho e do mundo, lugar e tempo em que um patético narrador autoral, entontece o seu destinatário leitor com um interminável e fascinante rodopiar de horizontes encenados. Como diria Bakhtine,

    “o autor, vamos encontrá-lo fora da obra, enquanto homem que vive a sua existência biográfica; mas nós reencontramo-lo na própria obra, fora dos cronótopos representados, como que na sua tangente. […] Dá uma imagem do seu mundo ora do ponto de vista, de uma personagem participando no acontecimento evocado, ora do narrador, ora do autor postulado (substitut na trad. franc. alteridade de autor-criador); enfim mesmo que não recorra a nenhum intermediário, e conduza a sua narração directamente, como tendo origem em si próprio, o autor como tal, (num discurso directo [tipo notas de viagem, diarísticas, memorialísticas, como faz Brandão]), e possa também, neste caso, construir um mundo espácio-temporal, com os seus acontecimentos,  como se ele o visse, o observasse, como se ele fosse uma testemunha omnisciente; e até mesmo no caso em que compusesse uma autobiografia ou das mais autênticas confissões, ficaria sempre fora desse mundo representado porque seria o seu criador. […] Toda a obra literária está virada para o seu exterior, não para si própria, mas para o seu auditor-leitor, e ela antecipa, até certo ponto, as suas reacções eventuais” (Bakhtine, 1978: 94-96-97).

    Ora, Brandão é exactamente um dos autores que, por virtuosismo do seu desempenho, no voltear com os seus palhaços e títeres, insiste persistentemente em representar-se, no seu próprio enunciado, como o criador perplexo com os mundos fantásticos que criou, procurando sempre baralhar os contornos da “tangente” de que fala Bakhtine, onde o autor se colocaria, próximo dos seus destinatários por vontade poética, mas sempre agrilhoado a uma distância que o diferimento inevitável da criação poética implica. Entre dois mundos, o da obra e seu, entre dois momentos, entre o momento da escrita e o da leitura, ele é o ente perplexo, permanentemente agitado pelo espanto e extasiado pelo momento epifânico, extasiado perante as apóstrofes que só ele ouve vindas das sombras, dos abismos, do horizonte. 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

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    BAKHTINE, Mikhaïl, 1978, Esthétique et théoie du roman, Gallimard, Paris

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    CHEVALIER, Jean e A. Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Laffont

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    CULLER, Jonathan, 2001, The Pursuit of Signs, Londres, Routledge

    FONTANIER, Pierre,1968, Les figures du discours, Paris, Flammarion

    FRYE, Northrop, 1973, Anatomia da Crítica, S. Paulo, Cultrix

    JAKOBSON, Roman, 1963, Essais, de linguistique générale, Points/Minuit, Paris

    JORGE, 2012, “As Lápides, as Preces e as Insígnias: Elegias, Apóstrofes e outras Artes do Epitáfio na Poesia de Florbela Espanca”, Callipole — Revista de Cultura, nº 12 CMVV, Vila Viçosa

    McGINN, Colin, 2005, The power of The Movies — How Screen and Mind Interact, Vintage/Random, Nova Iorque

    MOLINIÉ G., 1992, Dictionnaire de rhétorique, de George Molinié, Le Livre de Poche

    MOLINIÉ G.  et J. Mazaleyrat, Vocabulaire de la stylistique, Paris, PUF, 1989

    MÜNSTER, Hugo, 2010, Psychologie du cinématographe, De l’incidence Éditeur, Lille (impr.)

    PREMINGER, Alex e T.V.F. Brogan, 1993, The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, Princton Paperbacks, Nova


    [1] Empregamos aqui, “modernismos”, de modo muito lato, englobando os movimentos que, do simbolismo em diante, dominaram, na literatura ocidental, contrariando os cânones dos mais estritos códigos românticos e realistas. Cabem nesse universo estético ideológico por nós congeminado, porém, muitos dos cumes epigonais do naturalismo e do parnasianismo, por exemplo.

    [2] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, como defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV). Joyce is here extending definitions of beauty to cover areas that most people would not recognise as such. When we think of epiphanies we think, principally, of Joyce. However, although Joyce may have coined this specific term he is not alone in having epiphanic experiences, nor was he the first to have them. Indeed, Joyce’s word was even anticipated by the American writer Emerson, who employed it in a lecture of 19 December 1838: ‘a fact is an Epiphany of God and on every fact of his life man should rear a temple of wonder and joy.’ For centuries writers and mystics have experienced sudden insights that seem detached from the flow of everyday perception. In many ways these experiences are the high points of human experience and the focus of artistic production. Often they have been on a borderline between the secular and the religious: what has been revealed in the mystical moment has been a sense of God, of the whole shape of the universe, of the unity of all created things. Wordsworth describes it as ‘A presence that disturbs me with the joy/ Of elevated thoughts; a sense sublime/ Of something far more deeply interfused’ (Tintern Abbey lines 93-6)”.

    Bernard Richards, from ‘The English Review’.

    cf.: Dubliners

    [3][Texto original da poesia]: THE quarrel of the sparrows in the eaves,/ The full round moon and the star-laden sky,/ And the loud song of the ever-singing leaves,/ Had hid away earth’s old and weary cry.// And then you came with those red mournful lips,/ And with you came the whole of the world’s tears,/ And all the sorrows of her labouring ships,/ And all the burden of her myriad years.// And now the sparrows warring in the eaves,/ The curd-pale moon, the white stars in the sky,/ And the loud chaunting of the unquiet leaves/ Are shaken with earth’s old and weary cry.

    ‘The Sorrow of Love’ is reprinted from An Anthology of Modern Verse. Ed. A. Methuen. London: Methuen & Co., 1921.

    Existe uma versão posterior, de 1925, que foi a que ficou na recolha final das obras do autor. Como se pode ver, na transcrição que em seguida fazemos, a marca do sujeito de enunciação apaga-se, deixando de haver o apostrofar da provável interlocutora, pelo que se atenua o efeito da epifania, ficando esta reduzida a um tom de quase simples ocorrência.

    The Sorrow of Love (versão de 1925) BY WILLIAM BUTLER YEATS

    The brawling of a sparrow in the eaves,/ The brilliant moon and all the milky sky,/ And all that famous harmony of leaves,/ Had blotted out man’s image and his cry./ A girl arose that had red mournful lips// And seemed the greatness of the world in tears,/ Doomed like Odysseus and the labouring ships/ And proud as Priam murdered with his peers;// Arose, and on the instant clamorous eaves,/ A climbing moon upon an empty sky,/ And all that lamentation of the leaves,/ Could but compose man’s image and his cry.

    [Tradução de Ivan Justen Santana ]: O bulir dum pardal pelas beiradas,/ O brilho da lua e o lácteo céu infinito,/ E toda a famosa harmonia das floradas,/ Mancharam a imagem humana e seu grito.// Uma garota ergueu-se rubros lábios enlutados/ E parecia a grandeza do mundo em lágrimas,/ Condenada como Ulisses e os navios danados/ E audaz qual Príamo caindo com seus pares;// Ergueu-se, e presto as clamorosas beiradas,/ Uma lua escaladora sobre um céu infinito,/ E toda aquela lamentação das floradas,/ Não compunham a imagem humana e seu grito.

    Cf. aqui.   

    [4] Fontanier caracteriza a apóstrofe do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um destinatário (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios”  (1968, p. 371”). No caso do texto poético-literário, a apóstrofe consiste, muito frequentemente, ou quase sempre, na inflexão súbita ou mesmo intempestiva de um discurso que é pressuposto dirigir-se a um destinatário-leitor, em direcção a um destinatário surgido inesperadamente, perturbando a demarcação entre enunciado e enunciação, entre o mundo ficcional ou textual e o mundo postuladamente real de “leitor” e “autor”.

    [5] Devemos lembrar-nos, no entanto, que, como diz o próprio Jakobson “[…]Mesmo que o objectivo da mensagem seja o referente, a orientação para o contexto – em suma a função dita «denotativa», «cognitiva», referencial – como é, quase sempre, a preocupação dominante de numerosas mensagens, a participação secundária das outras funções nesse tipo de mensagens deve ser tomado em consideração por um linguista atento” (Jakobson, 1965: 214).

    [6] Note-se que o termo já tinha sido usado relativamente à Horta, onde o viajante/ relator valorizava o ressaltar  das muitas cores no fundo dos… mistérios, termo misterioso, para quem não conheça razoavelmente os Açores e as suas nomenclaturas, mas que Raúl Brandão não esclarece então.

    [7] Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões. Todos eles poderiam emparceirar com as descrições paisagísticas de Brandão Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Preminger, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (in New Princeton Enciclopedia[7], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia. Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais como o que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.  (cf. Jorge, 2012)    

    Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/ leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante, do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação de certas modalidades da lírica.   

    [8] Tomada de vistas (take), é o ponto de vista da captação. O resultado pode ser mais bem expresso pelo termo plano (que pode ser expresso em inglês por shot), constituindo quase um par opositivo da conceptualização da prática cinematográfica

    [9]Act 4, Scene 1 PROSPERO (12ªintervenção na cena)

    …….

    You do look, my son, in a moved sort,/ As if you were dismay’d: be cheerful, sir./ Our revels now are ended. These our actors,/ As I foretold you, were all spirits and/ Are melted into air, into thin air:/ And, like the baseless fabric of this vision,/ The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,/ The solemn temples, the great globe itself,/ Ye all which it inherit, shall dissolve/ And, like this insubstantial pageant faded,/ Leave not a rack behind. We are such stuff/ As dreams are made on, and our little life/ Is rounded with a sleep. Sir, I am vex’d;/ Bear with my weakness; my, brain is troubled:/ Be not disturb’d with my infirmity:/ If you be pleased, retire into my cell/ And there repose: a turn or two I’ll walk,/ To still my beating mind.

  • Eça de Queirós

    Eça de Queirós


    A ideia fundamental que, à partida, nos norteia aqui é a de que a produção de Eça, enquanto escritor de romances, não pode ser desligada da outra actividade, por ele também exercida, que normalmente se designa, com algum simplismo, por jornalística.

    Mais amplamente, pensamos que toda a sua prática de escrita não romanesca, por vezes entendida como ancilar relativamente àquela que se reconhece tradicionalmente como a que é verdadeiramente literária, é um ponto importante, não apenas por ser preparatória, ou mesmo propiciatória, da que o afirmou como grande autor, mas também por constituir uma prática com a sua dimensão própria, por si só válida como trabalho criativo.

    Contudo, é o referido aspecto preparatório que nos vai interessar essencialmente aqui. Assim, assumimos que é na aprendizagem feita nos jornais que se desenvolvem muitas das suas capacidades de representação, alguns dos mais importantes mecanismos formais de escrita criativa que lhe darão capacidade para, nos seus romances, gerar, desenvolver e manter a densidade expressiva, a capacidade de estruturar os mecanismos de domínio do texto que o tornam num dos autores mais importantes do seu tempo. É a partir dessa formação que a sua obra de maior duração, mais desligada da efemeridade do escrito consumível diariamente, se constitui como um filão inesgotável de registos dos discursos, os quais recolhem toda uma tradição da sabedoria retórica e poética para originarem uma novidade revolucionária enquanto obra artística.

    O aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em Eça, é o da segunda voz. Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

    Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade – a entidade Eça, neste caso, o cidadão que intervém como jornalista nos debates do seu tempo –, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca – ou daimon – que também assaltava Sócrates.

    Tal voz, por cortar uma autenticidade monológica ao discurso do autor, actua, enquanto discurso, de um modo muito semelhante ao mecanismo que Anabela Rita apresenta como processo de visualização nas crónicas de Eça, no Distrito de Évora. Esse mecanismo, segundo a autora referida, funciona do seguinte modo: “Quando a distância entre observador e observado aumenta, torna-se espectacular (…) e pode favorecer o desenvolvimento de uma atitude que o cronista insinua como caracterizada por um certo «diabolismo» (1998: 79)”.

    Ora, embora nos mantenhamos inteiramente de acordo com a autora citada quanto à distância e ao espectáculo gerado por essa distância, o que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

    Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o próprio Eça o constrói, numa crónica. Revela ele, aí, em simultâneo, como está consciente desse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da descrição do processo mais um elemento constituinte do espectáculo verbal.

    O texto em questão é uma das suas Cartas de Inglaterra, que ele intitula “Uma partida feita ao «Times»”. Nessa peça jornalística (datada de finais dos anos setenta ou princípios dos oitenta do séc. XIX), Eça, depois de revelar a seriedade e o profissionalismo com que o «Times» praticava a recolha dos discursos dos grandes políticos e oradores ingleses da época, levando o seu escrúpulo a tal ponto que os autores preferiam recolher nele o material para a publicação das obras em livro do que recorrer às suas próprias notas ou redacções originais, apresenta, como acontecimento extraordinário e singular, um caso de falha à norma do sistema.

    A singularidade, porém, não nasce apenas da perturbação, do acontecimento imprevisto, como Eça explica claramente; resulta, também, como cautelosamente regista, do facto de, em certo dia, o «Times» ter publicado o discurso do mais previsível dos oradores: o mais “austero”, “doutrinário” e “rígido espírito” (s/d: 185) do ministério britânico de então. Sendo o “contrapeso conservador desse ministério”, representante da “tradição” e da “fórmula whig”, esperava-se, da sua crónica, a “majestade oficial” que se “honra em guardar as coisas supremas – a Coroa, a Igreja, a aristocracia territorial, os privilégios, a integridade do império” – coadunando-se com o modo “grave, ríspido” com que sempre fala, “vestido de negro” (p.185).

    Ora, o que torna o caso ainda mais perturbante é que as expectativas são quase completamente satisfeitas, excepto a tal partida que, segundo Eça, comentando previamente o relato, se torna, no interior de tanta previsibilidade, uma “atroz e deliciosa facécia” (p. 185). Note-se a contradição do oximoro, porque ela vai suster toda a apreciação de Eça. Não dizemos argumentação, mas apreciação, porque, aqui, o jornalista tira lições quase fantásticas da paródia que se deleita a anotar no impulso de um encantamento, ou sob o efeito de uma fascinação. De acordo com Eça, que, de agora em diante, tentaremos seguir num resumo feito de palavras suas, “alguém, um monstro, um celerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substituiu-as por outras (…) E que linhas!”.

    De acordo com o cronista, o texto intruso era de bradar aos céus, sendo-lhe quase impossível a ele, comentador, “conservar-(se) casto” e “explicar essas linhas aos leitores da «Gazeta de Notícias»” (p.186).

    Tais “linhas, intercaladas no severo discurso do severo ministro, eram (…) linhas eróticas!

    Era o grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruído de uma besta agitada por todas as fúrias de Vénus; era como esse rouco e seco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do Estio; era a balbuciação ébria dos faunos da fábula, do deus Príapo, dos sátiros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olimpo, ululando, trincando a brancura dos lírios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras ninfas das águas… Era tudo isto e era ainda mais” (p. 186).

    Para lá desta sugestão eufemística, extremamente precisa atendendo a que os termos usados pelo “intruso” são de evitar, por pudor, o que é impressionante notar no relato de Eça é o apelo fabulatório que as irreverências dessa voz intrometida, desse discurso invasor, lhe provocam.

    Assim, não são os termos, os nomes nimbados de obscenidades impronunciáveis, tanto mais apelativas quanto ficam obscurecidas pela luz perversa da sugestão, que nos parecem o mais interessante da crónica. É, sim, a panóplia de hipóteses fabulatórias que desencadeia em Eça a tropelia. É isso que nos parece mais significativo para a compreensão de quanto a actividade jornalística foi importante para o fortalecimento de um certo tipo de criação poética que marcou a sua obra e que, habitualmente, designamos pelo termo demasiado generalizador de ironia.

    De facto, os seus comentários à crónica revelam algo desse mecanismo. Até pelo recurso à forma do imperativo do verbo “imaginar”, percebe-se quanto o facto, a ocorrência, ao desencadear, pela sua singularidade, a fantasia do observador, lhe espicaça os processos de fabulação, quando escreve: “Imaginem o efeito ao outro dia, quando milhares de números do «Times», contendo essa abominação, penetram nesses recatados interiores ingleses, onde (segundo aqui dizem) habita o tipo superior da família cristã” (p.187).

    Tudo se passa como se o efeito de intromissão do discurso invasor, a emergência da terceira pessoa, o ele, monstruoso quase pela sua radical clandestinidade, se propagasse como mecanismo, e fizesse apelo a outros monstrinhos, outros clandestinos discursos invasores que assomassem o da razão sob a tutela do “imaginem”. O episódio é infeliz, a atitude do misterioso usurpador da palavra é atroz, condenável, mancha o irrepreensível profissionalismo dos repórteres, taquígrafos e redactores do grande jornal britânico, mas a imaginação fica estimulada. E, imaginar, no universo da facécia cronística, é uma expansão desenfreada do discurso narrativo. Como um rizoma, o facto sugere outros factos que se encadeiam e desenvolvem pelo simples apelo que é o parodiar da ordem previsível, do sistema organizado das normas e das leis.

    O cronista, de facto, não se contém, já não imagina o genérico, imagina as cenas, como sequências emparelhadas de grotescas convulsões no interior dos lares exemplarmente cristãos. E é ele quem as apresente em fieira:

    “Imaginem-se então as cenas! Aqui é uma velha e devota duquesa cheia de entusiasmo pelas questões sociais, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratória de Sir William – e que de repente estaca, encara o «Times», limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o período, passa a mão trémula pela face, procura ansiosamente o seu frasco de sais, volta ainda a verificar se a não enleia uma alucinação, e, arremessando enfim, para longe, a gazeta imunda, sai da sala a passos ofendidos […].  Além é um casal de noivos, que, anichados no mesmo sofá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, percorrem o «Times» […] para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes […] quando de repente lhes salta de entre as linhas o jorro imundo das apóstrofes eróticas! Noutra casa é uma fresca e loura criaturinha de dezoito primaveras, puro lírio doméstico, que faz a leitura do «Times» a um velho tio general, tolhido de gota, relíquia venerando das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco atento à política do dia, que detesta, mas muito ao encanto daquela voz de ouro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se cor de uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lágrimas dos olhos, e foge, deixando o imundo «Times» do general assombrado: – ou então, caso pior, a doce rapariga, na sua candura de flor de estufa, não compreende, imagina que aquilo é política, continua a ler com a sua voz de ouro – e o venerável tio ouve de repente sair dos lábios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que há de mais casto na música de Weber, um enxurro torpe de babuges lúbricas” (p. 188-189).

         Já não é só o encadear dos casos, notável fenómeno de imaginação fabulatória desencadeada, que nos interessa mais aqui. O que nos parece de destacar, de agora em diante, no texto desta crónica, é que, depois de desenrolada a fieira destes casos hipotéticos – ilustrações de um imaginário espanto desencadeado pela emergência do intruso erótico, terceira pessoa obscena, diabolicamente brincalhona –, o autor comente o caso como se no seu próprio arrazoado interviesse, também, a segunda voz intrometida. De facto, escreve Eça:

    “O autor da facécia ainda não se descobriu. É sem dúvida um monstro, e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunais ingleses o demoliriam. Mas, por outro lado, considerando […] que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros artistas – eu não posso deixar de pensar, com laivos de regozijo, que a Providência tem armas oblíquas e terríveis[…]. É, digam o que disserem, divertido. E, terminando, peço às almas caritativas e justas uma boa risada à custa do «Times» (p.189-190).

    Consideramos de toda a justiça encarar este texto como um exemplo privilegiado do modo de trabalho segundo o qual o processo de criação depende de uma perspectiva que, fazendo funcionar o acontecimento bruto como uma motivação, encadeia os dados do relato construído com as réplicas e as sugestões hipotéticas que entram num diálogo de absorção e transformação desse mesmo relato. O horizonte de uma tal transformação é, parece-nos, a afirmação dos direitos plenos do riso e da facécia face ao discurso monológico e, sobretudo, o enunciado autoritário.

    Não é por acaso que a grotesca transformação relatada nesta crónica recai sobre o texto do mais austero de todos os conservadores de um governo em que eles abundam. Do nosso ponto de vista, é neste modelo de fabulação parcial do “imaginemos”, presente de modo insistente nas crónicas de Eça, que se afina o processo de polémica oculta, o qual, na nossa opinião, é um dos fundamentos mais fortes da ironia de Eça. O percurso discursivo poderia ser estabelecido, num primeiro momento, segundo as palavras de Bakhtine:

    “O objecto sobre o qual se orienta a polémica aberta é o discurso do outro – ao passo que, na polémica oculta, o discurso é dirigido a um objecto habitual, denotando-o, representando-o, exprimindo-o, e atingindo o discurso do outro de modo indirecto, mas atingindo-o, ainda assim, no próprio objecto. Por essa razão, o discurso do outro começa a exercer do interior uma influência sobre o discurso do autor. Assim, na polémica oculta a palavra é bivocal, embora as relações entre as duas vozes sejam algo especiais” (Bakhtine, 1970: 255).

    Contudo, para examinarmos os processos queirosianos, devemos ter em conta um quadro mais matizado da questão. Em primeiro lugar, na crónica, o que se afina é a relação entre a voz de grupo restrito, eco da ideologia dominante, omnipresente nos discursos escritos, escolarizados, bem-educados, e a voz, também ela colectiva, do todo social mais amplo, que se relaciona, enquanto grupo dominado, com os discursos previsíveis, monológicos e autoritários, do poder.

    A voz assumidamente autoral faz eco, aparentemente em harmonia, do senso comum que decorre de uma submissão às premissas da autoridade. Essa voz é, assim, a de um amplo colectivo que não se questiona, que não desmonta o discurso autoritário. No entanto, por intervenção de uma entidade anónima, a malícia, o riso, a emergência do vocabulário e da fraseologia “indecente” manifestam-se como imprecação, insulto, liberdade brincalhona e desrespeito carnavalesco. O que a generaliza e a torna consentida é o riso, a alegria espontânea, o espírito insurrecto da paródia.

    Nesse sentido, o demónio socrático, que poderia ser entendido como o emergir de uma má consciência inconformista perante o triunfo arregimentador do discurso do poder, torna-se, face à ideologia conservadora e eclesiástica, o símbolo do próprio malefício satânico. E o riso, porque lhe é associado, é condenado ou só é periódica e controladamente consentido.

    Ora, Eça, enquanto jornalista, porque tem de assumir autoralmente a voz do bom senso instituído, multiplica os pontos de emergência da outra voz. Não assume a da insurreição porque é um instruído, faz parte do grupo para o qual a obscenidade ou a facécia é de mau gosto ou loucura. É por essa razão que ele cria, a partir de uma brincadeira real, uma entidade de dimensão carnavalesca: o monstro que perversamente transformou o discurso da autoridade austera num chorrilho indecente. É essa voz que ele fixa como entidade fictícia (dado que clandestina e anónima – que nunca veio a ser descoberta) para poder fazer emergir, através dela, a sentença crítica sobre o discurso conformista, conservador – e mesmo reaccionário, como entenderíamos hoje o que se lê nas entrelinhas.

    Tal mecanismo de bivocalidade, contendo polémica oculta, emerge em muitas das suas outras crónicas ou escritos para periódicos. Um caso exemplar é o da encenação que ele pratica, segundo os tiques de Pinheiro Chagas, numa polémica que mantém com este, datada de 1880, que foi recolhida no volume Notas contemporâneas (s/d). Aí, resumindo, para rebater, o discurso do adversário que, insinuada e denegativamente, o acusava de se vender para dizer mal da pátria, Eça argumenta e, para consolidar o seu ponto de vista, fabula segundo os processos do outro:

    “Quando você fala de somas recebidas da «Gazeta de Notícias», do alto preço por que me vendi para injuriar o país, etc., [não me parece prudente]. Eu bem sei que você usou notáveis precauções oratórias: mencionou o boato, e demoliu logo o boato; depois tornou a pôr de pé o boato, para volver a derrubá-lo com furor. Isto é amável; mas enfim, você traiu a confidência que eu lhe fiz. Lembra-se, Chagas? Foi naquela noite de tormenta, na encruzilhada, a poucos passos da capela solitária onde estava dobrando a finados. Eu cheguei rebuçado num manto cor de treva, e punhal à ilharga, deixando pela sombra um tinir de esporas. Um relâmpago fuzilou, e houve um tremolo na orquestra. Até eu lhe disse, lembro-me bem:/- meu Chagas, esta situação patética parece mesmo inventada por você, amigo!/ Você respondeu com engenho:/- Parece. Eu teria colocado alguma luz eléctrica, batendo as roupagens de uma virgem, cuja alma o mundo não compreende…/ Então eu arrastei-o para o pé do cruzeiro, onde bruxuleava uma lâmpada; e, sentados sobre os degraus de pedra fria, eu comecei a contar-lhe o meu segredo: que a «Gazeta de Notícias» me dava um milhão (um milhão em ouro) para eu injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!/ Você tremeu, amigo! E murmurou-me ao ouvido estas palavras: – Prudência, prudência./ Eu repliquei com furor:/ Hei-de beber o sangue de Portugal. Hei-de beber-lho!/ Um trovão retumbou. Sobre um dos braços da cruz piou um mocho. E separámo-nos, na estrada negra, quando dava meia-noite na torre da catedral./ Você tinha-me jurado segredo. E vem agora publicar tudo no «Atlântico»! Hei-de assassiná-lo no quinto acto” (pp. 59-60)

    Não é possível deslindar aqui todas as consequências pragmático-discursivas deste processo. Dado que o nosso objectivo central é o de tentarmos reconhecer o valor do mecanismo retorico-poético e não analisarmos as questões que estão por detrás dos termos da polémica, limitemo-nos a observar aqueles resultados que nos ajudam a compreender a oficina discursiva e fabulatória de Eça. Para fazer valer os seus argumentos, Chagas recorre ao boato. O mecanismo que utiliza é da preterição, através da qual, ostentando a rejeição da calúnia que afirma correr como boato, enuncia as acusações. A voz que as sustenta, no entanto, não é a sua. O autor do discurso, assim, cria uma voz tornada anónima pela generalização do “diz-se que” do boato e, afirmando a sua rejeição do dito, não deixa de o dizer.

    O efeito não é só o de enunciar a acusação que, embora rejeitada pelo eu da enunciação, fica a pairar como dúvida – o mais importante do efeito é que o boato, sendo colectivo e anónimo, partilha dos valores do saber comum, da vox populi, fonte, como se sabe, de um saber quase divino. Tal afirmação negada institui uma entidade enunciativa extremamente poderosa porque não só é difusa e de insidiosa autoridade, como é irrebatível, dado não ter personificação que possa ser questionada: no fundo é o dizer dessa monstruosa terceira pessoa que é todo o mundo e ninguém.

    É pelo facto de perceber e analisar com exactidão o processo do outro, acusando-o de espalhar e rebater retoricamente o boato, que Eça se revela o poderoso mestre no uso dos mecanismos da ironia e da paródia. De facto, a sua réplica não se limita a ser uma construção intuitiva, atenta aos processos já elaborados do debate retórico, que os retoma segundo as práticas dos mestres. Revelando o reconhecimento dos mecanismos da insídia construídos pela preterição, Eça sublinha o irreal e inverosímil do boato, reconstruindo-o como plena fantasia do “dramalhão” à maneira dos que o seu antagonista costumava fazer.

    Assim, parodiando o conteúdo da acusação pela encenação burlesca de uma cena teatral em que todos os mecanismos poéticos se revelam, Eça desmonta o dito através da espectacularidade melodramática evidente do dizer. O ente anónimo da acusação transforma-se na carnavalização do dizer, em que a origem do dito é atribuída ao próprio vilão – mascarado como tal — confessando o seu crime, em segredo, àquele que ostenta o saber da pérfida traição à Pátria.

    Neste caso, o efeito da réplica não se limita ao rebate. A resposta procura atingir criticamente o próprio interesse político e ideológico de um tal debate. De facto, se Chagas recorre ao artifício retórico da preterição, Eça lança o descrédito sobre tal artifício transformando-o num melodrama. Assim, irrealiza-o poeticamente. Mas não se limita a essa operação. Sublinhando os tiques sentimentalões do melodrama romântico em que insere a fonte verbal do dito, Eça gera o efeito de paródia, lançando a dúvida sobre o valor e a autenticidade do drama, e o interesse do investimento afectivo que o dramatismo convoca.

    Sede da Fundação Eça de Queirós

    O quadro cénico resultante, o drama montado pela simultaneidade das vozes que ora se rebatem ora se repetem até à caricatura, resulta no apagamento ou, pelo menos, na minimização da importância da fonte de fidedignidade. Sendo todos os dizeres passíveis de suspeita, nenhum está, indiscutivelmente, acima de qualquer suspeita. Se todos são submetidos ao efeito de caricatura, o riso atinge-os a todos, pondo em causa a existência de um lugar ou de uma posição de onde a verdade jorre fora de qualquer suspeita.

    Ora, esse mecanismo, que, na literatura, se fará um verdadeiro sistema de indagação epistemológico, dando ao verosímil literário a força de um questionar implacável de problemáticas e pontos de vista, emerge, no jornalismo, como processo de indagação dos valores éticos e ideológicos que se debatiam na época. Antes de o ter desenvolvido como procedimento poético, nas cenas de satirização e de paródia que tão bem constrói na sua ficção ao questionar a condição humana e a hipocrisia que toda a formação social constitui, Eça aprende a domar o desdobrar das vozes, o formular da equidistância dos pontos de vista e a matizar os confrontos ideológicos desde as primeiras crónicas.

    Curioso é que esse processo da intromissão de um ponto de vista insurrecto tenha aparecido, por uma associação do trabalho do redactor à atmosfera de Carnaval, nas crónicas do Distrito de Évora. Sirva-nos de exemplo dessa associação, a própria relação que Eça estabelece numa das suas primeiras crónicas de 1867, na qual ele teoriza a própria crónica. Escreve o então jovem jornalista:

    “Esta época do entrudo é realmente feliz para a crónica. A crónica encontra sempre contra si as ocupações políticas, os incómodos individuais, a preocupação das negociações financeiras, a instabilidade dos partidos: ela é sempre jovial, mas não pode respirar, viver, porque encontra em volta de si uma época séria. Senão veriam./ Mas, quando chega o carnaval, há harmonia entre a crónica e a época, se a crónica diz folguemos, a época diz desvairemos. E aí está porque, assim que chegam estas épocas, ela se veste de cores alegres, vem palreira e folgazã dar as boas-festas aos que têm a honra de a ler, de a ouvir, de lhe escutar as anedotas” (in, Anabela Rita, 1998: 39-40).

    Quase poderíamos utilizar este texto do escritor debutante como prefácio à sua metodologia poética futura. Apercebemo-nos, nela, das motivações que o arrastam para essa posição de implicação demoníaca. A crónica, na sua capacidade inventiva, gera-se como acto de diabrura, de incompatibilidade ou pelo menos de adversidade, relativamente ao espírito sério. É quando a conceptualiza que Eça vislumbra os mecanismos da sátira em sentido generalizado. Não o confronto ou a polémica entre razões que se querem apagar mutuamente, mas o voltear brejeiro, atitude palradora e alegre de encarar as contradições do mundo, irmã, enfim, do Carnaval.

    Parafraseando Bakhtine, estudioso que, fundamentalmente orienta o ponto de vista que aqui estabelecemos, poderíamos dizer que “a realidade da época, tão ampla e plenamente reflectida na obra de” Eça “fica iluminada pelas imagens da festa popular” e, assim, “à luz particularmente lúcida (luminosa e luciferina, simultaneamente, diríamos nós) das imagens da festa popular, todos os acontecimentos e coisas da realidade adquirem um relevo, uma plenitude, uma materialidade e uma individualidade muito particulares. Libertaram-se de todos os liames dos sentidos estreitos e dogmáticos. Mostraram-se numa atmosfera de perfeita liberdade” (Bakhtine, 1970a: 450).

    Não nos afastaríamos muito do estudioso russo citado se afirmássemos que, dessa posição retórica de profundas implicações poéticas na sua obra futura, Eça soube extrair os dados fundamentais segundo os quais, nos seus romances, representa e suscita a diversidade excepcional dos factos e episódios nela englobados. O momento do riso, da festa livre da rua, é o momento do olhar liberto, da palavra solta, que a todos nomeia (autor incluído – pois que, também ele, é objecto da paródia, ao fornecer facécias e enunciados menos vinculados à verdade) e a tudo indicia para soltar o palreio folgazão.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia :

    Bakhtine, Mikhail, 1970, La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1970a , L´oeuvre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

    Queirós, Eça de, s/d, Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

    Queirós, Eça de, s/d, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, Livros do Brasil, Lisboa

    Rita, Anabela, 1998, Eça de Queirós cronista, Cosmos, Lisboa

  • O melodrama amoroso: entre o gótico, o negro e a novela romântica

    O melodrama amoroso: entre o gótico, o negro e a novela romântica


    Comecemos com uma epígrafe extraída, parafraseadamente, de uma das autoras matrizes da matéria aqui em causa:

    “É uma verdade universalmente reconhecida; qualquer homem de boa fortuna necessita de uma esposa” in Orgulho e Preconceito, de Jane Austen,

    Enquanto uma vertente, mais virada para os acordes negros do melodrama[1], escolhe os símbolos marcantes do universo melancólico e, mesmo, de pendor trágico, como acontece com Poe, que, “pensando cuidadosamente em todos os efeitos artísticos costumeiros”, achou “que nenhum tinha sido tão empregue como o refrão” dependendo, para o seu efeito da “força da motonia” (2004: 40); outra parece inspirar-se francamente na narrativa picaresca e na sua evolução para o Bildungsroman ou, seja, aportuguesando o conceito, romance de formação (ou de aprendizagem, ou de educação…todos esses termos já têm sido empregues e usamos formação por nos parecer o de termo de sentido mais amplo) e tem, como grande modelo literário para as comic strips, não o romance de Johann Wolfgang von Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister [2] (Wilhelm Meisters Lehrjahre) mas as histórias romanescas de Dickens, como Oliver Twist.

    Embora o seu animal emblemático seja o corvo o qual dá nome ao poema que procura apresentar na sua construção, passo a passo, a fórmula encontra-se muito apropriada à história de Annie: logo no título e subtítulo o termo órfã, que volta a ser repetido mais duas vezes em duas das quatro vinhetas da primeira tira da história, com a sua “ênfase prolongada da vogal” nasal ressonante e não o “ ‘o’ longo como sendo vogal mais sonora em relação com o ‘r’ como sendo a consoante mais reveladora”, sem deixar de ter ao mesmo tempo muitas das modalidades de melancolia de “’nevermore’”… e, é claro, onde a história de Annie envereda claramente pelas pinceladas góticas do melodrama é no modo como a pequena heroína nunca se aproxima verdadeiramente da extrema beleza almejada por Poe: “a morte então de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tópico mais poético do mundo” 2004: 41-42). Mas desenrola-se, inversamente, no melodrama em pequenos suspenses que, quase sempre formam uma peripécia entre o picaresco e o carinhoso. Não tenhamos dúvidas que Dickens, por exemplo, é um dos grandes inspiradores de tais histórias quadrinizadas, de gosto popular.

    Por outro lado, numa outra variante da primeira vertente acima descrita, sobretudo atenta à juventude mais adulta, amor e casamento são a referência temática mais vulgarizada pelo entendimento imediato dos leitores de narrativas sentimentais[3] consideradas populares pelo favor generalizado que recebem, de um público minimamente alfabetizado, sobretudo feminino que, no entanto, enquanto efabulações de amor são mais complexos do que se diria à primeira vista.

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    Menosprezadas frequentemente, com alguma razão, por explorarem um erotismo exibicionista, num jogo de revelação, sugestão e elipses muito elaborado, à vezes narrativamente gratuito por, em quase nada, contribuir par o funcionamento cardinal, a que acima nos referimos, e serem muito pouco importantes como índices para a construção da diegese, apresentam-se sobretudo como elementos de consumo complementar, estímulo suplementar, ou para manifestar abertura e ousadia na compreensão da dimensão erótica do amor.

    Embora por esses aspectos, tais obras sejam consideradas leituras de lixo, os relatos de entrecho romanesco-sentimental provêm de duas importantes tradições literárias – a narrativa ou novela sentimental e o romance. “Embora o casamento entre a heroína e o herói seja mais frequentemente o objetivo da história” como lembra Neylon, “é o casamento do modo e o meio que tornam as novelas sentimentais únicas. Na definição do romance popular, devemos analisar o modo [características da história que diferenciam uma novela sentimental de outros géneros] bem como o meio [características do romance].

    Segundo a autora citada, “histórias contendo elementos sentimentais (“romantic”) surgiram em todas as gerações e culturas”. Vários escritos  da Babilónia e do Egipto[4], contêm histórias de amor e paixão. Mas a diferença entre uma história com elementos “romantics” e um romance não é fácil de estabelecer, sobretudo desde que os grandes valores do realismo e do naturalismo dominaram o nosso entendimento do discurso narrativo, incluindo a própria BD.

    No século XVIII, Pierre Daniel Huet, bispo de Avranches, ainda podia sustentar com credibilidade: “não considero que o romance  seja mais do que ficções de aventuras amorosas, porque o amor tem de ser o principal assunto… chamo-lhe ficções para os distinguir das histórias verdadeiras; e acrescento aventuras amorosas porque o amor deve ser o principal assunto ‘romantic’ [“we esteem nothing to be properly Romance but Fictions of Love Adventures … I call them fictions, to discriminate from True Histories; and I add, of Love Adventures, because Love ought to be the Principal Subject of Romance ”]  (in Ioan Williams, 1970: 46). 

    O romance popular, nome que podemos dar ao conjunto de narrativas com alguma extensão, que podem ir das poucas dezenas às várias centenas de páginas, em que o modelo da narrativa ou novela sentimental se revela central, apresenta variantes que vão da narrativa humorística e picaresca à novela de aventuras, com entrecho amoroso entrecruzado com a viagem, a pirataria e a acção violenta, é herdeiro de vários géneros.

    Ele é, de modo evidente, um produto da polifonia, no sentido que Bakhtine dava ao termo no seu estudo sobre Dostoievski, de elementos literários e culturais  de vários géneros, pois compartilha características de relatos mistério, de suspense, de descrições ou sugestões eróticas, aventuras e outros géneros narrativos; no entanto, pode ser diferenciado desses géneros pelo fato de que a história central não é o mistério ou aventura, mas sim o romance entre o herói e a heroína[5].

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    “O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros). Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor. Os géneros introduzidos no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade linguística e estilística. Porém, existe um grupo especial de géneros que exercem um papel estrutural muito    importante nos romances, e às vezes chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco. São eles: a confissão, o diário, o relato de viagens, a biografia, as cartas e alguns outros gêneros. Todos eles podem, não só entrar no romance como seu elemento estrutural básico, mas também determinar a forma do romance como um todo (romance confissão, romance-diário, romance epistolar, etc.). Cada um desses géneros possui suas formas semântico-verbais para assimilar os diferentes aspectos da realidade. O romance também utiliza esses gêneros precisamente como formas elaboradas de assimilação da realidade” (Bakhtine, 1978: 141).

    É por intermédio de elementos como os géneros, que “servem de clichés externos”, que o escritor dialoga com a história, que estabelece o terceiro (não só o que ouve, mas também o que é ouvido pelo seu discurso), nos horizontes em que o seu discurso é parte de um diálogo que mantém com a sua época. Por um lado, tem em conta o já dito, o modelo dos outros discursos, aos quais responde, que se revitalizam pela resposta que lhes dá.

    Por outro lado, modera, no seu próprio discurso, o que pressupõe de resposta por parte daqueles que escutam a sua intervenção no diálogo, como leitores, como ouvintes, como espectadores. Ora, a praça pública na festa carnavalesca é o modelo mesmo que a cultura popular oferece do diálogo a três: assim como ninguém fica excluído do riso, quer o burlado, que o burlador quer o espectador, também ninguém fica fora do diálogo: nem os dialogantes nem o ouvinte (ou o leitor, nos modelos historicamente decorrentes da praça pública e da festa, como os diálogos socráticos, os simpósios, as farsas populares, a paródia). 

    Assim, a hipótese de Iris Zavala merece ser considerada, pelo que abre de perspectivas sobre esta questão, quando afirma: “O que deve examinar-se […] é a compreensão do dialógico […] como uma estrutura de conhecimento, vinculada à organização situacional sistemática do discurso, […] porque o seu modelo triádico garante um elemento poderoso na evolução genérica e no estilo, uma vez que o ouvinte é o participante sempre presente num discurso interno e externo” (1991: 163).

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    Para este processo em que, segundo Zavala, a consciência é vista historicamente (p.163), Bakhtine, segundo a mesma autora, terá seguido os estudos dos retóricos clássicos de Port-Royal sobre a ironia, sendo esta, de acordo com eles, produto do jogo de três níveis na produção do discurso: os dois primeiros produzem o efeito do sentido em conflito, mas o terceiro não só se apercebe desse efeito, como gera um efeito resultante da sua situação dramática no lugar da recepção. Não que escape ao alcance da sua ironia, mas porque se apercebe, atingido por ela, que “também ele” faz parte do mundo que lhe surgia, num primeiro momento, como espectáculo, ou como parte interessada num debate que, à partida, lhe poderia parecer nada ter a ver consigo (cf. Zavala, 1991: 164-165).

    Este modelo de compreensão do discurso, a que Zavala chama epistemologia do «terceiro» através do qual se desenvolve um modelo histórico-social da comunicação, postula o terceiro como o próprio espaço do entimema, enquanto “inarticulado” – mas, em nosso entender, ao mesmo tempo, como a “opinião de todo o mundo”. Ou, do ponto de vista estético, esse terceiro pode ser entendido como o outro que se coloca como tema, eventualmente o herói que o autor recria a partir dos dados da tradição genológica e que pode ser designado por sujeito do enunciado (cf. Zavala, 1991: 167). Ou ainda, se atendermos à dimensão histórica, o terceiro, poderá ser visto, segundo a mesma autora, como o acontecimento (a publicação do livro, a emergência do discurso como demarcação ou escândalo, a polémica estabelecida, a permanência da obra na memória cultural) enquanto facto plural do discurso, aquilo que lhe abre o sentido no intercâmbio social (1991: 171-174).

    Este não dito da verdade, que inclui o discurso (ou, nos tempos modernos, o cauciona, como verdade detida pelo poder) em horizontes onde se revela o sentido desse mesmo discurso, é conceptualizado em duas dimensões: uma que Bakhtine formula através do termo ideologema, desde os seus primeiros escritos; a outra que remete para uma alteridade ampla, que Zavala destaca (1991: 205), citando Bakhtine, como o entimema social. Ambos os conceitos foram utilizados por Jameson.

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    O primeiro praticamente é utilizado segundo as propostas do autor soviético. Através dele, simplificando muito a questão, enuncia-se a afirmação temática da obra ou de cada elemento temático, constituindo o seu (ou os seus) horizonte(s) ideológico(s), a entrar em diálogo (concordância ou conflito) com outros horizontes (perspectiva de uma personagem, de um acontecimento, de uma situação vs. opinião de uma tradição, de uma personagem similar de outra época, de um leitor posterior) (cf. Bakhtine/Medvedev, 1978: 21-22; Zavala – in Reys, org., 1989: 102). No ideologema expande-se, também, a questão do cronótopo, pois é aí, em nosso entender, que ele melhor se enquadra.

    Ao contrário, o entimema social, ou a noção que envolve a ideia de comunidade semiótica (cf. Bakhtine/Volochinov, 1977: 35-45), permite um desenvolvimento dos estudos literários, em Jameson, em franca comunhão com os estudos culturais, através da reformulação que o autor americano dá, ao propor o conceito de inconsciente político. Através deste conceito, Jameson permite-se pensar os termos do imaginário segundo duas séries de valores: os da classe dominante e os dos grupos secundarizados ou marginalizados.

    Como a prática de hegemonia separa o privado (construindo o domínio do psíquico como o da mente, desligada do corpo) do público, rejeitando os valores das classes baixas como meramente materiais e corpóreas, os sistemas de representações recorrem aos elementos do imaginário que partilham, porque este funciona como material semiótico híbrido, sem sentidos pré-definidos. É o uso que cada indivíduo lhe dá, dentro dos valores da sua classe, que lhe gera um sentido.

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    Em consequência disso, a “exclusão  [praticada pelas classes no poder, entenda-se] dos outros grupos e classes na luta pela conquista da identidade própria, aparece como um dialogismo especial, um agonismo de vozes – às vezes, até, sob a forma de argumento [onde o entimema se revela como a verdade que é o indiscutível do poder, aquilo que não necessita de ser expresso para se tornar a imagem da verdade última que não se sente obrigado a exprimir as asserções pressupostas pelos interlocutores ─ de algum modo, o ideologema em que assenta a sua imposição de verdade ] ─ dentro do imaginário que a classe em questão partilha com os grupos que exclui. A própria acção dirigida para construir a singularidade de uma identidade colectiva é, simultaneamente, produtora de heterogeneidade inconsciente, com a sua variedade de figuras híbridas, soberanias em competição e exigências exorbitantes” (Stallybrass & Withe, 1986: 194).

    Já se vê que, dentro destas perspectivas assim abertas, os estudos que privilegiam uma focagem assente nas elaborações do imaginário para o seu entendimento da literatura  –  posições teóricas ortodoxamente freudianas, concepções do imaginário como estruturas antropológicas, na via de Durand, ou como arquétipos ou mitos, segundo Durand ou Frye – podem entrar em franco diálogo com as propostas bakhtinianas para a construção de modelos de compreensão do fenómeno literário, ou de exploração das relações entre a literatura e outros fenómenos culturais e artísticos.         

    O modo “romântic” é mais do que uma história com explosão de afecto e emoções. O objetivo da história deve ser o romance em si. No entanto, romances populares exigem mais do que o amor como tema central. A heroína e o herói não podem estar felizes no amor e trabalhando para resolver um mistério juntos. Desafios e obstáculos devem disputar a união feliz. Mesmo que o romance contenha elementos de mistério, os obstáculos para resolver esse mistério não podem ser o foco principal.

    Os obstáculos entre a heroína e a união do herói devem permanecer centrais na história. John Stevenson afirma que “O que exigimos em uma história de amor é uma atração e um obstáculo, e esses dois princípios fundamentais de construção podem ser honrados de várias maneiras.” Os romancistas precisam “criar desejo trazendo casais adequados para a proximidade e, em seguida, sustentar esse desejo, encontrando razões plausíveis para atrasar sua união” (1990: 110) A heroína e o herói devem ser desafiados e trabalhar para sua união.

    Escritores de “romance” (narrativas românticas) podem usar uma variedade de subtramas para entrelaçar” com a função cardinal “dessa luta, mas, no entanto, a luta na relação emocional entre a heroína e o herói deve reinar suprema. Na verdade, parte do design do romance, e sua coerência como forma pode estar na justaposição de ambos os elementos (1990: 61). A ideia de Freedman de projeção externa e interna é muito importante em termos do que os romances fazem. Os romances definem a cena e descrevem personagens, lugares e situações (dimensão externa). Ao mesmo tempo, os romances permitem que o leitor entre em uma ou mais mentes dos personagens para entender seus pensamentos e emoções (dimensão interna). A capacidade de ver a história por fora e por dentro torna a história mais realista e pessoal para o leitor.

    O casamento do modo e do meio define os parâmetros do romance popular. Sabemos que nossa heroína e herói sofrerão com desafios e obstáculos à sua união. Eles podem estar tentando resolver um mistério ou escapar à captura, mas sua luta emocional permanecerá central. Seremos capazes de nos identificar com eles e suas situações através da representação realista de cenas e diálogos. No final, sabemos que nossa heroína estará feliz em se unir ao seu herói de uma maneira que os eleve. Pode-se imaginar no fascínio de um gênero onde os leitores sabem que o resultado sempre será a união harmoniosa da heroína e do herói. Talvez no caso de romances populares, é realmente a jornada e não o destino que mantém os leitores lendo.

    Em A família, Sexo e Casamento de Lawrence Stone na Inglaterra, 1500-1800, Stone afirma que “a Inglaterra se afastou de uma maneira de pensar sobre o casamento que era amplamente dominado pelo interesse (ou seja, interesses familiares, muitas vezes financeiros, e com pouco respeito pelos sentimentos dos futuros companheiros) para um que era baseado no afeto mútuo de marido e mulher” (in Stevenson, 1990: 115). Embora essa mudança cultural tenha afetado a forma como mulheres e homens se sentiam sobre o casamento, isso não aumentou o poder das mulheres dentro do casamento. As mulheres ainda eram muito sujeitas à tagarelice e à valorização dos caprichos.

    A organização Romance Writers of America concorda que a história central de amor no romance “diz respeito a duas pessoas se apaixonando e lutando para fazer o relacionamento funcionar… O conflito no livro centra-se na história de amor… O clímax do livro resolve a história de amor” (Romance Novels – O que são?). No entanto, eles também estipulam que para um romance ser qualificado como romance popular, ele deve ter “Um Final Emocionalmente Satisfatório e Otimista – Romance novela termina de uma maneira que faz o leitor se sentir bem.

    Romances são baseados na ideia de uma justiça emocional inata – a noção de que as pessoas boas no mundo são recompensadas e pessoas más são punidas. Em um romance, os amantes que arriscam e lutam um pelo outro e seu relacionamento são recompensados com justiça emocional e amor incondicional.” (Romance Novels – O que são?) É na exigência acima que romances populares diferenciam ainda mais.

    E esse é um dos procedimentos narrativos que a dupla Simon e Kirbi souberam aproveitar. “Romance Jovem” – O Melhor de Simon & Kirby’s Vol. 1 – 3 (2012). Young Romance é um dos títulos mais antigos da DC Romance, e que a DC comprou para aumentar sua participação no mercado no gênero romance. A certa altura, os títulos que não eram de super-heróis dominaram o meio, e Young Romance representou parte do domínio de outros gêneros, principalmente, neste caso, o gênero romance. Young Romance é uma série romântica de banda desenhada criada por Joe Simon e Jack Kirby para a Crestwood Publications imprint Prize Comics em 1947. Geralmente considerada a primeira história em quadrinhos de romance, a série correu por 124 edições consecutivas sob a marca de Prêmio, e outras 84 (edições #125-208) publicadas pela DC Comics depois que Crestwood parou de produzir quadrinhos.[6]

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    [1] Embora algumas semelhanças existam entre as narrativas góticas, românticas e pré-românticas, designadas pelos franceses por roman noir, e as narrativas policiais hard boiled, sobretudo por, nas versões cinematográficas e mesmo de BD (veja-se a série Sin City, por exemplo), as tintas contrastantes de claro escuro e a representação asfixiante do espaço se ter tornado marcante, sobretudo por herança do expressionismo alemão, acabando por tingir o policial literário com as mesmas marcas de “família”, convém não dar como equivalentes ou muito semelhantes os dois géneros “negros”.

    [2] Tradução de Paulo Osório de Castro, que, muito bem traduz por aprendizagem o título, que é parte da formação, nome do género.

    [3] Por vezes chamadas românticas, termo que evitamos para tentar escapar à confusão com a designação dada a uma das épocas em que na literatura, nas artes visuais e de espectáculo, a produção mais se desenvolveu, de modo marcante, na cultura ocidental.

    [4] Um papiro colocado na tumba egípcia que conta a história de uma misteriosa “adormecida”, serve de tema para um pequeno romance, ou conto alongado, de Théophile Gautier.

    [5] “[…] em Dostoievski essa heterogeneidade de materiais literários e de estilo, assumia um sentido novo, transcendia-se por via do polifonismo fundamental da sua obra.[…] Com efeito, a aliança da aventura que integra a problemática da violência, com o dialogismo, a confissão, a hagiografia não é um fenómeno completamente desconhecido […]. O que é novo é o uso que dele fez Dostoievski […]. Mas a combinação de géneros, propriamente dita mergulha as suas raízes até à antiguidade” (Bakhtine,1998: 159).

    [6] Deve notar-se que a série se designa desse modo por corresponder ao conceito que,  em língua inglesa, o termo romance tem, ou seja, uma narrativa que cabe, em grande parte, nas modulações daquilo a que nós chamamos romance (e ao que, em francês, corresponde ao termo roman, mas que tem a designação de novel, em inglês, e em espanhol novela), mas conota, naquela língua, de modo dominante, o sentido de narrativa de uma relação sentimental e/ou, amorosa, mais ou menos carregada de erotismo, e que poderemos designar, para simplificar a questão, em português, “narrativa romântica”. Sobre a série será interessante reter alguns dados, remetendo para aqui.

  • O “romance” ou a narrativa romântica

    O “romance” ou a narrativa romântica


    No momento em que o comic strip atinge um alto grau de expressividade e aprofundamento quase filosófico, pela via do riso, do cómico e de um humor por vezes cáustico, um novo género emerge no panorama das publicações diárias, ou de periodicidade mais alargada, mas no máximo semanal, nas páginas dos jornais.

    Pelo ano em que o Gato Felix surge como tira semanal, em 1924, vindo da figura de cartoon de animação, de Pat Sullivan, de 1919, que o disputa com o seu desenhador  Otto Messmer, torna-se quase um sucessor, pelo sucesso, em comic do seu mais paradoxal antepassado, Crazy Cat, nascido em 1911 como comic pela mão de George Herriman, emerge, nas tiras de cartoon, uma figura que fará o género inflectir em novas ressonâncias temáticas Little Ophna Annie de Harold Gray, com o subtítulo de série, “ou as desventuras de uma órfã”.

    Primeira strip, publicada em 5 de agosto de 1924 no jornal Daily News, de New York.

    As aventuras de Little Orphan Annie eram contadas num estilo, que, em termos genéricos poderia ser comparada com a novela picaresca, com pinceladas de ambiência gótica e a presença de muitas situações melodramáticas. A personagem principal deambula, abandonada por um mundo corrupto, em histórias episódicas e independentes. No primeiro ano da publicação, aparecem as personagens que se manterão como recorrentes comparsas coadjuvantes: “Daddy” Warbucks e o cão, Sandy. Os vilões, opositores ou mesmo adversários, manifestam-se desde esse primeiro momento, mas apenas se manterá mais longamente Madame Warbucks, esposa do “Daddy”, cuja adversidade é mais motivada pelos ciúmes do afecto que o marido dedica à órfã do que propriamente por maldade ou desumanidade, como serão muitos dos outros casos.

    A história começa em um orfanato pobre como os das histórias de Charles Dickens, com Annie submetida a frequentes maus-tratos causados por uma matrona pouco dada a generosidades e mais entregue a prazeres sádicos escondidos sob a aparência da virtude. Um dia, uma senhora rica mas caprichosa e narcísica, Madame Warbucks por razões várias, vê Annie e a leva para sua mansão. O marido da mulher desenvolve imediatamente uma afeição paternal por Annie e pede à menina que o trate “papá” (“Daddy”). Para infelicidade de Annie, o seu pai adoptivo passa longos períodos fora, viajando a negócios, e a menina fica desprotegida, sofrendo a agressividade da esposa enciumada que acaba devolvendo-a ao orfanato.

    A preceptora profissional do orfanato põe a órfã desprotegida a trabalhar numa doçaria. Como o trabalho era muito pesado para sua idade, e a desgostava, certo dia, Annie, depois de arrancar um cão chamado Sandy das garras violentas de um grupo de jovens marginais cruéis, resolve fugir do seu trabalho. Anda sem rumo pelo campo, como uma criatura abandonada, mas, por sorte encontra um lar acolhedor na quinta do casal Silo. Quando “Daddy” Warbucks oferece uma grande recompensa para quem encontrar Annie, um agiota, que tinha conhecimento da “adopção” sem formalização legal tenta fazer chantagem com o casal Silo, procurando apoderar-se dos seus parcos bens.

    Mas, como numa boa abertura de melodrama, o bem triunfa neste primeiro episódio de peripécias, quando, casualmente, numa das suas incursões em busca da “filha adoptiva” (depois de uma eventual ruptura com a esposa, que se perde como personagem) Warbucks passa pela modesta morada dos Silos para pedir um copo de água e reencontra Annie. Warbucks faz melhorias na fazenda e volta à cidade com Annie e Sandy, prometendo à menina que os Silos poderão visitá-la sempre que quiserem[1].

    Comentando este sistema estruturado de confrontos, valores, sofrimentos, em grau hiperbólico, Peter Brooks considera-o “MELODRAMÁTICO”. E acrescenta que tal “adjectivo” lhe “pareceu […] descrever, como nenhuma outra palavra o modo das dramatizações” de Balzac e Henry James bem como outros autores “e, muito especialmente, a extravagância de certas representações, a intensidade de uma  reivindicação moral a afectar a consciência das suas personagens” (2010: 7), pelo que pensamos que não será descabido sublinhar o desenrolar folhetinesco da história em tiras de Annie, com essas obras de autores que, “num contexto aparente de ‘realismo’ e quotidianidade, se revelam antes como encenadores de um grande drama hiperbólico, remetendo para puros conceitos de trevas e luz, de redenção e danação” (Brooks, 2010: 7). 

    Parece que é neste modelo de histórias que mais claramente se plasma, no desenho, e no desenrolar da intriga o conjunto de funções presentes na narrativa que Barthes designa por índices podendo-se distinguir, na sua função de correlação de aspectos do lugar e da situação os “índices propriamente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia, e” como sistema complementar daqueles, os elementos propiciadores de “informações, que servem para identificar, para situar no tempo e no espaço”. Emergindo no desenrolar da acção estes dois tipos de registo são unidades verdadeiramente semânticas, pois, contrariamente às ‘funções’ propriamente ditas, eles remetem a um significado não a uma ‘operação’” (a acção, o desenrolar dos eventos).

    São elementos ou frases que compõem, por assim dizer a situação da narrativa, que a ancoram como cronótopo, ou seja, “a sanção dos índices é ‘mais alta’, por vezes mesmo virtual, fora do sintagma explícito (o ‘carácter’ de uma personagem pode nunca ser nomeado, mas ser, entretanto, ininterruptamente indexado), é uma sanção paradigmática” (Barthes, 1966: 9).

    Se compararmos as vinhetas dos comic propriamente ditos e as histórias marcadas pelo romance sentimental, ou pelo melodrama verificamos que o pano de fundo desta última variante é muito mais profusamente ilustrado do que aquela. Exceptuamos o caso de muitos dos sonhos de Little Nemo, pois, como boas criações oníricas, estes são povoados, muitas vezes, de uma miríade de maravilhas – mas, repare-se que não são propriamente funções cardinais, elementos funcionais da intriga, mas sim divagações erráticas penetradas pela intromissão maravilhosa e fascinante.

    Ora esta manifestação errática constituída por uma atenção vectorial do tempo por parte da narrativa, mas que não a configura no modelo de causa efeito e sentido da acção destinado, ou sustentado por uma armadura mítico-ético-avaliativa que a conduz a um desenlace, remete-nos para um outro tipo de funções conceptualizado por Barthes, no mesmo texto: as catálises.

    Tal como nos sonhos de Nemo, estas não se deixam conduzir, por um destino ou uma finalidade logicamente formulável. São erráticas e tem algumas afinidades com as funções indiciais, na sua luxuosa inutilidade “aparecem entre duas funções cardinais, onde é sempre possível dispor de notações subsidiárias, que se aglomeram em torno de um núcleo” (1966: 10). Nemo entre o adormecer e o acordar, dispõe desse conjunto de acções que não dão sentido nem se deixam explicar por um destino, mas são interrompidas pelo despertar.

    Mas, mais explicitamente, muitos dos elementos narrativos de Annie, são meras acções que nos dizem sobre o seu quotidiano ou o seu estado existencial, mas pouco sobre o seu destino ou a configuração de um litigar que adensa, ora no episódio de uma fuga, ora na denúncia de uma acção malévola: “estas catálises permanecem funcionais, na medida em que entram em correlação com um núcleo”, e sendo “uma notação, na aparência expletiva, tem sempre uma função discursiva: ela acelera, retarda, avança o discurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorienta: faz o notado” como que por acaso “aparecer sempre como o notável” e desse, a catálise desperta sem cessar a tensão semântica do discurso, diz ininterruptamente: houve, vai haver significação” (1966: 10).

    Ora, é esta chamada de atenção permanente que, em grande parte alimenta o melodrama, até pela simples recorrência dos seus tipos estereotipados e redundantes, Um opúsculo anónimo do princípio do século XIX apresentava assim a “receita” de um “bom melodrama”: “escolher um título. É preciso, em seguida, adaptar a este título, um assunto qualquer, ou histórico, ou inventado”, processo que vemos realizar-se, por exemplo em Little Orphan Annie, logo no título e no subtítulo desventuras de uma órfã; “depois deve-se fazer aparecer como principais personagens, um idiota, um tirano, uma mulher inocente e perseguida, um cavaleiro e tanto quanto seja possível qualquer tipo de animal amestrado, um cão, um gato, um cavalo, um corvo ou uma pega”, o que acontece com o encontro de Annie com o cão abandonado. Os espaços são importantes pelos seus contrastes, o opúsculo da receita sugeria o contraste entre um “ballet”, e uma “prisão” para em seguida colocar a protagonista face a ameaças de “grilhetas” e os anelos do “discurso sentimental” (Thomasseau, 1984: 19).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    [1] Mesmo um comic mais tardio, (1931) aparentemente desenvolvendo-se prioritariamente como história de acção, inicia-se com o duro detective num contexto melodramático: Dick Tracy tornou-se um polícia para vingar o assassinato de Emil Trueheart, pai da antiga namorada de Tracy, Tess. Tracy foi retratado como um detective à paisana, incorruptível, numa cidade do Midweste, muito parecida com Chicago.

    Primeira tira, de 4 de outubro de 1931

    Mas não termina aí o cruzamento, nas origens, da intriga melodramática nesta história/ série de acção, que alguns críticos consideram das mais violentas e sanguinárias que a banda desenhada produziu, em todos os tempos. O melodrama marca o aparecimento de Júnior.

    A sua primeira vinheta aparece a 8 de Setembro de 1932, menos um ano depois do seu “pai adoptivo” ter sido criado, e desenhado pelo mesmo cartunista, Chester Gould, em 1931, para uma tira de quadrinhos do jornal. A tira, que estreou em 4 de outubro de 1931, no The Detroit Sunday Mirror, foi distribuída pelo Chicago Tribune New York News Syndicate. Passando a aparecer em múltiplos jornais pelos Estados Unidos, tem a sua nova incursão no melodrama, através da regeneração do jovem Júnior de quem Tracy se torna pai adoptivo, retirando-o do domínio de Steve Trump um vagabundo malfeitor.

    The Kid (como era originalmente conhecido) era um jovem sem-abrigo e sem nome que vivia com um marginal que o tratava mal e com violência e o fazia roubar em troca de proteção e comida. Por várias vezes, depois de Tracy o fazer seu auxiliar, o vagabundo procura recuperar a sua “mão-de-obra”, mas sem o conseguir. Durante a sua relação filial com Tracy, em mais de uma situação, é raptado e chega a ser preso por suspeita de agressão a Tracy num reformatório. Noutra altura Steve sequestra Júnior na tentativa de receber uma recompensa oferecida por um rico (mas cego) engenheiro de minas que estava à procura seu filho há muito perdido. Por um acidente do destino que vai muito bem nestas narrativas que manipulam as coincidências, revela-se que, de facto Júnior era o filho desaparecido deste mineiro cego do Colorado, Hank Steele e sua esposa Mary. Hank identificou Júnior (cujo nome verdadeiro era Jackie Steele) por uma cicatriz atrás da orelha resultante de um acidente de infância. Mas segundo as posteriores peripécias, volta a trabalhar com Tracy já quase como colega.

    [2] Nos anos 30, uma publicação, em formato quase de página dá continuação ao protagonismo da Órfã perseguida pelos infortúnios num argumento de Barandon Walsh e desenho de Darrel McClure. Os seus antecedentes vinham de uma canção de Michael Nolan, muito popular em finais do séc. XIX, do sucesso do filme mudo protagonizado por Mary Pickford, e das tiras diárias de Ed Verdier: Jan 10, 1927 – July 20, 1929; Ben Batsford: July 22, 1929 – Oct 4, 1930; seguidas das tiras que Brandon Walsh escreveu e Darrell desenhou: Oct 6, 1930 – 1954; ou ainda as que Darrell McClure continuou a fazer sozinho: 1954 – April 16, 1966

  • Fernanda Botelho

    Fernanda Botelho


    A penúltima obra de Fernanda Botelho (1926-2007), As contadoras de histórias, pela qual autora foi galardoada com o Grande Prémio de Novela e do Romance, da APE em 1998, convida-nos, logo a partir do título, a pensá-la como súmula e explícita “arte poética” da autora.

    De facto, As contadoras de histórias remete-nos, pelo menos, para a produção romanesca da autora, e para os processos narrativos que caracterizaram a sua arte de fabular, desde os primeiros momentos – se não pretendermos ter no horizonte toda a tradição da narrativa para o qual um enunciado tão genérico como um título, com tais tópicos enunciados, poderia apontar, o que se tornaria matéria para muito mais do que um simples artigo. É claro que, inevitavelmente, a obra, ao estabelecer a sua linhagem poética, como conjunto, explicita alguns vínculos que mantém com certos aspectos característicos de determinados filões literários que tem alimentado a narrativa, sobretudo aqueles em que se faz sentir, de modo preponderante ou pelo menos evidente, o processo de enunciação como arte que a si próprio se oferece como espectáculo.

    Fernanda Botelho

    Se, ao enunciado de dimensões macro-estruturais que é o “nome do livro”, não se viessem juntar os traços da própria construção ficcional que se desenvolve na obra, a revelarem essa vontade de reflexão poética da autora, bastaria pensar enquanto, neste título, ecoam referências aos processos de enunciação presentes em títulos anteriores: A gata e a fábula, Xerazade e os outros, Lourenço é nome de jogral e mesmo Dramaticamente vestida de Negro[1] .

    De facto, é como se o acto de enunciar, emergir a um proscénio para emitir uma fábula, se tornasse uma espécie de forma arquétipa da própria ficção de Fernanda Botelho, presente na autora desde os seus primeiros romances, de modo menos notório até A gata e a fábula, mas tornando-se recorrente, pela própria figuração mítica de Xerazade, a partir da ficção que transporta o nome da ilustre personagem das Mil e uma noites

    Desse modo, Fernanda Botelho parece não ter encontrado melhor expressão para sondar o universo onde as suas personagens se movem, senão através da revelação dos seus actos, contando a história dos seus movimentos, colocando as explicações psicológicas, as sondagens das categorias abstractas dos afectos entre parêntesis, ou fazendo-as surgir como paradoxais face aos actos, aos comportamentos, ou às histórias com as quais cada contador ou contadora consegue figurar o mundo.

    Penúltima obra de Fernanda Botelho, o romance As contadoras de histórias foi publicado em 1988 pela Editorial Presença.

    Estamos a pensar, evidentemente, no enunciado de Todorov, sobre o legendário livro das narrativas árabes, quando analisa o comportamento de Ali Baba face à sua cunhada viúva: “em vez de interferir na causalidade dos eventos, a causalidade psicológica é tão só um duplo da causalidade dos acontecimentos” (Todorov, 1971: 81).

    Se atendermos à tradição narrativa de que fala Todorov, segundo a qual cada “personagem é uma história virtual que é a história da sua vida” e aceitarmos como ponto de partida, ainda segundo a sua perspectiva, que “toda a nova personagem significa uma nova intriga” decorrendo desse facto que, nesse modelo narrativo, “nos encontramos no reino dos homens-narrativas” (1971: 82) tocamos, ao que nos parece, no mecanismo central que, pelo menos desde Xerazade e os outros, alimenta o processo narrativo de Fernanda Botelho.

    Não dizemos que é único e exclusivo em todas as histórias, evidentemente, mas dizemos que é o modelo a emergir, dominante, no conjunto da sua obra. Do confessionalismo, dos mecanismos de sondagem da interioridade na esteira da “descrição de caracteres”, tão caro a Henry James e à geração da Presença, em relação à qual Fernanda Botelho se vai demarcando, por sucessivas evoluções dos processos de encenação da narrativa, passamos ao mecanismo dos modelos de carácter deduzidos a partir da acção na intriga ou mesmo da revelação dos mecanismos psíquicos através da própria acção de narrar.

    Até o monólogo interior, que ela utiliza tão bem nos seus primeiros romances, a pouco e pouco dá lugar a histórias, como que pertencentes a “outros”, fazendo as personagens apresentar-se a si próprias, através de representações que por vezes são verdadeiras evocações de mitos clássicos, tal como foram já tratados, pelo menos, na tradição literária. Palla e Carmo regista, por exemplo, que a própria situação da grande narradora de As mil e uma noites está presente na sequência final de Xerazade e os outros, quando aquela a quem chamavam Xerazade (Luísa), perde o marido porque “deixa de contar a história” nega a história que sobre ela contavam para a desculpar, e “não conta a versão verdadeira” a que “seria a sua irrespondível justificação para com o marido” (Palla e Carmo, 1971: 123). A verdade que a personagem transporta, a revelação do seu íntimo, que demonstra que ela já não deseja viver com o marido surge, assim, através de uma história que se conta – ou não se conta.

    Outro mito que poderia representar a mesma personagem, ainda segundo o mesmo crítico, é o da estátua de Pigmalião: “Fernanda Botelho incorpora o tema de Pigmalião (…) como Bernard Shaw o consagrou; mas creio que glosa também o mito original. Gil fez de Masia Luísa uma criatura «perfeita»: beleza perfeita, atitudes certas – mas como uma estátua(…) «morta»” (Palla e Carmo, 1971: 123). Este procedimento estende-se a outros romances seus, sob variantes curiosas. Por exemplo, em Lourenço é nome de jogral, aquilo que se desenvolve nos monólogos interiores das personagens não são verdadeiramente referências do vivido, manifestações directas de desejos ou mesmo de sentimentos inconfessáveis, ou melhor, tais elementos aparecem, mas sob a capa de personagens literárias, intrigas de escritores canónicos, mitos e situações literariamente tratados.

    Se a política aparece, é sob a citação de Soljénitzyne, se a guerra e os seus conflitos ideológicos se colocam no horizonte das personagens (a 2ª Grande Guerra, a Guerra Colonial…) evoca-se Gunther Grass. Relativamente à perda dos valores humanísticos no mundo de então (entre finais da 2ª Grande Guerra finais da década de 60), a referência é Robbe-Grillet, assim como a questão da luta da mulher pelos seus direitos, em perspectiva mais ou menos estereotipada, surge sob a referência a Le deuxième sexe, em torno do qual vem a propósito falar do que então era quase tabu, mas que se torna, com Fernanda Botelho, uma formulação temática central (como a luta de classes para o neo-realismo – cf Sadlier, 1989: 25 e Óscar Lopes in Saraiva e Lopes: 1996: 1102): o feminismo.   

    Coordenadas líricas, obra publicada em 1951, foi a estreia literária (e em poesia) de Fernanda Botelho.

    Poderíamos dizer que, neste seu último e muito amadurecido romance, produzido em fase adiantada de vida, de saber e de percursos criativo, se leva ao rigor o sistema da história e do seu valor epistemológico, construindo a narrativa e o encaixe da narrativa como grande código donde todo o saber acerca das personagens e do mundo pode emanar no sistema do funcionamento verbal e da permuta da comunicação.

    O modo de se iniciar este romance parece desenvolver, como exercício poético, a hipótese que Todorov tinha colocado quando procurava entender o mecanismo da tradição que se inicia com As mil e uma noites: “Qual é o interesse do encaixe, porque se encontram reunidos tantos meios para lhe conceder importância?” (1971: 85). Porque, mais do que pelo que pensam, sentem ou vivem, as personagens são aquilo que contam. E o processo parece decorrer aqui, ainda que de forma original, do princípio que o teórico búlgaro tinha enunciado, embora alargando-o.

    Assim, se “a narrativa que encaixa outra é a narrativa de uma narrativa, atingindo o seu tema fundamental ao mesmo tempo que produz uma imagem de si própria”, é verdade que contar as histórias das contadoras de histórias é situar-se no lugar dessa “grande narrativa abstracta da qual todas as outras não são mais do que ínfimas partes” (Todorov, 1971: 85). Em última análise, no cerne deste filão hipotético reside uma verdade oculta, que a narrativa deixa apenas vislumbrar.

    Fernanda Botelho parece sugerir-nos a imagem alegórica desse enigma num dos seus motivos recorrentes a que voltaremos adiante: o gato, ou a gata. “Aqui há gato”, parece evidenciar-se quando uma história começa. E, à entidade abstracta que vive pela história, enquanto há história, compete deixar-lhe o rabo de fora…

    O ângulo raso, primeiro romance (1957) de Fernanda Botelho.

    Assim, quando, neste seu último romance, se enuncia a primeira história que inclui a história (autodiegética) da sua narradora preparando-se para encontrar a situação em que as histórias se enunciam, no lazer, no retiro, percebemos que, no limite da insignificância, as moscas – incómodas companheiras que assolam a casa de campo da professora de Filosofia que se retira para deixar a sua vida quotidiana – figuram a própria dramaticidade do amor na morte. É a partir da morte do casal de moscas que se evoca Mayerling, Romeu e Julieta, as grandes narrativas fundadoras da Bíblia e se esboça um rápido panorama, na fieira das lendas, das origens e das grandes linhagens muçulmanas, como as Mil e Uma Noites.

    Não há outro assunto que anime as três amigas que, logo após a leitura desse começo de história, discutem os dados que a compõem, e os fundamentos em que assente. Essas três amigas discutem o embrião narrativo que a mais velha, Ana, esboçou. E propõem-se ajudá-la a completá-lo e aperfeiçoá-lo.    

    Assim, fica claro que a intriga vivida pelas figuras fundadoras do romanesco neste romance só avança, à maneira das personagens da tradição de que vimos falando, quando as suas histórias avançam. E as personagens vão-se definindo conforme o seu saber se vai tecendo em volta das histórias. Os grandes temas surgem: o pecado original; as referências culturais emergem: Sem olhos em gaza. E, algo artificialmente, os caracteres das contadoras são rotulados: uma é nefelibata, outra é apotegmática e uma terceira ninfomaníaca, embora nunca se decida muito claramente qual é o quê.

    Feito o desafio da primeira história, só existe uma alternativa para as compulsivas amigas continuarem a conviver, o que, no modelo colectivo em que se colocam, só pode ter uma tradução: continuar em cena romanesca. Continuarem a conviver é o lema desta sobrevivência fabulosa. “O acto de contar nunca é, em As mil e uma noites, um acto transparente; ao contrário, é ele que faz avançar a acção” afirma ainda Todorov (1971: 85): assim, se continuarmos a acompanhar a sua compreensão do grande modelo dessa tradição, percebemos como o corolário dessa verificação se aplica a este romance, que parece apurar-se no acolhimento de tais matrizes milenárias, segundo as quais “contar é igual a viver, tal como acontecia com Xerazade que vive unicamente na medida em que pode continuar a contar” (Todorov, 1971: 85).

    Mas Fernanda Botelho acrescenta um elemento fundamental a essa formulação, acolhendo, junto com a primeira, uma segunda tradição: a história de amor romanesca vista pelo olhar feminino. Continuarem a viver, para as três heroínas fundadoras do acto de contar, é contar histórias de amor, fazendo variar, por vezes em continuações alternativas, as intrigas em que dominam heroínas envolvidas em relações amorosas.

    Várias tradições se conjugam, dentro desse filão: o amor que se anuncia em todas as dimensões da natureza, como na primeira história, a provinciana que vem para a cidade (o Porto, na segunda história, a que é contada por Eva) onde faz o liceu, a mulher que nunca é amada e não encontra o amor (terceira história), a menina feia com quem a bela mãe compete (quarta história) e a mulher que é “esquecida” pelo marido (quinta história).

    A gata e a fábula venceu o Prémio Camilo Castelo Branco, da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1961.

    Na segunda história, que é a que observaremos agora, a heroína, quanto termina o secundário e vai para Coimbra, conhece o assédio de um jovem com jeitos de poeta a perturbar-lhe a vocação de reclusão mística. Oscilando entre uma coqueteria fascinada pelo discurso amoroso e um desinteresse (não menos coquete) pelo contacto erótico, a jovem provinciana foge de Coimbra e regressa à vila natal, pronta a entrar para um convento.

    Deste desfecho abrupto queixam-se as outras contadoras. Por isso decidem outros finais. Esses encerramentos alternativos remetem para novas perspectivas da condição feminina, ou para delineamentos do feminino que, na perspectiva aqui desenvolvida até ao traço extremo, se aproximam do caricatural – e da quase narrativa em tons de paródia.

    Quando discutem o segundo final, que pressupõe a condição matrimonial acomodada da heroína, emerge o modelo matricial de que as histórias são a decorrência. Se, por detrás de tais figuras, aparecem os arquétipos já mitológicos do romanesco romântico, e muito em especial o de Camilo, a verdade que, nesta pequena súmula estão também presentes as reformulações bem do século XX que Fernanda Botelho lhes deu em romances anteriores, num ciclo que, de algum modo, se fecha em A gata e a fábula.

    Ao propor a terceira versão, Isa, a contadora que ainda não tinha contado pronuncia-se:

    Preparem-se meninas. Mas o meu final não começa com o beijo lambido, começa com o casamento. É perder tempo, mas enfim… Vocês acham mesmo que vamos convencer um editor para estas histórias contadas? Sou preguiçosa por natureza, não quero perder tempo com… com coisas que não servem para nada. – Volta-se para Eva: – Já falaste com o teu marido? Achas que ele…? / – Olha, se queres que te diga, há já algum tempo que não lhe ponho os olhos em cima. Horas desencontradas e quartos individuais. Da última vez que o vi, ele estava cheio de ternuras platónicas e requintadas cortesias em relação à minha modesta pessoa. Deve haver gado novo” (p. 39)    

    De facto, à encenação enunciativa do acto de contar história, a intriga amorosa acrescenta um modelo renovado da relação homem mulher e dos vectores de poder: por detrás da necessidade de sobrevivência não está a ameaça do Califa, mas está a do editor – e, ao que tudo indica, o marido de uma delas será o que detém esse poder. De algum modo, é um novo sistema de determinação, regendo o acto de circulação da narrativa, que transparece nos meandros míticos da fábula actualizada.

    Como sugere Darlene Sadlier, na análise que faz de Xerazade e os outros (de um ponto de vista que nos parece, em grande parte, de acordo com aquele que se pode aplicar, quase sempre, a este romance) “o contar histórias, como a atracção feminina, é vista como qualquer coisa de maldito – uma condição imposta às mulheres que têm de fabricar ficções, destinadas às audiências masculinas, para poderem sobreviver” (Sadlier, 1989: 26). No entanto, devemos aqui acrescentar à justa observação que acabámos de citar o seguinte: os termos em que é feita essa equação desenvolvem-se, neste romance, num modelo muito mais paródico do que aquele que subjazia ao romance anterior citado. Já não é a tragédia que se entretece na trama do romance a reconfigurar, como encenação, o mal-estar dos laços de poder e de dependência, para “revelar a infeliz condição da mulher” (Sadlier, 1989: 27). Aliás, o terceiro final da segunda história, o de Isa, é bem sugestivo quanto à possibilidade de, pela sapiência (filosófica) e pela sabedoria (vivencial), a mulher se libertar e viver, mesmo na hipocrisia do inconfessável adultério, a felicidade erótica.

    Xerazade e os outros, publicado em 1964, é um dos mais conhecidos romances de Fernanda Botelho.

    Poderíamos estar aqui perante uma hipótese leibeniziana de três futuros possíveis envolvendo, cada um, um modelo de verdade, o que tiraria todo o tom trágico, ou mesmo dramático, à condição feminina. No fundo, cada personagem habita, nos possíveis que lhe são anunciados, a alternativa que cabe à sua construção de verdade. A dúvida está sempre em saber se a escolha cabe à personagem ou à contadora de histórias. Porque, na lógica que decorre da leibeniziana (cf Deleuze, 1985:170-171), se o futuro alberga possíveis, o passado só existe pelas histórias que se contam. E talvez o sistema de verdade que Fernanda Botelho enuncia se envolva, no limite, no labirinto dessa construção, bifurcando o universo em duas vertentes: uma, eminentemente feminina, de tecer histórias; outra, masculina, de as apreciar e valorizar. O que são, muito mais, possíveis de vivência, determinações de uma Teodiceia construída pelo poder e pela cultura, do que traços sexuais marcando duas ontologias – a do homem e a da mulher.

    A terceira história, aliás, desenvolve de modo algo surpreendente essa hipótese, colocando-nos em presença de uma heroína contadora de histórias – a história é de Ana e, mais uma vez, autodiegética – que se depara com uma situação faustiana a que se submete.

    A intriga não tem continuidade, termina abruptamente, pelo vazio criado pelo encontro com o diabo, mas é muito ilustrativa do processo de distorção dos mitos que Fernanda Botelho usa com alguma assiduidade: o “ser chifrudo” (modo curioso de designar o ser masculino com poder, no contexto) promete a conservação de estado físico e a morte sem dor da narradora. Em troca pede-lhe dois favores: cinco anos da vida dela, a serem usufruídos por ele, e a inclusão da sua pessoa numa história. É claro que o último pedido é inevitável para a história existir – pois já lá está. Mas, na verdade, também tempo de posteridade dado à personagem já está entregue, antecipadamente, como o alento de que toda a história é feita: quando a história acaba, a narradora “morre”, mas a personagem continua viva. O curioso é que também a narradora se mantém viva enquanto dura a história, para lá do negociado, e cada vez que se retoma o acto de contar/ ler, como se descobre aqui, na aritmética da fantasia. E, também, facto de nota, nela se revela a heroína narradora senhora da sua própria morte, porque só sai quando termina a história e não quando “conta” que morreu.

    Em consequência, tal narrativa, tal conversa: o diálogo em que se comenta e aprecia a história arrasta as contadoras para uma conversa interventiva e crítica sobre o mundo de hoje, atenta sobretudo aos poderes do discurso – muito especialmente a comunicação de massas e, nesta, em especial a televisão, com particular incidência no discurso publicitário. No fundo, o que emerge já não é o masculino, como centro do poder, mas o sistema, o “grande irmão que tudo vê e tudo diz”.

    Se encontramos aqui o “papel do escritor encarado com ironia”, já não nos parece tanto que isso decorra de uma “mascarada dramática governada pela lei patriarcal” como sustenta Darlene Sadlier (1989: 35) acerca de Xerazade e os outros. Parece-nos, antes, que Fernanda Botelho se retira, em continuidade do que já acontecia desde Esta noite sonhei com Breugel, para a distância irónica “da escrita hipotética de um livro que se inscreve no texto lado a lado com o acto de escrita da narrativa, numa espécie de jogo entre a fantasia e a realidade” (Isabel Allegro de Magalhães, 1995: 40-41). Talvez, com a entrada em cena do “editor”, distante e quase inacessível figura do “marido” de uma das contadoras-escritoras, se tenha aberto um novo nível da relação (ou do diálogo) entre as personagens que se arrumam como títeres no drama dos poderes, e aqueles que os fazem mover-se.

    Não mudam os argumentos e, em parte, os cenários, como se verá na quarta história, de uma menina feia (não muito, mas assim-assim) que compete pelo seu amor com a sua mãe. O que se estabelece é uma nova perspectiva da profundidade no campo onde as relações se processam. Aparentemente, atrás de cada cena há bastidores onde se localizam os que fazem mover as personagens do plano que o precede: assim, uns regem as personagens do drama “vivencial” do primeiro plano – são os contadores; nos bastidores dos contadores ou narradores cénicos estão os que escrevem; e nos bastidores destes estão os que publicam.

    A este esquema, com níveis que tendem a entender-se como isolados, Fernanda Botelho estende uma armadilha enunciativa: a mistura e a entrada em diálogo dos agentes de todas as cenas e de todos os bastidores. As histórias contadas têm os temas que as contadoras usam para discutir os problemas do mundo; as contadoras são, ao mesmo tempo, a(s) escritora(s); e o marido todo poderoso de uma das contadoras não é um Califa que se limita a escutar (ou ler), pois tem a magia de ser  ele próprio o editor –  eventualmente, de livros e de um jornal…o que nos deixa em aberto um espaço que o romance não explora: o da difusão da opinião, mesmo sobre os livros.

    Esta noite sonhei com Brueghel, publicado em 1987, interrompe um longo período (17 anos) de Fernanda Botelho sem qualquer obra.

    Com a quarta história, é a ganga do romance familiar, tal como ele foi desenvolvido por um certo realismo de pós-guerra, inclusivamente pela própria Fernanda Botelho, que é posto em causa, pela paródia que resulta do esquematismo dos seus termos. Passa-se daquilo que para os críticos da época encontravam na autora, como “denúncia da frustração e da solidão humanas” ou mesmo uma “ética desmistificadamente burguesa, que é o complemento inintencional do neo-realismo” (Saraiva e Lopes, 1996: 1102), para a situação burlesca da Menina Feia, enveredando a história pela pintura do quadro existencial de heroína, que incluía

    “desproporções (..), ausências de harmonia, como a que se verificava, e era bem visível a olhares mesmo desprevenidos, entre o pai e a mãe nada feitos um para o outro: Eram pessoas reais, a mãe e o pai, mas mais pareciam potenciais personagens de um melodrama oitocentista ou de um romanesco de cordel, configurando uma situação assaz explorada pelos comerciais de cliché” (F. Botelho: 1998: 63)

    O cenário do passado, configurador do destino da Menina Feia, desenvolve-se segundo quatro ou cinco “poses” da vida dos pais: o Pai, ex-marialva, decide-se a casar com uma jovem ingénua (Primorzinho) passando à pacatice recolhida da meia-idade. A mãe, pequeno-burguesa ascendida a senhora de solar, pactua com a governanta que, entretanto, contratam, gerando um triângulo de poder, em que as mulheres se aliam contra o senhor da casa: a prefiguração explicitada pela narradora é a do modelo romanesco da Rebecca (referência evidente à personagem que dá nome ao romance de Du Maurier e ao filme de Hitchcock).

    É no desprezo que a mãe castradora (e esposa infiel, aliás) – que lhe inibe, inclusive, a vocação para a escrita – que a personagem cresce. Entra no meio estudantil, vai a Paris, conhece, na festa de anos de uma das suas colegas, modelo de sedução feminina que ela vai imitando, um belo jovem sedutor, namora com ele, algo às escondidas da mãe, e prepara-se para casar com ele.

    É a partir desse momento que a situação se complica dramaticamente, pois a Menina Feia descobre que, entretanto, a mão lhe seduzira o noivo e andava numa cálida relação de cama com ele. Primeiro reage emocionalmente, zanga-se com a mãe, tem mesmo um confronto com o marido, já depois de casados, mas, no final, tudo volta à paz consentida, resolvendo-se o convívio do casal num entendimento de domínio patriarcal moderno, com uma aparente liberdade social da “mulher”, que se traduz pelo bom comportamento resignado da “esposa”, sem histórias nem desejos.

    As considerações que tecem sobre o modelo moderno dessa vivência em casal, apresentada na quarta história, leva as três contadoras a proporem mais uma história que é contada, em quatro partes, por duas delas, Isa e Ana. Desta vez, a complexidade do fio narrativo aponta para um conjunto de situações que mistura o conto fantástico, a história de cordel do romance familiar e o romance realista de costumes: o enjeitamento, a vida economicamente débil, o convívio com as crenças populares mais obscurantistas e a própria magia cruzam-se numa narrativa que, em tudo, parece ser oriunda do universo de vivência da principal contadora desta história, Isa, ou de uma personagem “real” do conhecimento dessa contadora. O que nos leva a pensar isso é o facto de, nas referências que a narradora faz, se evidenciem vários elementos que coincidem com a contadora que seria a “autora” dessa história (facto que, com menos persistência, já era notório na primeira história): o interesse pela filosofia, a situação universitária, a opinião sobre o casamento.

    Uma nota curiosa é o facto de o processo das Mil e uma noites se tornar mais evidente aqui: cada uma das personagens da história conta a sua própria história, ao ponto de se confundir, muitas vezes, a personagem a que pertence a voz autodiegética do primeiro nível com as personagens que ela própria põe em cena a contar. Mas o efeito mais impressionante é o que resulta de a vida e o “mistério” que rodeia cada uma das vidas, como uma aura, emergir como história contada, rodeada dos seus enigmas provocados por silêncios, omissões ou elipses – que geram novas sugestões que apontam para novos mistérios.

    Dramaticamente vestida de negro foi o penúltimo romance de Fernanda Botelho, com o qual venceu o Prémio PEN Clube Português de Narrativa em 1995.

    De algum modo, esta história, pelo tom labiríntico dos percursos femininos que apresenta, pode considerar-se central para a introdução do sistema cénico que acaba por se revelar: o de que, em cada uma das histórias contadas está, como alibi ou como adivinha, uma parte das vidas de uma das contadoras, ficando sugerido, nas entrelinhas das próprias histórias, estar representada, também, a situação vivencial do seu convívio como autoras. Por exemplo, no remate da sequência de eventos contados pela Jovial Mamãzinha, a narradora que narra o que a outra narra, ao dar-lhe, por vezes, a palavra, simula situar-se numa relação com uma Amiga com a qual se abre, contando como essa amiga a convida, e a uma outra, para irem jantar a casa dela.

    Nesse serão, projecta a anfitriã apresentar o marido a ambas e sugere que a narradora da quinta história se deixe seduzir e vá para a cama com ele. Ora, tal ideia empolga a narradora. Na conversa que se segue à história contada, as contadoras de histórias reagem de modo comprometido:

    “Ana diz:/ – Um tanto prolixo mas realista/ (Eva, pelo que se deduz) Confesso que gostei muito do empolgamento final com que a narradora aceita o desafio. (…)/Isa (que contou esta primeira parte da quinta história) interrompe: – É conveniente ver tudo isto a uma luz despersonalizada. Estamos a contar histórias, não autobiografias./(…)./ – Bem, meninas (diz Eva), o nosso jantar é, se estiverem de acordo, na próxima terça-feira. Vão conhecer o meu marido, portem-se bem. É ele quem vai editar as nossas histórias, embora ainda não saiba “ (F. Botelho, 1998: 121).

    Estamos longe, como se vê, das “personagens autênticas, humanas, que a autora, com corajosa sinceridade, põe a falar para nós”, na esteira da geração da Presença, como afirmou, acerca de Ângulo raso, Manuel Poppe (1982: 113). Estamos no universo da insinceridade, da ambiguidade, das propostas equívocas, das coincidências fabulosas, das histórias contadas que enleiam as contadoras, como gestos de magia. A fidelidade não parece ser uma virtude, a constância é um tédio e a sinceridade impossível.

    Para apanhar o fio das vidas, possíveis e impossíveis, os mundos alternativos tecidos dos passados hipotéticos para os futuros duvidosos, é preciso tecer as histórias, deixar-se envolver por elas. E, para poder publicar as histórias, como se percebe do seguimento da conversa de que citámos apenas um bocado, é preciso seduzir um homem, acariciando-lhe a gata chamada Anilina – a qual, segundo a esposa, muito se assemelha à que deveria possuir uma certa senhora com quem ela tinha visto o marido, pouco tempo antes, em efusiva despedida. Nesta associação, do anil à mulher, através do nome da gata, vemos como a efabulação se constrói e rumina (ou germina!) no romanesco de Fernanda Botelho.

    E, já que a questão é mais uma vez a enigmática gata, que atravessa o universo romanesco da autora, detenhamo-nos um pouco nela.  O primeiro momento em que a vemos surgir, em configuração forte, é num romance já bem antigo da autora, A gata e a fábula. Já nessa altura, talvez para desespero de quem encarava a ficção da autora nos labirintos angulares da sinceridade, a fábula toma a gata como enigma sinuoso, longe das directas representações expressivas, ou mesmo das determinações articuladas do simbólico.

    A imagem surge com toda a força ambígua da parábola de sentido indeterminado, nos jogos de sombra. Toda a memória acerca da mulher, como enigma, surge por detrás da gata, sombra na noite com que a personagem Duarte Henrique de A Gata e a fábula se debate: “Os olhos enormes e tão vivos pareciam ter absorvido todo o negrume do inferno prometido; ao fixá-lo – despojo inerte e miserável – eriçava-se o pelo do Inimigo e, do rasgão que lhe servia de boca, saíam uns uivos roucos (…)” (1960: 64). Logo de seguida é a imagem da mulher, como susto, que o atormente, indistintamente, intermitentemente humana e felina, numa vacilação de imagens intercambiantes: “Henriqueta evolou-se. Henriqueta fugiu. A gata voltou a fixá-lo, ávida. Depois, rosnando, afastou-se. Mas Henriqueta já desaparecera e era agora a Gata que o fixava, ávida e provocante.

    Em Janeiro a gata procurara o menino bom” (p. 67). Mas é no sistema das relações em que interfere que a gata parece assumir a mais densa e enigmática significação, surgindo como ocorrência de todas as mulheres, no seu versátil movimento terrestre, como se a carne fosse, nelas, força envolvente, simultaneamente corpórea e etérea: “Enrosca-se ainda mais, aliciante; o menino bom reduz-se, medroso; e, enquanto a gata se enrosca cada vez mais, cada vez mais ele se vai reduzindo” (p. 68). E a fábula surge como narrativa onde a fantasia se torna fantasma: Paulinha ri em surdina, sem contenção. A gata é já ratoeira e o ratinho repudia-a” (p. 68).

    Gritos da minha dança, última obra de Fernanda Botelho, publicada originalmente em 2003, e reeditada em 2020 pela Abysmo.

    Poderíamos, tal como o perspectivaram alguns críticos do seu tempo, encarar um tal devaneio (que até ocorre num momento de embriaguez da personagem), simplesmente como um modo de operar a “radiografia psicológica” da sua geração, como, lapidarmente, propõe Poppe: “As personagens de Fernanda Botelho traduzem hesitações, dúvidas, angústias, dificuldades em crescer(…).” (1982:113). Mas o certo é que a recorrência de tal motivo, retomado em muitas das suas histórias, com curiosas ambivalências (em Xerazade…, por exemplo, o gato da “Velha que tinha um gato”, é macho e chama-se Saturno) levanta-nos dúvidas quanto ao estatuto que tem tal motivo, o qual, provisoriamente, adjectivaríamos como errático. É com tal atributo que o motivo percorre a obra e surge, mais uma vez (aliás, duas: no nível diegético das narradoras e como metáfora da relação amorosa na segunda história), em As contadoras de histórias.

    Não é fácil dizer porque é que a gata surge no meio das cenas finais das contadoras, qual é exactamente o seu estatuto – mas o certo é que o animal se vai tornar o propiciador do favor editorial. Mais uma vez, a sua ambivalência é curiosa: por um lado representa a mulher, a “anilada” (traduzindo o – vulgo: “platinada”) mas é a metonímia do homem: animal heráldico, quase, no modo como o escolta – ou escuda, uma vez que o “marido” o traz ao colo.

    Devemos notar que quando colocamos o marido entre comas estamos a tentar especificar uma operação de duplicação diegética: se o marido que a contadora dizia que devia ser seduzido através da gata era o seu (primeira instância diegética), o marido que surge textualmente primeiro, com uma gata ao colo, é da Amiga anfitriã do Primeiro Prolongamento da Quinta História, contado por Isa: “Ele traz um felino ao colo e um sorriso nos lábios” (p.132). O sexo do bicho não é logo definido, o que introduz uma cadeia de equívocos. Mas é a felinidade que importa:

     “Demorado nos gestos e no caminhar, no acariciar o lombo do felino e no estender a mão para o cumprimento, quando a Amiga no-lo apresenta (…). E ali começo a afagar o bichinho, que era aliás uma bichinha, uma coisa felpuda e arisca, olhar inamistoso. O olhar do dono esse não, é aveludado como lombo da gata quando lhe passo a mão por cima (do lombo, claro)” – p.133       

    As qualidades felinas, se nos aparecem quase como essências do feminino, permutam-se com as do dono. Não parece poder estabelecer-se uma simbologia com modelos remissivos estabilizados. Antes se podem perceber as vacilações dos atributos oscilantes, uma espécie de valores proteiformes que emanariam de uma felinidade cósmica, associáveis, na maioria dos casos, a modos de estar muito gerais, constituintes de uma esfera em que o etéreo se confunde com a mais profunda materialidade, em que a espiritualidade se faz sentir sobretudo pelos movimentos voluptuosos da carne. A felinidade, em Fernanda Botelho, parece partilhar das qualidades  que Baudelaire evoca no seu célebre soneto « Les Chats»: “Amis de la science et de la volupté,/ ils cherchent le silence et l´horreur des ténèbres;/(…)Ils prennent en songeant les nobles attitudes/des grands sphinx allongés au fond des solitudes,/ qui semblent s´endormir dans un rêve sans fin ».

    Em grande parte, parece-nos passar por aí a formulação da enigmática felinidade. De acordo com Jakobson e Lévi Strauss, “nesse soneto, todas as personagens são do género masculino, mas os gatos e os seus alter ego, as grandes esfinges, participam de uma natureza andrógina” (Jakobson, 1973: 418). Consideram os mesmos autores que no texto de Baudelaire que citámos acima, “os gatos permitem, através da sua mediação, eliminar a mulher, deixando, face a face – ou até mesmo confundidos – «o poeta dos Chats», liberto do amor «muito restrito», e o universo, libertado da austeridade do sábio” (1973: 419). Se invertêssemos, simetricamente, o lugar do homem e o da mulher – ou seja, no lugar do poeta colocássemos a(s) contadora(s) – poderíamos dizer que o enunciado se aplicaria quase integralmente ao motivo obsessivo e itinerante ou errático de Fernanda Botelho.

    Mas também poderíamos alegar, observando a fecundidade do imaginário que envolve os felinos fabulosos da romancista portuguesa, que a herança baudelairiana foi absorvida e enriquecida por ela. Numa dimensão de presságio trágico, de múltiplas e complexas radicações simbólicas, em torno duma fixação de pesadelo do “protagonista” em Lourenço é nome de jogral, os gatos negros aparecem “de todas as idades, de todos os tamanhos, mortos na sua maioria, alguns moribundos, (…) estripados alguns” (1971: 75). Um tal massacre leva um amigo de Lourenço a perguntar-lhe que interpretação dá ele a isso, adiantando um sumário das possíveis virtualidades simbólicas:

    Casa onde viveu Fernanda Botelho na localidade de Vermelha, no concelho do Cadaval, foi transformada em casa-museu, por iniciativa da Associação Gritos da Minha Dança e de Joana Botelho, neta da escritora.

    “«O gato, que é felino e negro, representa um enviado de Satanás. A manha, a bajulação, o olhar fulgurante e perverso, a traição… Digamos que o gato – negro e felino – surge como a força do mal, disfarçado em veludo, para que melhor sucumbamos ao seu fascínio. Mas o gato – negro, felino e força do mal – é um animal doméstico; quer dizer, ao coabitar com o homem adapta-se à civilização e torna-se aparentemente respeitável. E será a crueldade exercida sobre essa aparência que nos parecerá chocante. Podemos agora considerar o gato como simples vítima…»” (p. 76)        

    É claro que Lourenço interrompe a definição, para dizer “«Não creio que seja nada disso»” – no entanto alguns itens estão lançados como possíveis redutos semânticos que sempre emergem em torno da imagem dos felinos: a felinidade, “a manha, a bajulação, o olhar fulgurante e perverso, a traição, o disfarce de veludo para que melhor sucumbamos ao seu fascínio”. O que resta saber é se o chocante no massacre é, de facto, ele exercer-se sobre a “aparência respeitável”. Ou, ao contrário, se a emergência do gato não arrasta toda a região do indizível, do culturalmente impronunciável:  o que se diz, para esconjuro, ser o mal,e que se revela, por sob os enleios da volúpia, a omnipresença da carne – e que o chocante seja exactamente reprimir uma tal dimensão do humano.

    Por outro lado, o ritual da felinidade, parece afirmar-nos com maior convicção e dimensão paródica As contadoras de histórias, não é mais, afinal, do que a entrada em cena do Eros e dos enleios da sedução, para estender ao universo dos poderes (os negócios) os benefícios dos prazeres (dos ócios). Como as gatas das fábulas sempre vaticinam, para lá dos deleites do corpo e do espírito estão as infernais sinuosidades do desejo irrefreável.

    Ora, é dessa marginalidade, relativamente à dimensão cultural domesticada, que os felinos – e a felinidade – adquirem o poder de ultrapassar barreiras, mesmo as mais complexas e irredutíveis: se surgem no “real”, sugerem o fantástico; quando aí se formulam, tornam-se fabulosos; dentro de uma fábula passam para outra – e, dentro da fábula que contem todas as fábulas, como acontece em As contadoras de histórias, permitem que a ficção escrita passe ao estado de publicada.

    Interior da casa onde viveu Fernda Botelho, agora casa-museu com o seu nome.

    Em última análise, os felinos são os propiciadores do contacto entre o acto poético e o real que o inscreve e, ao que parece, transitam de um plano para outro, com toda a ligeireza. Se eles não representam os factos do acto poético e criativo tal como se passam na realidade e na ficção que se quer fiel à representação do real – representam, pelo menos, com extrema feli-cidade, todo o complexo anelo do acto poético: gerar o imaginário e o fantástico e transmiti-lo.

    Por outro lado, e para terminar, não podemos deixar de pensar nesta felinidade errática presente em tantos pontos da obra da autora, sem que nos venham ao espírito dois ditos. Um é: “gato escondido com o rabo de fora”. O outro conhecemo-lo enunciado em italiano: “questa coda non è de questo gatto”. O curioso é que se um fala da suspeita de uma presença, anunciada por um atributo difícil de esconder, o outro fala de um desajuste entre o que é atribuído como complemento presumível e o que se tem como certo que seria seu atributo – mas não é. A nossa tentação é ver neste assinalar-se esconder-se do gato, o terrível evidenciar-se e esconder-se da autora…ou o seu esvanecer-se como o gato de Cheshire, inventado pelo reverendo Dodgeson, e que tanta perplexidade causava a Alice.

    Mas deixamos a continuação de tais conjecturas ao leitor, uma vez que já o alertámos para tais meandros. Insistir seria, talvez, contraproducente, pois como diz outro ditado – gato escaldado de água fria tem medo.Porque é verdade, também, que, quando há gato, começam os provérbios. Quase diríamos que, realmente, eles surgem como erva daninha, por vezes do nada e até sem querer. E o crítico arrisca-se a ficar sentencioso.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia passiva:

    Carmo, José Palla, 1971, Do livro à leitura, Europa-América, Lisboa

    Deleuze, 1985, La logique du sens, UGE/col 10/18, Paris

    Jakobson, Roman, 1973, Questions de poétique, Seuil, Paris

    Magalhães, Isabel Alegro de, 1995, O sexo dos textos, Caminho, Lisboa

    Popp, Manuel, 1982, Temas de literatura viva, IN/CM, Lisboa

    Sadlier, Darlene J., 1989, The Question of How – women writers and new portuguese literature, Greenwood, New York/London

    Saraiva, A. J. e Óscar Lopes, 1996 (17ª edição) História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Todorov, Tzvetan, 1971, Poétique de la prose, Seuil, Paris

    Bibliografia activa:  ver nota 1


    [1] Embora não seja nosso propósito tratar aqui toda a obra da autora e, além do seu último romance, apenas refiramos brevemente um ou outro aspecto pontual de outras obras, de acordo com a conveniência da nossa exposição, aqui deixamos, como referência, pretendendo apenas actualizar dados para o leitor menos prevenido, a lista das obras da autora que nos foi possível apurar: As coordenadas líricas (poesia), Távola Redonda,  Lisboa, 1951; O enigma das sete alíneas (novela), Graal nº 1, Lisboa, 1956; O ângulo raso (romance), Bertrand, Lisboa, 1957; Calendário privado (romance), Bertrand, Lisboa, 1958; A gata e a fábula (romance), Bertrand, Lisboa, 1960; Xerazade e os outros (romance), Bertrand, Lisboa, 1964; Terra sem música (romance), Bertrand, Lisboa, 1969; Lourenço é nome de jogral (romance), Bertrand, 1971; Esta noite sonhei com Brueghel,  (romance),  Contexto, Lisboa,  1987;  Festa em casa de Flores (romance), Contexto,  Lisboa, 1990;  Dramaticamente vestida de negro (romance), Contexto,  Lisboa 1994; e As contadoras de histórias (romance), Presença, Lisboa, 1998      

  • Os comics: da strip ao book

    Os comics: da strip ao book


    Observemos um dos processos básicos da criação da banda desenhada a partir das suas formas mais simples que deram origem ao termo mais universalmente adoptado no mundo para a designação desta forma gráfico-narrativa: comic ou comic strip, como os americanos lhe chamaram no momento inaugural em que ela era usada e difundida em tiras nos jornais.

    No fundo, segundo Jolles (1972), trata-se de um embrião mítico, de acordo com o qual o “homem pede ao universo e aos seus fenómenos que se deixem compreender” (1972: 81) ou enigmático, que ele entende ser com a forma que “apresenta a questão” à qual o “mito ‘dá’ a resposta” (1972: 105). No sentido que Jolles dá a estes termos, eles são apresentados de tal modo que o cómico desponta no desenlace e na revelação típicos do conto, no qual “um facto ou um incidente chocam de tal maneira que que temos a impressão de um acontecimento real e que esse incidente nos parece, por si só, mais importante do que as personagens que o vivem” (1972:183).

    person holding opened book

    Contudo, no caso do cómico surgem ligados ao riso ou mesmo à paródia sob forma de uma reviravolta ou peripécia que altera o curso dos acontecimentos, de maneira inesperada, e modifica o sentido da acção agir das personagens.

    No exemplo apresentado acima, podemos entender a sua produção de comicidade acompanhando a proposta de Charles Mauron, referente ao riso e à sua relação com uma situação, ou seja, ao modo como se processa a “diferença de potencial entre duas representações.

    A primeira é a visão prevista como provável do que se seguirá, segundo a vamos construindo, em cada minuto, mais ou menos consciente e que tende sempre a formar-se e preside à nossa atitude” (1998: 20). Assim aparecem, na gravura as evocações relacionadas com um projecto (o apetite), emblematicamente evocado nas gravuras do cabeçalho, de um adolescente com a mãe, à esquerda, e um jovem com a namorada ou noiva, à direita, que fazem escolhas em listas, que podem fazer parte de sonhos ou fantasias.

    As imagens inferiores vão fazendo o mesmo uso do projecto, em fases de duas filas de dois quadrados cada, com “a visão prevista” relativa à vontade de comer. A primeira série é, em si mesma a revelação do final feliz daquilo que Danny pensa, ou como diria Mauron, “está carregada de afectos a formarem-se, mas faz-se acompanhar também de uma certa estimativa do esforço para adaptar-se à nova realidade” (1998: 20), o que é evidente na figura inchada que se vêm objecto de admiração na sua rotundidade ─ a qual, pelo exagero acaba por lançar a suspeita dos inconvenientes não considerados.

    Convenhamos, com o autor que aqui acompanhamos, que “esta espécie de previsão implica uma mobilização da atenção, do interesse e, em geral da energia psíquica disponível de forma imediata” e que, “uma representação deste tipo se forma, embora de modo mais vago, no nosso espírito quando consideramos como exemplo o que se passa com os outros” (1998: 20)

    Os quadradinhos desenhados do comic, apresentam a representação da personagem mas, em simultâneo oferecem-se-nos como representações, e, neste caso, o “acontecimento real” que seria a confrontação do nosso devaneio com o real que se nos oferecesse, aparece como representação “da estimativa” da personagem, que aparece a corrigir o devaneio, e revelando-se como o seu contrário, ao apreserntar a tremenda indisposição de Danny depois de comer com sofreguidão a refeição real que conseguiu obter. (cf. Mauron, 1998: 20-21) 

    No entanto, o entendimento do cómico como aspecto do chiste (a que Eça, frequentemente, se referia como pilhéria,[1] mas que poderíamos traduzir por facécia, em gosto mais clássico, evocando a facetia) cuja a melhor tradução para o termo freudiano witz, que deve estar na origem do termo inglês wit, com o qual o cómico, nos comics, acaba por se entrosar de modo quase inextricável, parece-nos de ponderar. Como diz o fundador da psicanálise:

    “Parece-nos que os chistes, ordinariamente considerados como uma subespécie de cómico, oferecem-nos bastante peculiaridades para serem atacados diretamente; assim evitamos sua relação com a categoria, mais inclusiva, do cômico, enquanto isso foi possível, embora não tenhamos deixado de colher, en passant, algumas sugestões que podem lançar luz sobre o cômico”. (1969: 177)

    A nossa ideia, neste ponto, é que o cómico, podendo apresentar dimensões onde o mecanismo da revelação súbita possa parecer independente, acaba por denunciar, em muitas características o trabalhar do dinamismo do chiste. Regressando ainda a Freud, vejamos: “o cómico comporta-se diferentemente dos chistes. Pode contentar-se com duas pessoas: “a primeira que constata o cómico e a segunda, em quem se constata. A terceira pessoa, a quem se conta a coisa cómica, intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (1969: 277).

    Ora, esta “terceira pessoa”, no funcionamento dos processos artísticos, performativos e de representação é aquela a quem o procedimento do cómico se destina e, o efeito, como acto poético, se comunica, “é indispensável para a completação do processo de produção de prazer” (277).

    woman in black, blue, and red shirt lying on surface while reading magazine

    Assim a terceira pessoa, no caso das produções poéticas, que se apresentam como integráveis no género cómico, ou fazendo parte da criação mais recente e afeita ao gosto popular, toma o lugar de leitor, espectador ou visualizador, uma vez que “a segunda pessoa do chiste”, está no lugar da entidade ficcionalizada,  já que nos chistes, jocosidade ou trocadilho  a segunda pessoa pode estar ausente, “excepto quando se trata de um chiste tendencioso, agressivo” (1969: 277) podendo nós encontrar casos limites fronteiriços dessa utilização em discursos poéticos como as cantigas de escárnio e maldizer, ou nas diatribes de cuidadosa elaboração retórica “Um chiste produz-se, o cómico constata-se ─ antes de tudo, nas pessoas; apenas por uma transferência subsequente, nas coisas, situações etc.” (1969: 277). Ora, ainda segundo Freud, no mesmo texto:

    “O tipo de cômico mais próximo dos chistes é o ingénuo. Como o cómico em geral, o (cómico) ingénuo é ‘constatado’ e não ‘produzido’, como o chiste. De facto, o ingênuo não pode absolutamente ser confeccionado, enquanto no interior do cómico puro devemos levar em conta o caso em que alguma coisa é tornada cómica – a evocação do cómico. O ingénuo deve originar-se, sem que tomemos parte nisso, nos comentários e atitudes de outras pessoas, que assumem a posição da segunda pessoa no cómico ou nos chistes” (1969: 279).

    Não é preciso um grande esforço para o ver aparecer na comic strip que se segue, Mutt & Jeff  de Al Smith, na linha herdada de Bud Ficher em que um ponto de vista perfeitamente infantil, acerca do peixe dourado de aquário como mecanismo de agitação do líquido  para dissolver o açúcar. O gesto, na sua inverosimilhança, é bem ilustrativo de como a lógica infantil prevalece, sobre a dos adultos que a praticam e aceitam.

    books on black wooden shelf

    Alguns estudiosos, na cultura anglo-americana,  consideram esta última nuance central, no chiste, designando o fenómeno por wit, que pode significar “inteligência” mas, com mais pertinência, “ingenuidade” ou “raciocínio rápido” ou seja desde a “divertida inteligência verbal” até à capacidade de “invenção” (a ‘inventio’ da sabedoria retórica) através da qual “os escritores podem descobrir apropriadas figuras e conceitos, na percepção e compreensão de semelhanças entre coisas aparentemente dissemelhantes” (cf Baldick, 1990: 242; entrada WIT).

    A historieta comic, “à semelhança” por exemplo “da obra teatral, como toda a obra artística apresenta um universo” que nos é “necessário desde esse instante” e por um período variado de tempo, desde os poucos minutos da leitura de uma tira, ou de um pequeno conjunto delas, como vimos acima, até à hora e meia de um filme padrão, podendo ser alargada para quase o dobro, nalguns filmes modernos, ou em peças de teatro (cf. Souriau, 1950: 15).

    Mas pode ser bem mais longo, como acontece no romance, na novela de aventuras, ou, mais modernamente, nos episódios narrativos comuns às televisões. É claro que o quadro clássico comum à arte ocidental, pelo menos desde o renascimento como “obra pictórica também tem a sua duração” embora mais distanciada da figura humana encarnada que o teatro nos dá e o cinema simula com muita plenitude em duas dimensões.

    No quadro, ou no desenho, ou mesmo na escultura, há realização “de um mundo, pela instrumentação de uma presença concreta” seja “uma tela coberta de pigmentos coloridos” seja “uma pedra ou um madeiro, talhados nas três dimensões do espaço” ou, para outro, “a atmosfera ritmicamente agitada”, ou, ainda “as folhas impressas” (cf. Souriau, 1950: 17).

    assorted photos on white table

    Porém, a duração varia infinitamente: no teatro “uma duração real, à qual é dada uma certa feição”, mas, obra pictórica “o jogo é quase livre”, a contemplação é feita segundo o “nosso capricho”. Apenas as outras artes, narrativas, literárias ou não, afastam-se da pintura e aproximam-se do teatro. Mas uma desenvolvendo-se numa forma substancial totalmente diferente, a palavra apenas, outra desenvolvendo duplicações visuais de pessoas reais, e misturando essa figuração humana, com a dimensão verbal, mas numa matéria distinta, a língua oralmente modulada e a sonorização similares ao teatro (cf. Souriau, 1950: 19).

    Diz-nos Montandon que, o “jogo de palavras assim como a história cómica, são formas breves, particularmente apreciadas pelos leitores de jornal, e aparecem, nestes, nos cantos das páginas […] (sublinhados nossos). Na sua opinião estas curtos narrativas, que acompanham, muitas vezes, relatos jornalísticos de intenção informativa, e vontade documental, por vezes de forte rigor factual, “são formas trivializadas, pelo conteúdo ou pela técnica […] ” entendendo que a sua técnica pode ser descrita como “um termo polissémico do qual dois termos são actualizados em simultâneo” que podem ser o “equívoco em que uma palavra tem dois sentidos”, ou “uma legião de outras figuras: Um sentido próprio e outro figurado” ou as “homonímias”, rimas, rimas “holorimas (homofonia total entre dois versos…”, o “calembour simples ou complexo” a “passagem do concreto ao abstracto” o “provébio falacioso”, a “antanáclase, que é a retomada da mesma palavra mas de modo falacioso”, que pode ser “insólita”, “gozona” ou burlesca” (Montandon, 1992: 129) e mais algumas a   em que o trocadilho aparece mas que não vamos apresentar, exaustivamente.

    Bud Fisher 1913

    Na banda desenhada, desde os tempos mais antigos de publicação periódica em jornais e revistas, todos estes elementos são retomados, ou trabalhados de forma distinta: a figura humana passa a traços pictóricos, o tempo é modulado pela sucessividade das imagens sequenciais, e a palavra é mantida associada a sugestão onomatopaica.   

    O desenrolar de tais programas verifica-se, na comic strip apresentando com brevidade os traços acima identificados, sendo colocada na última imagem a resposta ou revelação paradoxal se apresente quase sobe a forma de um trocadilho ou dito espirituoso, elemento de gosto que os românticos tinham relegado para uma posição de inferioridade aceitando-os apenas nos modelos da diversão literária do epigrama, que os modernistas de todas as vertentes, cultivaram sob a concepção de ironia.

    Não é de estranhar que o termo tenha assentado plenamente nesse tipo de pequena narrativa divertida ou histoire drôle, que, de Rabelais a Jarry, passando por Balsac, fizeram as delícias do espírito picardo (amusant, bizarre, cocasse, comique, coquin, curieux, désopilant, divertissant) encheu a cultura popular francesa do início do século XX, confundindo-se e entrecruzando-se com produções de mais elevados horizontes culturais, mas sempre presa desse gosto das drôleries,(bêtises, bizarreries, blagues, bouffonneries, clowneries, couillonnades, facéties, gaillardises), como o Dadaismo ou o Surrealismo.

    Em muitos aspectos, o tipo de narrativa a que nos referimos como comic, tendo como característica de duração prevalecente, o strip, a série linearizada em poucos momento pictóricos ou gráficos, variando de dois a cinco, raramente mais ou menos, é o padrão em que assentam outras, um pouco mais longas, de um página[2] como acontece quase sempre em Little Nemo ou em Crazy Cat e obedece a um modelo linear narrativo, comum, também em manifestações apenas verbais que Violette Morin caracteriza como histoires drôles, do seguinte modo: “é algumas vezes tão curta ou tão ‘engraçada’ que seu valor de narrativa poderia ser posto em questão.

    girl in purple dress painting

    No entanto estas ‘historias’ são, também, narrativas. Como estas, e melhor ainda, “fazem evoluir uma situação viva em função de reviravoltas imprevistas.” (Morin, 1966: 102).

    Nada mais elucidativo, para colocarmos mais uma base no nosso entendimento destes começos da banda desenhada como género, aspirando a uma colocação entre as artes, como 9ª, no dizer de muitos apologetas, do que voltar ao texto de Violette Morin sobre as “histoires drôles” que ela analisa, e, “a fim de confrontar sua inesgotável variedade de estilo e, de falas (ou expressões: paroles)”teve, “muitas vezes de reconstituir seu discurso, restabelecer aqui elipses destinadas a torná-las mais percucientes, suprimir, acolá, redundâncias destinadas a enchê-las de ‘suspense’”.

    De tal modo, diz-nos a investigadora francesa, que teve “de localizar funções que sua desordem calculada tornava mais surpreendentes”, constatando que, “com a linearidade do traço de espírito restabelecida, estas narra1ivas apresentaram enfim cercas constâncias, de construção que temamos classificar” (1966: 102).

    Por estas características, elas “são comparáveis” com as comic strip, “pelo número de palavras, pois que a maioria contém apenas de 25 a 40” além de que são “todas redutíveis a uma sequência única que coloca, argumenta e resolve uma certa problemática” e, ainda por cima tal sequência 

    “parece ser uniformemente articulada por três funções que ordenamos como se segue: uma funçãodenormalizaçâoque situa os personagens; uma função locutorade encadeamento,com ou sem locutor, que coloca o ‘problema a resolver, ouquestiona; e, enfim, uma função interlocutora de distinção, com ou sem interlocutor, que resolve ‘comicamente’ o problema, que responde ‘comicamente à questão. Esta última faz bifurcar-se a narrativa do ‘sério’ para o ‘cómico’ e dá à sequência narrativa existência de narrativa disjunta, de ‘última’ (dernière) [versão] como história. A bifurcação é possível graças a um elemento polissémico, o, disjuntor sobre o qual a história encadeada (normalização e locução) volteia numa peripécia, para tomar uma direção nova e inesperada. É a existência necessária deste disjuntor que tende a fazer classificar indiferentemente todas estas história nas diversas variedades de jogos de palavras” (1966: 102-103).

    Apresentamos, a título comparativo, como as comic strip, o exemplo de uma das história que Violette Morin apresenta: “FUNÇÃO DE NORMALIZAÇÃO: O viajante tendo perdido o comboio fala ao chefe da estação; FUNÇÃO LOCUTORA DE DESENCADEAMENTO: Oviajante: Se os comboios nunca estão no horário, para que servem os quadros afixados de horários?; DISJUNTOR:cartaz/sala de espera; FUNÇÃO INTERLOCUTORA DE DISJUNÇÃO: O chefe da estação: Se os comboios andassem no horário, de que serviriam as salas de espera?” (1966: 104). Como se pode constatar, a semelhança com as sequências narrativas em tiras de vinhetas ou quadradinhos, e o desenvolvimento que a autora descreve como próprio a estas sequências narrativas justifica-se inteiramente:

    “são as narrativas em que a disjunção é apenas uma palavra-significante, uma palavra tomada somente na sua existência visual ou fónica, independentemente das significações que pode veicular. Obtém-se um jogo de palavras que liberta os significados e as significações de qualquer constrangimento do sentido. Ao cabo da sequência, a narrativa desagrega-se propositadamente num caos perfeito; pode mesmo, por essa arte de acrobacia no vazio, quase não ser uma narrativa, e com frequência não é mesmo” (1966: 103).

    man in green vest and red dress standing beside woman in red dress

    Usando uma outra formulação, sob a designação de piada, aproximamo-nos ainda melhor do fenómeno tal como é possível formulá-lo, mas neste caso num processo bifásico:

    “[…] a piada é um texto sui generis. É uma forma de narração dialogal, tendencialmente curta, que tem por objetivo gerar um sentido humorístico. Para tanto, a piada cria uma situação verossímil, apenas para desmascará-la em seu desfecho. A mudança do modo sério (bona fide) para o modo jocoso é a fonte do riso. A semelhança na estruturação de uma piada é a maior especificidade dessa forma de texto. A estrutura, por assim dizer, é dividida em duas partes. A primeira, chamada de antecedente, introduziria o tópico, bem como os personagens e a situação verossímil. A segunda parte, o consequente, seria a conclusão do texto. […] o consequente nunca é explicitado, fica sempre implícito […]. A passagem do antecedente para o consequente é feita por um elemento mediador, de ordem linguística, em geral voltado aos níveis fonético-fonológico, morfossintático ou semântico” (Ramos, 2005: 1158-1159).

    A estes traços, acrescenta o autor mais alguns que acompanham exemplos das tiras diárias, que “seria uma história que apresenta uma gag, termo entendido [..] como uma piada diária (dado que, na maioria dos casos, é publicada diariamente pelos jornais)” (p.1158) e apresenta uma tese muito próxima de Morin, e talvez de mais simples formulação: “uma situação inicial; um elemento que muda o curso da narrativa; uma disjunção provocada pelo elemento anterior. O resultado da mudança de curso na história surpreenderia a expectativa inicial do leitor, provocando em seu desfecho uma função narrativa anormal, fonte do riso. (p.1158)

    shallow focus photography of books

    Se dermos, mais uma vez, a palavra a Freud, verificamos a importância da colocação em posição dramática de personagens que sejam produzidas por uma encenação (no sentido mais amplo do termo, de produção representativa de uma acção, verbal ou física, numa determinada situação para obter um efeito de sentido):

    “O ingênuo (no discurso) e os chistes coincidem, no que diz respeito à verbalização e ao conteúdo: efetua um uso impróprio das palavras, um non sense ou um smut. Mas nele, o ingénuo, enquanto primeira pessoa, o processo psíquico, que produz, que levanta para nós questões tão interessantes e enigmáticas a respeito dos chistes, está aqui completamente ausente. Uma pessoa ingênua pensa estar utilizando seus meios de expressão e processos de pensamento normal e simplesmente, não tendo qualquer arrière pensée em mente; não deriva igualmente o menor prazer em produzir algo ingênuo. Todas as características do ingênuo inexistem a não ser na compreensão da pessoa que o escuta – pessoa que coincide com a terceira pessoa nos chistes. Alem disso a pessoa que o produz faz isso sem o menor esforço. A complicada técnica que nos chistes se destina a paralisar a inibição procedente da crítica racional, está ausente nela; não possui igualmente a inibição, de modo que pode produzir nonsense e smut diretamente e sem compromisso. A este respeito, o ingênuo é um caso marginal do chiste; emerge quando, na fórmula de construção dos chistes, reduzimos o valor da censura a zero” (1969: 283).

    Sobretudo, é importante que as personagens formem “um sistema de forças em confronto ligadas por acções e reacções de que cada momento privilegiado deve desenhas uma figura dinâmica, relativamente simples, clara, poderosa, original e intensa nesse dinamismo interior que resulta da sua estrutura” Souriau, 

    black and white zebra print textile

    Completaríamos melhor este raciocínio, a partir do qual pretendemos valorizar os procedimentos inerentes às histoires drôles que nos narram os comics, introduzindo, como conceito, o termo voz. Assim, o aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em é o da segunda voz.

    Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

    Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca — ou daimon — que também assaltava Sócrates.

    Nas tiras ou mesmo nos conjuntos que formam página (ou prancha, como os autores gostam de lhes chamar) essa voz pode surgir como uma personagem onírica, ou partilhando desse estatuto, como um alter ego provocador, ou mesmo desencaminhador, que surge nas narrativas em que a personagem protagonista desafiada ou confrontada em devaneios e sonhos de que os paradigmas seriam o Grilo de Pinóquio, e o esverdeado Flip que aparece nas comics storys de Little Nemo como a que apresentamos abaixo.

    O que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a  sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

    Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o sonhador está integrado nesse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da interlocução mais um elemento constituinte do espectáculo integral em que o processo imaginário cruza o elemento icónico e verbal. (cf. Jorge, 2000: 2-3) [3]

    É claro que o sonho e o retorno ou despertar inconsciente da infância que Freud nos lembra (Freud, 1969: 248 e 278), e como vamos encontrar, por exemplo em Little Nemo “Entre as técnicas comuns ao espírito e ao sonho, duas oferecem um cesto interesse: a representação pelo seu contrário e o emprego de contrassenso” (Freud, 1969: “266) aqui, é claro, o repouso do leito, que levará ao sono e o sonho surge como que negado, ou invertido pela movimentação e articulação dinâmica da própria cama, e o interior do quarto muda-se para o imaginário espectáculo do “telhados” dos arranha céus visto de cima ou ao mesmo nível. 

    Segundo Freud no mesmo texto um pouco adiante, essa representação pelo contrário representa uma sobrevalorização, que se “aproxima da ironia” a qual “consiste em dizer o contrário do que se pretende sugerir, evitando aos outros a ocasião de a contradizer” uma vez que ela exibe os artifícios, neste caso o aspecto hiperbólica dimensão que a cama apresenta no seu passeio.

    Ora, mais pausadamente, podemos ver, na sequência da história, o modo de Flip funcionar como a emergência de um desafio ou desejo de libertação, arrastando o imaginário de Nemo à criação de uma fantasia em que a cama passeia, saltita, sobe aos telhados dos arranha céus, acabando, na euforia da exaltação libertária, por gerar no sonhador o pânico causado pela culpa da sua desobediência, e leva-o cair, num mergulho que parecia fatal e que é, afinal, um real tombo da cama para o chão.

    Sobre esta matéria ainda nos parecem pertinentes as considerações de Freud “A elaboração onírica, entretanto, exagera esse método de representação indireta além de todos os limites. Sob a pressão da censura, qualquer espécie de conexão é bastante boa para servir como substitutivo por alusão, permitindo- se o deslocamento de um a outro elemento. A substituição de associações internas (similaridade, conexão causal etc.) por outras, conhecidas como externas (simultaneidade no tempo, contigüidade espacial, similaridade fônica), é muito especialmente notável e peculiar à elaboração onírica. Todos esses métodos de deslocamento ocorrem também como técnicas do chiste. (p.264)

    E, completaríamos esta percepção da comic story, na sua dimensão onírica com apoio no seguinte excerto do mestre austríaco sobre a matéria:

     “Na elaboração onírica, a representação pelo oposto desempenha uma parte ainda maio que nos chistes. Os sonhos não são simplesmente favoráveis à representação de dois contrários pela mesma e única estrutura composta, mas tão frequentemente mudam parte dos pensamentos oníricos nos seus opostos, o que leva o trabalho de interpretação a impasses difíceis. Não há maneira de decidir à primeira vista se algum elemento que admite um contrário está presente nos pensamentos oníricos como um positivo ou como um negativo.

    Devo afirmar enfaticamente que esse fato até agora não mereceu reconhecimento. Mas parece apontar para importante característica do pensamento inconsciente no qual, com toda probabilidade, não ocorre nenhum processo que se assemelhe ao ‘julgamento’. No lugar da rejeição por um julgamento, o que encontramos no inconsciente é a ‘repressão’. Esta pode, sem dúvida, ser corretamente descrita como estágio intermediário entre um reflexo defensivo e um julgamento condenador.

    O nonsense, o absurdo, que aparece com tanta frequência nos sonhos, condenando-os a desprezo tão imerecido, nunca ocorre por acaso através da mesclagem dos elementos ideacionais, podendo sempre demonstrar sua admissão intencional pela elaboração onírica, cabendo-lhes representar nos pensamentos oníricos a crítica amargurada e a contradição desdenhosa. Assim o absurdo no conteúdo dos sonhos assume o lugar do julgamento ‘isto é apenas nonsense‘ nos pensamentos oníricos.” (268-269).

    Jost Amman – Xilogravura de 1568 mostrando a produção de xilogravuras: na primeira um homem usa um buril para cortar o bloco de madeira; na segunda ele entinta a matriz realizada para a impressão.

    A estrutura que o pequeno relato em quadradinhos, cuja modalidade dominante, fundadora do género se verificou como comic americano é a da narrativa fundada na sequencialidade, num sistema gráfico de leitura que tem como aspecto fundamental, como já vimos acima os vectores direcionais: da esquerda para a direita e de cima para baixo, aproveitando o modelo da própria escrita.

    Tal dinâmica vectorial cria o sentido da história com a concepção de um antes e de um depois, inserida nas práticas milenares da cultura ocidental, com pequenas variantes, das quais, a principal é a variabilidade horizontal (esquerda —> direita), que pode ter a variante inversa, ou a mista, bustrofédon, (βουστροφηδόν[4]), podendo, eventualmente, essa a variante ser a da vectorialidade ascendente, ou seja, de baixo para cima. Esses dois últimos casos verificam-se nalguns registos mais antigos e a na nossa cultura, entre o Médio Oriente e a Europa, sendo o primeiro, a inversão apenas ou as sequências de imagens de culturas não ocidentais, cujo exemplo mais impressionante é o da Coluna de Trajano, em Roma com feitos e eventos sequenciais talhados na pedra em sentido ascendente em sequência pela curvatura elicoidal, em ordem horizontal bustrofédon (ou que a torna uma excepção no que respeita ao sentido de leitura).

    Thomas Rowlandson (britânico, Londres 1757-1827) – Reform Advised, Begun and Compleat, 1793.

    Devemos notar, no entanto, no caso que nos interessa e, maioritariamente, se podem considerar “duas grandes classes de unidades, funções e índices”, as quais “deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas.

    Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e, em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances ‘psicológicos’)” caracterização a que voltaremos, adiante, a propósito daquilo na BD se tem chamado “romance” ou narrativa romântica” (1966: 10) “entre estes dois pólos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do género” (1966: 10).

    Para falarmos das comic strips, sobretudo, mas mesmo das comic, em geral, até à dimensão da prancha ou página retomar será interessante retomas, de Barthes a “classe das Funções” uma vez que, suas unidades. não têm todas a mesma ‘importância’ e isso ajuda-nos a analisar melhor o processo, destas pequenas histórias. “Algumas”, dado que “constituem verdadeiras articulações da narrativa (ou de um fragmento da narrativa)” o que as torna importantes para nós, dado que a dimensão das histórias cómicas assentam sobretudo na força de uma articulação nuclear” e pouco utilizam as “outras” que, segundo o mesmo autor “não fazem mais do que ‘preencher’ o espaço narrativo que separa as funções-articulações: chamemos as primeiras de funções cardinais (ou núcleos) e as segundas, em consideração à sua natureza completiva, catálíses.

    Ora, ainda segundo Barthes, “para que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza” (1966: 10) e é  nesta incerteza que, como vimos acima, na análise de Violette Morin, a ruptura ou irrupção cómica se torna possível, pela intromissão de um disjuntor, a que Barthes preferiria, certamente, chamaria índice[5] visto que “os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera […]serve para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizara ficção no real: é um operador realista […] possui uma funcionalidade incontestável, não ao nível da história, mas ao nível do discurso.” (1966: 11), no fundo são imformantes que, num troço da história cómica a fazem inflectir para um sentido inesperado, como que um choque de real interrompendo o curso da expectativa.

    E neste caso das comic strip, ou comic, tout court, é depois dessa disjunção provocada pelo índice, que se reata o  “liame que une duas funções cardinais, o qual se investe de uma “funcionalidade dupla”, tornando-as “ao mesmo tempo consecutivas e consequentes.

    Tudo deixa pensar, com efeito, que a mola da atividade é a própria confusão da consecução e da consequência, o que vem depois sendo lido na narrativa como causado por; a narrativa seria, neste caso, uma aplicação sistemática do erro lógico denunciado pela escolástica sob a fórmula post hoc, ergo propter hoc, que bem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativa não é em suma mais que a «língua» (Zangue); e este ‘esmagamento’ da lógica e da temporalidade é a armadura das funções cardinais que o realiza. Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação enunciada), é, se assim se pode dizer, o risco: as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa.

    Para terminar sobre este modelo aparentemente embrionário da narrativa, a partir do qual a própria banda desenhada assentou, em base que consideramos sólida, lembremos, com Eisenstein, ao falar de Disney, que os comics se fortalecem exemplarmente como narrativas de metamorfoses. Mesmo que isso não implique modificações excessivas, como em tiras modernas quase universais, como Mafalda, de Quino, ou Mónica e sua Turma, de Maurício a verdade é que ela é cultivada à exaustam, e, tão fundamental se tornou, que muitas vezes não damos por ela, e não reparamos na mobilidade fantástica dos elementos do universo de um Winsor McCay, e no seu espectro altamente transfigurável. Assim:

      “Em Shakespeare […] nas suas comédias, as personagens metamorfoseiam-se até ao infinito…travestizam-se ou sofrem uma mudança mágica” lembramo-nos de Alice, do Burro de Oiro, mas

    “Em Disney passamos de um processo a outro, porque um dos recurso do cómico é a literalização da metáfora. […] É por isso, então que a metáfora poética actua comicamente em Disney, porque a apresenta como transposição literal. A metamorfose não é um lapso ─ porque, quando folheamos Ovídio, <vemos que> algumas das suas páginas têm ar de curtas metragens de Disney”[6] (Eisenstein, 2013: 53)

    Por outro lado, no plano do discurso, naquilo que a própria Retórica tão rigorosamente formalizou, pelo menos desde Aristóteles, se a epopeia e tragédia tinham origem em hinos laudatórios ou discursos ecomiásticos e epidícticos, “A comédia é”, segundo o mesmo Estagirita, na sua Poética, “imitação de homens inferiores, mas não, todavia, quanto a toda a espécie dos vícios, mas só quanto àquela parte do torpe e do ridículo.

    eyeglasses near mug on table

    O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anónima e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor. (1986: 109 [V; 22]). Característica clássica e fundadora que nos ajuda a compreender melhor o próprio funcionamento dos comics, na sua origem, de difusão entre as massas leitoras pouco exigentes, dificilmente cultivadas, mas sempre perante o espectáculo do mundo em que tinham de abrir espaço para a sua própria existência ser possível, mundo esse carregado de personagens típica que um discípulo de Aristóteles arruma em quatro grandes grupos: sujeitos auto-depreciados, impostores, e bufões, normalmente acompanhados por um outro que os confronta, como herói, quase sempre um vigarista simpático e la dino “na arte de explorar as fraquezas alheias” (Escohotado, 2006: 10).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


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    [1] “Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assumptos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas… Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão… Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?” // “Eusebiozinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha aparecido com uma rapariga portuguesa… Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.

    – A Corneta…?

    – Sim, do Diabo, disse o Eusebiozinho. É um jornal de pilhérias, de picuinhas… Ele já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou para o Palma; ele vai-lhe aumentar o formato, e meter-lhe mais chalaça

    – Enfim, disse Carlos, qualquer coisa sebácea e imunda como ele…(Os Maias, caps. 4 e14, pp.76 e302, Círculo de Leitores, 1975; itálicos nossos)

    [2] Daniel Barbieri, esclarece os parâmetro históricos destes factos lembrando que no em finais do século XIX e pincípios do século seguinte, “tradicionalmente a unidade gráfica de narrar em BD (‘fumetto) são de dois tipos: a tira e a página (ou prancha ─ ver imagens de Yellow Kid em baixo). A BD [no sentido de comic, em italiano, fumetto] nasce como página dominical a cores, dos quotidianos, e só depois de alguns anos se torna, também tira quotidiana. Apenas nos anos 30 nasce, enfim, o comic book, ou seja, o álbum de Bd. Em geral a tira é […] composta de três ou quatro quadradinhos ou vinhetas, raramente de duas ou quatro” (1991: 149). YellowKid4É claro que é o uso sistemático balão (no vestido, amarelo, primeiro, mas depois no gramofone e no papagaio) com fala que determina, historicamente, o nascimento, questão histórica a que voltaremos adiante. As manga, bandas desenhadas japonesas, têm uma configuração de leitura diferente que não trataremos aqui, por obedecerem a códigos mistos da cultura nipónica e ocidental, cada vez mais sob influência ocidental, para entras no mercados europeus e americanos

    [3]Texto apresentado a 17 de Outubro de 2000, em Évora, a convite da Delegação Regional da Cultura, numa sessão integrada nas comemorações do Centenário da Morte de Eça de Queirós.

    [4]  Transcrição fonética: boustrophēdón , um composto de βοῦς , bous , “boi”; στροφή , strophē , “virar”; e o sufixo adverbial – δόν , “semelhante, na maneira de” – isto é, “como o boi vira [ao arar]”. Curiosidade: O folclorista húngaro Gyula Sebestyén (1864–1946) escreve que a escrita boustrophedon antiga se assemelha aos rovás-sticks húngaros da escrita húngara antiga, que  foram feitos por pastores. Primeiro o entalhador segura a vara de madeira com a mão esquerda, cortando as letras com a mão direita da direita para a esquerda até ao fim do pau. Para continuar ele vira o pau, invertendo as pontas, e começa a entalhar o lado oposto da mesma maneira. Quando é desdobrado horizontalmente (como no caso das inscrições do boustrofédon lapidadas), o resultado final é uma escrita que começa da direita para a esquerda e continua da esquerda para a direita na linha seguinte, com as letras viradas de cabeça para baixo. Sebestyén afirma que os antigos escritos do boustrophedon foram copiados de tais varas de madeira com letras recortadas, requeridas para inscrições epigráficas (não reconhecendo o real significado do tipo original de madeira). Hieróglifos Rongorongo, escritos com dentes de tubarão na Ilha de Páscoa, permanecem indecifráveis.

    [5] 2 ‘índices’ (no sentido muitogeral da palavra) […] a unidade remete então, não a um acto  complementar e consequente, mas a um conceito mais ou menos difuso, necessário entretanto ao sentido da história: índices caracteriais concernentes às personagens informações relativas à sua identidade, notaçõesdas «atmosferas», etc.; (1966: 8-9).

    [6] “[…] Eis que a patrona do herói, Palas, descendo do céu, ordena-lhe que ponha sob a terra os dentes vipérios, matriz de homens futuros. Ele obedece e, abrindo sulcos com o arado, lança os dentes, sementes de mortais, ao solo.  Logo, incrível prodígio, o chão põe-se a mover, e, então, dos sulcos surge a ponta de uma lança, logo, elmos com penachos multicores trêmulos emergem, e ombros, peitos e braços armados, e uma seara de homens com escudo cresce.  Assim, quando em teatro em festa o pano desce, surgem figuras que primeiro a cara mostra, e após o resto; até que se tornam visíveis por completo e se põem de pés no proscênio. Aterrado com a nova hoste, Cadmo se arma […]” Ovídio, Livro III, Cadmo, v. 101-115 ─ Trad. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho.