Etiqueta: Literatura

  • Bolívia: Lítio, a força motriz do século XXI

    Bolívia: Lítio, a força motriz do século XXI

    O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria de Boštjan Videmšek, jornalista esloveno (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.


    Ao final da manhã, as cores ficam mais bonitas, mais intensas. Até onde a vista alcança, o branco luminoso das maiores salinas do mundo mistura-se com o azul suave dos céus límpidos sobre o deserto alpino dos Andes bolivianos. O silêncio hipnótico, bom para aliviar o peso dos pensamentos, é quebrado a espaços pelo assobio de uma brisa suave, embora decididamente fria. Os picos em redor, alguns deles com quase cinco mil metros, refletem-se nitidamente na fina camada de água da chuva que caiu pela manhã e ainda não evaporou.

    Num dia límpido, e visto de longe, o Salar de Uyuni parece uma miragem. De perto, é a constatação de um milagre. Mas poderá não permanecer assim por muito mais tempo.

    Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado. (Foto: Paulo Alexandrino)

    Ao longo da margem sul do lago salgado, máquinas industriais rugem em intensa atividade. Centenas de camiões andam num vai-vem sobre a crosta salgada, chiando como animais de carga exaustos, alguns deles com trinta ou quarenta anos nas rodas. A fumaça do diesel infesta o ar fresco da montanha. No seu rasto, os camiões deixam marcadas linhas castanhas na brancura virgem do solo, fazendo com que as dezenas de quilómetros quadrados do lago pareçam uma tigela gigante de café com leite.

    Os trabalhadores perfuram o sal com equipamentos gigantes, procurando a salmoura por baixo. Alojados sob quantidades colossais de magnésio e potássio, está seu objetivo: o lítio, a fonte de energia essencial para todos os gadgets do mundo; o componente chave para sustentar todo o século XXI.

    Visualmente, a violação desta paisagem inocente e delicada tem um impacto brutal.

    Os trabalhadores, vestindo as roupas vermelhas da empresa de mineração estatal Comibol, carregam os camiões com escavadoras. A salmoura é transportada para piscinas próximas, esculpidas no meio do lago. Algumas dessas piscinas têm mais de um quilómetro de diâmetro. Vista de cima, parecem campos de arroz alienígenas, ou obras de arte pintadas por cubistas depois de uma noite de absinto.

    Para facilitar os complexos processos químicos necessários, a massa mineral é deixada ao sol durante pelo menos três meses. Quando está pronta, é processada na fábrica de lítio Planta Llipi, no que ainda é um projeto-piloto.

    No seu primeiro ano de operação, em 2016, produziu cerca de vinte toneladas de carbonato de lítio. A quantidade produzida em 2017 foi três vezes maior.

    Embora estas quantidades possam parecer insignificantes num panorama mais amplo, acredita-se que as profundezas das maiores salinas do mundo contenham as maiores reservas de lítio do mundo. Segundo algumas estimativas, os Andes bolivianos contêm 70% do lítio do planeta, e vários estudos têm sido feitos para corroborar essas alegações. De acordo com o mais otimista, 140 milhões de toneladas de lítio podem estar disponíveis no Salar de Uyuni, enquanto o mais pessimista – do Serviço Geológico dos EUA – considera existirem “apenas” nove milhões de toneladas.

    Vastas quantidades de lítio também foram detectadas no fundo dos oceanos do mundo. Por isso o setor da mineração, uma das indústrias mais destrutivas do planeta, já anda a olhar para os mares à procura de novas oportunidades de investimento. Mas os planos de conquista marítima ainda estão longe de poderem concretizar-se.

    Uma impressão semelhante – a de um longo caminho ainda a ser percorrido – pode ser sentida na fábrica piloto de lítio de Llipi. A central está localizada nas margens do Rio Grande, de cor castanho-avermelhada. A sua pedra inaugural foi colocada pelo ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, derrubado num golpe de Estado com ligação aos negócios do lítio, em 2019.

    O incendiário socialista lançou a obra com muita pompa e retórica visionária. Em 2010, Morales fez previsões de grande esperança para a Bolívia e o “petróleo do século XXI” inspira a sua visão, considerando haver na exploração do lítio uma oportunidade única para corrigir uma série de erros históricos.

    Logo após a sua ascensão ao poder, Morales nacionalizou todos os recursos naturais – desde o petróleo, passando pelo gás natural, até todos os tipos de minerais existentes. Os recursos naturais, por tanto tempo classificados como uma maldição para o povo boliviano, iram ser finalmente uma grande vantagem, o motor da economia nacional e de todos os programas sociais que Morales prometia implementar.

    No entanto, até agora essa visão idealista não se concretizou. Para começar, porque a Bolívia não tem pessoal suficientemente qualificado para explorar de forma optimizada as suas riquezas naturais. Por outro, a economia mundial tornou-se tão agressivamente globalizada que é impossível prosperar fora do sistema, pelo menos no que diz respeito aos mercados de metais, minerais e combustíveis fósseis.

    “A Bolívia vê o lítio como um dos seus grandes projetos estratégicos. Estamos bem cientes do que uma expansão significativa do mercado nos pode trazer”, diz Miguel Parra, diretor de produção da fábrica de Llipi.

    Parra recebe-nos no seu escritório, nas margens das grandes salinas, informando-nos que o projeto-piloto está prestes a terminar. Em abril de 2018 foi concluída uma nova fábrica de lítio, construída no próprio lago, e o colossal projeto governamental de extração de lítio entrou na sua segunda fase.

    Era óbvio que os gestores da empresa estatal estavam com pressa. O mercado de carbonato de lítio está em crescimento acelerado e as previsões indicavam que poderia facilmente triplicar nos cinco anos seguintes. Compreensivelmente, o preço também continua a aumentar: o lítio ainda é o componente para baterias mais eficiente de todos, de longe. Não só alimenta os nossos telemóveis e laptops, mas também painéis solares, robôs e, claro, veículos elétricos. Especula-se, aliás, que o destino de toda a empreitada boliviana de exploração do lítio depende do sucesso dos carros elétricos.

    Mas voltaremos a este ponto mais tarde.

    “Este é um projeto do Estado”, explica Miguel Parra. “Tudo é dirigido a partir de La Paz. Concordo que estamos a progredir devagar. Mas não há outra forma. Já foi muito trabalho concluído, e ainda há muito mais a fazer. Todo o desenvolvimento da tecnologia mundial pesa sobre os nossos ombros. O processo de extração no Salar de Uyuni é muito mais complicado do que na vizinha Argentina ou Chile. Nesses países, os lagos salgados estão localizados em altitudes mais baixas, com um clima mais seco. E o lítio lá está ‘preso’ sob consideravelmente menos magnésio e potássio do que o nosso aqui”, explica.

    Um observador crítico poderia notar que o processo de produção na central piloto estava a decorrer num ritmo bastante descontraído. Nem um único quilómetro das estradas à volta do Salar de Uyuni está sequer pavimentada. Durante a nossa visita, três jovens soldados e dois cães vadios constituíam a equipa de segurança que guardava o maior projeto estratégico da história daquele país. Com um pouco de coragem, seria possível dirigir um veículo todo-o-terreno pelas salinas e entrar pelas piscinas artificiais e as plataformas de teste. É verdade que seria um pouco mais difícil chegar à recém-construída central 2.0 – mas apenas por causa de toda a água que a circunda.

    A central nova e melhorada é facilmente visível ao longe, em desarmonia com a beleza magnífica do lago. A área de produção pode ser alcançada através de uma longa estrada deserta, sem postos de controle, que se estende pelas pastagens das omnipresentes vicunhas, mamíferos típicos dos Andes. Juntamente com o grão de quinoa, rico em proteínas, estes ruminantes vivazes e sempre inquietos constituem ainda a base da subsistência da população local.

    A fábrica de Llipi empregava 250 pessoas em 2017, a maioria trabalhadores manuais. Há poucos especialistas em processamento de lítio na central – quase não existem no país.

    No entanto, o sentimento de sonho e irrealidade que envolve este projeto não significa que a Bolívia está adormecida. Pelo contrário: o parlamento boliviano criou a Empresa Pública Nacional Estratégica de Recursos Evaporíticos, com a missão especial de gerir a produção de lítio. O seu diretor está autorizado a assinar contratos com empresas privadas, nacionais ou estrangeiras.

    O mercado boliviano de lítio está claramente a abrir-se ao mundo. Os chineses não são os únicos a manifestar interesse; japoneses, alemães, suecos, franceses, suíços, coreanos e canadianos foram rápidos a pôr-se em campo. Segundo as nossas fontes, a gigante elétrica americana Tesla também quer participar no projeto boliviano. A bateria do Model S da Tesla requer cerca de 54 quilos de carbonato de lítio, semelhante ao que é necessário para alimentar cerca de 10.000 baterias de telemóvel.

    No seu relatório de 2017, o fundo de investimentos Goldman Sachs designou o carbonato de lítio como “a nova gasolina”. Também previu que, até 2025, o mercado de lítio irá triplicar, com uma procura anual na ordem das 470.000 toneladas.

    O relatório alerta corajosamente que o simples aumento de 1% na produção de veículos elétricos poderia aumentar a procura de lítio para mais de 40% do que existe disponível com a produção atual. A Bolívia pode entrar no mercado no momento ideal?

    “A FMC, meus antigos empregadores, tentou explorar o Salar de Uyuni no final dos anos 80 e início dos anos 90”, lembra Joe Lowry, diretor da empresa Global Lithium e um dos maiores especialistas mundiais em lítio (apelidado pelos seus seguidores no Twitter como “Mr. Lithium”).

    “O caos governamental e a infraestrutura precária apresentavam demasiados problemas e a empresa optou por criar explorações na Argentina. Trinta anos depois, a Bolívia ainda carece de infraestruturas básicas, bem como do tipo de governo com o qual os investidores possam sentir-se confortáveis.”

    Embora cético em relação à possibilidade de a Bolívia ser uma história de sucesso na exploração do lítio, Lowry não duvida que os mercados de carbonato de lítio e baterias de lítio estão prestes a explodir. O aumento no consumo de baterias está fortemente ligado a um boom nos transportes elétricos, do qual os automóveis são apenas os precursores. “Grande parte da população mundial viaja diariamente em autocarros”, lembra Lowry, e os “bens de compras online também serão cada vez mais entregues por veículos elétricos automatizados”.

    Joe Lowry prevê que o aumento da procura nos mercados de lítio terá sérias consequências geoestratégicas. Os conflitos armados não estão fora de questão. “Argentina e Chile continuarão a ser os dois principais players, com a Bolívia certamente a ter o seu crescimento também, mas o frenesim da produção de lítio vai-se espalhar por África.”

    Até agora, os chineses foram os únicos que os bolivianos deixaram entrar no seu grande projeto nacional. A Bolívia e a China mantêm relações amigáveis há muito tempo e o presidente socialista da Bolívia vê a abertura de uma porta para Pequim como um movimento anti-imperialista.

    salar de uyuni in Bolivia

    Nos últimos quinze anos, a China tem vindo a acumular concessões para a exploração de riquezas naturais por todo o terceiro mundo. A agilidade ideológica da China casou com a ganância descarada de muitos líderes latino-americanos e africanos. O impacto no meio ambiente desta investida chinesa não foi menos ruinoso do que o das corporações americanas e europeias.

    Em setembro de 2016, a China foi destinatária da primeira entrega de exportação de lítio da Bolívia. Uma remessa simbólica, de 15 toneladas de carbonato de lítio que, segundo as nossas fontes, foi vendida por 9.200 dólares por tonelada.

    Miguel Parra, diretor de produção da central de Llipi, diz-nos que cerca de 90% da produção de lítio é vendida para a China. Uma pequena quantidade é enviada para a Suécia, e o restante é entregue numa fábrica chinesa de baterias de lítio, em Potosi. Miguel Parra não prevê que a proporção da distribuição mude muito nos próximos anos.

    A parte central da Alemanha Oriental foi o centro mineiro da antiga República Democrática Alemã. A par do impacto da indústria química, séculos de mineração devastaram o meio ambiente e degradaram centenas de quilómetros quadrados de solo, que deixaram de poder ser utilizados para a produção de alimentos.

    Um bom quarto de século após a reunificação da Alemanha, a área em redor de Sondershausen, onde costumava operar a maior mina de sal do mundo, está quase deserta. Nas cidades e vilarejos da região vivem sobretudo idosos, muitos deles mineiros aposentados. As gerações mais jovens partiram para as grandes cidades ou para a Alemanha Ocidental. As aldeias desta zona, com as suas excursões organizadas às minas fechadas, emanam um bafo de nostalgia comunista.

    O local e o ambiente não poderia ser mais diferente dos Andes bolivianos. No entanto, os dois lugares têm algo em comum: à medida que as pessoas foram embora, a indústria das energias renováveis tomou conta deles, em grande estilo.

    black and white car door

    Intermináveis quilómetros quadrados de prados e lotes de fábricas abandonadas estão agora repletos de painéis solares. As turbinas eólicas tornaram-se um elemento omnipresente na paisagem.

    “Esta região está a viver uma revolução tecnológica, embora isso possa não ser óbvio a olho nu”, explica Heiner Marx na sede da empresa K-UTEC, em Sondershausen. Marx é diretor administrativo e proprietário maioritário da empresa que se considera herdeira do que, antes da queda do Muro de Berlim, era um dos maiores conglomerados de mineração e indústria química da Alemanha Oriental.

    Nesses tempos, empregavam 24.000 pessoas. Hoje – após a sua privatização em 1992, e a sua transformação em empresa pública em 2008 – a empresa tem apenas 100 trabalhadores, a maioria engenheiros e cientistas altamente qualificados. Em comum com o ex-gigante da mineração só mesmo a sua localização, e a tarefa de fechar aquela que chegou a ser a maior mina de potássio do mundo (o processo envolve o enchimento das gigantescas câmaras escavadas e que se estendem por quilómetros intermináveis, num submundo totalmente degradado).

    Atualmente, a K-UTEC é uma empresa que investiu em engenharia e no desenvolvimento de tecnologia de mineração e química, consolidando a sua presença no comércio global de carbonato de lítio.

    É a única empresa europeia a ter participado ativamente na pesquisa para a escavação e extração de carbonato de lítio dos Andes bolivianos. “Em 2012, as autoridades bolivianas iniciaram uma licitação pública para um parceiro de engenharia na área da pesquisa e produção de lítio. Decidimos candidatar-nos e acabámos por vencer”, explica Heiner Marx.

    Cinco anos depois, com o comércio global de lítio a aquecer, os projetos bolivianos estavam ainda muito atrasados. Apesar de todas as projeções otimistas e do crescimento do mercado global, quase não avançaram.

    “Os bolivianos pediram-nos ajuda e demos-lhes alguns conselhos. Em novembro de 2015, apresentámos ao presidente Evo Morales o plano de formação do pessoal-chave de engenharia. A Bolívia tem uma escassez crónica de quadros e, com a nossa proposta, o governo alemão arcaria com todas as despesas de educação. No entanto, até agora não recebemos resposta de La Paz. Acho isso muito difícil de explicar. Enquanto esperamos por uma palavra da Bolívia, estamos a tentar otimizar o processo de evaporação utilizado no Salar de Uyuni”, revela o empresário e cientista alemão.

    Depois de várias visitas aos Andes bolivianos, Heiner Marx acredita que a Bolívia precisaria de pelo menos cinco anos de preparação antes de poder transformar-se num grande player nos mercados globais de lítio.

    “É como se os bolivianos estivessem a tentar chegar à Lua ainda antes de construirem um foguetão”, ironiza o alemão, abanando a cabeça. “Para fazer qualquer coisa, vão precisar de pelo menos 700 a 1.000 pessoas altamente qualificadas no Salar de Uyuni. Concordo que é uma oportunidade maravilhosa para eles e por isso mesmo não deveriam desperdiçá-la! Aquela área não é apenas rica em lítio, não esqueçamos o magnésio e o potássio… O potencial é realmente incrível.”

    Quanto a preocupações ambientais com os avanços da extração de lítio no Salar de Uyuni, considera-as infundadas, no nível em que a Bolívia consegue atualmente trabalhar. “A produção está limitada à parte menor e ao sul do lago salgado e não exigirá grandes quantidades de água de outras indústrias. Pelo menos por enquanto.”

    A K-UTEC pretende continuar a desenvolver a tecnologia para a produção de carbonato de lítio, independentemente do que aconteça na Bolívia. A empresa já está presente em sessenta países diferentes, participando em praticamente todos os grandes projetos de lítio no mundo: incluindo na Austrália, atualmente o maior produtor no planeta, Estados Unidos, China, além da Argentina e Chile – ambos rivais diretos da Bolívia.

    O mundo avançou na direção da mobilidade elétrica e já não há volta atrás. Neste contexto, não pode haver progresso sem lítio. “É claro que também estão a ser desenvolvidas soluções alternativas. Mas vão ser precisos muitos anos até que o lítio venha, porventura, a ser destronado”, garante Marx.

    “O planeta tem lítio de sobra para responder às necessidades, principalmente se for levada em conta a possibilidade de reciclagem. O mais difícil é tirar os projetos do papel. Depois disso, fica tudo muito mais fácil. O processo de extração de carbonato de lítio precisa de ser otimizado e o custo tem de ser reduzido. Existe uma correlação direta com os preços dos carros elétricos, que ainda são proibitivamente altos. A infraestrutura necessária também é um problema – sobretudo no que diz respeito ao carregamento de baterias, que permanecem relativamente pesadas e não são assim tão eficientes. E depois temos também a questão da vontade política… A guerra pela sobrevivência dos ainda lucrativos projetos de combustíveis fósseis está sempre presente. Mas as fontes renováveis de energia vão acabar por prevalecer: na Europa, na China, nos Estados Unidos. Todos vamos ser forçados a aceitá-lo”, prevê o empresário alemão.

    Boštjan Videmšek com o fotógrafo Matjaž Krivic.

    Até porque a economia verde vai ser também um domínio dos gigantes globais da energia que até hoje lucraram com a produção de combustíveis fósseis. Há novos atores no mercado, mas o negócio vai continuar a ser controlado pelos “antigos senhores”. Tal como na indústria automobilística, mesmo em parceria com alguns fabricantes chineses e coreanos, serão as maiores empresas de hoje a dominar o mercado de carros elétricos amanhã.

    A maioria dos habitantes dos pueblos nas vizinhanças do Salar de Uyuni não conhece o projeto nacional que ali está em andamento. Isolados do resto do mundo, vivem num vácuo informativo quase perfeito. Da melhor forma que podem, cuidam das suas vidas humildes e despretensiosas. Cultivam quinoa e levam lamas a pastar, sendo a desumanidade das suas condições de vida apenas aliviada com grande resiliência e espírito positivo.

    “Vivemos a algumas centenas de metros do lago e a poucos quilómetros do local onde o lítio é produzido”, constata Luisa Flores de Laso, uma mulher tradicionalmente vestida, na sua pequena cozinha desarrumada. “Mas ninguém veio alguma vez dizer-nos o que estava a acontecer, nem o que a produção de lítio pode significar para nós. Definitivamente, não estamos ansiosos pelo sucesso da produção. Temos a certeza de que, como sempre, a população local não vai sair realmente beneficiada.”

    Esta alegre e robusta mulher de cinquenta anos costumava administrar um hotel na pobre Villa Candelaria. Agora, com o marido Eustácio, sobrevive com biscates na construção civil. Ambos temem o impacto da nova fábrica na população local, cuja sobrevivência depende quase inteiramente da agricultura.

    “Não vemos chuva há dois anos!”, dizem-me vários aldeões. “Isso custou-nos a safra de quinoa deste ano, cujo preço já está abaixo do que era há quatro anos. Os lamas também sofreram muito. A agricultura é tudo o que temos… Os jovens foram embora. O que será de nós se a produção de lítio poluir os nossos terrenos?”

    Os filhos de Luísa e Eustácio trabalharam algum tempo para a Comibol, no projeto de lítio. Para sermos mais precisos, foram contratados por uma das muitas empresas privadas subcontratadas pela empresa estatal. O mais velho dos irmãos ainda ganha a vida a preparar refeições para os funcionários da fábrica-piloto. O mais novo, soldador das sondas de perfuração, atirou a toalha ao chão há dois anos, desanimado com um ordenado inferior a 400 euros por mais de 12 horas de trabalho diário.

    “Os chineses pagam mais – 1.200 euros por mês”, explica Luisa Flores de Laso. “Mas não têm trabalho para os meus filhos, para mim ou para o meu marido. Só estão interessados em ‘especialistas’.”

    Eustácio, de 51 anos, explica que no início não se opunha à produção de lítio e defendia que os moradores deveriam ser envolvidos no projeto e ter ali trabalho na construção e na manutenção da fábrica.

    “Percebo bem a necessidade de especialistas!”, diz agora, com veemência. “Mas poucos podem ser encontrados neste lugar triste e abandonado por Deus. Há muito trabalho manual para ser feito, e os locais deviam ser os únicos a fazê-lo. Também acho que os representantes da empresa deveriam vir aqui e explicar-nos os riscos ambientais da produção de lítio.”

    Eustácio Laso conta que pessoal da Comibol já esteve em Villa Candelaria – mas com o único objetivo de levar a sua água. “Vieram aqui há seis meses e disseram-nos que precisavam de água para a fábrica. Fizeram alguns testes e informaram-nos que estavam prontos para começar a bombeá-la. Bem dissemos que mal temos água suficiente para nós… Mas não quiseram saber. Responderam que a água não era nossa, mas do Estado.”

    Eustácio cerra os punhos com indignação. “Se perdemos a água, perdemos tudo! Podemos ser forçados a deixar as nossas casas. Não podemos permitir que isso aconteça!”

    A charmosa vila de Colcha-K é a capital da província de Nor Lipez, no sul do Salar de Uyuni. É também a sede local da produção de carbonato de lítio.

    outer space photography of earth

    Se tudo correr como planeado, em poucos anos o dormente pueblo de hoje irá transformar-se numa espécie de Dubai ou Doha, numa versão mais pequena e menos ostensiva. Passeando pelas suas ruas de pedra, cumprimentando estudantes e velhos pacatos, é difícil imaginá-lo. No entanto, “o combustível do futuro” vai deixar marcas indeléveis no desenvolvimento de toda a região.

    Atualmente, destacam-se três lugares na pitoresca vila, localizada perto de uma importante base militar: a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, o campo de futebol com relvado artificial e a sede do governo regional – o maior e mais brilhante edifício num raio de 100 quilómetros. O gigantesco prédio do governo é encimado pela estátua de um flamingo, celebrando o pássaro místico de pescoço comprido que tradicionalmente passa vários meses por ano no Salar de Uyuni. Mas desde que começaram as grandes obras no lago, a presença das emblemáticas aves cor-de-rosa na região sofreu uma queda alarmante.

    “Até os pássaros perderam a sensação de paz!”, desabafa um dos moradores, revoltado. Mas este é apenas um prenúncio do que está por vir.

    “Olhamos para o lago e ficamos com medo”, diz Grover Baptista Ali, secretário-geral da província de Nor Lipez. “Vemos todas as escavações e perfurações, camiões por todo o lado… e a beleza de Salar a perder-se, a ficar irreconhecível.”

    Como membro do partido da oposição, o escritório de Baptista Ali – diferente de quase todos os outros onde entrei na Bolívia – está totalmente despido da parafernália de Evo Morales. É tão raro que salta à vista. Através de todas as espécies possíveis de bustos, retratos, posters, grafittis e outros subgéneros da arte de rua, o impetuoso presidente socialista está omnipresente em todo o lado. Afinal, é este o homem que vaticinou um novo amanhecer para toda a América Latina. No entanto, doze anos depois, os primeiros raios de sol só alcançaram ainda alguns (poucos) afortunados.

    O partido de oposição de Baptista Ali detém o poder na região de Nor Lipez. “Nem me passa pela cabeça contestar que o lítio representa uma grande oportunidade para toda a economia boliviana. É uma oportunidade que não podemos perder. Mas não devemos deixar que o governo de La Paz roube todos os lucros. As receitas do lítio devem ser distribuídas igualmente, como as receitas geradas pela produção de chumbo e zinco nas proximidades de San Cristobal. De acordo com a lei, a comunidade local tem direito a uma percentagem de quinze por cento. O resto vai para o governo regional de Potosí e, claro, para as autoridades centrais, e dez por cento devem ser reservados para limpeza ambiental. Em 2016, a Bolívia faturou cerca de 1,2 milhão de euros com as vendas de lítio. E nós aqui não vimos nem um único centavo! Nem um centavo!”

    Baptista Ali expressa de forma veemente a sua opinião: em suma, que o projeto de produção de lítio tem sido, até agora, apenas um dreno para a região.

    green and white number 2

    É difícil ignorar a sensação de que o jovem político fala de forma muito menos entusiasta sobre as consequências ambientais da exploração de lítio do que sobre todas as receitas ainda não direcionadas para a comunidade de Colcha-K. Mas isso não é imperdoável – a região permanece escandalosamente subdesenvolvida e como poderia, certamente, utilizar essas verbas para construir escolas, hospitais, estradas e outras infraestruturas básicas.

    “Assim não temos motivos para nos entusiasmarmos com o lítio… Estas novas empresas têm pouca necessidade do nosso pessoal, estão interessadas quase exclusivamente em especialistas. Então porque que não investir num instituto especial, onde a população pudesse ser formada para trabalhar nas fábricas de carbonato de lítio? Por que não abrir uma ‘zona industrial’ diferente? Precisamos de dar um passo à frente! Somos totalmente dependentes da agricultura e do turismo. A nossa agricultura precisa de água, e há cada vez menos, a cada ano que passa. A região está a secar rapidamente por causa das alterações climáticas. Produzimos cada vez menos quinoa, e outros fatores também fizeram com que o seu preço caísse. O mesmo vale para os lamas”, explica o secretário-geral.

    Como praticamente todos com quem conversei, Baptista Ali é peremptório: a água é absolutamente chave em tudo.

    “Já deveria ter soado algum tipo de alarme”, diz. “A fábrica de Llipi está a entrar no Rio Grande, que praticamente já secou. A água que resta está completamente poluída. Mal ouso imaginar o que pode acontecer quando o projeto for ampliado.”

    A cada três meses, as autoridades locais recebem um relatório da empresa estatal de produção de lítio. “Informam-nos sobre o que estão a fazer e como isso está a impactar o meio ambiente. Mas é mais ou menos uma formalidade burocrática, desprovida de qualquer significado real. Eu espero que, no final, toda a Bolívia possa lucrar com isto – mas tenho muito medo que a história se repita novamente. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que isso aconteça. Em breve, os 45 representantes do governo local da região do Salar de Uyuni vão reunir-se. Depois de nos organizarmos, vamos direto para La Paz!”

    Nem todos se sentem deixados para trás pelo governo central. A pouco menos de dez quilómetros da fábrica de Llipi fica a pequena cidade de Rio Grande, que vive um verdadeiro florescimento – se é que esse termo pode ser aplicado ao local frio e basicamente acimentado que serve de posto avançado para camionistas.

    Rio Grande tem aproximadamente 650 moradores e 500 camiões. Muitas das famílias locais possuem dois camiões, que é o limite legal. Praticamente todos os homens adultos da aldeia conduzem pesados. Unidos sob a bandeira da cooperativa local DELTA Rio Grande, estão a colaborar com a Comibol.

    three vehicles during daytime

    Tudo nesta cidade estranhamente monótona e estéril – na verdade, pouco mais que um enorme estacionamento para camiões – é adaptado às necessidades da produção de lítio. O único estabelecimento que oferece hospedagem aos visitantes chama-se “The Lithium Hostel”.

    Juan Carlos Ali, 44 anos, é um dos 250 camionistas que passaram os últimos cinco anos a transportar “ouro branco” para o governo. Até 2015, o seu trabalho consistia basicamente no transporte de material de construção e terra. Depois a Comibol começou a cavar piscinas de evaporação… e o futuro começou a parecer ainda mais brilhante para os condutores.

    “Estou a dar-me bem, muito bem”, diz o robusto e atarracado Juan Carlos, ao lado da sua camioneta azulada e ferrugenta. “Estou a ganhar mais dinheiro do que em qualquer outro lugar. Há muito trabalho para os camionistas aqui. E os turnos são distribuídos de forma justa entre nós. A cooperativa está a cuidar bem das nossas necessidades. Se fosse com uma empresa privada, as coisas seriam diferentes.”

    Perguntei ao homem bem-disposto e falador se percebia o quão importante o lítio poderia tornar-se para a sua terra natal. Mas Juan Carlos apenas balançou a cabeça, sem vontade de responder. “Eu não sei nada sobre isso. Só sei que a fábrica de Rio Grande é uma verdadeira benção. Enquanto os trabalhos continuarem a dar de comer a quem aqui vive, por mim está tudo bem. Só espero que as coisas venham a ser assim nas outras cidades e vilas por todo o Salar.”

    O sol flamejante põe-se lentamente sobre as maiores salinas do mundo. Vastas e negras sombras, de aparência ameaçadora, descem sobre o chão branco resplandecente. Um vento gelado começa a ganhar força, cortando até ao osso.

    “A nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros; a nossa riqueza sempre gerou a nossa pobreza ao nutrir a prosperidade de outros impérios. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro transforma-se em sucata e a comida em veneno.”

    As palavras do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, descrevem o que tem acontecido ao seu continente, no livro América Latina: Cinco Séculos de Pilhagem”.

    Como será o Salar de Uyuni daqui a cinco anos? O que irá o “ouro branco” fazer da Bolívia?

  • Florbela Espanca

    Florbela Espanca


    Cercada por mitos que a etiquetam, Florbela Espanca (1894-1930) é, intermitentemente, evocada pelo emblema que foi, como mulher, na Lusitânia, reprimida, e a poetisa desenquadrada e sem cânone.

    O primeiro mito não pesa apenas no convite ao esquecimento da escrita, sobretudo da lírica, já que a diarística e a narrativa parecem ajudar a construir a imagem da pessoa com quem nos envolvemos, ao passar na rua, por ela ou pela sua memória: pesa no quadro hermenêutico que lhe criamos e nos horizontes (sem expectativas) com que lhe cerceamos os sentidos. O segundo mito, reiteradamente desconjuntado por novas leituras, nunca se poderá desmontar inteiramente, porque Florbela é, insistente e resumidamente, a que “não se integrou no modernismo” circundante e que, dos modelos clássicos, “retirou apenas a moldura restritiva do soneto, sem ter renovado a sua grandeza criativa”.

    Contra este quadro irá a nossa intervenção actual, com a qual pretendemos reforçar argumentos em torno da alta qualidade e rigor na elaboração discursiva que a poetiza atinge, no trabalhar o modelo estrófico do soneto, segundo a disposição extremamente inovadora dos tropos, pelo cruzar de duas figuras enunciativas fundamentais: a elegia e a apóstrofe. Presumimos, basicamente, que a poesia de Florbela recolhida num só livro, que se tem designado, laconicamente, por Sonetos, sendo a que mais percorre a leitura, a atenção e a memória dos seus receptores (e, eventualmente, destinatários), estabelece um sortilégio de apelo que não passa, sobretudo, pelo conteúdo da mensagem, ou pelo estatuto de referencialidade vivencial que, daí, possa ser presumida. Emerge, sim, dos procedimentos poéticos que elabora, persistente e variadamente, numa recursividade que gera efeitos de vertigem pela omnipresença de um dispositivo enunciativo que funciona como o retorno da (quase) mesma mensagem a um(a) destinatário/a marcado por um destino. Tudo se passa como se a entidade apostrofada, um poeta, um destino poético fosse portador de uma palavra adereço, uma insígnia, MORRERÀS, reiterada, desdobradamente, em epitáfios.

    Os dizeres que preenchem a sua poesia são lapidares e sentenciosos, marcados pela vontade de, ainda em vida, proclamarem o aqui e o sempre da morte, numa intimidade de autorreconhecimento em sombras e imagens especulares, que primam, já, pela marca da alteridade espectral, como se patenteia, inteiramente, em “Dizeres Íntimos”, por exemplo:

    É tão triste morrer na minha idade!/ E vou ver os meus olhos, penitentes/ Vestidinhos de roxo, como crentes/ Do soturno convento da Saudade!// E  logo vou olhar (com que ansiedade !… )/ As minhas mãos esguias, languescentes,/ De brancos dedos, uns bebés doentes/ Que hão-de morrer em plena mocidade !//  E ser-se novo é ter-se o Paraíso,/ É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,/ Aonde tudo é luz e graça e riso !// E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova !)/ Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida ! …»/  Responde a minha Dor: «Que linda a cova!» (1980, p.45[1]

    O que a voz declama, antecipadamente, é o estado da morte, a visão de si como outro, auto-revelação que se avança, como um quadro apresentado em prolepse. Poderíamos quase dizer que a apóstrofe, jogando numa intimidade de si para si, constrói, como epitáfio, a estátua da defunta antecipada pela voz do próprio sujeito poético, com a nitidez lapidar da elegia. Reconhecermos a elaboração de uma tal formulação poética exige, antes de mais, que nos alonguemos um pouco na caracterização das figuras que aqui evocamos, especialmente as que temos vindo a referir como dominantes. No entanto, devemos desde já anunciar que, além da elegia e da apóstrofe, as várias figuras que convergem para elaboração dos sucessivos êxtases e estases, variações da forma estática, deverão merecer, também a nossa atenção, através de um especial esclarecimento.

    A elegia[2], no seu sentido mais geral, como o notam os autores da respectiva entrada no Dicionário de Princeton, “em sentido moderno, é poema curto, normalmente formal ou cerimonioso no tom e na dicção, ocasionado pela morte de uma pessoa” (entrada ELEGY, p. 322) . Não é, no entanto, apenas a expressão do lamento, como outras formas poéticas de expressão do pesar, nem se apresenta tão breve e seca como o epitáfio, pois revela-se, muitas vezes, portadora de uma referência ou uma atitude apaziguadora ou mesmo consolatória.

    Numa perspectiva mais ampla, que pretenda apresentar um denominador comum da elegia nas suas variadas emergências ao longo da história, nas diversas literaturas ocidentais, pode dizer-se que é um poema de meditação sobre o amor e/ou a morte. Não é por acaso que a sua origem etimológica vem do termo grego “elegos”, que significa “lamento”, origem a que um tratadista francês do século XVI, Sébillet, faz referência: “Lamentos e deplorações parecem estar na elegia que não os expressa claramente. Porque elegia quer dizer lamento”. No entanto, definindo-a mais especificamente, diz o mesmo autor que a elegia é “triste e flébil: e trata com singularidade as paixões amorosas […]” (cf. in Goyet, 1990, pp. 140-141 e 128-129).

    Amor e morte, sim, em conjugação, numa tonalidade pessoal de quem medita acerca de um “desgosto, quase sempre amoroso”, cavando em negrume “a nostalgia e a melancolia” que “são os temas apropriado ao tom elegíaco” (Aquien, 1993, p.120; entrada élegie[3]). Contudo, sobre os modos de essa temática se formalizar, de se pormenorizar em motivos, é um poeta como Boileau que, na sua Art Poétique, mais nos esclarece:  “La plaintive Élégie, en longs habits de deuil./ Sait, les cheveux épars, gémir sur un cercueil./ Elle peint des amants la joie et la tristesse,/ Flatte, menace, irrite, apaise une maîtresse./ Mais, pour bien exprimer ces caprices heureux,/ C’est peu d’être poète, il faut être amoureux” (Art Poétique, Canto II, versos 39 a 44).   

    Toda a poesia de Florbela está cheia desses índices, desses motivos representativos do estado amoroso e do sentimento de luto e morte que lhe anda ligado: “No lânguido esmaecer das amorosas/ Tardes que morrem voluptuosamente/ Procurei-O no meio de toda a gente./ […] Em toda a nossa vida anda a quimera/ Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas…/  – Nunca se encontra Aquele que se espera!…” (“Le Prince Charmant…” p. 88). Note-se, neste exemplo, o efeito declamatório do soluçar, representado por todos os processos de entrecortar do discurso, desde o encavalgamento, logo entre o primeiro e o segundo verso, e as suspensões, verdadeiras formas emblemáticas da prece desenquadrada do ritual, evoluindo enquanto pulsar anímico. Não se trata, fundamentalmente, de enunciar a melancolia, declamando estados anímicos de dor, sofrimento e angústia.

    Fundamentalmente, é todo um cenário a evocar essa intimidade fúnebre, deslizando a ladainha para a enumeração macabra: “Poeiras de crepúsculos cinzentos. Lindas rendas velhinhas, em pedaços, […] meus cabelos,  como brancos fantasmas, […] Monges soturnos deslizando lentos, […] Ergue-se a minha cruz dos desalentos !” (“Cinzento” p. 92); […] Traçaste em mim os braços duma cruz, […] Minh’ alma […] É nesta noite o nenúfar de um lago” (“Nocturno” p. 93); […] Castelos, um a um, deixa-os cair …/ Que a vida é um constante derruir e palácios do Reino das Quimeras!/ E deixa sobre as ruínas crescer heras./ Deixa-as beijar as pedras e florir!/ Que a vida é um Continuo destruir/De palácios do Reino das Quimeras” (“Ruínas” p.96).

    Não está ausente, nesta poesia, uma terminologia abstracta para referir estados de espírito. No entanto, ela é quase sempre reforçada, no seu sentido pleno, por um décor complementar de motivos, que se tornam verdadeiros significantes fundadores do sentido. Verifica-se isso, por exemplo, num soneto como “Neurastenia” (p. 49), onde, depois de declarado o sentimento abstracto de “tristeza”, o sujeito poético declina toda a série substantiva que constitui o estado de alma:

    “Um sino dobra […]/ a chuva, brancas mãos esguias,/ Faz na vidraça rendas de Veneza …/ o vento desgrenhado chora e reza/ Por alma dos que estão nas agonias!/E flocos de neve, aves brancas, frias,/ Batem as asas pela Natureza …/ Chuva … tenho tristeza! Mas porquê? !/ Vento. .. tenho saudades! Mas de quê? !/ Ó  neve que destino triste o nosso I/ Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!/ Gritem ao mundo inteiro esta amargura, […]”.

    Não obstante a imensa força poética com que esta figuração fecunda os sonetos de Florbela, dando espessura à postura elegíaca fundamental que a todos atravessa, a manifestação poética que deles emana não teria o asserto profundo de clamor cósmico, em busca de resposta sempre perdida ou sempre adiada, se a apóstrofe não se fizesse sentir irradiantemente como vociferação, vocalização da paixão. O poema “Este Livro…” (p. 37), que serve de frontispício ou proémio à sua obra, e a representa desde que foi poema de abertura da sua obra de estreia é revelador dessa vocação vozeante:  

    Este livro é de mágoas. Desgraçados/  Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!/ Somente a vossa dor de Torturados/  Pode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo./ Este livro é para vós. Abençoados/ Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!/ Bíblia de tristes … Ó Desventurados,/ Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo !/ Livro de Mágoas … Dores .,. Ansiedades !/ Livro de Sombras … Névoas e Saudades!/  Vai pelo mundo … (Trouxe-o no meu seio … )/ Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,/ Chorai comigo a minha imensa mágoa,/ Lendo o meu livro só de mágoas cheio ! …”       

    Patenteia-se aqui um excelente exemplo  de apóstrofe, que  Fontanier caracteriza do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um interlocutor (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios”  (1968, p. 371”). Todas as possibilidades enumeradas pelo retoricista francês do século XIX podem ser encontradas em Florbela: em “Castelã da Tristeza”, deparamo-nos com a figura ficcional, nascida da metáfora, tornada interlocutora: “Vivo sozinha em meu castelo: […] Castelã da Tristeza, vês? … […] Castelã da Tristeza porque choras […]?” (p.40); em “Dizeres Íntimos”, surge a entidade abstracta, quase em psicomaquia alegórica: “E os meus vinte e três anos … (Sou tão nova !)/ Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida ! … »/ responde a minha Dor: «Que linda a cova!»” (p. 45); em “Pequenina”, o vocativo inflecte para uma interlocutora de acaso, presumível alter ego da entidade poetiza, ou projecção desta numa criança com a qual identifica a sua própria infância: És pequenina e ris … […] Pequenina que a Mãe de Deus sonhou,/ Que ela afaste de ti aquelas dores/ Que fizeram de mim isto que sou !” (p. 48); em “A Maior Tortura” dedicado “A um grande poeta de Portugal”, a entidade anónima designada em epígrafe é apostrofada: “[…] Não ser poeta assim como tu és”; em “A Flor do Sonho”, evoca-se o próprio ser da natureza, tornado objecto onírico: “Ó flor que em mim nasceste […]” (p.50); e ainda, como em  “A Voz da Tília”,  a reversão total da origem enunciativa permite que o ente inerte da natureza domine o discurso, onde a voz da “poetiza” é tão só pouco mais do que um verso contextualizante, ainda que a sua pessoa seja o destinatário:

    Diz-me a tília a cantar: «Eu sou sincera,/ Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;/ Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,/ Este ar escultural de bayadera …/ E de manhã o sol é uma cratera,/ Uma serpente de oiro que me enlaça…/ Trago nas mãos as mãos da Primavera …./ E é para mim que em noites de desgraça/ Toca o vento Mozart, triste e solene,/ E à minha alma vibrante, posta a nu,/ Diz a chuva sonetos de Verlaine … »/ E , ao ver-me triste, a tília murmurou:/ “Já fui um dia poeta como tu …/ Ainda hás-de ser tília como eu sou … »” (p. 147).

    Deste circuito em que o anímico, o abstracto, o inerte e o humano se interpenetram, sobressai uma imensa figura matricial, uma espécie de Cibele que “ordena e dirige a potência vital” e que, “de forma quase delirante, simboliza os ritmos da morte e da fecundidade, da fecundidade pela morte” (cf. Chevalier e Gheerbrant, p. 331 – entrada CYBÈLE), que transforma a voz poética em mera intermediária e difusora do seu discurso. Presença que já Jorge de Sena observara quando afirma: “[…] não são as deusas helénicas da escultura, tornadas cânones de beleza, mas as deusas misteriosas da terra e do céu, as que viveram de facto no coração dos Gregos. Se quisermos um ciclo mítico da feminilidade de Florbela, podemos pôr: noite, terra, lago, sombra, noite, e o ciclo recomeça: «Mas eu sou a manhã: apago as estrelas»” (1988, p. 41). Sobre esta assunto, aliás, retomaríamos, sem grandes alterações, o que já escrevemos num outro lugar:

    A própria coquetterie, o jogo amoroso culto, civilizado, com processos de «salão», tem, na poesia de Florbela, uma representação selvagem, uma matriz substanciai fortemente impregnada de natureza, madeira, mater. Mas não é o campo que se torna palco da sociabilidade cortesã. Não são os elementos da natureza que se ritualizam no jogo do “fin amour”). É a árvore que se impõe como modelo de elegância airosa, que fornece os padrões do arrebatamento amoroso, num universo onde os elementos permutam a sua essencialidade que é, apenas, circunstancial” (in Lopes, Fernando,  Martinho (e outros), 1997: 231).

    Toda esta dimensão cósmica é propiciada, por assim dizer pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. Ainda no dizer de Fontanier, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).

    Primeira edição de “Livro de Mágoas”, a primeira obra de Florbela Espanca, publicada em 1919.

    Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço encenado, nomeadamente fazendo parte do universo diegeticamente referido.

    No interior de uma narrativa, por exemplo, a apóstrofe pode vir de um narrador auto-diegético, que relata uma situação em que se insere, como personagem/actor vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinador (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação que não é para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra.

    Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28[4]). É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/poeta e um enunciatário/leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação (miticamente a do real onde o autor e o leitor se encontram) os elementos fantásticos do imaginário.

    Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge). Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150).

    A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo, ponto “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151)  partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o próprio sistema de enunciação do lirismo, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes  omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.

    Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:

    O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973,p. 245).    

    Segunda obra de Florbela Espanca é de 1923, uma edição de autora.

    É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica. Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões.

    Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Perrine, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (in New Princeton Enciclopedia[5], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente[6] e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia.  Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.       

    É claro que, em primeiro lugar, deve notar-se que a percentagem de poemas de Florbela que apresentam, de modo evidente, a estrutura da interpelação, ao nível da enunciação, é bastante grande. No Livro das Mágoas, primeira obra que publicou e que constitui a primeira parte da sua obra recolhida em Sonetos, encontramos o claro enunciado apostrófico no primeiro soneto “Este livro”: […] “chorai ao lê-lo” […]; no quarto “Castelã da Tristeza: […] “vês? A quem?” […]; no sétimo “Torre de Névoa”: a resposta dos poetas, como inversão da apóstrofe; no nono, “Dizeres íntimos”, onde o mesmo mecanismo de reversibilidade aparece, tal como o apresentámos acima; no11º, “Neurastenia”: […] ”Chuva…tenho tristeza […]; no 12º,“Pequenina”: […] “És pequenina e ris” […]; no13º, “A Maior Tortura” […] “Sou como tu” […]; no 14º, “A Flor do Sonho”: […] “Ó flor que em mim nasceste” […]; no 15º, “Noite de Saudade”: […] “Porque és assim tão escura” […]; no 16º, “Angústia”: em reversão a pergunta da angústia  […] “«O que te resta?…»”; 17º, “Amiga”: […] “Deixa-me ser a tua amiga” […]. Para abreviarmos esta contagem de simples indicação, enumeramos os poemas seguintes do livro em que aparece qualquer destas formas de vocativo, de discurso directo instituindo explicitamente um “tu”: 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 31º, 32º.   

    Num cômputo final, podemos dizer que 21 poemas com explicitação da apóstrofe, num conjunto de 32, é indicador que nos permite falar com segurança de uma imponente presença de um tal dispositivo de enunciação. E isto sem contarmos os casos em que, nos restantes poemas, a figura aparece disfarçadamente, sob a forma de um desdobramento da personagem poetisa, criando a solidão como o lugar que se defronta com a ausência, onde o outro não surge como ouvinte ou como voz, mas quase como instância transcendente, como se patenteia em “Eu” (3º soneto do livro): “Sou talvez a visão que Alguém sonhou,/ Alguém que veio ao mundo pra me ver/ E que nunca na vida me encontrou !” (p.39).

    woman leaning against a wall in dim hallway

    Este último caso é muito curioso, pois estabelece um horizonte cósmico de vastidão, no qual a afirmação do eu se processa sempre por desajustes de percepção, por desencontros e mesmo por impossibilidade transcendental de o “eu” se constituir, exactamente pela exclusão quase metafísica do “outro”, necessário como presença para formar os contornos do Eu. É claro que, nesta ontologia, existe um extravasar primário dos lamentos do eu, numa espécie de ladainha de adolescente face à “incompreensão do mundo onde nunca é inteiramente reconhecida”. Contudo, o interessante, em Florbela, é a habilidade de remanejar o filão de lugares-comuns estafados do ultra-romantismo, particularmente os bordões frásicos do lirismo declamatório (a que nem um Antero foi inteiramente imune, diga-se de passagem) para os redistribuir numa complexa proclamação do ser como objecto dos “outros”, ou lugar vazio para o grande “Outro” que o/a deveria constituir.

    Esta constante tentativa de apresentação do Eu como entidade constituída, tem, no desenvolvimento da toada de ladainha, uma espécie de meta escritural. Em muitos dos seus poemas é óbvia a vontade de deixar patente a forma de um epitáfio, os dizeres necessários e suficientes para instaurar a morte como completude, única forma de o Eu, dissoluto por não ser encontrado, por não encontrar eco, achar forma final onde é despojo como ente, arrojado como uma natureza morta. Lapidares são, forçosamente, os elementos da sua morada. Di-lo por exemplo, em “A Minha Dor”:

    A minha Dor é um convento ideal/ Cheio de claustros, sombras, arcarias,/Aonde a pedra em convulsões sombrias/Tem linhas dum requinte escultural.//Os sinos têm dobres de agonias/Ao gemer, comovidos, o seu mal…/E todos têm sons de funeral/Ao bater horas, no correr dos dias”.

    A passagem pelo mundo é, aliás, uma espécie de experiência ritual em que as pessoas, as coisas, os elementos da natureza com quem o eu se cruza, talham a sua forma final, forçosamente, pelo que a sua formulação tem sempre o tom lapidar do epitáfio. Voltamos a encontrar esse modelo expressivo, por exemplo, numa obra sua já de pleno desenvolvimento, O Livro de Soror Saudade. No soneto, “Mistério”, podemos ler: “Gosto de ti, ó chuva, […]./Pelo meu rosto branco, sempre frio,/Fazes passar o lúgubre arrepio…/Das sensações estranhas, dolorosas …/Talvez um dia entenda o teu mistério …/Quando, inerte, na paz do cemitério,/O meu corpo matar a fome às rosas!”      

    Se, de facto, apostrofar é, como afirma Culler, “desejar um estado de coisas, tentar fazer com que isso aconteça, pedindo aos objectos inanimados que se curvem aos nossos desejos” resultando daí que “a função da apóstrofe seria fazer dos objectos do universo forças que respondem: forças às quais podemos pedir que actuem ou deixem de actuar ou, ainda, que continuem a comportar-se como antes”, então, “o poeta que apostrofa identifica o seu universo com um mundo de forças sensitivas” (2001, p. 154). Ora, vendo bem, essa parece ser a constante construção da poesia de Florbela, como vamos encontrar, já plena maturidade de produção lírica, em “Noitinha”, soneto recolhido em Charneca em Flor:

    A noite sobre nós se debruçou …/ Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!/ O luar, pelas colinas, nesta hora,/ É água dum gomil que se entornou ..// Não sei quem tanta pérola espalhou!/Murmura alguém pelas quebradas fora…/F1ores do campo, humildes, mesmo agora,/ A noite os olhos brandos lhes fechou … //Fumo beijando o colmo dos casais…/Serenidade idílica das fontes,/ E a voz dos rouxinóis nos salgueirais,//Tranquilidade… calma… anoitecer … /Num êxtase, eu escuto pelos montes/ coração das pedras a bater …

    De tal modo é intensa evocação das vozes plangentes, em murmúrio, o tom geral interpelativo sustentado em cada um dos itens, para lá da sua forma superficial de constatação, que todo o soneto parece um sibilino circular de observações de um mundo que maravilha e provoca a exclamação, onde tudo parece expressivo e perceptivo, animais, plantas e próprios “entes” minerais. A dramaticidade, constantemente assumida por Florbela, patenteia-se, aqui, de modo quase retoricamente esplendoroso.

    De facto, intensifica-se, neste trecho da sua poética, o apelo à “leitura onde o vocativo da apóstrofe é um mecanismo que a voz poética usa para estabelecer com um objecto uma relação que o ajuda a constituir-se. O objecto é tratado como um sujeito , um eu que implica, por sua vez, um certo tipo de tu. Aquele que invoca, com sucesso, a natureza, é alguém a quem a natureza deve, por sua vez, falar” (Culler, 2001, p. 157).

    O universo que o discurso patenteia é aquele onde o poeta já não necessita de utilizar, explicitamente, o vocativo, para ostentar a sua íntima relação com as coisas e comunicar, mesmo com aquelas que, aparentemente, são insensíveis, incapazes de reacções, frémitos ou manifestações de vitalidade. Este poeta, que domina inteiramente a apóstrofe, que visiona a sua própria prostração na morte, vive já na pura intimidade de uma transcendência espiritual, é capaz de sentir as vozes e as palpitações dos próprio minerais, bem como perceber os sinais anímicos que todos o universo emite. A sua constituição como presença poética é tão forte que, habitualmente, é o tu a quem as vozes das pedras, das árvores, das bênção e das inclemências da natureza se dirigem.

    Assumimos, em relação a Florbela, o funcionamento da apóstrofe enquanto afirmação da transcendência, por ela ser, em quase todos os momentos, a manifestação do desejo de permanência do poeta, ou mesmo do desejo enquanto afirmação da presença. Como diria Culler, “o poema nega a temporalidade” (200, p. 168) sobretudo pelo uso da apóstrofe ou da função interpelativa: “ A apóstrofe resiste à narrativa porque o seu agora não é um momento na sequência temporal, mas o agora do discurso, da escrita” (Culler, 2001, p. 168).

    person sitting on blue wooden bench on beach during daytime

    Citando De Man, ele vem lembrar-nos que “«a ameaça latente que reside na prosopopeia, nomeadamente porque, fazendo os mortos falar, a estrutura simétrica do tropo implica, da mesma maneira, que os vivos emudeçam, petrificados na sua própria morte»” porque a ficção da interpelação, como aquela que surge no epitáfio, “«adquire, desse modo, uma conotação sinistra, que não é apenas a da própria mortalidade, mas, também,  a de entramos, nesse momento, no mundo petrificado dos mortos»” (Culler, 2001, p. 169).

    Não seria demais sublinhar, com alguns exemplos, como essa reversibilidade está, quase sempre, presente em Florbela. Entre os seus primeiros poemas, poderíamos destacar “Torre de Névoa” onde se lê: “pus-me, comovida, a conversar/Com os poetas mortos, todo o dia.” Mas o tema da reversibilidade do estado de natureza inerte, quando se faz a evocação dos mortos, ou dos entes inanimados, é constante. Lemos, em Charneca em Flor, em “A Um Moribundo”, o consolo que vem, como promessa, da voz de um moribundo evocado.  Nesse livro, ainda, a própria natureza inerte, a água da chuva, por exemplo, em “Mistério”, transmite, por contacto, as sugestões da “verdade”: “Pelo meu rosto branco, sempre frio,/ Fazes passar o lúgubre arrepio/ Das sensações estranhas, dolorosas…// Talvez um dia entenda o teu mistério…/Quando, inerte, na paz do cemitério,/ O meu corpo matar a fome às rosas!”.

    Como todo o grande poeta, Florbela é, sobretudo, atenta ao ritual de enunciação em que discursa e mima para as fantasmáticas sombras dos destinatários, fantasias dos actos de comunicação e de contacto, representadas, como tal, no enunciado. Mesmo nos elementos do mundo ou imagens do corpo que escolhe, Florbela é, até certo ponto, uma herdeira, mais ou menos consciente, das grandes fontes do romantismo. Podermos pensar, ao ler o enunciado do seu poema, “As Minhas Mãos”, quando afirma, “mãos de enjeitada porque tu me enjeitas…/Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!/Pra que as quero eu – Deus! – Pra que as quero eu?!/ Ó minhas mãos, aonde está o Céu?/Aonde estão as linhas do teu rosto ?//”, que, tal como afirma Culler, sobre o provável leitor de “This Living Hand”, de Keats, o receptor do poema da poetisa portuguesa “procurará ignorar a sua morte, será cego ao facto de” ela “estar mort[a]o através de um acto de imaginação” se formos capazes de “aceitar um tempo puramente ficcional no qual podemos acreditar que a[s] mão[s] est[ão]á de facto presente[s]  e perpetuamente estendida[s] para nós, através do poema” (2001, p. 171).        

    Colocando a apóstrofe nesta dimensão discursiva, percebemos que, no fundo, Bakhtine, sem que disso fizesse explícita questão, não fez outra coisa senão teorizar a grande encenação lírica, quando, para quase todos os exegetas, esse era um género menorizado no grande grupo dos discursos monológicos. Nada menos verdadeiro! Percorrendo a apóstrofe e prosopopeia de Florbela, é o poderoso modelo dialógico de Bakhtine que nos ocorre para, mais cabalmente, podermos explorar o sistema enunciativo da poetisa. Como encerramento provisório desta abordagem (que, como se vê, não explora satisfatoriamente o seu objecto, pretendendo ser apenas introdução a um conjunto de problemas por explorar) deixamos expressa essa perspectiva bakhtiniana através da síntese que dela faz um seu exegeta:

    Quando o terceiro participante é puxado para o discurso através da personificação ou da apóstrofe, a segunda pessoa deve ser antiteticamente situada ou seduzida – assim, inscrita – como testemunha ou aliado. […] É interessante que, para Bakhtine,  o diálogo é não dialógico  […]. Este só pode existir mobilizado pela tentativa de usurpação de uma sempre imaginária posição de primeiro falante pelo Ouvinte (ou Leitor), através da qual aquele (o primeiro falante que, personificando o seu destinatário, apenas pode simular retrospectivamente a posição da primeira pessoa) é representacionalmente como que morto pelo acto de fala, tornando-se, por sua vez, uma terceira pessoa – antes da “sentença” (Cohen, 1998, p.85).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa

    ESPANCA, Florbela, Sonetos, Lisboa, Bertrand, 1980

    Passiva

    CHEVALIER, Jean e A. Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Laffont

    COHEN, Tom, 1998, Ideology and Inscription, Cambridge, University Press

    CULLER, Jonathan, 2001, The Pursuit of Signs, Londres, Routledge

    FONTANIER, Pierre, 1968, Les figures du discours, Paris, Flammarion

    FRYE, Northrop, 1973, Anatomia da Crítica, S. Paulo, Cultrix

    GOYET, Francis, 1990, Traités de poétique et de rhétorique de la Renaissance, Paris, Le Livre de Poche

    LOPES, Óscar, 1997, F. J. B. Martinho (e outros), Florbela Espanca – A Planície e o Abismo, Lisboa, Vega

    SENA, Jorge de, 1988, Estudos de Literatura Portuguesa – II, Lisboa, Edições 70


    [1] Citamos sempre os poemas de Florbela segundo a 18ª edição da obra, tal como foi publicada pela Bertrand em 1980.

    [2] Apoiamo-nos amplamente no texto das entradas (ELEGIA, APÓSTROFE e outras, correspondentes a conceitos de poética e retórica aqui utilizados) de The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, publicado por Alex Preminger e T.V.F. Brogan, Princton Paperbacks, Nova Jérsia, 1993; do Dictionnaire de poétique et de rhétorique, de Henry Morier, PUF, Paris, 1989; do Vocabulaire de la Stylistique de Jean Mazeleyrat e George Molinié, PUF, Paris, 1989; do Dictionnaire de rhétorique, de George Moilinié, Le Livre de Poche, 1992; e do Dictionnaire de poétique de Michélle Aquien, Le Livre de Poche, Paris, 1993. Outras referências serão oportunamente indicadas no corpo do texto. 

    [3] Ver nota 1

    [4] Ver nota 1

    [5] Ver nota 1.

    [6] Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação da lírica. 

  • A conspiração romântica em Dumas

    A conspiração romântica em Dumas


    Entendemos o mecanismo conspirativo como uma sequência de três momentos: a deliberação de um objectivo – em princípio projecto de alteração de um estado de coisas, resultante das aspirações que visam atingir um indivíduo ou um colectivo; a afirmação do empenho em modelos de juramento ou conjuração, o que nos leva para dimensão ilocutória do performativo, sob a forma de injunção; e a acção conspirativa propriamente dita, em que se passa do falar ao fazer.   

    A dimensão epistemológica de um tal modelo merece ser evidenciada na medida em que é ela, aparentemente, que torna esse tipo de intriga tão apetecido pelos seres humanos, seja qual for a sua idade ou religião, sejam quais forem as suas   identificações étnicas ou sexuais, independentemente dos seus princípios éticos, filosóficos ou ideológicos. Segundo o modelo conspirativo, os nossos desejos e crenças, emocionalmente geradas, tornam-se racionalmente explicáveis.  

    Alexandre Dumas (1802-1870)

    Na perspectiva de Falzon, subjaz uma certa apetência de tranquilidade e conforto, generalizados, a “uma visão do mundo que é confirmada”, através da fabulação conspirativa, “por todas as coisas que encontramos”,  sendo também essa visão a “que pode explicar eficazmente todas as inconsistências com que nos deparamos[…]” (2002: 202). Segundo o mesmo filósofo, ainda, esse raciocínio completa-se, fechando-se, como um delírio paranóico:

    “[…] Este é o erro em que é típico caírem os teóricos da conspiração. Para eles, tudo é parte da grande conspiração. Se não há provas de que existe a conspiração, ou pelo menos não se manifestam em quantidade suficiente, é óbvio que foram sonegadas para ocultar o que se está a passar. Se alguém critica o teórico da conspiração, esse alguém passa a fazer parte da conspiração” (Falzon, 2002:202)

    Este modelo de raciocínio, a que os lógicos chamam “falácia da irrefutável hipótese”, também é conhecido pelo nome de “falácia da invencível ignorância”. Esta formulação, que opera segundo as exigências formais mais ostensivas do enunciado lógico, sobretudo o silogístico, é a matriz de quase todas as sentenças ou discursos assentes na crença ou mesmo na fé. De facto, como nota ainda Falzon, uma tal maneira de estruturar o discurso “envolve uma patente recusa” , por parte daquele que argumenta segundo esses princípios, “de ter em consideração provas que são contrárias à crença a que se entrega” (2002: 202).

    O estatuto dado ao inimigo, segundo uma perspectiva conspiratória, assenta, frequentemente, numa teia de acusações de comportamentos “diabólicos”, ora hiperbólicos, ora ficcionais. A organização do inimigo assim “identificado” assume, quase sempre, a imagem de uma “conspiração” contra as instituições e os cidadãos dos países, dos grupos ou das organizações que desenvolvem o libelo acusatório. É difícil, por isso, não elaborar uma atitude conspiratória quando se delineia a conspiração que é atribuída aos outros (desenvolvendo, em relação a eles, uma definição da alteridade apoiadas nas formas mais ou menos míticas ou mesmo fantasmáticas do “OUTRO”).

    grayscale photo of person holding glass

    No entanto, há uma dimensão neste vício lógico, presente também nos exemplos que extraímos da realidade política, que nos parece positivamente estruturante da construção ficcional, apesar de se organizar, enquanto mecanismo lógico, como “sistema fechado, dogmático e irrefutável, dentro do qual tudo o que encontramos parece confirmar as nossas crenças” (Falzon, 2002: 202). Essa dimensão de que falamos é muito parecida com a famosa “suspensão da descrença”, afirmada por Coleridge na sua Biographia Literária, que institui o pacto ficcional através do qual representamos um universo no qual projectamos desejos, medos, anseios e paixões.

    Este processo, em que os lógicos vêem uma interpretação dos factos e das hipóteses, encaminhados, ou mesmo distorcidos, para fortalecer uma visão afectiva ou emocionalmente empenhada, é constante na ficcionalização. Pode ser pernicioso se o usamos para defender um objectivo político, camuflando motivações partidárias; mas pode ter uma função de emprego dialogicamente dinâmico do verosímil, caso o façamos evoluir como uma narrativa literária,  teatral ou cinematográfica, de prioritários princípios poéticos, ou mesmo lúdicos.    

    Viria a propósito lembrar, em reforço da perspectiva que aqui apresentamos, o que nos diz Umberto Eco sobre a questão da presença dos códigos fortes, na construção da hipótese científica, e dos códigos fracos, na construção do verosímil. Entende-se, sobre este último termo, que ele fornece uma  perspectiva das coisas, das ocorrências e das causas, enfatizando “as ligações” que “se fundam prioritariamente sobre as convenções e as opiniões estabelecidas” (1988: 49). A atracção que muitas obras narrativas exercem sobre os públicos que fidelizam, tem origem nesse mecanismo retórico de base. Os “thrillers teológicos” como o Da Vinci Code (que citamos, como exemplo privilegiado de   fábula ou história – no sentido que lhes davam os formalistas russos e os narratólogos estruturalistas  –  por economia de exposição, quer na versão literária de Dan Brown, quer na cinematográfica de Ron Howard) assentam o seu êxito no facto de neles aparecer a “mitologia das sociedades secretas e o imaginário do complot,” que “desta forma continuam a manifestar-se materiais simbólicos privilegiados do romanesco popular” (Taguieff, 2005:54).

    Relembramos, no entanto, que essa mitologia satisfaz (ou procura satisfazer, pelo menos) uma necessidade básica de busca de compreensão ou de certeza. Com algumas reservas, poderíamos chamar-lhe dimensão epistemológica, uma vez que essas narrativas fornecem “explicações” para enigmas que são fonte de preocupação para o indivíduo e para a comunidade em que se inscreve.

    O que permanece como enigma teológico e institucional, na narrativa de Brown, é a justificação para existência e actuação das forças que se pretenderiam contra-conspiratórias, ainda que se apresentem elas própria como sociedades ou grupos tão enigmáticos e misteriosos como as práticas conspirativas que supostamente combatem: o “Priorado do Sião”, os “Templários” e outros agentes similares são entidades quase secretas, ou com amplos conjuntos de actuações pouco explicáveis, que se presume combaterem as actuações conspirativas da Igreja de Roma.

    E isso acontece, por exemplo, porque, mesmo nos países católicos, sendo difícil explicar a ausência de figuras femininas nas hierarquias eclesiásticas, faz todo o sentido entender os motivos e as acções que instituíram tal limitação, segundo uma teoria da conspiração.  E isso pode ser entendido assim se aceitarmos que “os acontecimentos históricos que são percebidos como opacos ou absurdos poderiam ser explicáveis por um ou vários complots e, em última análise, serem atribuídos a intenções e acções humanas” (Taguieff, 2005: 19) que visam concertar-se a favor dos interesses de um grupo, em detrimento, mesmo gravoso, de outro grupo considerado adverso.

    Assim, a teoria da conspiração assegura uma espécie de encenação, a que poderíamos chamar complot, designando, desse modo, o esquema de disposição do conteúdo narrativo, ou de organização da fábula. A partir do nível estrutural em que nos achamos primordialmente, o da matéria controversa, dá-se a transformação operada pelo acto de dramatização poética que, manipulando a matéria do conteúdo, produz o mecanismo da intriga, ou narrativa, aquele em que pesa, sobretudo, o entretecer das acções e dos percursos ou objectivos contraditório que são contados. É a esse nível que a narrativa explica, ou procura tornar inteligível o mundo, numa estrutura dramática, embora sem descurar o seu desenvolvimento segundo um discurso em que muito contam os aspectos apelativos da composição poética textual criada pela voz épica ou pela perspectiva dominante.

    blue and black mask illustration

    Ao “explicar” e “unir” e conjuntos de eventos e aspectos historicamente reais que se revelam paradoxais, absurdos ou enigmáticos, a narrativa assume os foros e funcionalidade do mito, entendendo este no seu sentido canónico mais amplo. A definição que Lévi-Strauss nos oferece, na sua obra O olhar distanciado, poderia ajudar-nos a compreender melhor a função epistemológica que este género de narrativas proporciona: “O mito jamais oferece àqueles que o escutam uma significação determinada. O mito limita-se a propor uma grelha que se define pelas regras da construção” (1986: 210).

    O mito oferece, com essa sua grelha, qualquer coisa semelhante àquilo que, segundo Umberto Eco,  o discurso dos filósofos da linguagem, desde a Antiguidade Clássica, tem tratado como “signo fraco”, ou seja, aquele que, quando indicia o que se concebe como causa, não remete necessariamente para a determinação dos “efeitos possíveis (prognóstico)”  ou, inversamente, aquele que, sendo percebido como efeito, não é necessário que tenha origem numa causa presumida (diagnóstico – cf. Eco, 1988: 48).

    Eco faz ainda um reparo sobre a matéria em questão que nos perece de extrema importância para compreendermos a “lógica” do mito e, mais explicitamente, para o entendimento da narrativa empolgante, que explora a possibilidade complotista: “se o analisarmos mais atentamente, verificamos que mesmo este signo fraco [o de causa suficiente, não necessária] não está desprovido de uma certa «necessidade», apenas com a diferença que remete não para uma causa, mas para uma classe de causas” (p. 48). Passamos da certeza epistemológica, segundo as exigências científicas, para uma exigência de explicação que alimenta o mito e que poderíamos formular, hipoteticamente, da seguinte maneira: “Sabemos que tem de existir uma causa, e a nossa hipótese é…” ou “Alguém causou uma morte, ou praticou um acto reprovável e, pelos indícios de que dispomos, esse alguém, SÃO ELES”.

    people walking inside library

    Tal designação, assim, amplificada e indeterminada, é o eixo central da teoria da conspiração, pois o conteúdo designado por “ELES”, a “causa do mal”, é o conjunto de pessoas, o grupo, a facção ou etnia que, de acordo com aquilo em que a opinião colectiva acredita, diz que é, uma vez que “a um nível retórico as relações de causa efeito se fundam, quase sempre, em convenções estabelecidas […] dependendo isso apenas dos códigos e guiões que essa comunidade regista como bons” (Eco, 1988: 49).     

    Já se vê que o mito funciona numa dimensão a que poderíamos chamar a da suposição de causas (“o que vem antes é causa do que vem depois” – cf. Barthes,1966:10) e das necessidades explicativas (para explicar tal fenómeno, o mais provável é ter-se verificado determinado antecedente).  É pelo facto de, como diz Eco, “no plano semiótico as condições de necessidade de um signo” serem “fixadas socialmente, ora de acordo com códigos fracos, ora segundo códigos fortes”, que “um acontecimento se pode tornar um signo seguro, mesmo que cientificamente não o seja” (1988: 49). Vai um passo, epistemologicamente quase insignificante, desta construção retórica da verdade à outra, do mito, de que nos fala Lévi-Strauss, uma vez que todas as concessões à exigência epistemológica, em sentido lógico-científico forte, para compreender os factos e os eventos, já foram feitas antes:

    Um mito propõe uma grelha, somente definível pelas suas regras de construção. Para os participante numa cultura a que respeite o mito, esta grelha confere um sentido não ao próprio mito mas a tudo resto: ou seja, às imagens do Mundo, da sociedade e da sua história, das quais os membros do grupo têm mais ou menos claramente consciência, bem como das interrogações que lhes lançam esses diversos objectos. Em geral, esses dados esparsos falham quando tentam unir-se e, na maior parte das vezes, acabam por se contrapor. A matriz da inteligibilidade fornecida pelo mito permite articulá-los num todo coerente. Diga-se de passagem que este papel atribuído ao mito assemelha-se àquele que Baudelaire parece atribuir à música” (Lévi-Strauss, 1986: 210).

    De facto, as narrativas de grande acolhimento popular, que encontram uma audiência de culto entre as massas, sobretudo pelas mensagens hipotéticas ou conjecturais que introduzem, fazem apelo a essa vontade de explicação, de compreensão “epistemologicamente acomodatícia” que parecem convocar.  Assim, para o cidadão que se preocupa com o sentido da política mundial, sem ter conhecimento dos seus fundamentos, nem meios de acesso a fontes informativas para isso, a visão conspiracionista tende a tornar-se uma teoria que poderá fornecer um sentido holístico escondido o qual, por sua vez, explicaria o desconcerto observado.

    Smoke trails from the Space Shuttle Challenger disaster explosion

    O que se torna narrativamente produtivo é o facto de os detectores de complots buscarem um saber esotérico que, por sua vez, parece sustentar-se num mecanismo de iniciação, embora possa suscitar reservas a quem busque um percurso científico de compreensão dos fenómenos. Tal saber secreto, salvo raras excepções, teria sido desenvolvido, segundo as narrativas explicativas, por um grupo de conjurados, afirmados, muitas vezes, como conspiradores contra as instituições dominantes.

    Procurando decifrar as aparências para conhecer a verdade oculta do poder, os esotéricos conspiram para aceder ao segredo, pois o culto do segredo, quer procuremos guardá-lo, quer desejemos descobri-lo, é o que une a conspiração do poder à conspiração dos  gnósticos,ou investigadores esotéricos, que parecem contestar o poder por ele ser conspirativo. Uma tal compreensão do mundo, por assentar numa explicação cujo mecanismo de base é a confusão lógica entre a anterioridade e a causalidade (post hoc, ergo propter hoc – tal como argumentava Barthes, no texto da revista Communications que acima refertimos) por ser a lógica da ficcionalidade, não pode ser cientificamente satisfatória para estabelecer uma imagem credível do mundo em que vivemos. No entanto, ela estrutura-se enquanto lógica do verosímil. Se não configura uma possibilidade satisfatória no campo da episteme, compete com esta nos campos do possível em direcção a uma apetecida aletheia.[i]

    Remo Ceserani, logo no início do seu estudo, “L’immaginazione cospiratoria”, publicado em 2003, afirma que é possível distinguir “três fases na longa história da imaginação conspiratória, correspondentes a três diversos tipos de organizações sociais e a três formas históricas diferentes de conspiração e das suas significações e significados” (in Synapsis, 2003: 7).

    white rope on white textile

    Esta perspectiva histórica é muito interessante, para o nosso ponto de vista, por duas razões: por um lado, estabelece, a partir de bases de investigação que não são as que desenvolveremos aqui, uma periodização que nos será muito útil para contextualizarmos tão coerentemente quanto nos é possível, o corpus e as concepções que, sumariamente, analisaremos adiante; por outro lado, reforça a nossa concepção  de que a conspiração,  além de ser forma histórica de actuação,  cuja  periodização pode ser determinável, apresenta-se como  imaginação conspiratória, segundo os termos de uma poética da argumentação e da persuasão, independentemente de qualquer condicionante histórica.

    Relativamente à primeira razão que apresentámos, é importante explicitar sua opinião quanto às fases e formas correspondentes, uma vez que nos propomos fazer uma breve abordagem da forma específica segundo a qual a conspiração foi posta em cena pelos escritores da época do Romantismo, no teatro e no romance. Em palavras do estudioso italiano, a “primeira é a dos regimes monárquicos legitimados pela tradição e pelo consenso” sobre os quais pesa a “estrutura familiar e restrita” que detém o poder; a segunda forma (correspondente a nova fase) é a da conspiração que nasce “dentro das sociedades mais modernas, nos tempos de transformação e democratização dos regimes políticos autoritários,” correspondente à expressão de grupos de oposição forçados à clandestinidade, pelos métodos policiais, e a contrapor reivindicações de liberdade contra os tiranos;” sendo a terceira, que ele designa por “pós-moderna e paranóica,” a das conjuras “temidas, reais, hipotéticas, sobredeterminadas, manifestações de grupos secretos e misteriosos, os quais presumimos obedecerem à lógica do puro poder” e que admitimos manterem relações pouco claras com “agências internacionais, associações secretas injustificáveis em regimes democráticos e até a serviços irregulares,” ou ainda “com grandes corporações económicas e financeiras” além de poderem manipular episodicamente “grupos de terroristas esquivos a qualquer controlo ou coerência ideológicas” (Ceserani, in Synapsis, 2003: 7). É evidente que os românticos, com Dumas pai à cabeça, em nosso entender, cabem inteiramente dentro da segunda época.

    a truck parked on the side of a road next to a dog

    Acrescentemos ainda, para melhor compreensão desta perspectiva diacrónica, que, embora esteja presente em textos tão antigos como os do Velho Testamento (que Ceserani comenta no seu artigo), a formulação integral da atitude conspirativa parece ter nascido na europa do século XVIII, quer nos relatos que narram eventos mais ou menos verídicos, assumindo-se como crónicas, quer nos fantasiosos, que são entendidos como lendas ou mesmo ficções. As palavras liminares de Taguieffe, no exaustivo estudo que dedicou à questão da conspiração, devem ser aqui evocadas na íntegra:

    “Na nova cultura de massas, um olhar exercitado discerne, com facilidade mas, ao mesmo tempo, com espanto, a presença de motivos que, até aos anos 70 do século passado, eram apanágio de uma extrema direita  alimentada pelo grande mito político fabricado pelos escritores contra-revolucionários  dos finais do século XVIII: o complot internacional dirigido contra a civilização cristã. Um complot maçónico e, depois, judeu-maçónico, do qual a lenda dos «Iluminados da Baviera (ordem historicamente fundada por Adam Weishaupt a 1 de Maio de 1776), generalizadamente designada como a dos «Iluminati», nunca deixou de ser uma da principais componentes. O «compolot dos Iluminati», empreendimento subversivo visando a instauração de um «Governo mundial único» é frequentemente denunciado desde a época da Revolução francesa” (2005: 13).

    Entrosa-se com ela a perspectiva que o romance gótico (ou romance negro [roman noir] ou, por vezes, literatura  ultra-romanesca, no dizer de André Breton no seu Les vases comunicants (1955: 134 cf. Brun, 1982: 12) desenvolve nos seus enredos, pouco tempo depois, um pouco por toda a Europa de finais do século XVIII e princípios do século XIX  (género contemporâneo do pietismo intimista e dos primeiros textos reconhecidos como românticos[ii]),  que Annie le Brun afirma ser, em geral, “no que diz respeito à intriga”, o relato de como “uma jovem rapariga inocente e pura se encontra abandonada nas estradas pelos acasos da vida” o que dá “pretexto a uma formidável viagem ao país das infelicidades”, mecanismo narrativo que fornece ao leitor, segundo a mesma autora, a possibilidade de “conservar a recordação de um espaço de incerteza e de obscuridade, obsidiante como um pedaço de trevas arrancado à noite de que somos feitos” (Brun 1982: 11).

    white umbrella

    No limite, esse mecanismo fabulatório revela-se o autêntico modelo do próprio complot, ao “pôr em cena  esse momento escandaloso em que o homem, que julgava ter conseguido os meios de se tornar sujeito, estaca, subitamente, face à evidência da sua condição de objecto, arrebatado pelo mesmo terror que qualquer ser tem face ao aspecto definitivo do cadáver” (Brun, 1982:). Não é por acaso, portanto, que paralelamente a toda a lógica do discurso revolucionário, a narrativa gótica (ou o roman noir) se sustenha como o grande modelo narrativo preferido do público em geral, de modo ingénuo,  secreta e perversamente nalgumas escolhas dos grupos mais sofisticados, e de modo complexo, entre o público mais “esclarecido”, por “revelar”, sob os modelos do pesadelo, o mecanismo de tudo quanto parece secreto e obscuro: o poder, os valores e mesmo vida.

    A própria História, enquanto relato dos factos marcantes de uma comunidade, ao humanizar-se e perder o seu escoramento nos desígnios engendrados pelo ser supremo, passa a ser objecto da controvérsia e das sucessivas leituras que dela fazem os seus narradores, que produzem uma “verdade” tranquilizadora” pelo encadear de actos sucessivos que parecem satisfazer uma lógica da pura acção.

    Alexandre Dumas é um dos autores que mais eco faz dessa visão mítica dos factos que, desde então, começa a ganhar verdadeiros foros de uma teoria da conspiração. A sua visão da queda do “antigo regime”, em França, é reiteradamente formulada em termos de uma acção conspirativa. Essa perspectiva alimenta quase tudo quanto escreveu, quer se trate de narrativa ficcionais, quer resulte de um olhar de historiador  para os eventos do dealbar da república. Sirva-nos de exemplo deste último tipo de actividade de escrita, o seu texto muito breve, apresentado como um relato resultante de uma investigação histórica, praticada no terreno dos eventos, intitulado La route de Varennes.

    Aí, acompanhando, através de observações, nos locais, e inquéritos e entrevistas às populações das diversas localidades em que o Luís XVI e sua família fizeram paragens, quando se encontravam em fuga pela estrada referida em título, Dumas põe em xeque as teses realistas (que eram aceites como verdades mesmo pelos historiadores simpatizantes da república), segundo as quais o rei teria sido apanhado e conduzido às “autoridades” revolucionárias por indivíduos vingativos e marginais.

    A sua contra-leitura é um verdadeiro modelo de argumentação segundo o processo de desmontagem de uma narrativa conspirativa (tendo como agentes – imaginários, segundo a sua investigação – “revolucionários” populares, de aparência ameaçadora), e construindo, provada a inconsistência desta, uma outra hipótese conspirativa, baseada no relatos e no cotejo dos documentos, segundo a qual teriam sido os monárquicos constitucionalistas os autores da detenção do rei, forjando um complot que, pelo que sugere Dumas, atacaria o legitimismo, ao promover a prisão do rei, desacreditando, ao mesmo tempo, os republicanos, expondo-os como autores de um processo que levou ao regicídio.

    Relativamente à ficção, o dispositivo fabulatório da conspiração ganha foros de núcleo temático dominante do romanesco de Dumas, desenvolvendo-se, a partir dele, uma forte tendência para a construção persistente da intriga segundo  o preceito da enfase na actuação dos conjurados, de que Joseph Balsamo é apenas uma, ainda que a mais forte, das encarnações. É a hegemonia desse enredo que engendra os cenários escolhidos privilegiadamente, a selecção das intrigas que recolhe dos dizeres e da opinião pública da época, bem como as que inventa, por prodígio da sua imaginação, com base na visão do mundo a que dá ênfase, segundo a qual os eventos de importância colectiva seriam devidos a intervenções de seres excepcionais, indivíduos extraordinários, capazes de controlarem as forças misteriosas do cosmos que fariam actuar para determinarem a ordem dos grandes eventos históricos, nomeadamente as revoluções.

    man in white dress shirt sitting on chair

    Só para exemplo do modo como é encenado, espectacularmente, o acto de adesão de Joseph Balsamo à conjuração secreta, apresentamos três aspectos iniciais do modelo de ajuramentação: a assembleia dos dirigentes, o interrogatório, e as palavras de voto do iniciado. Fica apresentado um tipo altamente ritualizado de sociedade secreta, com vontade de intervenção política, cujos traços gerais caricaturam um modelo que poderia corresponder à divulgação massificada que se tem feito de algumas organizações ou ordens, desde a Maçonaria até aos Illuminati, passando pela mais controversa organização de cavalaria “empenhada”, a dos Templários.

    No relato, é dada uma representação do ritual de adesão que poderia caber a qualquer das irmandades que, a partir do século XVIII, têm alimentado o imaginário complotista, ou os discursos mais retrógrados que se têm feito contra a revolução:

     “Sept sièges étaient placés en avant du premier degré; sur ces sièges étaient assis six fantômes qui paraissaient des chefs; un de ces sièges était vide.

    Celui qui était assis sur le siège du milieu se leva. […]

    Puis se retournant vers le’ voyageur.

    – Que désires-tu? Lui demanda-t-il.

    – Voir la lumière, répondit celui-ci. 

    – […] Ne crains-tu pas de t’y engager?

    – Je ne crains rien. […]

    – Que demandes-tu, lui dit le président.

    – Trois choses, répondit le récipiendaire. 

    – Lesquelles?

    – La main de fer, le glaive de feu, les balances de diamant.

    – Pourquoi désires- tu la main de fer?

    – Pour étouffer la tyrannie.

    –  Pourquoi désires-tu le glaive de feu

    – Pour chasser l’impur de la terre.

    – Pourquoi désires-tu, les balances de diamant?

    – Pour peser les destins de l’humanité” (s/d: 11-13).

    Retemos, pela sua importância de componentes morfológicas de uma forma narrativa, os traços que Ceserani extrai da narrativa bíblica que analisa. Na sua opinião, o autor da história, inspirado pelos relatos constantes nos documentos de base, terá sido levado a tratar “os acontecimentos trágicos” como encenações dos “temas da lealdade, da traição, da intriga e do engano, enquanto estratagemas postos em acção”, não tanto inspirado por motivações políticas e partidárias, “mas pelo sentido artístico da potencialidade de uma trama dramática ou narrativa” (Ceserani, in Synapsis, 2003: 10).      

    shallow focus photography of stack of books

    Esses traços, categorias marcantes da construção da intriga, poderiam ser, igualmente, atribuíveis aos que predominam nas fabulações históricas dos relacionamentos, confrontos e manipulações cortesãs de Alexandre Dumas, cujos tópicos e dinâmicas actanciais acabam por ser o que domina, quase avassaladoramente, a sua obra. Dado o âmbito deste nosso trabalho, referiremos apenas pequenos exemplos que consideramos privilegiados.

    O primeiro que nos merece destaque é a actuação de Joseph Balsamo, no princípio do romance que tem por título o nome da personagem – quase sempre publicado em vários tomos, ele próprio integrado num conjunto de romances que abordam o fim do antigo regime em França, numa série romanesca intitulada Mémoires d´un médecin – do qual, acima, demos um exemplo. Logo após as primeiras cenas,  em que Joseph Balsamo é consagrado membro da ordem (que nunca é nomeada exactamente mas que reproduz, embora com bastante liberdade espectacular, os ritos de iniciação maçónicos, como transparece no exemplo que acima apresentámos), a narrativa apresenta-nos a personagem em viagem, atravessando uma região montanhosa de França, numa carruagem de amplas e complexas dimensões, uma espécie de habitação rolante no interior da qual o protagonista e um velho sábio manipulam enigmáticos frascos, fazem funcionar um forno alquímico no qual se prepara uma misteriosa transformação. À volta da carruagem desencadeia-se uma tempestade cujos aspectos e efeitos lembram uma inesperada e incontrolável fúria do Cosmos, resultando dela que um dos cavalos é morto e os viajantes têm de parar.

    A descrição do acontecimento, embora obedeça aos princípios elementares do que é comum na visualização literária dos fenómenos da natureza, não tira qualquer consequência do facto de ela estar a ser observada, sentida, percebida e mesmo avaliada por dois seres de supremo saber. Os fogos celestes surgem como uma pirotecnia surpreendente de efeitos luminosos e a água torna-se numa ameaça que inunda o terreno. Para o velho alquimista a chuva apenas se manifesta como algo negativo por ameaçar apagar o fogo do forno onde se está a dar a grande transformação, pelo facto de a casa rolante não ter a chaminé devidamente coberta.

    photo of lit candles

    No entanto, quando, como que por acaso, o alquimista se dá conta da trovoada, é com a maior naturalidade que ele explica a Balsamo que é inteiramente possível domar as descargas eléctricas e fazê-las funcionar em proveito da técnica laboratorial. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade. Os segredos de tal arte, porém, não são enunciados senão pela breve explicação de que “a chama eléctrica” pode “descer até ao forno”, por um sistema de “pontas” suportadas por um “papagaio artificial”. Dessa explicação, o genial discípulo, Balsamo, detentor de imensas sabedorias, não percebe nada (cf.Dumas, s/d: 46-47;vol.I).

    O quadro que aqui se nos desenha é, até certo ponto, o de uma relação do homem com o Cosmos, com aquilo que poderíamos designar até, mais funcionalmente, como macrocosmo, manifestando-se tal relação, através de um sábio. No entanto, o processo surge como uma demonstração de que o desenvolvimento do saber é eticamente negativo.

    De facto, o conhecimento contido pelas duas personagens, assente sobretudo numa espécie de manipulação de fórmulas tendentes a construir a transgressão, a arquitectar uma conspiração que altere um conjunto de elementos estruturadores da potência (essencialmente a política – o antigo regime é visto como uma determinada ordem emanada da transcendência, vigorando no universo imanente do perecível), não se move para lá de um quadro ou espaço fechado: o das fórmulas dos livros e dos instrumentos sagrados e/ou proibidos.

    Tal saber encerrado, feito e dominado de uma vez para sempre, parece nada poder acrescentar à visão poética, ficcional ou mesmo cientificamente informada, do macrocosmo. Todo o conhecimento acerca deste permite apenas domínios parciais que podem ou não ser usados para perturbar a ordem humana estabelecida.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    Dentro deste quadro epistemológico, o saber do sábio (o alquimista, o mação) é sempre um movimento perverso, surgindo no discurso como eticamente negativo. Dado que é indevido no interior do sagrado, torna-se uma actuação de sacrilégio ou de violação. O desenvolvimento da narrativa de Dumas vai revelar-nos que assim é. Quanto ao romancista, na construção das perspectivas que assume como narrador, nunca atribui ao saber das ciências quaisquer perspectivas complementares que lhe permitam desenvolver ou desenhar um quadro do Cosmos que ultrapasse a observação, razoavelmente empírica, das aparências. Tudo está feito pelo grande arquitecto, é ele que assegura a coerência do Cosmos e das suas manifestações.

    Por isso, ao sábio compete-lhe aprender as fórmulas da manipulação, mas não o sentido dos fenómenos, que está estabelecido de uma vez por todas. A alquimia (em sentido lato e algo metafórico que lhe dão os traços quase caricaturais com que se busca a tipificação) não anda, neste caso, muito longe da teologia. O conhecimento da incomensurabilidade da transcendência visa, sobretudo, assegurar o terror e a piedade na acção ritual.

    Aliás, na poética de Dumas, mesmo a descrição elementar de quadros do mundo, sobretudo da natureza, são, comparando-os com os diálogos e as narrações de acções, por exemplo, raros. Isso, possivelmente, porque a interrogação dos mesmos, da razão de ser das suas origens (as fontes, as causas – mas também, complementar e simetricamente, as interacções e consequências), não era material que interessasse a uma tal visão do mundo[iii].

    O homem de Dumas não age sobre o universo natural, nem é por ele transformado. Move-se no seu interior sem um saber científico. Quando o saber emerge, apresenta-se como uma perversão face ao sagrado, uma acção de feitiçaria. De um modo geral, as relações são mais entre as personagens e os entes mágicos ou as suas manifestações intencionais, no que respeita ao Cosmos (um ente supremo desencadeia uma catástrofe, por exemplo), do que entre as personagens e os fenómenos da natureza.

    Les Mohicans de Paris (1854-1859), outra obra que não podemos esquecer no que se refere à problemática do complot, pode ser considerada  um dos  exemplares  mais acabados  de narrativa conspiracionista que foram escritos até hoje. Todo o universo de Paris é encarado como palco de maquinações que têm a ver com o poder central, com as instituições sociais dele dependentes, mas também com as afrontas familiares, os desentendimentos e segredos no interior dos grupos relacionados por parentesco ou, ainda, nas relações existentes entre companheiros de boémia e amigos.

    Várias organizações são convocadas no horizonte da intriga: os maçónicos, os carbonários e as quadrilhas de marginais (de “moicanos”, no fundo) que se aliam ou confrontam ao longo da imensa narrativa de cerca de três mil páginas. Seria justo dizermos que, se pretendêssemos classificar genologicamente este romance, segundo o seu traço temático dominante, a designação apropriada poderia mesmo ser a conspiração romântica.

    De facto, ao lado do termo la bohème, proveniente da narrativa contemporânea de Henri Murger (o título do romance é: Scénes da la vie de bohème – 1851), a designação que usa Dumas, les mohicans, torna-se uma das insígnias mais popularizadas, para referir o universo mítico da vida marginal da Paris oitocentista, com os seus mistérios e os seus grupos, cuja tipificação por  ele realizada tornou lendários. De facto, no título escolhido pelo autor de Le Comte de Monte Cristo[iv], ressoa, francamente, a dimensão mítica da marginalidade, que foi desenvolvida, também com estrondoso sucesso editorial, por Eugène Sue, no seu Mystères de Paris, e as não menos célebres insígnias épicas, da luta pela liberdade, presentes nos romances de James Fenimor Cooper, The Last of the Mohicans.

    Do universo romanesco legendário de Paris oitocentista, até ao advento de Les Mohicans de Paris, faziam parte integral, junto às camadas populares atingidas pela miséria com maior intensidade (a legião de desempregados, de diminuídos físicos, de enjeitados, de pequenos proprietários e camponeses empobrecidos pelas catástrofes naturais e sociais), os grupos mais restritos da boémia, cujos membros, de origem burguesa e mesmo aristocrática, se diluíam na marginalidade, na defesa da actividade artística, desenquadrada das exigências de produtividade e submissão propugnadas pelas classes hegemónicas: a grande burguesia e a aristocracia. Neste último romance, o mais longo que escreveu, a esse submundo vem acrescentar-se a componente política.

    Desse modo, muitos dos grupos que acima enumerámos passam a integrar-se na comunidade segundo uma orgânica politizada, começando  algumas das personagens a ser reconhecidas não pelas características de grupo ou de classe de onde são originárias, mas pelo fazer em que se empenham afincadamente: a agitação política. Da importância dessa componente, apresentamos, em seguida, um exemplo.

    Bonapartistes, orléanistes, républicains, se trouvaient donc confondus, et, si M. Jackal avait eu les cent yeux d’Argus, il eût vu, sans doute, rayonner au fond des catacombes, dans quelque angle opposé à celui des bonapartistes, les torches des orléanistes et des républicains.

    Chaque vente particulière, comme nous l’avons dit, avait un député.

    C’était ce député, délégué par elle, qui formait la vente centrale.

    La vente centrale, de même que la vente particulière, se composait de vingt membres, lesquels membres n’étaient autres que les vingt députés élus par vingt ventes particulières.

    La vente centrale était organisée comme la vente particulière: à son tour, elle élisait un président, un censeur et un député.

    Le député de cette vente était délégué près de la haute vente, laquelle se composait de toutes les notabilités militaires et parlementaires de l’époque.

    Elle ne formait pas de réunion, et le député de la vente centrale n’était jamais ûélégué qu’auprès d’un de ses membres.

    Aussi les affiliés eux-mêmes ne savaient-ils à peu près aucun des noms des membres de la vente suprême, et à peine, aujourd’hui, est-on certain d’en connaître la moitié.

    Les principaux étaient : la Fayette, Voyer-d’Argenson, Laffitte, Manuel, Buonarotti, Dupont (de l’Eure), de Schonen, Mérilhou, Barthe, Teste, Baptiste Rouen, Boinvilliers, les deux Scheffer, Bazard, Cauchois- Lemaire, de Corcelles, Jacques Kɶchlin, etc. etc.

    Finissons en répétant que les éléments dont se composait le carbonarisme étaient loin d’appartenir aux mêmes doctrines politiques, et que bourgeois, étudiants, artistes, militaires, avocats, quoique marchant dans des voies différentes, étaient dirigés par la même cause, c’est-à-dire par une haine ardente contre les Bourbons de la branche aînée.

    Au reste, nous tâcherons de les montrer à l’ɶvre.

    Et maintenant que nos lecteurs savent aussi bien que M. Jackal que l’orateur vient d’être délégué à la vente centrale comme député, reprenons notre récit.

    Après le départ du député, ce fut un brouhaha effroyable; chacun des membres voulut parler sans attendre son tour; les uns, cherchant à se faire entendre, poussaient de cris féroces; les autres agitaient leurs torches comme si elles eussent été des sabres et des épées; enfin, ce fut une confusion terrible, el les rayons des torches agitées, en se dirigeant en mille sens divers, devinrent l’image des pensées  confuses et divergentes de tous les membres de cette mystérieuse assemblée”  (Dumas, 1998 : 1041-1042 – 1º vol).

    Seríamos tentados a ver, nesta assembleia, o predomínio daquela figura, que, segundo Benjamim se tornou típica da sociedade europeia oitocentista, quando estava em causa o fazer política: o conspirador profissional. Esta figura, que Benjamin delineia a partir de Marx, parece encher o imaginário da época e prestar-se a equívocos que misturam os traços das agitações sociais que, de facto, marcaram a França,  intensamente, com os enigmáticos rostos que a ficção deu às figuras da marginalidade (“miseráveis”, “moicanos”, boémios),  em vários momentos marcantes da vida política daquele país, durante o século XIX, desde a Revolução republicana até à Comuna, passando pelas profundas agitações em torno de episódios contra-revolucionários, como o da Restauração, e golpes de estado, como o de Luís Bonaparte. As palavras de Marx, sobre as categorias a que temos vindo a fazer referência são muito elucidativas:

    brown wooden book shelves in a library

    Com o incremento das conspirações proletárias surgiu a necessidade de divisão do trabalho; os seus membros dividiram-se em conspiradores de ocasião (conspirateurs d’occasion), isto é, operários que se dedicavam à conspiração apenas como actividade paralela às suas outras ocupações, que só frequentavam os encontros para poderem ficar disponíveis para comparecer  nos lugares de reunião a um apelo dos chefes, e conspiradores profissionais,  que se dedicavam exclusivamente à conspiração e dela viviam … As condições de vida desta classe determinam desde logo todo o seu carácter… A sua existência periclitante, a cada momento mais dependente do acaso do que da sua actividade, as suas vidas desregradas, cujos únicos pontos de referência estáveis eram as tabernas – pontos de encontro dos conspiradores –, as suas inevitáveis relações com toda a espécie de gente duvidosa, situam-nos naquela esfera de vida que em Paris dá pelo nome de bohème” (in Benjamin, 2006: 13).

    A narrativa romântica da época, quer a francesa, mais presa à actualidade da Revolução, quer a inglesa, preferencialmente presa ao gosto da evocação histórica, fixou-se de tal modo no modelo conspiracionista que, de entre a multiplicidade de temas e dispositivos narrativos percorridos pelo imaginário que elabora, sobressaem aquelas obras em que o referido modelo domina. Les Misérables, de Victor Hugo, Ivanhoe, de Walter Scott, e Splendeurs et misères des courtisanes, de Balzac, poderiam ser notáveis exemplos a acrescentar aos de Dumas que acima comentámos.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia  

    Barthes, Roland, 1957, Mytologies, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1966, “Introduction à l’analyse structurale des récits”, in Communications nº 8, Seuil, Paris

    Benjamin, Walter, 2006, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa

    Breton, André, 1955, Les vases communicants, Gallimard, Paris

    Brown, Dan, 2004 [2003], The Da Vinci Code, Doubleday, New York

    Brun, Annie Le, 1986, Les Châteaux de la subversion, J.-J. Pauvert/Folio, Paris

    Ceserani, Remo, 2003, “L’immaginazione cospiratoria”, Synapsis (ed.), Conspiracy, complot, Le Monnier, Florença

    Dumas, Alexandre, s/d, Joseph Balsamo (2 vol.), Marabout/Géant, Verviers (Belgique)

    Dumas, Alexandre, 1998, Les mohicans de Paris (2 vol.), Gallimard, Paris

    Eco, Umberto, 2001[1986], Sémitotique et philosophie du langage

    Falzon, Christopher, 2002, Philosophy Goes to the Movies, Routledge, London

    Goldsman, Akiva, 2006, The Da Vinci Code – Screenplay, Broadway Books, New York

    Jorge, Carlos J.F., 2007, Cenários da Conjura, Imaginários da Intriga, Apenas Livros, Lisboa

    Jorge, Carlos J.F., 2009, “A Argumentação Conspirativa – Por uma Poética da Intriga”, Dedalus, nº 13, Ass. Port. de Literatura Comparada, Lisboa

    Lacombe, Roger G., 1974, Sade et ses masques, Payot, Paris

    Lévi-Strauss, Claude, 1986, O olhar distanciado, Edições 70, Lisboa

    Praz, Mario, 1977[1966], La chair, la mort et le diable dans la littérature du XIXe  siècle, TEL/Gallimard, Paris

    Taguieff, Pierre-André, 2005, La foire aux Illuminés, Mille et Une Nuits/Fayard, Paris


    [i] Para uma perspectiva mais desenvolvida da matéria apresentada nos parágrafos anteriores, remetemos para os nossos textos de 2005 e 2007 citados na bibliografia. 

    [ii] Rousseau escreve a sua última obra, ainda modelo de pietismo, em 1776, Ann Radcliff publica a sua primeira narrativa em 1789 e Chateaubriand publica Atala em 1801

    [iii] É evidente que esta afirmação, relativa à gigantesca e irregular produção de Dumas não pretende ser verdadeira para toda a obra que lhe é atribuída. Temos na memória, de imediato, o ciclo de D’Artagnan,  o de Joseph Balsamo (ou narrativa inicial da série Mémoires d’un médecin) e Les Mohicans de Paris – qualquer deles constituído um formidável relato de engenhosas insídias, conjurados e conspirações.

    [iv] Também este um romance onde a conspiração domina, desta feita a que pesa sobre um homem honesto, cuja vida foi destruída pelas maquinações de  um celerado. O herói, vilipendiado e inocente, é redimido pela herança da maior das figuras conspirativa de Dumas: Joseph Balsamo, aliás, Cagliostro, aliás, Monte Cristo…

  • Plano B: Como não perder a esperança em tempos de crise climática

    Plano B: Como não perder a esperança em tempos de crise climática

    O PÁGINA UM apresenta, em pré-publicação, o livro da autoria do jornalista esloveno Boštjan Videmšek (que entrevistámos em Novembro passado), editado pela Perspectiva, pertencente à jornalista Patrícia Fonseca, também directora do jornal Médio Tejo. A obra é constituída por um conjunto de 10 reportagens da Noruega à Bolívia e da Escócia à China, com fotografias de Matjaž Krivic e prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A editora oferece um desconto especial de 20% e portes CTT aos leitores do PÁGINA UM, de forma directa e sem qualquer contrapartida para o jornal. Basta enviar um e-mail para perspectiva.livros@gmail.com com referência ao PÁGINA UM e a indicação da morada de entrega.


    Em várias ocasiões, prometi aos que me são mais próximos, tal como a mim mesmo, que as minhas botas de reportagem de guerra estavam arrumadas para sempre. Eu era um dos mais jovens jornalistas quando comecei. Quando senti que bastava, era um dos mais velhos.

    Fui despojado de todas as ilusões e fiquei compreensivelmente confuso perante recorrentes tragédias sem sentido. Além das minhas ilusões, as guerras que cobri custaram-me vários amigos. Também ficou muito claro que já tinha usado todos os meus ‘cartões de saída da cadeia’, e ainda mais alguns.

    “Basta”, repetia uma e outra vez, sobretudo devido à crescente desilusão com o poder da minha vocação.

    Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM em Novembro do ano passado. (Foto: Paulo Alexandrino)

    Para mim, o jornalismo nunca foi apenas um trabalho. Quando comecei, aos 16 anos, era um estilo de vida – ou mesmo a própria vida. Isso fez com que fosse muito mais difícil para mim aceitar que o meu trabalho havia perdido rápida e irreparavelmente o seu valor numa sociedade que, aparentemente, não se importava de se afogar na sua própria loucura.

    A ordem pós-factual que se impôs da noite para o dia é um sistema onde excêntricos como eu e os meus colegas de profissão são tolerados, na melhor das hipóteses. A ascensão das (anti) redes sociais, câmaras de eco de opiniões pré-mastigadas com base em zero competência, deu início a uma nova era que ainda não tem oficialmente um nome, mas está a ficar mais poderosa a cada milissegundo. A melhor descrição que encontro para este estado atual – e possivelmente final – da evolução da nossa espécie é “A Ditadura do Nada”.

    Neste novo e cada vez mais poderoso reino, há pouco lugar para os jornalistas. E também, já agora, para os cientistas.

    ***

    Muitas das guerras que cobri nunca terminaram. Apenas ficaram dormentes, em rescaldo. A maioria – Iraque, Afeganistão, República Democrática do Congo, Síria, Líbia, Somália, Darfur – continuam a arder em fogo lento até hoje, e as suas brasas vão-se espalhando e provocando regularmente explosões de violência nunca antes imagináveis. Nas ainda resplandecentes cidades do Ocidente, os refugiados que essas guerras provocaram são cada vez mais vistos e tratados como lixo nuclear.

    A sociedade aberta e livre que sonhámos na Europa, e pensámos ter como herança segura para as gerações futuras, está agora repleta de muros, torres de vigia, arame farpado e insígnias paramilitares que exalam o fétido ressurgimento do racismo, xenofobia e fascismo radical. Todas as velhas divisões ideológicas foram reforçadas. E novas estão a erguer as suas cabeças revoltantes a cada dia que passa.

    A nossa memória histórica parece ter-se esfumado e a nossa capacidade de sentir vergonha acabou eutanasiada nas trincheiras do anonimato garantido pela internet. A dor dos outros é agora, na melhor das hipóteses, uma categoria de negócios.

    Se o que fazemos tem pouco ou nenhum efeito sobre o mundo, o nosso papel fica, quanto muito, reduzido ao de um observador participante. Podemos ser muito bons nisso, e até vistos como “um sucesso” por outros jornalistas; no entanto, isso apenas acelerou a minha percepção de que muitas saídas em reportagem não eram mais do que safaris do ego.

    No Outono de 2016 regressei de Mossul, onde cobri os confrontos selvagens entre as forças do governo iraquiano e o autoproclamado Estado Islâmico. Naquele momento, estava determinado a mudar de profissão. Sentia-me tão cansado e farto da escuridão que me rodeava e ameaçava engolir-me que decidi ser o meu próprio desprogramador, para lenta mas seguramente libertar-me do culto da minha velha e derrotada religião: o jornalismo.

    Mas e depois? O que iria fazer? Como poderia reinventar-me neste mundo onde meros reflexos são adorados como reis, onde nada consequente tem qualquer consequência, e onde muitos dos seus membros mais augustos agem como se não houvesse qualquer problema se o sol não voltar a nascer?

    ***

    “Olha, já vai sendo tempo de fazermos alguma coisa juntos outra vez! Vamos encontrar-nos para um café? Vamos… não me digas que não tens tempo, como sempre! Só preciso de dez minutos para te apresentar uma ideia. Acredita, vais gostar!”

    Este foi, em resumo, o telefonema que recebi do meu amigo e fotógrafo Matjaž Krivic, numa manhã especialmente cinzenta de Outono. Por respeito ao leitor, omiti os palavrões que pontuaram cada frase, e que são quase a sua imagem de marca.

    A minha resposta instintiva foi um suspiro profundo. Mais um projeto, mais uma obrigação que vai consumir-me. Eu não tinha acabado de prometer a mim mesmo um intervalo (extremamente necessário), uma hipótese de sair do jogo e ter algum tempo para descansar no banco e refletir?

    Mas, por mais que eu o repetisse, o mantra para parar não funcionava. Nunca funcionou.

    “Diz lá, então”, respondi um pouco bruscamente. Naquele momento, eu não pensava ceder ao “mestre da persuasão” que o Matjaž consegue ser, com um poder inigualável para destruir barreiras físicas e metafísicas. Nunca encontrei, nos quatro cantos do mundo, alguém que tão infantilmente não quisesse mesmo saber o significado da palavra ‘Não!’

    “Regressei agora da Bolívia”, disse-me com um sorriso enigmático, a bebericar o café que acabámos por combinar.

    Salar de Uyuni, no topo dos Andes. O maior salar do mundo – e um dos lugares mais mágicos que já vi, lindo! Perto de 70% das reservas mundiais de lítio estão ali. Aquele lugar está a alimentar os nossos veículos elétricos e praticamente todos os nossos dispositivos eletrónicos, agora e nas próximas décadas! Então, vamos lá: vamos fazer uma história sobre o lítio. Que dizes? Vamos abordá-lo como deve ser, em profundidade, desde a fase da extração até à fabricação dos carros elétricos.”

    Foi praticamente tudo que eu precisei de ouvir para ser convencido. Até porque sabia que o Matjaž é uma espécie de diabo, uma equipa de assalto de um homem só, um profissional do fotojornalismo da velha escola, cuja abordagem não convencional e estética única já lhe renderam todos os prémios relevantes no seu campo altamente competitivo.

    “Vamos a isso. Quando começamos?”, respondi simplesmente, sem precisar de três segundos para refletir sobre as implicações do que acabara de aceitar.

    “Ah sim…?” O Matjaž pareceu ficar mais chocado com a minha resposta do que se eu tivesse insultado brutalmente a sua mãe. Durante alguns segundos ficou a olhar para mim, em silêncio, como que a avaliar-me. E depois sussurrou: “O mais depressa possível.”

    ***

    Desde o início, percebemos que o lítio, a força motriz do século XXI, era apenas a nossa porta de entrada para uma história muito maior – o tipo de história que os dois procurávamos há algum tempo. Já havíamos viajado juntos por todo o mundo e fomos vendo as consequências terríveis das alterações climáticas a cada passo.

    Sem o sabermos, estávamos ambos à procura de uma forma para contar esta história, que deveria estar na ponta da língua de todos, todos os dias.

    Com a ajuda do Matjaž, encontrei sem esforço a minha nova linha de frente. A crise climática é nada menos que uma guerra global, total e abrangente. É a guerra da Humanidade contra si mesma – uma guerra contra as gerações futuras, contra ecossistemas inteiros e contra a própria ordem natural. É um ataque frontal e brutal ao próprio planeta que tão generosamente fornece o nosso sustento. É uma guerra contra o equilíbrio, contra a coexistência. É, em suma, uma guerra contra o próprio conceito de futuro.

    A crise climática é a principal e mais crucial linha da frente do nosso tempo. E as nossas perspectivas de vencer esta guerra estão longe de ser boas.

    ***

    A Terra está a aquecer mais rapidamente do que os especialistas mais pessimistas previram. Até as estimativas habitualmente conservadoras do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) o confirmam.

    A meta estabelecida na Cimeira Climática de Paris em 2015 – limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius até 2100 – já perdeu a validade. O verão de 2021 registou dois dos meses mais quentes na história da medição de temperaturas. Em Verkhoyansk, oficialmente a cidade mais fria da Sibéria, o termómetro fixou um recorde de 37,8 graus Celsius no final de junho de 2020. Não era de admirar, por isso, que Matjaž e eu pudéssemos observar glaciares a derreter na Islândia, quando aquele país insular foi surpreendido por um verão com temperaturas noturnas que facilmente chegavam aos 25 graus Celsius. Aquela era uma nova Islândia, cada vez mais sem gelo, onde os agricultores tiveram que passar a trabalhar à noite, quando o calor permitia recuperar o fôlego – tudo isto nas imediações do Círculo Polar Ártico.

    Boštjan Videmšek com o fotógrafo Matjaž Krivic.

    No porto de Akureyri, no norte do país, pudemos observar navio após navio a regressar do Ártico – todos eles cheios de rostos chocados e manchados de fuligem, de investigadores que testemunharam incêndios quando deveriam estar a congelar até a morte.

    O Alasca, a Gronelândia e a Sibéria começaram a arder todos ao mesmo tempo. O permafrost estava irremediavelmente a derreter – e continua a derreter neste preciso momento. No entanto, todos os especialistas e decisores políticos parecem querer desvalorizar este facto gritante.

    O metano, um gás de efeito estufa muito mais devastador para o clima do que o dióxido de carbono, continua a infiltrar-se na atmosfera. Pequenos lagos estão a brotar em toda a camada de gelo, que já não é permanente. Quando, inevitavelmente, o oxigénio é introduzido na equação, o resultado natural são detonações violentas.

    Este é um mero vislumbre do que o futuro nos reserva.

    É bom que acreditem: esta é uma linha da frente, e não apenas num sentido figurativo. É mesmo uma guerra.

    ***

    Enquanto escrevia este livro, acabávamos de viver os meses de janeiro e fevereiro mais quentes de sempre. A nível global, o Inverno parece ter sido praticamente inexistente. À medida que os gerentes dos resorts de esqui na Europa finalmente descobriam que os seus negócios não teriam mais viabilidade, vastas áreas da Austrália iam ardendo. Mil milhões de animais morreram em poucas semanas – uma informação que foi descartada como um mero dano colateral, se tanto.

    A Austrália, vale a pena lembrar, é o continente mais exposto às alterações  climáticas.

    Este cenário apocalíptico surgiu logo após os incêndios na floresta amazónica. Num piscar de olhos, ficámos acostumados a imagens de tal forma devastadoras como se fossem tão irreais como os clímax dos reality shows ou de outros programas e espetáculos medíocres, nos quais grande parte da população vai encontrando refúgio.

    A lista continua, e continua.

    A sexta extinção em massa está aí, e está diretamente ligada às ações e aos efeitos da Humanidade no planeta. Neste momento, a Terra suporta apenas metade da vida selvagem que existia em 1970. A raça humana representa trinta por cento de todos os vertebrados existentes. Sessenta e sete por cento são animais de criação, enquanto os vertebrados que vivem em estado selvagem estão reduzidos a uns míseros três por cento.

    Que dizer da morte da Grande Barreira de Corais da Austrália, ou do desaparecimento de 80% dos insetos do planeta? E sobre os oceanos letalmente quentes? De acordo com um estudo de 2015 publicado no The Journal of Mathematical Biology, a taxa de aquecimento atual levará a que, em 2100, a produção de oxigénio pelo fitoplâncton possa acabar, porque as temperaturas mais elevadas vão perturbar o processo de fotossíntese. Isso ditaria a mortalidade em massa de animais e humanos.

    E que dizer do ‘holocausto negro’ perpetrado em todo o mundo pelos lobbies dos combustíveis fósseis, cuja sede de lucro continua a ser a maior força motriz por trás do cenário da nossa morte iminente? Ou das correntes marinhas, que mudam subitamente, ou das emissões cada vez maiores de dióxido de carbono para a atmosfera?

    E que dizer dos ursos polares, que precisam de nadar em média 200 quilómetros sem parar para encontrar um pouso firme, enquanto o seu habitat natural continua a derreter à sua volta, e precisam já de caçar baleias para sobreviver?

    Ou, para os mais frios entre nós: que dizer do custo de tudo isto para a economia global, estimado em 1,2 triliões de dólares em 2018?

    Que tal vos parecem as flores de primavera brotando em janeiro no cume dos Alpes? E as hordas de refugiados provocados pelo clima, que vão influenciar dramaticamente o nosso futuro muito próximo? Segundo estimativas de 2018 do Banco Mundial, os efeitos das mudanças climáticas vão afastar 143 milhões de pessoas das suas casas em 2050, só na Ásia, África e América Latina.

    Esta é também a história de um mundo a secar rapidamente. Um mundo cujo destino está a ser cada vez mais determinado por uma série de guerras pela água. Um mundo que pensávamos conhecer e que agora está a desintegrar-se rapidamente, enquanto continuamos a dormitar na frente à televisão.

    Eu poderia continuar ad nauseam, citar dezenas de cientistas, listar centenas de números, consolidar factos, explicar o que deveria ser claro para qualquer aluno do terceiro ano (e vivemos numa época em que muitos alunos do terceiro ano são realmente mais conhecedores destes perigos do que os seus pais). Mas temi que persistir na invocação dessas provas fosse em vão. Afinal, já foi tudo dito: interminavelmente, incessantemente, enquanto o tempo médio de atenção – a principal vítima desta Era –, encolheu até restar quase nada.

    A ciência é clara. No entanto, na maior parte do primeiro mundo, os efeitos das alterações climáticas ainda são arquivados na categoria de ‘algo que acontece a outras pessoas’. Algo longe de uma ameaça real, existencial e que, portanto, dificilmente merece uma resposta contundente.

    Vamos colocá-lo sem rodeios: esta crise que avança rapidamente é algo para a qual a nossa evolução nos deixou muito despreparados. Pior ainda, os nossos mecanismos de sobrevivência parecem continuar a dividir-nos, quando não deveríamos olhar a custos para nos unirmos.

    Por isso, em vez de recitar números e vomitar ainda mais previsões apocalípticas, o Matjaž e eu decidimos destacar as comunidades e os indivíduos que estão a enfrentar corajosamente esta calamidade. É hora de somar os esforços de todos estes visionários, a verdadeira elite do homo sapiens, homens e mulheres que escolheram não ser arrastados pela onda de indiferença e arrogância que varre o mundo.

    A nossa ambição era transformar este livro num monumento a esses intrépidos soldados na linha da frente, que estão a acumular o conhecimento, a experiência e a tecnologia de que precisamos, se quisermos ter alguma chance de lutar pela nossa salvação.

    De Tilos, a primeira ilha auto-suficiente em energia no Mediterrâneo, à Islândia geotérmica e completamente orientada para o futuro. Dos promissores desenvolvimentos de energia marítima nas Ilhas Orkney, no nordeste da Escócia, onde a energia excedente já está a ser convertida em hidrogénio “verde”, até à cidade austríaca de Güssing, centrada na biomassa há um quarto de século, e cujos habitantes já conseguiram reinventar como um pólo tecnológico fundamental para o desenvolvimento e produção de energia renovável. Aqui estão todos eles, pedindo humildemente a sua consideração.

    Da empresa Climeworks, com sede na Suíça, que captura dióxido de carbono diretamente do ar para injetá-lo no submundo da Islândia, a várias aldeias escandinavas autossuficientes, em plena transformação holística. Do lítio que viaja constantemente entre as salinas bolivianas e as fábricas chinesas de carros elétricos. Da fábrica de incineração de resíduos na Noruega, que planeia armazenar o CO2 capturado em cavernas submarinas, a todos os indivíduos e comunidades que estão por trás desses projetos, levantando as suas vozes para nos lembrar que devemos manter a esperança, a todo o custo.

    A tarefa deles – e a nossa – é excepcionalmente difícil. Mas se não estivermos todos à altura da ocasião, iremos desperdiçar a nossa última hipótese.

    ***

    Eu entendo como pode ser difícil para algumas pessoas acreditar que o cataclismo iminente ainda pode ser evitado – ou que os seus efeitos podem pelo menos ser mitigados.

    A evolução da Humanidade ficou marcada, entre outras coisas, por guerras, genocídio, ecocídio, racismo, ganância e todas as formas imagináveis de violência. Depois de mais de duas décadas a cobrir os incontáveis pontos críticos do globo, recebi uma sucessão de insights medonhos sobre o funcionamento da economia global. Um grito de esperança, como o que é apresentado aqui, pode parecer uma forma de dissonância cognitiva. Muitas vezes também eu tenho dificuldade em sentir-me otimista e acreditar que, de facto, algo ainda pode ser feito.

    “Um escritor não deve esperança a um leitor”, escreveu o lendário ativista ambiental Bill McKibben no livro ‘Falter’ (Ed. Henry Holt and Co., Nova Iorque, 2019). “A sua única obrigação é a honestidade – mas quero que quem pegue neste livro saiba que o seu autor vive num estado de envolvimento, não de desespero. De outra forma, não me teria dado ao trabalho de escrever o que se segue.”

    Não poderia concordar mais com estas palavras.

    Se há mensagem que eu e o Matjaž queremos transmitir com este livro, é esta: existem pessoas que estão a ser capazes de controlar o cinismo e o medo, focando a sua energia na busca ativa de soluções.

    Mesmo que já estejamos no prolongamento e a perder por 4-0, estes bravos guarda-redes e médios-defensivos continuam a correr, a atacar e a deixar o seu coração em campo. E assim vão continuar, até ao apito final.

    Este é um livro sobre esta equipa especial, e sobre os indivíduos heróicos que a constituem. Se eles falharem, a esperança não será a última a morrer. Os últimos a morrer serão os nossos filhos e os nossos netos.

  • Lobo Antunes

    Lobo Antunes


    A primeira impressão amplamente positiva que este livro de Lobo Antunes nos causa é de uma continuidade inovadora que parece afirmar-se como o traço mais marcante da capacidade inesgotável da sua criação.

    Dentro dessa impressão muito genérica, um conjunto de aspectos a destacar liga-se, de imediato, à linhagem literária em que a obra, do nosso ponto de vista, se inscreve. Com efeito, tomando-a na continuidade, num primeiro momento, a criação romanesca de Lobo Antunes aparece-nos inserida, de modo muito forte, na decorrência de um cânone, de uma família literária, que constitui o núcleo central de profunda revolução desenvolvida no romance por algumas atitudes autorais.

    Podemos chamar modernistas a essas posições criativas e de manifestos poéticos – mais ou menos ficcionais –, até pelo paralelo que encontramos entre elas e as criações, em outros campos artísticos, que são reconhecidas como tais. Essas atitudes, de um modo geral, têm a ver, sobretudo, com o questionamento da representação espacial na sua articulação problemática com os vectores do tempo. De facto, uma espécie de preocupação dominante marca a produção artística, desde os princípios do século XX e, de um modo geral, ela procura de resolver, de maneiras controversas e variadas, a inscrição da quarta dimensão nos horizontes de percepção, construindo objectos em que não só é representada a relação das três dimensões clássicas do espaço com o tempo,  mas também a do observador com o observado.

    Dentro dessa ordem de ideias, alguns romances fundamentais na produção literária ocidental, como os de Joyce, Proust e Faulkner, por exemplo, apontam claramente para a problemática dessa questão. Corroborando a importância de tal revolução modernista no romance, quase toda a produção do que se chamou o nouveau roman não faz mais do que reforçá-la. Para isso, instaurou como elemento dominante da criação romanesca o interesse explícito pela própria poética do romance, chegando alguns dos romances da “escola” a serem narrativas sobre a escrita de um romance.

    Ora, não é por mero exercício de construção de um panteão que evocamos esses nomes e essas escolas: o começo do romance de que aqui falamos sobretudo convoca-nos, de imediato, duas das figuras centrais fundadoras desse modernismo: Joyce e Proust. A entidade voz que abre, por assim dizer, o discurso narrativo de  Que farei quando tudo arde? não pode deixar de nos evocar o universo de caóticas incursões imagísticas do estado semi-onírico de Molly Bloom, em Ulysses, de James Joyce, ou o universo de devaneio, num despertar mais ou menos embriagado, que se desenha em imprecisos contornos de invenção lexical em Finnegans Wake, do mesmo autor; como também não nos deixa esquecer o estado errático da imaginação do narrador de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, logo nas primeiras linhas do romance, quando procurava adormecer.

    Se, por um lado, o despertar é francamente evocado, de imediato, nas primeiras linhas do último romance de Lobo Antunes: “Tinha a certeza que sonhara aquele sonho na véspera ou na antevéspera/ na véspera/ e por isso mesmo, sem acordar, pensava” (p.11) – por outro lado, o adormecer também aparece igualmente como importante momento do processo do discurso da voz atribuível à mesma personagem, no penúltimo capítulo do romance: “Quando morávamos juntos, me deitavam no colchão guardado debaixo da cama, o desenrolavam na cozinha a explicarem/ – É noite Paulo/ e ficava às escuras sentindo o que chamávamos o mar lá em baixo e não era mais que o rio, a foz do rio, o sítio onde o Tejo por alturas da ponte, cansado de tropeçar em montanhas, barragens, castelos, moinhos, planícies/ julgava eu/ desoladas chega finalmente ao oceano e se dissolve nele numa espécie de suspiro ou assim, quando morávamos juntos e ficava às escuras vendo a porta do quintal que surgia no halo do muro, pensava sempre que as lágrimas, as discussões acabavam, os meus pais/ vocês (…)” (p.611).

    Esse é um dos processos segundo os quais o romance de Lobo Antunes estabelece aquilo que chamaríamos, aqui, o peculiar pacto de verosimilhança que o instrui. Segundo este, no vago do perceptível, na vacilação da racionalidade, o princípio da identidade dilui-se e o aqui e o agora dificilmente instauram fronteiras. Mas, note-se, a construção do momento do sono e do sonho como base em que se firma a origem das vozes, não é o único processo a dissolver os contornos em que é possível assegurar o efeito da realidade em causa e identificar os objectos de conhecimento; outros dois motivos reaparecem constantemente a incomodar a nossa “suspensão da descrença”: a evocação dos percursos das personagens pelas clínicas psiquiátricas e o facto de o consumo de drogas ou álcool ser frequente nalgumas delas.

    Ora, se as vivências passionais são as fibras centrais das intrigas que se desenham e se o quotidiano das personagens é assolado pela própria marginalidade de algumas profissões ou modos de vida, como a prostituição, o transformismo (ou travestismo como também se diz muitas vezes) e a representação em circo como palhaços, completa-se o quadro da inquietante estranheza, no interior deste universo ficcionalmente construído, pela evocação permanente do momento da morte, do enterro, da perda dos parentes. Assim, enquanto ritual do enterro, ou a evocação do corpo morto, modulam a figura que se constrói com entidade perdida, a vacuidade das vidas que se apresentam como meras memórias, pela impossibilidade de lhes encontrar um esteiro de autenticidade, lança fortes colorações de suspeita sobre a verosimilhança das personagens.

    Desse modo, o verosímil que se constrói não assenta sobre uma ética do socialmente instituído, do empiricamente reconhecido pelo grupo dominante, normativo, a que se chama todo social, como verdadeiro. Tendo o núcleo restrito da sociedade, representada fabulatoriamente, perdido as referências racionalmente aceitáveis que pautam os valores de verdade, – a heterossexualidade procriativa, a representação da autenticidade sexual, a vigília, a sobriedade e a sanidade mental – sendo as figuras dos mortos mais fortes afectivamente do que as dos vivos, podemos dizer que os processos de representação se constroem como perturbantes mecanismos de inquirição da verdade.

    Lembraríamos, a propósito da importância que a evocação dos mortos e dos rituais de inumação tem no adensar da problemática da existência perspectivada pelos familiares amigos e conhecidos que lhes sobrevivem, As I lay dying, de William Faulkner, que se institui como modelo da narrativa do século XX exactamente pelo modo como usa o momento do enterro como cenário central e ponto nodal onde se tecem, em confrontos, as paixões e se visionam as acções em litígio.

    Também é essa obra uma das que funda, pela criatividade que o autor americano com ela produz, a pluridiscursividade[i] dramatizada dos monólogos no romance. Resulta tal processo do facto de a narrativa avançar pelo entrecruzar, por vezes coerente, mas muitas vezes contraditório e mesmo paradoxal, dos vários discursos que, por assim dizer, representam o fluir de várias consciências em torno de um acontecimento central que unifica a acção. Com tal procedimento, Faulkner tinha intensificado e valorizado aquilo que já era notório, mas não dominante, em Dostoievski  – dado que, neste, esse encontro de vozes, embora nem sempre em sintonia, concordância ou mesmo em coerência interlocutiva, ainda se assemelhava muito ao discurso do diálogo típico do romance oitocentista.

    Ora, Lobo Antunes, que, desde o seu primeiro romance, se caracteriza por um processo narrativo que se desenvolve pelo cruzar de vozes que nem sempre entabulam diálogo umas com a outras, leva, neste romance, o desenvolvimento de tal tradição a um ponto limite a que poderíamos chamar a dominância absoluta da polifonia em ruptura (Bakhtine, 1970: 33), ou, para usarmos termos mais simples, a dominância das sentenças em co-ocorrência sem estabelecimento de diálogo. Explicando ainda melhor, tudo se passa como se as vozes, representando personagens – por vezes personagens evocadas por uma delas –, se quisessem fazer ouvir pelas outras sem, contudo, darem atenção ao que as outras dizem.

    hands formed together with red heart paint

    Paulo, por exemplo, parece ser a personagem suporte desta narrativa, visto ser a partir da sua que todas as outras emergem – e aquela cujo nome é mais frequentemente evocado como elemento central do drama que se constrói como intriga (cf. M.A. Seixo, 2002: 428-429). No entanto, não é inteiramente evidente que isso seja sempre assim. Por exemplo, um dos capítulos começa com uma voz que se deixa perceber como a da mãe de Paulo invectivando o sujeito da escrita: “O meu filho Paulo que o aldrabe se lhe der na gana/ e o senhor a acreditar nele e a escrever ou a fingir que acredita nele e a escrever ou nem sequer a acreditar nele e a escrever…” (p.495).

    É claro que, desse modo, fica posta em causa – pela aceitabilidade do princípio da contradição de duas afirmações antagónicas relativamente aos factos apresentados – a autenticidade de todos os ditos, incluindo o escrever que se presume (embora ninguém o afirme) que é o do escritor. A dúvida sobre a actividade da escrita como registo da verdade, aliás, é lançada de modo ainda mais evidente quando uma das vozes se manifesta como repórter e se revela incapaz de escrever o artigo em que fala do travesti, pai de Paulo, e do seu enterro, não só pelo contraditório dos depoimentos como pela impossibilidade de fornecer os “pormenores” que lhe parecem necessários e que o chefe de redacção anula por os considerar uma “mania” que “estraga a prosa” (pp. 257-262).

    Uma outra tradição que seria de evocar aqui é a do modernismo português de Raúl Brandão, dado que o terror e a piedade se revelam como a grande paixão deste romance, em simultâneo com a paródia e o espectáculo de circo que resultam do confluir das várias personagens e cenários do romance.

    Esta passagem, que se liga à voz/ escrita da personagem do jornalista, falando do pai de Paulo que foi palhaço e transformista, pode servir de exemplo dessa dívida para com o autor de A farsa: “a criatura chama-se Soraia senhor, foi a sepultar anteontem (…)/ veja a Soraia nessa esquina/ um acento grave e uma maiúscula que a fita não imprimiu/ a regressar das discotecas da Rua da Imprensa Nacional, umas caves de degraus na penumbra e nos fins dos degraus a música, as bailarinas, a cerveja em conta, a empregada/ dona Amélia/ com um tabuleiro de chocolates, perfumes e tabaco americano, o paraíso dos puros de coração, homossexuais, viciosos, melancólicos, transformistas, lésbicas e solitários como eu que perderam o seu ideal há trinta e cinco anos” (p. 260). De Brandão, parece-nos, é, assim, o culto de uma situação obsessiva, permanente, recorrente, expressa no acumular hiperbolizante dos elementos de um universo de desregramento, dor em paroxismo e “espanto” face aos indícios surpreendentes do mundo.

    gray microphone in room

    No entanto, o modelo mais directo do recurso a essa cena-quadro, quase estática ou repetitiva, núcleo dramático, de ressonância trágica, em torno do qual se vai compondo o mosaico das imagens, parece-nos ser José Cardoso Pires, sobretudo o de O Delfim. É dele que virá o modelo que Lobo Antunes tão bem cultiva dos fragmentos de acções, frases enigmáticas, diálogos em desentendimento, quadros perceptivos pouco  nítidos aglutinando-se em torno de um núcleo mítico-fabulatório, uma espécie de narrativa arcaica à qual se vêm juntar todas as fantasias, fantasmas e vivências. Tudo como se a dimensão afectiva desse núcleo perdido, apenas salvaguardado a custo e com imprecisão na memória, desencadeasse a intensidade da paixão e tornasse quase impossível o desenrolar seguro e aprazível da vivência e a sua fruição como realidade conquistada para a estabilidade do sujeito exactamente porque à nossa voz se opõe, perversamente, a voz do outro.

    É assim que a voz de Paulo evoca o que há de inquietante na sua situação: “Se pudéssemos conversar não importa onde/na casa da praia, os Anjos, o Príncipe Real, a cave/um lugar onde fôssemos não os fantasmas de agora, mas as pessoas de dantes, fantasmas vocês que perdi e fantasma eu que os procuro entre sombras falando-vos como falam os mortos…” (p.477). Evocação de uma casa, um lugar de origem, uma família em que se revelaram os primeiros gestos do afecto e os estados emocionais fundadores, o romance desenvolve-se como um percurso pelos labirintos da memória e da fantasia, pelo reconstruir dos mitos e pela tentativa da melhor interpretação da situações dramáticas para fazer regressar o seu herói, eventualmente Paulo, filho do erro e do equívoco – uma mãe afectivamente abandonada, um pai palhaço e travesti (não era Laios homossexual, segundo algumas versões do muthos?), uns pais adoptivos sem grandes rasgos de espírito, uma sociedade  despojada de ideais – a um humos original acolhedor.

    A narrativa, desse modo, não se assemelha a um cursor linear, partindo de uma necessária carência, para a busca de uma etapa final de reencontro e plenitude ou, pelo menos, para uma compreensão do que no Cosmo é um enigma. Quase ao contrário, do que se parte é do turbilhão fundador do discurso, da evocação dos mortos como inevitáveis personagens do pesadelo, dos entes perdidos como obsessivos adversários no percurso do sujeito que busca a elementar verdade em que assenta o seu ser, e que parece poder resumir-se numa pergunta: “de onde venho?”.

    person holding white book

    O fascinante é que o que se lhe apresenta nos labirintos da memória, independentemente de ser verdade ou fantasia, não passa do teorema da impossibilidade da sua origem em conformidade com os valores do humano: a mãe violada, pagando um favor e não desejando um filho, e um pai desqualificado como “paternidade”. Palhaço ou travesti, ora a paródia do homem ora a sua inversão sexual (Carlos? Soraia?), a imagem do pai só se inscreve socialmente na marginalidade ou na perturbante diferença.

    Recorrentemente são as franjas marginais que pautam o lugar da morte e o ritual do enterro do pai: os mulatos, os travestis, os palhaços, os cães vadios. Com a mãe anulada enquanto mulher não desejável, integrado na família insignificante dos pais adoptivos, lançado no mundo da droga, a voz que circula, fazendo emergir as outras – dos seus parceiros, entes queridos perdidos ou figuras ameaçadoras das instituições ou das sombras – o potencial protagonista só se pode exprimir pelo drama que monta sobre o fundo obcecante do terror de si próprio como morto: “falando-vos como falam os mortos e respondendo palavras minhas, não vossas, o que espero que digam sabendo  que não diriam desse modo, se pudessem contar-me o que não conheço e talvez prefira não conhecer, o que sucedeu antes do meu nascimento ou quando era pequeno demais para entender que sucedera e apenas me permito inventar, conforme as cartas antigas inventam o passado” (p. 477).

    E não será essa uma das forças maiores da ficção – ensinar-nos por entreposta experiência fantasiada como a nossa voz é inventada pela dos outros, voz pela qual nos criamos um eu mítico que só existe em plenitude ontológica como oposto aos outros que, até certo ponto, são fantasia nossa, tal como os delineamos pela nossa voz?  

    graffiti on wall during daytime

    No emergir confuso das vozes em multidão, delineando-se e desaparecendo, por vezes no mesmo enunciado, uma das grandes figuras que nos parece tutelar a encenação destas vozes que dizem, repetem, reformulam e desdizem os factos é o ruído. Ora, como nos ensina tradicionalmente a teoria da informação, o ruído é uma tendência de perturbação da boa circulação da mensagem mas, inversamente, é o modo pelo qual se intensifica a informação, a nível semântico, quando ultrapassamos o nível meramente tecnológico da comunicação e a emergência da ambiguidade se afirma como elemento importante na produção de sentido.

    Do ponto de vista da “boa clareza”, o ruído não deve existir: mas uma mensagem sem ruído corre, no entanto, o risco de se tornar transparente. No limite, não transmite informação, é imperceptível, por tanto repisar os elementos que a tornam redundante: o que é dito em acréscimo é exactamente igual ao que já foi dito. O ruído, ao contrário, concentra informação, na medida em que provoca um máximo de busca de conhecimento e uma quase perda dos apoios do reconhecimento.

    Estas considerações em que resumimos de modo simplificado algumas das consequências das teorias de Shannon e Weaver[ii], permitem-nos adiantar uma suposição sobre este labirinto de vozes, tal como ele é usado por Lobo Antunes. Dividiríamos, para melhor compreensão, essa suposição em dois horizontes de possibilidade: um afirmaria que aumentando a indeterminação semântica, pela multiplicação das vozes em antagonismo e contradição, a fábula – que se resume a um número muito pequeno de factos que residem numa história traumática (e mesmo clínica) de um jovem drogado – adensa-se como enigma e espaço de interrogação existencial e antropológico – resultando que uma espécie de enigma da vida e da morte surge no amontoar de repetições, contradições e sobreposições em que se nega o desenrolar da  intriga; o outro horizonte reforçaria o anterior pelo que dá de vislumbre de um dizer da multidão – não a vox populi, no entanto, mas antes a voz da massa, o acumular repetitivo do dizer ao qual já é indiferente a origem da fonte porque, se nenhuma é qualificada, todas se anulam – uma espécie de enigma do enunciar, uma vez que não é possível atribuir uma personalidade ao dizer.

    person smoking

    Ora, assim, o enigma desloca-se, curiosamente, do dito para o dizer como acto, e não tanto pelo sentido do enunciado, mas pela forma da entidade que formula. A suspeita que cultivamos, assim, como interrogação fecunda, é a de que a prática do ruído produtivo, a ambiguidade que instaura a dúvida como entidade heurística ou figura epistemológica em Lobo Antunes, não se processa tanto ao nível das distorções semânticas, como ao nível das distorções (ou ruídos) de enunciação. O que nele se torna central e dominante, sobretudo neste romance, não é tanto a inquietação do sentido, pela indeterminação, fragilidade ético-psicológica das personagens, ou mesmo a sua duplicidade, que as tornaria pouco dignas de confiança, como a inquietação do sentido pela complexidade e distorção das instâncias de enunciação. Não se trata mais de interrogar que tipo de verdade ou falsidade cada personagem comporta, sobretudo a partir da validade dos seus fazeres ou dizeres – trata-se, sim, de questionar a própria possibilidade de representar ou de meter em cena (encenar, no sentido mais forte do termo) a voz.

    Tudo se passa – para recorrermos ao exemplo do teatro e da semiotização do seu pôr em cena as personagens, dado o palco ser o lugar onde o encenar da voz é menos “equívoco” – como se as falas se deslocassem das didascálias a que pertencem e se infiltrassem nas que lhe são vizinhas e que, por vezes, numa lógica de empastelamento da presentificação cénica, as falas fossem produzidas pelos nomes das personagens às quais são dirigidas.

    Desse modo, a enunciação resvala, em muito casos, de um sujeito que aparentemente a suportava – que era o sujeito da enunciação, responsável, aparentemente, do dizer, seu garante “psicológico”, “epistemológico” e semântico – para o sujeito do enunciado ou mesmo para o vocativo da frase, passando a responsabilidade da frase a ser, também, do “ele”, de quem se fala, ou do “tu” a quem se dirige.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    As consequências mais evidentes de uma tal prática – que sumariámos através das suas ocorrências mais notórias, omitindo as variações de registos de enunciação que já eram formulações típicas de Lobo Antunes e mesmo  procedimentos de narração similares dos autores que prefigurariam o seu cânone mais ou menos explícito (a que aludimos logo no princípio do nosso trabalho) – são, parece-nos: lançar uma opacidade significativa sobre o suporte mais evidente do discurso enquanto coerência lógica, inequívoca (ou unívoca – “univocal”, leia-se) e detentora de uma razão última das coisas; desenvolver uma cenografia do discurso romanesco onde a presença das vozes da narração e da narrativa se entrelacem numa evidência de fazer poético, sem que assista a nenhuma delas mais autoridade – no plano do conhecimento ou do interrogar dos enigmas  (de uma epistemologia, tal como a vimos conceptualizando aqui) – do que às outras; e uma reinscrição do autor no universo poético da própria criação, enquanto ser textual, que estabelece com a História e com o real uma relação problemática, muito mais inserido, como parte no enigma que dá sentido ao acto poético, na obra do que seu condutor. Surge, desse modo, muito mais como joguete do enigma do que como detentor de um saber que poderia pretender dissolver o mistério e retirar ao acto poético a sua dimensão inquiridora central.

    Acompanhamos aqui, inteiramente, o juízo de Maria Alzira Seixo formulado a propósito exactamente deste romance (embora com alcance para o conjunto da obra do autor – ampliação que, em linhas gerais, propomos de modo similar):

     “a questão autobiográfica só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para a sua circunstância ou para a sua experiência, criar uma interpelação  do texto em relação àquele que o lê,  e obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura  quanto aos labirintos da produção artística. Isto é: o que é importante, (no excerto do romance citado pela autora em que a voz ora se autonomeia Paulo – nome da personagem – ora António, nome do autor: António Lobo Antunes ) não é tanto que a personagem se nos comunique com o nome de António (…) mas que entre o nome da ficção, Paulo, e o nome do ficcionista, António, se crie uma hesitação de identificação (sobretudo num romance que tematiza a identidade), hesitação essa que é justamente o que faz ler um romance como «mundo possível», e que, na hesitação comungante entre o real (sensível, mas inapreensível) e o imaginário (apreensível, mas apenas sensível nos riscos que continuam a escrita e configuram a sua representação mental) do romance as imagens se desprendam para virem interferir com o real e o imaginário do leitor e com ele entrem em diálogo de problematização ou actuação do pensamento fecundante” (2002: 476).

    book lot on black wooden shelf

    Embora  o tratamento do autor se coloque como questão central na estratégia da poética de Lobo Antunes, o espaço epistemológico que ela abre, a este nível da enunciação, reformula toda uma concepção do tratamento do saber e do conhecimento a que a literatura aspira. Muito especialmente no romance, sobretudo quando as suas formas são inquietadas até ao limite, como é o caso das obras de Lobo Antunes e desta muito particularmente, o modelo de mundo possível aberto retoma com a extrema veemência o postulado do verosímil, tal como Aristóteles o colocou  na sua poética: não tanto como algo que se “concede” à literatura pela condescendência da filosofia (ou da metafísica, ou da epistemologia, como suas partes constituintes fundamentais) para o poético poder ter um direito de cidadania, mas como uma afirmação de valor, sendo o verosímil um importante processo de construção da verdade suprema, inteligível (aletheia), e não um equivocado percurso em concorrência com a verdade do logos racional (episteme).

    Ora, para que o saber se represente no literário, parece-nos, há um lugar que tem de ser minimizado, para que a ficção (a suspensão da descrença, que leríamos como o verosímil, neste caso) ganhe força, e a ambiguidade se instale como mecanismo epistemológico: o do centro detentor do saber final. Na filosofia, é ao “primeiro” Platão, concretamente ao de Íon, mas mesmo o de Crátilo, por exemplo, que temos de nos reportar, para percebermos quanto “Sócrates”, o primeiro, representa esse autor sem “autoridade”, que circula entre o seus pares, buscando a inteligibilidade que está para lá dos saberes. E é contra uma autoridade como a do segundo “Sócrates”, o da República (do primeiro livro em diante, dizem-nos os especialistas), que o romanesco de Lobo Antunes se formula. E é nesse sentido que pensamos residir a grande força da encenação das vozes em torno de um centro que todos partilham mas ninguém assume em plenitude de direito.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bakhtine, Mikhail, 1970, La Poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Jakobson, Roman, 1963, Essais de linguistique générale, Seuil, Paris

    Martinet, Jeanne, 1976, Chaves para a semiologia, Dom Quixote, Lisboa

    Seixo, Maria Alzira, 2002, Os romances de António Lobo Antunes, Dom Quixote, Lisboa     


    [i] Reportamo-nos aqui, evidentemente, ao uso que Bakhtine faz do termo polifónico   para falar das vozes do romance, sobretudo no de Dostoievski (cf. Bakhtine, 1970: 332-39)

    [ii] Sobre esta matéria complexa, de cuja dimensão paradoxal tiramos fundamentos para algumas explorações na ordem do poético, remetemos para os textos de Jakobson e de J. Martinet constantes na nossa bibliografia, nos quais apoiamos as nossas hipóteses. Considerando que pode ser “«ruído» tudo o que é responsável pelo malogro de um acto sémico” Jeanne Martinet (1976: 36) abre-nos a perspectiva para pensarmos quanto o poético e o literário vivem  exactamente do malogro do acto monossémico. E cremos estar correctos ao pensarmos quanto a compreensão do poético pelo ponto de vista da estilística deve às observações de Jakobson acerca da importância do “«barulho semântico»” (1963: 95), pelo que este  permite de “ambiguidades  ao receptor” que “caracterizam as ambiguidades da poesia e do jogo de palavras” (Jakobson, 1963: 94). Sem esse ponto de vista certamente que a famosa e fecunda “teoria” do desvio ou não existiria ou teria muito mais dificuldades em se sustentar.

  • Fialho de Almeida

    Fialho de Almeida


    Quase sempre a coloração do fantástico, em Fialho de Almeida (1857-1911), manifesta-se em regime realista, sob duas formas hiperbólicas dos traços disfóricos: a caricatura e a intensificação dos aspectos desagradáveis ou mesmo atemorizantes dos objectos e dos eventos – a primeira tendente à revelação humorística, o outro à catarse (piedade e temor, ou mesmo terror) quase de feição trágica.   

    Muitos leitores e comentadores da obra de Fialho reconhecem que, como diz Raul Brandão, “«as descrições perderam a proporção, as figuras e a realidade, transformadas em figuras de dor e de grotesco»” (in Coelho, 1969: 220), resultando que, segundo Jacinto Prado Coelho, “se denunciam, [nele] os reflexos das estéticas impressionista e pré-rafaelista” (1969: 220).

    Fialho de Almeida

    Reconhece-lhe este crítico, aliás, um “romantismo temperamental, condicionado pelo materialismo e pela nevrose decadente” que inclinaria o autor de Os Gatos a uma “inquietação impulsiva e fragmentária” e o tornariam, também, poderoso na sua expressividade “pelo sortilégio com que transmite sensações” (Coelho, 1969: 221-222). É partindo deste ponto, amplamente partilhado pela tradição dos estudos da obra de Fialho, que Óscar Lopes acrescenta o conceito de expressionismo para situar, periodologicamente, a obra do autor das crónicas de Lisboa Galante, na sua articulação com as tradições poéticas e as estéticas que enquadram a sua obra:

    Chamo aqui expressionista a uma técnica literária que em vez de uma tipificação da realidade bem reconhecível termo a termo (técnica naturalista), em vez de simples lampejos mais subjectivantes onde a análise costumeira se omite mas continua possível a identificação global do objecto (técnica impressionista, também utilizada por Fialho em Os Ceifeiros), se substitui o modelo do senso comum da realidade por um outro modelo que, na sua estrutura de conjunto, é aparentemente irreal mas nos faz sentir algo de importante [notando-se], antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais” (Lopes, 1987: 188).

    A designação parece-nos justa e toda a tradição gótica (O. Lopes reconhece estar presente, em Fialho, a de raiz germânica) poderia considerar-se no escoramento do gosto de Fialho pelo macabro onde, sem dúvida, se anunciam as vesânias e as fulgurações de anomalias que marcam a sua obra, dimensão que lhe é reconhecida como decadente, decadentista ou, ainda, de romantismo tardio.

    Pormenor de As tentações de Santo Antão de Jerónimo Bosch

    Como termo de comparação, no campo da pintura, do gosto reinante, sobretudo nas suas crónicas, Óscar Lopes evoca Rembrandt e Goya. Reiteramo-lo quanto ao segundo, especialmente… já que de tempos mais remotos nos pareceria de evocar, mais do que o lado “negro” de Rembrandt, a alucinação alegórica de Bosch ou de Callot.

    Um dos textos que o ilustre estudioso que acabamos de referir considera mais representativo dessa atitude expressionista é a crónica “O Enterro do Rei D. Luís” publicado no volume I de Os Gatos:

    … As fisionomias dos nossos homens públicos depõem desagradavelmente a sua favor. […] A maior parte são pequenos monstros de olhar estrábico, ou vago, ou fugidio, ou injectado; caras balofas, olheirentas, dissimétricas, com um estigma, algumas, do quer que é de inquietador, que a gente não sabe o que seja, mas lá está a servir de síndroma à maqueira, oculta, e a prevenir a opinião contra a boa-fé dos esforços deles, em prol da causa que juraram servir.  […] Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces de primeiros oficiais de secretaria, de governadores civis, de tenentes-coronéis, de generais, de bispos, de deputados, de conselheiros de estado e de ministros” (2006: 101-102).

    Muitos dos Caprichos de Goya poderiam servir-nos de exemplo do elo que liga Fialho à iconografia fantástica. O “Porque esconderlos”, ou “Estan calientes”, poderiam ter como título complementar a frase de Fialho que acabemos de citar: “Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces…”. Mas a composição pode ir mais longe, como podemos ver um pouco adiante, na mesma crónica, e a evocação inflectir para a fantasia terrífica que inspira As Metamorfoses de Ovídio, as maravilhas genesíacas de um Bosch ou as fantasias de Callott, bem como as ficções literárias, herdeiras deste último, de Hoffmann ou de Gautier, quando Fialho afirma sobre as verdadeiras caras que se revelam:

    Exemplos dos Caprichos de Goya

    quando a máscara lhes tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena, que do seu antro segue o fio de um plano tenebroso, sindicato ou emboscada política, venda da pena ou  venda da palavra… […]. A passagem dos grotescos é uma ovação macabra e ininterrupta” (2006:102-103).

     Relacionar Fialho com o imaginário gótico que acompanhou o emergir do romantismo na literatura ocidental, ou com a soturnidade de uma certa pintura carregada de melancolia ou de alusão ao terror e ao fantástico, não resulta apenas do que se patenteia, como figuração, quando analisamos os seus escritos de pendor mais ou menos fantasioso, ou com horizontes relativamente delimitados pelo jornalismo. Ele próprio evoca os mestres que o inspiram, face a imagens que percepciona e transmite, como, por exemplo, encontramos expresso na crónica “De Noite”, recolhida em Lisboa Galante:

    É assim um grande leque de casarões, de que a noite não deixa aperceber senão bocados, e de cuja sobranceria soturna a fantasia só evoca monstruosidades e tragédias. Naquela enorme mancha a preto e branco, semelhante a um  pesadelo hugoesco que Goya e Rembrandt houvessem reproduzido a água forte, a vista, uma vez repousada do sobressalto da primeira visão, compraz-se agora em procurar, na tumultuosa embriogenia das formas, sítios familiares por ela conhecidos, como outros tantos  pontos de referência para a apreciação geral do panorama” (1994: 123).

    Ainda na mesma crónica, sobressaem outras evocações do mesmo filão:

    É o nocturno quem desde então se apodera da cidade, uma vez fechadas as lojas, escurecidas as ruas, os americanos e trens feitos mais raros, para dar larga aos seus caprichos, monomanias, análises e doenças; porque é ele que na chateza honesta da cidade ainda alimenta no peito a verde chama macabra do fantástico, que Edgar Poë tanto se compraz em ver bruxulear, como uma flor de civilização, podre e funérea, à superfície das grandes degringoladas sociais. […] Mas como o homem das multidões de Edgar Poë, outros caminham sempre de roda dos prédios fechados, farejando, retrocedendo, seguindo atrás de um, seguindo atrás de outro, em circuitos de angústia, agarrados à última esperança, e à caça sempre, condotières do vício, de apaziguarem a nevrose que desorienta e exaspera no mais recôndito das suas afectividades doentias” (1994:126 e 128).

     The Two Pantaloons – Callot, 1616 Etching (British Museum, Londres)

    De facto, não seriam despropositadas aqui, a completar esta perspectiva, as palavras de Hoffman sobre o desenhador francês, ao prefaciar os seus contos, ou “fantasias à maneira de Callot”, como ele diz em subtítulo:

    “[…] Os seus desenhos são apenas reflexos das aparições fantásticas que a magia da sua invenção evoca […]. A ironia, que confronta o homem e a besta para tornar irrisórios os comportamentos humanos dignos de piedade, é sinal de um espírito profundo; e estas figuras grotescas de Callot, com uma parte humana e outra bestial, desvelam ao olhar perspicaz de um observador sério todas as alusões que se escondem sob a máscara da bufonaria” (1969: 18[i]).

    É claro que o próprio Hoffmann, nas suas narrativas, em geral, usa sem parcimónia o imaginário fantástico, o qual acolhe o misto de bestiário e caracteriologia populares, bem como os esboços de monstros, que servem de signos semanticamente saturados no folclore, para estruturar uma visão do mundo, atenta sobretudo à orgânica da sociedade e das suas éticas.

    O sistema narrativo que ele privilegia emparceira, em grande parte, com as raízes do gótico que Ann Radcliffe usa, mas é, também, devedor do imaginário dos contos populares e das figurações teriomorfas e infernais que este segrega. Ambas as vertentes transparecem no excerto do seu conto, “O vaso de ouro”, que em seguida apresentamos:

    photo of library with turned on lights

    Em frente da pobre rapariga ajoelhada, hirta como uma estátua de mármore, distingues [tu, leitor] neste momento, acocorada no solo, uma criatura descarnada, de pele acobreada, de nariz recurvado como o bico de um abutre e com uns olhos de gato, lançando chispas; do manto negro que lhe cobre os ombros saem braços esqueléticos e lívidos e, mexendo o caldeirão infernal o ente lança gritos de assustar no desencadear da tempestade. Perante o espectáculo agitado desta cena satânica, digna de um Rembrandt ou de um Breughel do Inferno, creio que os teus cabelos, amigo leitor, se terão eriçado, ainda que tenhas mostrado, até agora, uma coragem inabalável” (Hoffmann, 1969: 257-258[ii]).

    Alongámo-nos na transcrição para demonstrar claramente como, em grande parte, a construção deste tipo de narrativa desenvolve essa técnica, tão cara aos expressionistas, de incluir, na sua mise en scène, o olhar e o pathos do espectador, patente em obras que se manifestaram, um século depois de Hoffmann ter publicado as suas narrativas, ao princípio na Alemanha, em variados sistemas expressivos como a arquitectura, as artes plásticas, o teatro e o cinema, sobretudo, embora tenha transparecido nas artes em geral.

    A técnica que tem em conta a focalização do leitor ou espectador, incorporada nas narrativas, reforça as dimensões plásticas e os posicionamentos de perspectiva que se desenvolveu desde o romance gótico até ao film noir, passando pelo cinema expressionista. Assim, compreende-se melhor o alcance da hipótese colocada por Óscar Lopes, acima transcrita, sobretudo tendo em conta o que ele escreve em seguida:

    “[…] Eu suponho que as criações mais originais de Fialho como ficcionista apontam a este processo, que as tradições de audácia fantasmagórica do Romantismo germânico (e já reconhecemos o interesse de Fialho por tal literatura de mistério e fantasmagoria) ajudaram a eclodir, mais tarde, sobretudo nos países de língua germânica. […] Notemos, antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais. Ora, em descrições do contista, tão frequentemente concebidas como quadros pictóricos, lá surgem repetidos, quase maníacos, os epítetos de rambrandesco, goyesco ou a evocação das gravuras de Doré, funcionando como uma espécie de símbolo estenográfico do belo horrível que o tenta […] onde […] o cronista desata «o bestiário da alucinação doida e disforme» com amplificações por vezes retorizadas, mas em todo o caso com garra alucinante.  […] O autor mais ou menos mostra aperceber-se de estar utilizando a fantasmagoria como meio de expressão de coisas a que os processos naturalistas não chegam” (Lopes, 1987: 188-190).  

    O filão aqui referido constituiu-se, de modo mais ou menos sistemático, em paralelo com outras configurações reconhecidas como marcas  diferenciadoras que caracterizaram a emergência e a formulação poética do romantismo: o apelo do irracional, a afirmação do eu como fonte e destino da verdade – mesmo quando se convoca o imaginário fantástico, a fantasmagoria e as percepções distorcidas do mundo empírico –, o confronto do bem e do mal com particular apreço pelas dimensões perturbantes, terríficas mas fascinantes, deste, bem como uma retórica da persuasão, toda ela assente na autenticidade de uma voz pessoal, que convoca a cumplicidade e compaixão do ouvinte ou do leitor, relativamente às representações elaboradas pela entidade enunciativa.

    Talvez nunca a entidade autoral se tenha confundido tão completamente com a voz e o ponto de vista autodiegético, ou de enunciação lírica, como aconteceu com os autores que hoje reconhecemos como componentes da constelação romântica, nos espaços europeus e americanos. Mesmo os primeiros escritos que anunciam tendências que se viriam a revelar dominantes no romantismo, ainda no século XVIII, lidam com essa retórica em variados escalões de veemência, buscando, do leitor, não uma anuência, mas uma adesão arrebatada.

    Leviatã, Doré (ilustração para a Bíblia)

    Não é a crença, a convicção mais ou menos racional, que estabelece o pacto poético entre o público leitor e a produção de uma Radcliffe ou de um Hoffmann, mas sim o arrepio ou o estremecimento emocional que  nos arrasta para o percurso das heroínas – sobretudo das heroínas, porque elas predominam, como vítimas do terror ameaçante – e ainda, também, a compaixão, a sintonia afectiva, a confabulação onírica, cujos mecanismos, motivos e componentes se agregam em torno da vítima, como um bastidor de dispositivos e hipóteses que, num registo de exigência racional e realista, teríamos dificuldade em aceitar ou mesmo conceber.

    Abandonando as convenções poéticas que asseguravam a estabilidade da razão pela inclusão ou enclausuramento do fantástico no plano do mitológico, do religioso ou da licença poética da fabulação alegórica, apenas para efeitos de exempla, o romantismo vem colocar, como possibilidade do experienciável, a verosimilhança do fantástico.

    O que é extraordinário, para as vivências e consonâncias perceptivas da comunidade, revela-se possível nos universos ficcionais e romanescos da produção literária que antecede e anuncia o romantismo, bem como numa boa parte da produção dos românticos e das posteriores gerações, desenvolvendo-se, a partir da época realista, num sub-género que as histórias e as genologias literárias vão arrumando sob o título de literatura fantástica.

    O satanismo, que acompanha o gosto parnasiano de um Baudelaire ou de um Gautier, a efabulação do retorno dos mortos ou da emergência de entidades infernais, no quotidiano dos seres vivos habitando universos regidos pelos princípios de uma normalidade em que isso não é possível, invadem as narrativas como acontecimentos extraordinários ou, mais frequentemente, são sugeridos por sinais aos quais não se sucede o fenómeno extraordinário, que apenas o anunciam in absentia, mas que vêm lembrar aos humanos que a estabilidade e normalidade do mundo em que vivem podem ser ameaçadas pelos seres do outro mundo. Como diz Todorov, o fantástico nasce da ambiguidade gerada pela possibilidade dessa ameaça:

    “[…] Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Num mundo que é, efectivamente, o nosso, o que nós conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não se pode explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Aquele que se apercebe do acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e as leis do mundo continuam a ser o que sempre foram; ou o fenómeno aconteceu realmente, é uma parte integrante da realidade e, então, essa realidade é regidas por leis que ignoramos. […] O fantástico ocupa o tempo desta incerteza; uma vez escolhida a resposta, abandonamos o fantástico para entrarmos num dos dois géneros vizinhos: o estranho ou maravilhoso” (1970: 29).

    Derretendo (possível auto-retrato?) de Rembrandt

    Digamos, desde já, aproveitando esta cómoda arrumação proposta por Todorov (que é interessante por ser simples e nos ajudar a encaminhar a reflexão, através de um percurso que se revela, muitas vezes, resvaladiço), que podemos vislumbrar, como ponto de partida, para o entendimento da dimensão da obra de Fialho a que Óscar Lopes chama expressionista, fortemente marcada pelo gosto decadentista e pelo satanismo finissecular, o enquadramento de alguns dos seus textos no género estranho, de que fala Todorov. De facto, Fialho busca, quase sempre, a caricatura com objectivos críticos, ou a parábola em que o efeito hiperbólico do extraordinário produz um efeito de argumentação ética ou ideológica. O efeito derrisório causado por este procedimento não deve ser ignorado nem mesmo minimizado.

    Não se trata, no entanto, de um maravilhoso como o que Flaubert constrói, num dos seus contos, ou mesmo em boa parte do seu Tentations de Saint Antoine, ou como aquele que Eça convoca nas suas parábolas bíblicas.         

    As distorções produzidas na caricatura ou na parábola crítica de Fialho, pelo facto de guiarem a imaginação através de um processo de metaforização, em que as analogias, os reconhecimentos e as enfatizações põem a percepção e o discernimento alerta, geram um modelo de representação que agudiza, pelo estranhamento (e, por isso, a designação de estranho, aplicada ao género, é tão adequada), a nossa capacidade de congeminar hipóteses sobre aspectos da realidade, da sociedade e dos valores humanos que, de outro modo, permaneceriam ocultos. Quanto a esse procedimento, ele está mais perto do visionarismo satanista dos românticos do que nalgum do imaginário feérico dos seus contemporâneos.

    Podemos perceber essa proximidade num conto em que o espírito da vida boémia (parisiense por excelência, deve notar-se) se manifesta aberta e hiperbolicamente, “Le club des hachichins”, Théophile Gautier explora o filão já cultivado por Hoffmann e, embora o hiperbolize, procura tornar patentes as raízes do fantástico a que é devedor:

    Peu à peu le salon s’était rempli de figures extraordinaires, comme on n’en trouve que dans les eaux-fortes de Callot et  dans les aquatintes de Goya : un pêle-mêle d’oripeaux et de haillons caractéristiques, de e formes humaines et bestiales; en toute autre occasion, j’eusse été peut-être inquiet d’une pareille compagnie, mais il n’y avait rien de menaçant dans ces monstruosités. C’était la malice, et non la férocité qui faisait tiller ces prunelles. La bonne humeur seule découvrait ces crocs désordonnés et ces incisives pointues” (Gautier, 1993: 180).

    Como se vê neste texto de Gautier, a dimensão do fantástico e do terrífico pode aproximar-se francamente da caricatura, da alusão crítica pela via do inquietante, sem por isso se desligar inteiramente da estética do fantástico, tal como ela foi cultivada pelos românticos e pós-românticos, inclusive os realistas e naturalistas, sobretudo naquelas criações que os estudiosos das estéticas modernas têm designado por gótico. É esse filão que, muitas vezes, parece inspirar Fialho, mesmo quando, aparentemente, pretende fazer o mais puro naturalismo, como acontece nos seus primeiros contos.

    Quanto a essa dimensão, poderíamos evocar aqui os trechos mais marcantes do seu conto longo, “A Ruiva”, do qual, só para exemplo, colhido quase ao acaso, apresentamos um trecho em que, ao efeito macabro, vem juntar-se o anelo de o macaquear, de o tornar caricatura do cenário do terror:

    Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres de tochas acesas, e puxados por seis parelhas cobertas de crepes. Visitava-os na casa da observação, acocorada a um canto com o olhar absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava, deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta, corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores, de que se julgava rainha” (2003: 16).

    Na composição das figuras dignas de pasmo que enchem as suas narrativas, quer sejam do foro da crónica interventiva ou de costumes, quer sejam ficcionais, quer sejam, ainda, um pouco de ambas, cultivadas em textos de escopo memorialístico, verificamos que a tradição do conto maravilhoso e o estilo da narrativa estranha se conjugam, num hábil compromisso que possibilita a emergência de um fantástico sui generis, o qual parece apresentar-se a cada um de nós como fazendo parte do nosso quotidiano, presumivelmente presente se dobrarmos certas esquinas malfadadas, que o destino nos apresenta sem nos ter preparado para isso.

    grayscale photo of people sitting on bench near trees

    E é verdade que a estranheza inquietante, embora seja mais própria das grandes metrópoles, onde reina o anonimato e o desconhecimento mútuo entre indivíduos que, de súbito, convivem na mais estreita intimidade, pode surgir, igualmente, nas sociedades rurais, onde a crendice é mais cultivada. Pode surgir, por exemplo, nos traços fisionómicos de um conterrâneo, de um vizinho aparentemente normal na sua singularidade, sobretudo quando nele reparam mais atentamente. É o que acontece na crónica, com forte componente de fantasia, “O Anão”, de O País das Uvas, ao descrever a personagem que dá título à narrativa:

    Reparando bem, havia até nas feições dele alguma coisa de herbívoro, flagrante à vista. O focinho, aguçado e móvel, mascava sempre. As bosseladuras da testa tinham tendências cónicas de chibato. Era típico o ar espantadiço com que escutava os rumores dispersos pelo campo. Vinham a ele os rebanhos, como a um irmão de armas. Os mesmos bodes, com o seu espirituoso donaire mefistofélico, lhe reconheciam um ar de família. E roçavam-se-lhe amorosamente pelos ceifões as cabrinhas coquetes, como quem suspira: «Desposa-me!»” (s/d: 87).   

    A tentação de Fialho pelo fantástico da fisionomia é tão grande que lhe invade mesmo os textos onde seria de esperar a moderação retórica da argumentação ponderada, talvez exaltada das adjectivações de aprovação ou desaprovação, mas cautelosa no modo de fazer o retrato a pessoas que lhe mereciam respeito como, por exemplo, os seus confrades. Mesmo nos textos em que louva, como acontece com o que escreve sobre Malheiro Dias, não abandona o fascínio pelo bestiário: “Dois olhos pretos, stellares, d’animalzinho sagaz que ficasse infantil por um principio de graça, inherente ás espécies de felinos […]” (1923: 99). Não espanta, por isso, que, ao referir-se a Eça, com quem mantém um perpétuo contencioso, nem sempre fácil de entender, o seu fisionomismo recorra a um bestiário de inspiração satânica:

    silhouette photograph of trees with foggy weather

    Olhem bem essa masque de face cavada e nariz astuto, com olhos de myope alternadamente coriscantes e doces, bocca fina, que sob as azas do bigode, aos cantos se atormenta numa ironia que faz na sua conversa e na sua proza, um scintillar de espadas em duello. Ao premir na orbita o monoculo, as sobrancelhas negras estranhamente arqueadas approximam-se e palpitam, como remiges em azas de corvo, pondo na physionomia, o que seja de um cunho mephistophelico” (1923: 104).

    É claro que Eça aparece, aqui, quase reproduzindo em pessoa o “senhor das trevas, do qual ele próprio propõe a imagem, o molde descritivo, de maneira algo hilariante, em O Mandarim:

    Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois  clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício” (1992: 89).   

    De facto, Fialho de Almeida parece ter levado às últimas consequências, de modo sistemático, refinado e original, o recurso à figura do animal, como “material” para a construção de metáforas, ou mesmo alegorias que procuram ser emblemáticos exempla das características humanas, sobretudo as instintuais, tendo servido, desde as origens da organização social da humanidade, quer para revelar as dimensões da animalidade no homem, quer para “tomar a diversidade das espécies para suporte conceptual da diversidade social” (Lévi-Stauss, 1986: 129)[iii].

    fountain pen on black lined paper

    Não andaria longe, por isso, dos mestres que evoca. Pela associação de imagens, a simples figuração de brilho e negrume – que costuma ser já, quase, uma catacrese da sinédoque com que se designam os olhos e as sobrancelhas: “pontos luminosos e traços negros” –, quando se evoca o corvo, é  transformada na própria tonalidade infernal, sobretudo quando o movimento da “remiges”, gera a feição mefistofélica, sobrancelhas unindo-se, arqueadas sobre o olhar penetrante (muito aberto e fixo, como que para hipnotizar, como sugere o movimento do monóculo). O corvo surge aí, então, como a ave de mau agoiro, de missão necrófaga, que plana sobres os campos de batalha, para arrebatar os cadáveres, ou aparece como Malphas, figura infernal, que um demonólogo como Collin de Plancy define do seguinte modo:

    Vice-presidente dos infernos, que aparece sob a forma de corvo. Quando se mostra em figura humana, o som da a voz é rouco; constrói cidadelas e torres inexpugnáveis, derruba as muralhas inimigas, faz encontrar bons obreiros, fornece espíritos familiares, recebe sacrifícios e engana os sacrificantes. Quarenta legiões lhe obedecem” (2002: 291).       

    O manancial do simbolismo animal parece não se esgotar é repleto de versáteis composições. Como Durand diz sobre Goya:

    Dos Caprichos aos Desastres da Guerra, o pintor espanhol fez uma inultrapassável análise iconográfica da bestialidade, símbolo eterno de Cronos e de Tânato. Vamos ver sobrepor-se a esta primeira face teriomorfa do tempo a máscara tenebrosa que, nas constelações estudadas, as alusões à negrura do sol às suas devastações deixavam pressentir” (1989: 65).

    Em boa verdade, esta tendência para uma fantasia aberta às hipóteses do fantástico é constante em Fialho, tornando-se uma tentação maior nas crónicas ou nas narrativas que se apresentam como registos de ocorrências pouco comuns mas que são publicadas em recolhas contendo textos que podem ser entendidos como reportagens ou notas de jornalista.

    Podemos ler, em “A Condessa”, um desses textos que tanto nos sugerem a crónica de eventos reais como a ficção, contidos em Lisboa Galante, o seguinte:

    Entanto, à medida que ela ia embocetando, com lascívias de panterazinha domada, todos os proventos da sua galante profissão, impava o Chiado de não fazer a sua convivência. […] Eram gastrálgicos de ventre alto, trinta anos fanados com primeiros pés de galinha ao canto das órbitas; pequenos crustáceos de redacção, vilegiando na esteira das coristas da Trindade; jovens loiros de esporas e vincos cebáceos na copa mole dos feltros; enfim, dominadores ricos, herdeiros do alto comércio, aristocratas de nariz em bec: ou glaucos militarzinhos pobres, que o rumor dos breaks elegantes, ou o trote das parelhas em voga, não deixavam resignadamente aceitar a miserável vida que levavam” (1994: 84).  

    O que chama a nossa atenção e nos desafia a aprofundar, em mais amplas indagações, a desenvolver em lugar que possa acolher mais alargada exposição, o culto do fantástico e o uso da figuração terrífica em Fialho de Almeida, é o modo como ele se processa textualmente no conjunto da sua obra.

    De facto, Fialho não é um autor de textos fantásticos: as construções das suas intrigas desenvolvem-se segundo a dominante naturalista, sob o pendão hegemónico do cientismo positivista, e as suas crónicas reportam-se a eventos que se revelam empiricamente reais, num cotejo com os noticiários do seu tempo e com as crónicas da historiografia que os subsumem.

    Ele não pratica evasões ou escapadelas pelo imaginário fantasioso, como Eça o fez, através da alegoria, da história terrífica ou mesmo do género fantástico propriamente dito (como nas lendas de inspiração bíblica, no conto “O Defunto” ou em O Mandarim), ou como Ramalho Ortigão, quando acompanha Eça na fantasia romântica da “estrada de Sintra”.

    Trata-se, efectivamente, de inserir a sugestão do terrífico, do anómalo ou do extraordinário no interior do mais chão e zeloso realismo, no registo da crónica em regime realista, por vezes com propaladas argumentações de teor positivista, quase em registo experimentalista de um Claude Bernard. Tudo se passa como se argumentasse que o universo é banal e repetitivo, de tal modo que o que de mais estranho nos ocorre cabe no território do previsível, nas regiões da catástrofe aniquiladora e da morte – mas que, contudo, as zonas terríficas, que estão para lá da nossa possibilidade experiencial, se fazem anunciar por sinais, por quadros prenunciantes da dissolução e do fim, que se revelam como coruscantes imagens ameaçadoras, implacáveis e medonhas.

    brown wooden panel door beside gray concrete wall

    De algum modo, é esse imaginário que está presente na cena de “Os Pobres” recolhido em O País das Uvas, no qual o próprio impulso sexual, a onda do desejo, se transformam num imaginário de pesadelo, num enredo cósmico que parece não ter fim, e que poderia emblematizar o horizonte de toda a obra de Fialho. Como encerramento desta matéria, citamos, na íntegra, a cena aludida:

    Já sob o império das raivas de multiplicação que radiam dela, o descalção se arrasta, de braços estendidos, à procura do centro histerógeno de pecado, enquanto da outra banda a fêmea se debate num desespero semelhante ao que lhe dá. Andam assim nas trevas procurando-se, de rastos como cobras, lacerando os farrapos,  os torsos na espiral do mesmo adusto anseio; e afinal acham, o contacto das suas carnes dá na sombra uma crepitação de escamas de imundície, quando alfim ele, súbito liberto, pelas impunidades da treva, das suas preocupações de hediondez, ala sobre ela o monstruoso corpo de colosso, que fosforeja e estria, como um mastodonte  cioso, os grandes músculos. E as unhas rasgam-lhe os rins, a cravá-la em si com fúrias de chacal. Cavas, opressas, ouvem-se as respirações suflar bestialidade, e de ambos os dois as sedes são vorazes, e o resfôlego das duas máquinas irmana-se, rimando os urros e sofreguidões das suas virgindades envelhecidas a pontapés, sob os desdéns carnais de toda a raça humana” (sd: 41).

    Não poderíamos encontrar melhor exemplo, para ilustrar o processo de intromissão súbita e pontual do fantástico, recorrente e sistemático a pautar a sua obra, patente numa impressionante quantidade de textos que foram dados a lume em volume.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa

    Almeida, José Valentim Fialho de, 1956(?) e 2003, Contos, Clássica, Lisboa (1881)[iv]

    Almeida, José Valentim Fialho de, 1912, A Cidade do Vício, Clássica, Lisboa (1882)

    Almeida, José Valentim Fialho de, 2000, “O Aguadeiro Alentejano”, Boletim da Associação Cultural Fialho de Almeida, Cuba (1984)

    Almeida, José Valentim Fialho de, s/d, O País da Uvas, Europa-América, Mem Martins (1893)

    Almeida, José Valentim Fialho de, 2006, Os Gatos (antologia), Verbo, Lisboa (1889-1894)

    Almeida, José Valentim Fialho de, 1960, À Esquina, Clássica, Lisboa (1911)

    Almeida, José Valentim Fialho de, 1923, Figuras de Destaque, Clássica, Lisboa (1923)

    Gautier, Théophile, 1993, Récits fantastiques, Bookking Internacional, Paris

    Hoffmann, Ernest Theodor Wilhelm, 1969, Contes, Le Livre de Poche, Paris

    Queirós, Eça, 1992, O Mandarim (edição crítica), IN/CM, Lisboa

    Passiva

    Adam, J.-M., e A. Petitjean, 1989, Le texte descriptif, Armand Colin, Paris

    Baldick, Chris, 1990, The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms, Oxford University Press, Oxford

    Clüver, Claus, 1997, “Ekphrasis Reconsidered”, in, Lagerroth, Lund e Hewdling,Interart Poetics, Rodopi, Amsterdão

    Coelho, Jacinto Prado, 1961, Problemática de História Literária, Ática Lisboa

     Coelho, Jacinto Prado, 1969, A Letra e o Leitor, Portugália, Lisboa

    Durand, 1989, As estruturas Antropológicas do Imaginário, Presença, Lisboa

    Eco, Umberto, 2009, A Vertigem das Listas, Difel, Lisboa          

    Fontanier, Pierre, 1968, Les figures du discours, Flammarion, Paris

    Hamon, Philippe, 1981, Introduction à l´’analyse du descriptif, Hachette, Paris

    Hamon, Philippe, 1991, La description littéraire, Macula, Paris                           

    Hemmings, F. W. J. (Org.),  1974, The Age of Realism, Penguin, Inglaterra

    Lévi-Strauss, Claude, 1986, O Totemismo Hoje, Edições 70, Lisboa

    Lopes, Óscar, 1987, Entre Fialho e Nemésio, 1º vol,  IN/CM, Lisboa

    Pimpão, A. J. da Costa, 1945, Fialho, Introdução ao estudo da sua estética, Coimbra Editora, Coimbra

    Plancy, Collin de, 2002, Dicionário Infernal, Cavalo de Ferro, Lisboa

    Ribeiro, Maria Aparecida, 1994, História Crítica da Literatura Portuguesa (Realismo e Naturalismo), Verbo, Lisboa

    Rodrigues, Urbano Tavares, 1960, “Parnasianismo”, entrada in Coelho, J.P., Dicionário de Literatura, Figueirinhas, Porto

    Serrão, Joel, 1962, Temas Oitocentistas II, Portugália, Lisboa

    Todorov, Tzvetan, 1970, Introduction à la littérature fantastique, Seuil, Paris

    Zola, Émile, 1971, Le roman expérimental, Garnier/Flammarion, Paris


    [i] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por Henri Egmont, com revisão final de Albert Béguin.

    [ii] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por André Espiau.

    [iii] Sobre a matéria aqui tratada, relativa à amplitude a à força semântica do animal ou das variedades de animais evocadas, apoiamo-nos, além das obras referidas, nas entradas respectivas do  Dictionnaire des symboles de Chevalier e Gheerbrant, 1982, Laffont, Paris.

    [iv] Para citação de texto actualizado utilizamos a edição de 2003, publicada sob a direcção de Vasco Graça Moura.

  • Avatares das metamorfoses: segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana

    Avatares das metamorfoses: segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana


    Partindo da proposta de Umberto Eco, segundo a qual, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos de facto um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

    A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários ou fílmicos, à luz de uma unidade conceptual a que chamamos mitos urbanos, começou a seduzir-nos, francamente, a partir da sugestão do título de dois filmes americanos: Urban Legend de Jamie Blanks, de 1998, e Urban Legends: Final Cut de John Ottman, de 2000. Não pela qualidade dos filmes ou da matéria que eles focam, mas por apontarem para uma possível matriz de eventos terríficos que se tornaram casos[1]ou acontecimentos arrebatadores do imaginário social.

    Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Formulam figuras e acontecimentos que se caucionam no plano da ideologia, da exemplaridade ética ou axiológica.

    Alguns estudiosos chamam a determinadas imagens ou narrativas recorrentes, relativas às cidades e à globalidade na qual se integram e pela qual são reproduzidas (a global village de McLuhan), “«lendas urbanas» ou «lendas modernas», para sublinhar o seu liame com os traços dominantes das nossas sociedades: a cidade e a modernidade” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10). Por esse substrato ser francamente convocado pelo nosso termo mito, preferimos utilizá-lo, para designar o mecanismo fabulatrório que ele propicia, o qual nos permite associar o evento singular, transformado em enunciado temático elementar ou motivo lendário, à narrativa  que o inclui, literária ou jornalística e, sobretudo, por nos permitir  ligar ambos os níveis com um mais vasto,  o da “série legendária ou mitologia composta por le(ge)ndas que se tornam significantes pela sua própria acumulação” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10).

    É a série mitológica, em nosso entender, que rege e regula o funcionamento dos outros elementos, tornando-os motivos ou relatos míticos, compreensíveis ou legíveis apenas num quadro cultural em que a matéria mítica tenha sentido. O mais banal dos eventos profanos cabe numa matéria cujo grande nódulo semântico é o próprio mitologema sagrado, a narrativa dos feitos e paixão, ou um mitema[2], pontual, de intensa densidade cultural, núcleo simbólico de forte irradiação semântica, pelo que se transforma num ícone emblemático – por exemplo, um quadro representando o momento mais pregnante[3] (p.e.: “a descida da cruz”, “a saída do túmulo” ou a “aclamação pelos fiéis”). Não é isso que se passa sempre, obrigatoriamente. Mas pensamos que a leitura das perspectivas míticas deve ser esclarecida por essa via.

    O dispositivo dinâmico das metamorfoses pode ser abordado, com vantagem para a compreensão das suas variantes actuais, na perspectiva urbana dos mitos modernos. Enfatizamos, neste caso, os aparatos sociais, culturais e simbólicos que surgem representados, desde as primeiras formulações das atmosferas românticas do romance gótico, ou da sua variante francesa, a que os estudiosos das expressões literárias românticas também chamam roman noir. O quadro sociocultural é quase sempre delimitável por grandes filões semânticos ou topoi, que chegam a constituir subgéneros emergentes a partir das matrizes criadas em The Castle of Otranto (1790) de Walpole, nos romances de Ann Radcliffe (que publicou, entre 1790 e 1797, as suas principais obras) ou ainda em The Monk (1796) de Matthew Lewis.

    Segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana, balizam esse universo temático, quase todo ele romanesco, mas que emerge em fulgurantes representações da grande poesia canónica ou sublimemente maldita, em poemas de Keats (“Belle Dame sans merci”), Byron (The Corsair), Baudelaire (“Le Vampire”), Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou Mallarmé (Hérodiade), para acolher apenas alguns exemplos maiores.

    A cidade, ela própria um mito que se foi forjando, na modernidade,  como estrutura dinâmica colectora do lendário e transfiguradora dos elementos que geraram as representações eufóricas das técnicas, das formações sociais e dos confrontos mais radicais entro o eu/próprio/nós e o ele(s)/outro(s)/de inquietante-estranheza, germina, com o seu cosmopolitismo, os imaginários da boémia, das convulsões sociais, do litígio entre os representantes da lei e do direito e os fora-da-lei e marginais, ou mesmo os  assassino em série, sedentos de sangue, movidos por obscuros impulsos.

    A amalgama de potestades pagãs, da cultura clássica, e de figuras oriundas das narrativas folclóricas desemboca nas mais ousadas épicas populares. De facto, a cultura de massas, sobretudo ao emergir na banda desenhada, produz figuras como Super-Homem, mistura de semideus ou titã (Héracles, Prometeu) e herói salvífico do conto maravilhoso ou de fadas, provido de dom ou de talismã, Batman, cuja personalidade entretece traços de Héracles, do mago com poderes quase sobrenaturais (mágicos e “científicos”) e do enigmático animal nocturno (o morcego, o vampiro…) ou Flash, onde transparece a iconografia de um Mercúrio, que usa a sua velocidade para actuar como um malicioso gnomo contra os malfeitores.

    Podemos fazer sobressair com traço comum destes heróis populares a sua capacidade metamórfica, resultante da activação de um dom ou de um talismã, que os diferencia dos protagonistas de outras séries culturais, sejam elas populares (aventuras de pioneiros e exploradores, por exemplo) ou da produção canónica (a narrativa realista, o drama psicológico, por exemplo).

    Alguns dos motivos mais fascinantes que dominam as narrativas populares nos nossos dias, nas produções para as massas que vão da banda desenhada ao cinema de culto, passando pela narrativa literária de géneros mais procurados (o policial, a novela de mistério, o thriller – misto de história de arrepios e melodrama, desde o romance gótico até ao film noir) já aparecem enunciados num texto anónimo, publicado em Inglaterra em 1797, intitulado Terrorist Novel Writing: “Um velho castelo, parcialmente em ruínas. Uma longa galeria, com muitas portas grandes, algumas delas secretas. Três corpos assassinados, recentemente. Igual número de esqueletos, em arcas e armários…”

    Ao citar o ensaio a que pertence o excerto acima transcrito, Botting afirma que outros ingredientes fortemente recorrentes e fundamentais podem ser enumerados, em adenda à lista do autor anónimo setecentista: “escuras criptas subterrâneas, abadias em ruínas, florestas sombrias, montanhas escarpadas e cenários selvagens habitadas por bandidos, heroínas perseguidas, órfãos, e aristocratas malévolos” (1996: 44).

    No fundo, o ar de família de todos esses elementos é a atmosfera de sombras e mistérios povoada por figuras sombrias, mas onde predomina o artefacto humano, a presença da concentração social moderna e a organização social dos nossos dias. É nesse pano de fundo que ganha força a dinâmica dos acontecimentos chocantes, dos incidentes sobrenaturais, superstições e crenças, “promovendo o sentimento de espanto e encanto sublimes que se cruzam com o medo e a intensa imaginação” (Botting, 1996: 44) num quadro cultural e civilizacional em que a ciência emerge como esforço sistemático de dissipar as fantasias e receios provocados pela ignorância e a técnica procura vencer a noite, nas grandes concentrações urbanas, através da iluminação pública. É aí que o confronto entre o conhecimento e o mistério, a razão e o irracional ganha novos contornos. Ao iluminar a noite lançam-se novas e inesperadas sombras, onde os defensores da ordem e da razão têm de usar os ardis da ocultação da sombra e do segredo, para enfrentar as ameaças do mistério, provenientes de ignotas e distantes paragens. 

    brown bat flying

    São as ocorrências desses confrontos que, quando narrativizadas, se tornam mitos, e isso acontece por se terem incorporado em discursos que os celebraram muito para lá da sua importância enquanto acontecimentos empiricamente controláveis, que normalmente não são, pelo que não cabem na dimensão da factualidade documental enquadrada pelas instituições políticas, jurídicas ou económicas. Assumimos que o mecanismo que subsume essa dinâmica é o da metamorfose, surgindo esta, em última instância, como o processo do sujeito em direcção a uma alteridade em conformidade com a qual ele interage de modo mais adequado com os elementos da intriga de repercussões cósmicas que o envolve.

    Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Segundo todas as aparências, as narrativas de estrutura fabulatória fantástica, apelando para a actuação privilegiada de personagens providas de perícias excepcionais ou mesmo de faculdades extraordinárias, buscam apresentar compreensões e soluções para os grandes problemas sociais, humanos e mesmo cósmicos, que resultam de uma leitura do universo como estrutura de uma intriga em desenvolvimento, e de uma hermenêutica em que as personagens funcionam como peças de gigantescas conspirações e contra-conspirações. Note-se que as polarizações entre o Bem e o Mal são uma constante nesse tipo de narrativas.  

    Um estudioso de Ovídio, autor clássico que podemos considerar criador do delineamento da dimensão densa e complexa do processo da metamorfose como facto mitopoético, diz-nos o seguinte sobre tal transformação:

    woman in black long sleeve shirt lying on brown dried leaves

    A crença nas mudanças de que podem sofrer os seres impotentes face à temível força oculta de  um deus  zangado, ou mesmo bondoso, de um feiticeiro malfeitor, de uma maga, ou de uma fada caprichosa, pertence a todos os tempos e todos os países. Convicção religiosa sincera, que vê nisso o exercício legítimo do direito soberano da divindade – doutrina filosófica defendida por um Pitágoras (não é a metamorfose a forma mais brusca e ostensiva da metempsicose?) que dela faz uma forma do perpétuo renascimento – credulidade irracional do primitivo, aterrorizado pelo feiticeiro da tribo – jogo encantador da imaginação, semi-consciente no caso da criança, deliberado no poeta, seja qual for o mobile profundo que a ela nos leva, outras tantas formas aparecem do nosso gosto inato pelo maravilhoso” (J. Chamonard, in Ovídio, 1966: 9). 

    Contudo, é um facto que a metamorfose, tal como a podemos encontrar, hoje em dia, já não corresponde ao mesmo quadro de crenças e ideologias que a enformavam na cultura clássica, tal como o reconhece Charmonard:  

    Na verdade, a metamorfose só encontrou asilo, entre nós, em certas superstições populares, como a do lobisomem e, mais poeticamente, nos contos onde vemos as abóboras transformarem-se em carruagens e os lagartos em lacaios. As nossas religiões retiraram-na da lista das penas e das recompensas divinas, e os últimos traços que dela encontramos, na Lenda Dourada,são, quando muito, a transformação súbita, sob os olhos de um santo homem cheio de compaixão, de um mendigo sórdido numa personagem celestial, cintilando de juventude e beleza, ou, numa ordem de ideias próxima, a renovação do prodígio de Orfeu, escutado por animais e rochas. É, para nós, uma forma do milagre primitivo, já desactualizado. Ao contrário, para os gregos foi, ou tinha sido, uma das formas mais comuns. Se exceptuarmos a condenação severa a engenhosos suplícios infernais, não havia forma mais frequente do que a metamorfose, a seus olhos, de intervenção divina para vingar a moral violada, castigar a soberba humana ou as ofensas pessoais praticadas. Que parte desta crença devemos atribuir à fé sincera, à imaginação, ao desejo de explicar as virtudes de uma fonte, a forma de um rochedo, as particularidades dos costumes de um animal, a plumagem de uma ave, a folhagem de uma planta? Que reflexões despertaria aos espíritos mais livres a constatação de que a era das metamorfoses estava declaradamente encerrada e que todas as histórias que se contavam das metamorfoses reportavam-se a um período revoluto das relações entre os deuses e os homens?” (in Ovídio, 1966: 9-10)

    lighted white pillar candles

    Tenhamos em conta, complementarmente, que os modelos fabulatórios que se desenvolveram na Europa, nos espaços culturais resultantes da consolidação dos poderes que emergiram na área cultural dominada pelo cristianismo, proclamam-se à sombra de um culto cada vez mais forte de uma tradição “nacional popular” a que os românticos chamaram folclórica. Assim, o ente mágico ou maravilhoso desliga-se da contingência teológica ou religiosa, na tradição gótica que se desenvolve como narrativa de muito ampla aceitação popular na Europa e na América, quando o incremento da alfabetização e da escolaridade obrigatória começa a transformar a cultura popular, preponderantemente oral e folclórica até finais dói século XVIII, em cultura de massas.

    O processo dessa ruptura aparece muito bem formulado na épica miltoniana, ao constituir Satã como poderoso antagonista da divindade cristã, ente terrífico, ameaçador mas, ao mesmo tempo, fascinante. A repercussão de Paradise Lost nas gerações pré-romântica e romântica emerge nas figurações, sobretudo romanescas, a que se tem chamado góticas.

    O romance mais célebre que assume integralmente o tema do vampirismo é, sem dúvida, Drácula, de Bram Stoker. Aí, o morto-vivo aparece em toda a sua dimensão perturbante e ambivalente de “figura aterradora, emergente das narrativas do passado, da mitologia e do folclore, bem como entidade portadora de uma irrupção de inconfessáveis energias da ancestralidade primitiva da sexualidade humana” (Botting, 1996: 145).

    No romance, é claro o confronto entre as forças desse passado mítico, longínquo e conturbado por guerras, terrores e violências intoleráveis aos valores civilizados já então, na Europa do século XIX, e a modernidade em que assentam e se entrincheiram os adversários do poderoso senhor das trevas. Um grande guerreiro, outrora defensor das fronteiras orientais da Europa contra os turcos, na Idade Média, assenhorando-se dos poderes da magia maléfica, regressa de entre os mortos com o poder de se transformar em animal predador (lobo, morcego, actuando sempre como vampiro, em busca do sangue das vítimas humanas) enfrenta um grupo de “modernos vitorianos”, assente na cosmopolita Londres e armado das tecnologias de comunicação, de registo e de intervenção médica.

    O mecanismo que aparece obsessivamente evocado, ao longo da narrativa de Stoker, é o da circulação sanguínea. Dando continuidade à perspectiva mítica profundamente arreigada nas mais antigas e difundidas crenças populares, de que o sangue é a própria substância da vida, a dinâmica da história assenta, sobretudo, nos processos segundo os quais os mortos (certos mortos, pelo menos) procuram obter o retorno do sangue ao seu corpo, em conflito absoluto e cósmico (dizer mortal seria dizer pouco) com os vivos que se opõem a essa obtenção. A crença no efeito do sangue sobre os corpos inertes é milenar, na Europa. No canto XI da Odisseia, onde é relatada a descida de Ulisses ao Inferno, esse mecanismo é patenteado.

    Um dos poderes do vampiro, senhor da metamorfose fundamental, a de se manter vivo na morte, é o de poder praticar metamorfoses secundárias, transformando-se em animais cujas perícias sejam úteis à sua actividade predadora. Por vezes essas transformações são disfarces, modos de não se dar a reconhecer, outras vezes são camuflagens ou utilizações talismânicas das formas adquiridas, para obterem velocidade e facilidade de aproximação das suas vítimas ou modos de escapar a perseguidores.

    Embora herdeiro de formas míticas e configurações semânticas do passado, o vampiro, sobretudo a partir a figura de Drácula, infinitamente reinterpretada e reelaborada, torna-se ele próprio um mito de poderosa irradiação. Actuando, na formulação de Stoker, sobretudo por motivações egoístas, os seus objectivos complementares tornam-se tendencialmente conspirativos: ao grande mestre vampiro compete propagar a sua espécie.

    O seu processo na multiplicação não depende da sexualidade resulta, antes, de uma acção epidémica, por contacto directo. A sexualidade, para o vampiro, é versatilmente distribuída pela erogénização de todo o corpo e das suas acções fundamentais: alimentar-se difundindo-se, simultaneamente. Por outro lado, com a sua dentada, a dor transforma-se em fonte de prazer constante. Alimentando-se em acto erótico não perde energias, antes as recupera, tornando-se cada vez mais vigoroso e fisicamente invencível. Quando está em acção o corpo imuniza-se contra quase todas as formas de agressão.

    Embora Drácula tenha uma origem satânica, tal como a ficção literária o concebeu, as figuras que dele descendem, na cultura de massas, são quase todas defensoras das normas e princípios decorrentes dos Decálogo ou dos Evangelhos.

    O submundo dos confrontos sociais das metrópoles modernas, a que os parisienses deram o nome de bohème, é a região oculta dentro das cidades, nessa zona onde o real dos confrontos e das ideologias funciona como que sob o efeito de uma lanterna mágica, projectando os eventos sob os contornos do imaginário e o regime da fantasia, a máscara e a ocultação, a duplicação sob disfarces é um factor de força. O poder dessa transformação pode ser incrementado se ela arrastar uma mudança qualitativa do próprio ser, pelo poder do dom, do talismã ou do apetrecho.

    Um dos resultados mais esplendorosos, nas narrativas desenvolvidas segundo essa perspectiva, é o de os agentes em confronto, esquematizado segundo pólos maniqueístas de bem e de mal ou de justiceiros versus malfeitores, desgastarem nos litígios doses aparatosas dos seus efeitos especiais. Não é por acaso que o cinema se tornou o dispositivo preferencial de representação de tais confrontos.

    Uma outra dimensão que a narrativa de Bram Stoker desenvolve de modo exemplar é a da dinamização do efeito de alteridade. Ao ser agredida, a vítima tende para transformação em vampiro, mas antes tem de passar pela morte, cuja chegada se anuncia claramente pelos sintomas e número de mordeduras. O retorno à vida é assegurado pelo número de transfusões. O impedimento da passagem a vampiro obtém-se pelo ritual da estaca, da decapitação. A autenticidade de ser vivo e integrado na ordem natural e divina é assegurado pela transparência da sua consciência tal como se revela inteiramente aos outros, pelo que, cada mentira tem de ser assumida e retractada, para evitar a integração no mundo ameaçador do outro, o vampiro.

    O próprio vampiro tem uma existência de alteridade que necessariamente tem de ser delineada. A sua residência é a de um castelo maldito do qual não deve sair para não contaminar os outros. O seu castelo existe numa zona fronteiriça.

    Como se percebe pela actuação do vampiro supremo, Drácula, na ficção stokeriana, o seu projecto, subentendido mas patente nas suas realizações e propósitos, é a expansão planetária. Sintomaticamente, a cidade por onde pretende começar a sua expansão, criando vítimas que, de imediato, pelo processo epidémico da sua mordedura, passam a prosélitos, é Londres…nem mais…a impressionante megametrópole, capital do maior império planetário existente até então. Estamos, assim, perante o impensado retorno da ameaça da invasão, não pelos “infiéis” ─ figura que, sob o domínio da expansão victoriana era ainda uma imagem do “mal” ameaçador[4] ─, mas do outro dos infiéis, seu cruel oponente, o heróico e bárbaro guerreiro romeno, o outro em nós, talvez o enigma da morte que retorna, o Outro-Fantasma.

    sunset photograph during nighttime

    A mutação dessa figura da mutação, não avatar da metamorfose, mas talvez, para aproveitarmos a terminologia que pusemos em jogo, avatar do avatar, parece-nos muito bem sugerido pelo filme de Cameron que se chama, exactamente Avatar.

    A questão final que aqui se põe à metamorfose como avatar é a seguinte: pode um eu pertencente a uma comunidade abandonar o seu estar que o torna em um de nós, sem se transformar no eu em outro da comunidade deles? Neste caso, a transformação foi possível, o corpo terrestre perdeu-se e o eu passou para o outro corpo idêntico aos dos que estavam a ser colonizados. E, nos desenrolar do processo, esse eu no outro corpo junta-se aos oprimidos que, com a sua ajuda, conseguem expulsar os poderosos invasores. É claro que a leitura sintomática de uma tal transformação não pode ser realizada no escopo deste nosso trabalho.

    Ficará, certamente, para leituras em que abordarmos, em conjunto, outros processos similares, que vão aparecendo, por exemplo, em narrativas que nos mostram como a passagem a vampiro pode ser um passo de aperfeiçoamento da própria humanidade.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia  

    Activa

    Hugo, Victor, 1972, Les Misérables (3vol.), Le Livre de Poche – LGF, Paris  

    Ovídio, 1966, Les métamorphoses, Garnier-Flammarion, Paris

    Perrault, 2007, Les Contes de Perrault, Omnibus, Paris

    Passiva

    Barthes, Roland, 1957, Mythologies, Seuil, Paris

    Benjamin, Wlater, 2006, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa

    Botting, Fred, 1996, Gothic, Routledge, Londres

    Calvino, Italo, 2010, Sobre o Conto de Fadas,

    Campion-Vincent, V. e J.- Bruno Renard, 2002, Légendes urbaines, Payot, Paris

    Delgado, Manuel, 1993, Las palabras de otro hombre, Muchnik, Barcelona

    Durand, Gilbert, 1983, Mito e Sociedade, A Regra do Jogo, Lisboa

    Ducrot, Oswald e Jean-Martie Shaeffer, 1995, Nouveau dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Points/Seuil, Paris

    Eco, Umberto, 1990, O Super-Homem das Massas, Difel, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa

    Jorge, Carlos J. F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço, Ulmeiro, Lisboa

    Lacan, Jacques, 1989, Shakespear,Duras, Wedkind, Joyce, Assírio & Alvim, Lisboa

    Lessing, Gotthold Ephraim, 1990, Laocoonte, Tecnos, Madrid

    Lévi-Strauss, 1958, Anthropologie structurale, Plon, Paris

    Lévi-Strauss, 1979,  Mito e Significado, Edições 70, Lisboa

    Lévi-Strauss, 1986, O Totemismo Hoje ; Edições 70, Lisboa

    Jolles, André, 1972, Formes simples, Seuil, Paris

    Praz, Mario, 1977, La chair, la mort et le Diable dans la littérature du XIX ͤ siècle, TEL/Gallimard, Paris

    Sauvy, Alfred, 1969, Los mitos de nuestro tiempo, Labor, Barcelona

    Spooner, Catherine, 2006, Contemporary Gothic, Reaktion Books, Londres


    [1] Reportamo-nos à categoria de Jolles que apenas sugerimos aqui em resumo. Ora o “caso” segundo este autor verifica-se quando “o crime e o delito significam de imediato a infracção de uma prescrição, a contravenção de uma norma” pelo que, ao contrário do que acontece na lenda, “o acto e o objecto não são a virtude ou a falta, o que se torna acto e objecto são, neste caso, a lei e a norma às quais são reportados os actos de toda a espécie” (Jolles, 1972: 140).

    [2] Sobre o conceito de mitema, cf. Lévi-Strauss, 1958: 233; relativamente ao conceito de mitologema, cf. Delgado, 1993: 259.

    [3] Referimo-nos ao conceito que Lessing desenvolve no seu Laocoonte, obviamente. Por ele designa-se o que no quadro “imóvel” existe de representação da temporalidade narrativa, captada em instantâneo mas tendo presente as linhas de maior dinâmica e força simbólica da fábula (cf. Lessing, 1990: 120-121 e 130).

    [4] E não deixou de o ser, pelas imagens que, hoje em dia, são forjadas pela acreditada informação ocidental, sobre os agentes do “terrorismo” e líderes do “eixo do mal”…

  • O discurso do simpósio ou a cena dialógica em Eça

    O discurso do simpósio ou a cena dialógica em Eça


    Encarar como atitude ideologicamente disfórica, no discurso queirosiano, a posição de vencidismo, tem sido a posição mais frequentemente assumida pela crítica especializada na obra queirosiana (cf., por exemplo, Carlos Reis, 1999:55). Contudo, não nos parece a conclusão mais produtiva para a compreensão da obra do autor, se a queremos entender como macrotexto em que a coerência superior subsuma o sentido pleno de todos os elementos.

    É nossa convicção que o funcionamento de tal elemento da ordem do ideológico, formulável, eventualmente, como ideologema, beneficiará se for confrontada, dialecticamente, ou mesmo dialogicamente, com a afirmação romântica de entusiasmo. Em consequência dessa convicção, é nosso parecer que, semanticamente, os enunciados da obra queirosiana que podem ser lidos como decorrentes da posição vencidista se ajustam, em antinomia de alteridade e alternativa, com os seus contrários, decorrentes das coordenadas do entusiasmo.

    Não pretendemos desmentir, obviamente, todo um percurso de estudos e investigações que nos demonstra quanto há de frustração e de desengano na posição histórica do cidadão – percurso esse atestado por documentos e análises, por interpretações cautelosamente conduzidas, de António José Saraiva a Carlos Reis, passando por muitos e prestigiosos investigadores, anteriores e posteriores aos citados, percurso esse cuja origem poderíamos mesmo colocar em António Sérgio.

    Nem pretendemos desmentir quanto do cidadão, por responsabilidade de escritor, emergente como homem de letras e jornalista, numa época em que ganha todo o sentido a função social do intelectual, sobretudo pela sua capacidade de intervenção perante o público a quem deve a maior fidelidade, se terá incorporado na obra ficcional que ele próprio escreveu. Nomeadamente, em muitos dos enunciados de desencanto emergentes das personagens mais lúcidas de Eça, reconhecemos, em resultado dos mesmo factores já aduzidos, a presença de um juízo desencantadamente negativo sobre a sociedade portuguesa, ou mesmo sobre a falibilidade humana em geral, que será atribuível ao autor que é, também, o cidadão Eça de Queirós.

    Contudo, é nossa convicção que aquilo a que se chama vencidismo é muito mais um modo de perspectivar o mundo, as formas de criar representações ou modelos expressivos que digam a visão do mundo e as opiniões dela decorrentes, do que uma tomada de posição existencial e histórica, em que a desistência, o silêncio ou o encerramento de perspectivas ideológicas são o estado definitivo.

    assorted-title of books piled in the shelves

    Por outro lado, é um facto por nós aceite, à partida, que essas formas de representar variam em torno do facto de haver conflitos, de haver confrontos, de ser possível fazer melhor, de se defrontarem facções em que uma tem mais razão histórica (histórica, note-se bem) do que a  outra, segundo dois modelos fundamentais: a que atende à modalidade relativa de os conflitos existirem; e a que, de um modo ou de outro, apela ao triunfo de uma das partes em conflito.

    Sem pretendermos fazer epistemologia em águas “extraterritoriais”, digamos que ambos os modelos são verificáveis em todo e qualquer discurso que se desenvolva sobre os fenómenos do universo. Ora, assim sendo, podemos dizer que, na ordem do discurso, eles são identificáveis, respectivamente, pelo que Bakhtine chama o modelo dialógico e modelo monológico.

    A conjectura que aqui desenvolvemos, em estado de embrião, é a de que, a verificarem-se essas duas tendências, nas modalidades discursivas a que chamamos artísticas, Eça situa-se no conjunto de autores em que predomina a primeira delas. Complementarmente, devemos acrescentar que a nossa hipótese decorre também do facto de ser nossa convicção, em comunhão com Bakhtuine, que a modalidade dialógica tem uma razão de maior amplitude histórica do que a monológica. Ora, apresentando-se as coisas desse modo, a hipótese que postulamos é a de que a chamada atitude de vencidismo constitui um modo de processar, por várias figuras da organização poética e pela opção por determinados modelos genológicos do discurso, uma visão do mundo em que ao triunfo das causas se opõe, como uma causa suprema, o peso ou a ponderabilidade das coisas.

    fountain pen on black lined paper

    Tomemos, como exemplo paradigmaticamente central da expressão do vencidismo queirosiano, um elemento “extra-literário”, um seu discorrer que corrobore enunciados da obra artística autoral, embora seja emitida de um lugar textualmente exterior – de um discurso peritextual, por assim dizer. Esse elemento pode ser a sua resposta a Pinheiro Chagas, em artigo anónimo, ao esclarecer quem eram os amigos que se reuniam para jantar. A designação, que, embora tendo sido apresentada em texto anónimo, se afirma ser do próprio Eça, é muito sugestiva. Chamando ao conjunto convivas um “grupo jantante”, ele cria a expressão que, pelo dinamismo da adjectivação, se opõe à usada pelos seus adversários, entre os quais se encontrava Chagas, ao designar esse mesmo grupo por “vencidos da vida”. À imobilidade da prostração, opõe-se o dinamismo do grupo actuante. Seja dele ou não (e, pelas razões que desenvolveremos longamente, a nossa convicção plena é que é bem um texto queirosiano) o artigo saído na edição de 29 de Março de 1889 do jornal Tempo (cf. Campos Matos [org.], 917 – entr.: “Vencidos da Vida” [C. M.]) merece ser considerado atentamente pelas perspectivas estimulantes que abre à hipótese que colocámos à partida. Citamo-lo, em seguida, resumidamente, apresentando apenas as frases que nos parecem essenciais:

    (…) Vencidos da vida [é um] título acabrunhante […] que a imprensa tem erguido ultimamente em torno deste grupo jantante, com considerável desgosto dos homens simples que o compõem. […] Eles comem – a sociedade, estupefacta, murmura. […] Só podemos juntar que os Vencidos oferecem o mais alto exemplo moral e social de que se pode orgulhar este país. 11 sujeitos que há mais de um ano formam um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em pequenos grupos de direita e esquerda; sem  terem durante todo este tempo nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem se haverem dotado com uma denominação oficial de reais vencidos da vida ou vencidos da vida real ou nacional; sem arranjarem estatutos aprovados no Governo Civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras «tão anónimas quanto dedicadas»; sem iluminarem no primeiro de Dezembro; sem serem elogiados no Diário de Notícias – estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente para o futuro, na ordem das coisas morais, se falará do onze do Braganza, como na ordem das coisas heróicas se fala dos doze de Inglaterra” (Queirós, [1928] s/d:185-188)  

    turned on desk lamp beside pile of books

    Ora, se atentarmos bem, o modelo discursivo que parece ficar desenhado neste relato histórico em que aparece justificada a origem do epíteto aplicado a Eça (como se este fosse, por sinédoque, a metáfora do próprio grupo) é o do simpósio. Retemos este termo – no qual insistiremos por o acharmos adequado à perspectiva que, em Eça, tem uma ampla forma do discurso a que podemos chamar as cenas ou sequências de jantar – porque ele nos ajudará a ver como a designação de vencidismo se constrói numa incompreensão de dupla dimensão: ideológica, antes de mais, porque entende determinados enunciados de Eça e do seus confrades de jantar como provenientes de um desinteresse causado pela derrota política, cultural e mesmo epistemológica; e estético-cultural, fundamentalmente, porque ignora a dimensão progressista e transformadora que a atitude jantante tem no meio cultural português. Assentamos este nosso ponto de partida nas próprias palavras de Eça acima citadas.

    Uma vez que não é possível determo-nos em todos os aspectos de conteúdo que afectam a dimensão ideológica em questão, lembramos apenas, com toda a brevidade, aquelas para que aponta a própria resposta atribuída a Eça: o sincretismo dialogante que impede o grupo de se dividir em facções partidárias, a ausência de estrutura hierárquica de poder, a ausência de bandeira, hino ou data marcante que simbolize o dinamismo do grupo na esfera da luta política.

    brown wooden tables inside building

    Lembremo-nos que, dentro deste grupo que se mantém coeso em fraternal convívio, se encontravam personalidades  tão diversas como Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, além do próprio Eça, cada um com as suas convicções ideológicas e, como ideais estéticos, as variadas propostas de modernidade, que cada qual cultivava com as suas matizes próprias.

    No entanto, a questão que mais nos importa aqui, de momento, não é tanto a  dos conteúdos veiculados, ou mesmo das concepções estéticas ou ideológicas que se formulam, no debate que historicamente opõe a geração de Eça (e aqueles que a ela se ligaram, já depois de se terem desenvolvido as teses dos anos 70 do século XIX em Portugal) aos defensores de uma tradição formulada em termos românticos. A dimensão que nos parece mais curiosa tem a ver com o dispositivo semiótico do jantar que Eça apresenta.

    De acordo com as suas palavras, a prática jantante é um mecanismo discursivo, e os modelos dialógicos que ela proporciona actuam de tal modo que, por assim dizer, reformulam a construção tendencialmente monológica da ideologia, segundo os pressupostos românticos, fazendo tombar as ideias na ponderabilidade das coisas a ingerir. De algum modo, o ímpeto de elevação, de purificação entusiástica nas zonas de sublimidade ideal  é contrariado pelo jogo dos discursos da materialidade que, nas cena ou sequências do jantar, parodiam a elevação, fazendo-a imiscuir-se na   corporeidade material, sobretudo aquela que Bakhtine define como a que é central ao processo de carnavalização: o baixo corporal.

    Este mecanismo é tanto mais curioso quanto, em Eça, ele é cultivado não como um processo em que a um discurso se opõe outro discurso, o que geraria um sistema de tese e antítese, mas como um processo de contaminação, de tal modo que o discurso perde a sua leveza, as marcas redundantes da sua incorporeidade, para se atolar nas vitualhas que se apresentam sobre a mesa. Como ele próprio diz, num outro passo do artigo citado, os vencidos apenas se “congregam (…) para destapar a terrina de sopa e trocar algumas considerações amargas sobre o Colares” (p.186). Deste modo, o discurso perde a sua diafanidade e surge parodiado por  se enredar nas malhas que tece em conjunto com os elementos semióticos que pertencem a outro campo de valores.

    Para percebermos melhor a fecundidade deste mecanismo queirosiano, que nos parece ter profunda raízes na cultura do seu tempo, vejamos, em primeiro lugar, o que os diz Bakhtine sobre o conceito de simpósio. Ora, segundo o autor russo, o simpósio, que é a conversa durante um banquete, cria um caso especial de “discurso dialogizado” o qual é dotado de “privilégios particulares” que, na sua origem (nos alvores da civilização), teriam exactamente um carácter cultural. Nele se encontravam, segundo nos diz Bakhtine no mesmo passo, “o direito a uma liberdade especial, a espontaneidade, a familiaridade, uma sinceridade inabitual, a excentricidade e a ambivalência em que se combinam o louvor e a injúria, o sério e cómico. Pela sua natureza” portanto “ o simpósio é um género puramente carnavalesco” (1970: 167).

    shallow focus photography of stack of books

    Todos estes traços assim apontados, vamos encontrá-los presentes em quase todas as cenas (ou seja, refeições em que a troca de palavras entre as personagens representadas se cruza com a narração dos actos alimentares e a minuciosa descrição de alguns dos pratos) em vários romances de Eça. Por outro lado, a importância e a abundância de tais cenas (no seu sentido etimologicamente forte), nos romances do escritor português, leva-nos a ter em conta, de modo muito especial, a sua caracterização pública dos jantares do “Braganza”.

    Segundo ele, no artigo acima citado, as conjecturas feitas pela imprensa e por um certo sector da sociedade portuguesa, que atribuiria uma aura negativa, um espírito derrotista, a esse grupo, era errada. Todos os  chamados “vencidos” eram, a seu modo, triunfantes, segundo Eça, e o jantar era um feito moral da mesma dimensão, no campo da ética, que o feito de armas, dos doze de Inglaterra, no campo do torneio heróico.

    Ora, torneios e simpósios são jogos, ritualizações de actos fundamentais da vida – mas jogos sérios. Enquanto jogos eles simulam confrontos de valores mas, de algum modo, produzem consequências que não são meras simulações. Enfatizando o acto alimentar, discursivo ou bélico, eles manejam de modo ostensivo, retórico, os materiais que estão em causa, realçando os processos segundo os quais eles funcionam e significam: a luta pela vida deixa de se processar apenas segundo os princípios cegos da natureza, para se culturalizar, tornando-se mecanismo significativo, dispositivo semiótico.     

    Por outro lado, a importância que o romancista português dá aos jantares está não só patente no uso que deles faz como cenas nos romances, numa quantidade pouco comum em romancistas seus contemporâneos, ou mesmo de outras épocas (se exceptuarmos a tradição menipeia – que, segundo Bakhtine, vai de Petrónio a Rabelais, autores que Eça evoca frequentemente –, e Sade), facto que já foi notado por alguns estudiosos ( Andreé Crabbé Rocha, por exemplo, no seu texto “Um motivo obsidiante na narrativa queirosiana”, Caderno de Literatura n.º 9, Coimbra, 1981),  como no modo elaborado segundo o qual constrói essas cenas e, ainda, na atenção que lhe merece o jantar mesmo em textos que não têm a elaboração no romance, ou ainda na crónica.

    fountain pen on spiral book

    No que diz respeito a esta variante textual da sua obra, que constitui uma produção contextual à sua produção romanesca, podendo ser entendida como uma formulação intermédia entre as práticas culturais não artísticas, envolvendo vários processos semióticos – a prática socializada do jantar oitocentista, muito especialmente o jantar de artistas e escritores, de que seria caso paradigmático central o modelo histórico do grupo parisiense de Zola, por exemplo, ou o próprio cenáculo de Coimbra e de Lisboa, que marcou toda a vivência cultural de Eça – e as práticas propriamente literárias, deve ser lembrada a sua crónica “Cozinha arqueológica”, na qual ele reconhece que “a cozinha e a adega exercem uma (…) larga e directa influência sobre o homem e as sociedades” (Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, s/d:236). Afirma ele, aí, a necessidade de estudar de “um modo mais experimental e íntimo a cozinha dos antigos para lhes aprofundar mais completamente a estrutura moral” (p. 236).

    É interessante notar ainda que, na sua digressão por alguns lugares eruditos, ele sublinha a importância do moretum romano, “uma moxifonada genial em que entrava galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne migada” (p.239). Se ele vê nesse prato em que “tudo se fundia, se unificava”, formando “um petisco imortal”, a manifestação do “génio de Roma”, ou mesmo “o mais profundo e eloquente símbolo da história política e social do império” (p.239) – não será legítimo vermos nós como esse fascínio pela mistura insólita revela em Eça o reconhecimento de estar na forma dessa petisqueira a própria fórmula salutar da sátira?

    De qualquer modo, quer o comer, que ele aborda especialmente nesta crónica, quer o beber, que ele trata, por exemplo, em “O bock ideal”, publicado no mesmo volume de textos ensaísticos ou mesmo paraliterários (pp. 243-250) onde seria justo colocar a variedade textual da crónica, são mais do que meros motivos obsidiantes na sua obra. Se o são, por qualquer razão a desvendar pela psicologia das profundidades, ele tornou tais motivos mecanismos semióticos extremamente sólidos que usa de modo muito deliberado, desde as suas primeiras obras, fazendo-os emergir como lugares onde a significação trabalha profundamente.

    A significação que neles trabalha, porém, não se pode resumir a uma fórmula temática simples. Os simpósios, em Eça, não têm um sentido, uma radicação num material temático monosémico, onde se fixe um sentido simbólico ou alegórico único. Podemos dizer que, até certo ponto, nas cenas, nos jantares/simpósios, se joga o estado permanente do paradoxo, da ambivalência, da vacilação entre o perene e o perecível. É por essa razão que os consideramos, desde os jantares dos “vencidos”, até à ceia inesquecível do “peixe que se pesca cozinhado” em A cidade e as Serras, o lugar onde Eça faz defrontarem-se os valores do entusiasmo e os da mistura das coisas materiais com as espirituais.

    Não entendemos, nessa partilha, uma oposição mais ou menos dialéctica (embora funcione, aqui, um certo tipo de dialéctica) entre espírito e matéria, positivismo e idealismo ou entre triunfalismo e vencidismo. A questão, do nosso ponto de vista, apresenta-se muito mais matizada e rica, quanto ao conjunto de valores que são implicados neste modelo de funcionamento formal dos conteúdos históricos que Eça faz emergir através das suas cenas.

    Por um lado, funciona, nesse modelo de desenvolvimento das ideias e dos valores histórico-culturais, o entusiasmo que podemos entender, sumariamente, como um estado de espírito, como algo que se desprende das contingências materiais; por outro lado funciona o sistema do corpo que é, também muito sumariamente, o estado da carne, da matéria corporal, tal como ela se afigura às exigências do espírito. Em qualquer dos casos, não temos, nunca, a pureza: temos a aspiração a esta, pela sublimação, por um lado, e pela impossibilidade dessa sublimação, por outro. Tal impossibilidade manifestar-se-ia, por exemplo, numa certa metafísica da matéria, que muito seduziu o lirismo de Eça nas suas primeiras tentativas literárias, patente sobretudo nas suas “Notas marginais” primeiro texto da série que constitui as Prosas Bárbaras.

    Sobre o entusiasmo, no entanto, será interessante determo-nos no que, sobre ele, diz Madame de Staël: “É o amor ao belo, a elevação da alma, o prazer da devoção, reunidos num só sentimento que tem a grandeza da calma.

    O sentido desta palavra entre os gregos é a sua mais bela definição: o entusiasmo significa Deus em nós” (1968: 301, vol. II). Contudo, não é apenas a elevação, a devoção e a partilha da alma com Deus que caracteriza o entusiasmo. Segundo a ilustre divulgadora do romantismo alemão, ele exige a absorção plena do espírito, de tal modo que o corpo arrebatado pelo entusiasmo “experimenta um nobre estremecimento, o seu coração bate pelos sentimentos elevados” e chega mesmo a “fazer aliança com a outra vida” impedindo-o de “ter apenas um pouco de espírito que lhe serve simplesmente para dirigir os mecanismo da existência” (p. 302).

    Dentro dessa lógica, o entusiasmo não afasta o corpo da matéria. O próprio guerreiro, mesmo quando faz guerra por interesses pessoais sente “algumas das exaltações do entusiasmo” nem que seja na “pela embriaguez de um dia de batalha, o prazer singular de se expor à morte, contrariando tudo o que em nós nos ordena que amemos a vida”. Esse arrebatamento, contudo, deve ser sincero, pois é “o entusiasmo afectado” que conduz à “usurpação da admiração dos homens”. Por último, esse mesmo entusiasmo, quando é autêntico, raramente conduz aos excessos, causando, antes a “tendência contemplativa que perturba a capacidade de agir”.

    Contra esse lado negativo, que Madame de Staël pensa revelar as facetas menos positivas dos alemães, só o carácter pode servir de panaceia: “é preciso escolher o seu objectivo pelo entusiasmo, mas devemos conduzir as nossas acções pelo carácter”, porque o “pensamento não é nada sem o entusiasmo, e a acção não é nada sem o carácter” (pp. 302-303).

    Ora, se “o entusiasmo é tudo para as nações literárias” e o “carácter é tudo para as nações activas” (p. 303), para a concepção liberal de Madame de Staël um e outro são necessários desde que o apaziguamento da alma seja assegurado pelo entusiasmo que é essa “qualquer coisa de orgulho e de animado” que a arranca às condições da “existência física” e lhe dá “dignidade moral” (pp. 303-304). Todas estas características que constituem a essência do entusiasmo apontam, como se vê, para uma dominância, na ordem dos valores humanos, do espiritual e anímico sobre o corpóreo. Sem os contestar frontalmente, as cenas de Eça que temos estado a enfatizar apontam-nos para um jogo de relações em que tudo se inverte.

    Quando o espiritual se manifesta, está para se desenrolar, ganha ímpeto argumentativo a ordem da mesa, dos alimentos, dos objectos materiais, dos paladares e prazeres, enredando aquele nas suas malhas e desmontando-lhe a vacuidade, expondo a face negativa que a ele adere, tornando-o insustentável como reduto, lançando-lhe o lastro indelicado e galhofeiro das coisas vis da matéria.

    Andamos em conjecturas que muito estimularam Platão no seu Συμπόσιον o Banquete, onde o sentido da verdade (ueritas), procurado por Sócrates, o qual diz que em sua juventude ele foi ensinado sobre “a filosofia do amor” por Diotima (Διοτίμα) O amor, diz ela, leva o indivíduo a buscar a beleza, o entusiasmo primeiro da beleza terrena ou os corpos bonitos, leva-o por degraus na escada do amor e, quando um amante cresce em sabedoria, a beleza procurada é espiritual, “direciona a mente para a filosofia” (Diotima para Sócrates no Banquete de Platão).

    book lot on black wooden shelf

    Mas o que abre o discernimento à verdade, enquanto ἀλήθεια, convívio com o saber supremo da inteligibilidade, vislumbrada na escala suprema do amor, é o desenvolvimento do estado de espírito propiciado pelo banquete, o estímulo entusiasmante das bebidas: “A verdadeestá no vinho” (Ἐν οἴνῳ ἀλήθεια”/En oino aletheia o latino in uino ueritas).

    O mecanismo do jantar e o discurso do simpósio, em Eça, sempre se desenvolveu como a revelação da face inevitavelmente carnal do sujeito humano. Mesmo nos textos mais antigos, nos quais ele ainda não fazia uso da cena como dispositivo semiótico segundo o modelo que vimos sugerindo, o jantar já se revelava um mecanismo de manifestação da carne incontrolável. No seu texto inacabado de 1869/1870 “A morte de Jesus”, incluído em Prosas Bárbaras, já é digno de nota o tom profundamente carnal e carnavalesco que ele dá ao jantar a que o narrador assiste, na sequência do seu encontro com Jesus.

    O modelo que ele nos sugere é o do jantar de Trimalcião, que ocupa uma parte importante da narrativa Satiricon, de Petrónio. Não alongamos mais tal hipótese porque, não obstante a importância que teria a indagação sobre as fontes genológicas das cenas ou sequências de jantar em Eça, não nos é possível apresentar, no âmbito deste trabalho,  mesmo a título de meras hipóteses, mais do que as breves alusões que aqui ficam. Para desenvolvermos os nossos argumentos segundo a perspectiva que aqui privilegiamos, é mais importante ver como as cenas funcionam nalguns dos seus romances.

    A primeira sequência de jantar que Eça utiliza, como mecanismo semioticamente elaborado, com funções poeticamente pertinentes na sua construção romanesca, aparece logo no romance que, simplificando muito todas as questões historico-literárias que o envolvem, podemos considerar como aquele com se esteou nas letras portuguesas:  O Crime do Padre Amaro. A cena é, evidentemente, o jantar dos padres em casa do abade da Cortegaça.

    Na reescrita do romance, da versão de 1874 para a de 1876, aparecem duas diferenças dignas de nota: na primeira versão, a refeição era um almoço que, a partir da segunda, passa a ser um jantar; por outro lado, a conversa durante a refeição quase não existe na primeira versão, aparecendo o modelo de entrecruzar palavras com garfadas na segunda, numa forma que se mantém praticamente inalterada na versão  posterior  (ou edições, como propõe Carlos Reis no prefácio à edição crítica).

    Nesse entretecer de discurso e deglutição, é sempre notável como os valores de espiritualidade transportados pelas palavras são sempre negados pela acção de ingerir, ou como as expectativas de espiritualidade ou de afastamento da carne, na busca do “Deus em nós”, que seria o sentido etimologicamente mais puro do entusiasmo, se transforma numa espécie de entusiasmo negro, de desenfreado apelo da carne: “logo à sopa as exclamações começaram/ – Sim, senhor, famoso, disto nem no Céu, bela coisa” (1964:260, vol. I). O excelente abade, como cozinheiro era um “divino artista” segundo as palavras do chantre (p. 260) e como era do conhecimento geral, “vivia tão absorvido pela sua arte que lhe acontecia, nos sermões de Domingo, dar ao fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho” (p. 261).

    Mas, neste simpósio, o qual, pelo tom, poderia ser inspirado pela Coena Cypryani que, segundo Bakhtine, é um dos textos fundadores do simpósio satírico, não se define apenas uma dimensão de vivência religiosa sob o olhar imóvel das personagens escultóricas do santuário (cf. pp. 262-263). Uma ética manifesta-se, também, neste entrelaçar de palavras e garfadas, como se depreende das palavras do bom abade anfitrião, quando comenta a pobreza, a propósito de um pedinte que surgira à porta: “- Muita pobreza por aqui, muita pobreza!, dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!” (p. 265).

    Não se deve concluir, no entanto, que este processo de colocar o discurso dos diálogos, referido a matérias espirituais ou elevadas, em contacto contaminador com objectos de gula ou de luxúria, no sistema dialógico do simpósio, cumpre uma função meramente de crítica social ou de tomada de posição ideológica, em militância contra um estado de coisas político conservador ou mesmo reaccionário – de que, neste caso, a Igreja seria o exemplo paradigmático.

    Em todos os seus romances posteriores Eça, obtendo sentidos diferentes, trabalha sobre a dicotomia dialógica que o diálogo ao jantar lhe permite estabelecer, de um modo surpreendentemente criador, sobretudo pelo que consegue construir de dimensão paródica e carnavalesca em todos eles. Para seguirmos a sequência das suas publicações principais, os romances, tomemos como segundo exemplo a  sequência do jantar oferecido pelo conselheiro Acácio de O Primo Bazilio.

    Nesta, ao contrário do que se passava na cena dos padres, não se dá um encontro de correligionários em torno de um banquete, mas sim o debate ideológico entre amigos que têm, sobre a vida política portuguesa, a filosofia, o amor e a literatura opiniões diversas. O conselheiro é  conservador, católico e monárquico, Julião e Jorge e Savedra são pouco crentes e republicanos. Este último tem opiniões literárias diferentes das do conselheiro. Relativamente a mulheres, o anfitrião mantém a imagem pública de puritano, embora tenha ao seu serviço uma bela moça, e opõem-se-lhe, por opiniões libertinas e sensuais, Alves Coutinho e Savedra.

    O confronto entre estas várias personagens faz-se por um processo de debate típico do simpósio, de acordo com as características que lhe atribui Bakhtine, acima citadas, como se pode ver pelo excerto que em seguida apresentamos, de modo sumário. Na sequência da observação que Julião faz da ostentação católica de Acácio, Savedra comenta:

    “- Não o sabia carola, Conselheiro!/Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e sacudiu:/- Eu peço ao meu Savedra que não tire desse facto ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Mas reconheço que a religião é um freio…/ – Para os que precisam – interrompeu Julião./Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdito respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas de paio:/- Não o precisamos nós, decerto, que somos as classes ilustradas. Mas precisa-o a massa do povo, sr Zuzarte. Senão veríamos aumentar as estatísticas dos crimes. E o Savedra do «Século», erguendo as sobrancelhas, com a fisionomia muito sério:/- Pois olhe que diz uma grandíssima verdade. – Repetiu a máxima modificando-a: – A religião é um bridão! – Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava” (1990: 316).          

    Não é difícil encontrar aqui, bem explícitas, aquelas características do  simpósio que o tornam inequivocamente carnavalesco. O conselheiro desfaz-se, parcialmente, da sua veste oficial, dialoga com os amigos, contradiz-se pela denegação, procura assumir uma sinceridade que não ostenta na praça pública e, em todo o tom do diálogo vemos que, pela comunhão e camaradagem desenvolvida em torno da mesa, as opiniões combinam o sério e o cómico, o louvor e a injúria.

    As comidas e as bebidas, de cujo o uso o relato nos vai informando, amenizam as diferenças, possibilitam as aproximações e as aceitações mesmo quando a discórdia germina por detrás das piadas, das alusões insultuosas, das críticas mais ou menos acintosas. O riso, a gargalhada de boa disposição, são o grande mecanismo psicológico e sócio-cultural que permite essa aproximação de contrários. E o riso, tal como aparece aqui, é o dissolver das diferenças e das divergências, na mistura complexa da sátira, se entendermos esta no seu sentido pleno, tal como Bakhtine o pretende preservar, insistindo no facto de esta não poder excluir ninguém – parodiadores e parodiados, falantes e ouvintes, actores e espectadores – do seu alcance.

    Neste ponto, poderíamos dizer que, contra um entusiasmo sustentado pelo carácter – que arrastaria rectidão, perseverança e elevação nos propósitos ético-filosóficos – Eça propõe a o confronto sustentado pelo riso – que arrasta o consentimento, a ductilidade e a lucidez suprema, quer em relação aos outros quer em relação a si próprio.

    Para abreviarmos esta abordagem que, a seguir todas as emergências das cenas jantantes se poderia tornar demasiado longa, digamos que, todas elas, presentes em todos os romances de Eça, se deixam caracterizar pelos traços que já sublinhámos em relação às dos seus dois primeiros textos romanescos. Vale a pena, contudo, determo-nos na cena de um dos seus últimos romances, A Cidade e as Serras, em que os traços da carnavalização se tornam ainda mais evidentes. Referimo-nos, obviamente, ao jantar que Jacinto oferece, por sugestão do grão-duque seu amigo, na residência que tinha em Paris.  Sabemos que, tal ceia se faz por “reclamação” do grão-duque, contra vontade de Jacinto cujo tédio lhe recomendava um “almoço curto”, porque a “alteza real” queria aí saborear um peixe muito raro que ele próprio mandaria para tal fim.

    A chegada dos convidados é um verdadeiro desfilar de entidades parisienses da moda, notáveis pela origem social, pela fortuna, pelos cargos ou pelo valor artístico ou individual. Este desfilar da entrada, que lembra a paródia do jantar de Trimalcião, é observado na perspectiva céptica mas padecente de Zé Fernandes, que não conhecia quase ninguém, sentindo-se um ignorante. Já há mesa, um dos convivas repara que, no grupo, para estarem representadas todas as classes dominantes, só faltava um general e um bispo.

    O reparo tem uma dupla informação: os “grandes” estão quase todos representados; mas os representantes actuantes da autoridade não estão presentes. Nesta mistura, portanto, os valores defrontam-se com todas as condições retóricas do simpósio, sem a interferência inibidora das entidades do poder. E, o que se desenvolve é uma cena inteiramente carnavalesca, segundo as anotações verosímeis do mais fiel realismo grotesco.

    As formas femininas provocam os olhares lúbricos dos homens, as jóias ostentam-se com magnificência, as opiniões políticas, desde a anarquista, que sugere uma bomba a explodir no banquete, até às evocações senhoriais de caçadas feitas pelo grão-duque, cruzam-se com os golos de vinho, marcam o tom do ambiente onde se revela um acontecimento catastrófico: o peixe assado que vinha subir no elevador que ligava a cozinha ao salão jantar, requinte supremo da civilização, então, tinha ficado parado por causa de uma avaria. A real personagem, não se podendo conter, investe como guerreiro para ir resolver a situação, tentando puxar o elevador pelos cabos.

    Não o conseguindo e exaltado pelo peixe que podia ver, que o fascinava com o seu belo cheiro, bramava de angústia, «Que cheiro que ele deita, que delícia», enquanto ecoavam o som do canário que “gania”   e os berros e os tinidos dos metais provocados pelo facto de um dos convivas ter enfiado um pé dentro de um balde de gelo.

    É nessa confusão que um dos presentes tem a ideia de pescar o peixe assado, a qual é de imediato aceite pela real personagem que, “no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova”, faz “sumir a sua cólera” voltando a ser o “Príncipe amável, de magnífica polidez” (s/d: 78). De imediato decide que “ele mesmo seria o pescador”, usando, para o efeito, uma “bengala, uma guita e um gancho” (p.78). O material para o anzol é fornecido por uma daquelas elegantes e belas senhoras que, na confusão, poucos momentos antes, quando se descobriu a avaria, “roçavam os decotes pela farda dos lacaios” (p. 77) e é com um denodo que o faz suar que sua alteza tenta apanhar o peixe pela guelra. Embora os resultados tivessem sido negativos o Príncipe sente-se feliz porque «fora mais divertido pescá-lo que comê-lo” (p. 79), e é com verdadeiro prazer que regressa à mesa onde se regalam com “o Barão de Pauillac, cordeiro das lezírias marinhas que, preparado com ritos quase sagrados, toma esse grande nome sonoro e entra no Nobiliário de França” (p. 79).

    Depois da sobremesa, durante a qual o champanhe “cintilou e jorrou ininterrompidamente” (p. 79) enquanto os doces se derretiam na boca, um poeta presente declamou um poema. O agrado foi tão grande, apesar do percalço do peixe, que o carneiro ascendeu na escala nobiliárquica, tendo-o o nobre conviva “nomeado Duque de Pauillac” (p. 80).

    Esta nomeação, muito provavelmente, descende da inspirada verve de Rabelais. Bakhtine, sem dúvida, encontraria nela a clara expressão da “coroação do banquete” através do qual se entende, no festejo e celebração da carne, o triunfo da vida sobre a morte, e o “emergir de um princípio novo” (Bakhtine, 1970a: 282). Nada tem sentido, em toda a cena, a não ser a celebração de “uma verdade interiormente livre, divertida e materialista”, em que todos se despojam das máscaras e se misturam na alegre pesca ao peixe assado ou na renomeação do prato de cabrito.

    Simetricamente, dentro da mesma base de valores, é a imagem “materializada da verdade que não lhe permite arrancar-se à terra, na medida em que esta lhe conserva a natureza universalista e cósmica” (Bakhtine, 1970a: 284) que actua, como base, no jantar serrano em Tormes, e permite ao “príncipe” Jacinto abdicar dos objectos da civilização e retomar o caminho pleno da terra. Não é a crença nem o ideal que movem Jacinto: é a boa mesa farta, o paladar fragrante dos alimentos colhidos perto das fontes originais.

    Esta ideia da importância do baixo material como princípio valorizador da condição humana é uma constante na obra de Eça, não um mero elemento decorativo que ele coloca em certos passos das obras relativos aos banquetes, para lhe dar um sabor naturalista. É verdade que, tal mecanismo semiótico, por ele usado como processo poético, permite a construção de análises sociais, ideológicas e culturais que eram caras aos naturalistas. Mas o princípio de trabalho poético era muito mais do que um simples processo de escola. Dentro do que nos é dado conhecer, ninguém levou tão longe como Eça este processo do dialogismo, dentro dos modelos que podemos entender de um amplo realismo, profundamente impregnado do espírito da paródia e da carnavalização.

    De facto, o que encontramos nos simpósios queirosianos aparece muito claramente expresso, quase teorizado, por assim dizer, na análise que faz ao “Brasileiro Soares” (Notas Contemporâneas, s/d: 114-122) de Luís Magalhães. É o homem material, deste nosso solo, cheio de joanetes, com os seus pés pesados, tão diferentes do ideal romântico, apelando sempre para o pé alado, que nesse romance é valorizado. É pelo facto de Luís Magalhães conservar toda a realidade material desse brasileiro que ama e sofre, nem ideal nem besta, mas simplesmente humano, que ele o considera profundamente original, relativamente, sobretudo, ao estereótipo que os românticos tinham construído.

    Devemos acrescentar, para finalizar, que é grande a importância que Eça dá aos mecanismos de elaboração poética segundo os quais ele conserva essa dicotomia entre a elevação e a materialidade, pensando, sempre, uma ligada à outra. O caso mais flagrante é a imagem que de si próprio fornece, em “Um génio que era um santo” (Notas Contemporâneas, s/d: 251-288). No momento em que conhece Antero, em Coimbra, Eça, segundo as suas palavras, fez como os outros que o escutavam declamar: “também me sentei num degrau, quase ao pé de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como discípulo. E para sempre assim me conservei na vida”.

    Esta frase final não é um mero remate retórico. Eça pensa-se assim e, quanto a nós, apresenta-se muito bem, como julgamos que ele sempre foi: os olhos fitos no ideal, mas assumindo a postura descendente. A sua hugolatria, se virmos bem, assenta nessa mecânica fundamental de estabilidade terrestre com apelos e admirações cósmicas. E dizer-se hugolatra e não hugoliano, representa uma definição muito clara de si próprio. Talvez nenhuma imagem, enfim, dissesse tanto de si próprio, em tão breve alegoria, como a que ele usa num outro passo de “Um génio que era um santo”:

    “rondava em torno destas revoluções, destas campanhas, destas filosofias, destas heroicidades ou pseudo-heroicidades, como aquele lendário moço de confeiteiro que assistiu à tomada da Bastilha, com o seu cesto de pastéis enfiado no braço, e quando a derradeira porta da fortaleza feudal cedeu, a velha França findou, deu um jeito ao cesto leve, e seguiu, assobiando a «Royale», a distribuir os seus pastéis.” (p.260)         

    Não falta, a este comentário, nem sequer a referência ao elemento alimentar, como sugestiva alusão à fruição do material. Só talvez seja excessivo o assobiar a «Royale» – mas não é esse mesmo o processo da grande sátira, atingir o próprio autor, não deixar ninguém  de fora?

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bakhtine, Mikhail, 1970 La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1970a L’oevre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

    Queirós, Eça, 1964, O crime do padre Amaro, 2 vol. Lello e Irmão, Porto

    Queirós, Eça, 1990, O primo Bazilio, D. Quixote, Lisboa

    Queirós, Eça, s/d, A cidade e as serras, Lello e Irmão, Porto

    Queirós, Eça, s/d, Notas contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

    Queirós, Eça, s/d, Cartas inéditas de Fradique Mendes, Lello e Irmão, Lisboa

    Reis, Carlos, 1999, Estudos queirosianos, Presença, Lisboa

    Staël, Madame de, 1968, De l’Allemagne, 2 vol., GF/Flamarion, Paris

  • Eça e a viagem

    Eça e a viagem


    Um tópico central para descrever a mirada do viajante europeu, sobretudo quando se desloca pelos espaços subordinados ao domínio mercantil, colonial ou mesmo imperial do “Ocidente”, é o exotismo. Podemos mesmo postular, como hipótese de trabalho, que esse tema aglomera quase todos os outros procedimentos de representação e tematização que decorrem da focalização narrativa e descritiva do viajante europeu (e, de um modo geral, identificado com a civilização ocidental), quando se relaciona com os traços sobressalientes dos espaços sociais e físicos que divergem daqueles que assume como fundamentais do seu espaço civilizacional de inserção.

    O desenvolvimento do ponto de vista sobre o mundo e, principalmente, sobre o «Outro» (as populações, de costumes e organizações sociais diferentes das europeias, no fundo, quase sempre, os povos colonizados) a que chamamos exótico, assume, na Europa, uma importância extrema durante todo o século XIX que, segundo muitos estudiosos da história económica, se pode considerar o século da “expansão comercial” (cf. Hobsbawm, 1978: 191-219; Moura, 1992:70-94; Todorov, 1989: 315-340).

    O termo, tal como o conceptualizamos aqui, formula-se, na sua máxima amplitude, de acordo com o saber comum, patente nos dicionários e enciclopédias, como “aquilo que pertence a outro país ou clima”, mas entendendo o sentimento e o juízo, estético ou ético, relativo a outros espaços e humanidades como decorrentes dos discursos avaliativos, marcados pela dominante ideológica.

    O interesse por essas “outras humanidades” criou especialidades disciplinares como a etnografia, a etnologia ou a antropologia (sem esquecermos a “geografia humana” que, desde o antigo grego Estrabão, trata os outros povos como objectos, “outros” passíveis de atrair o interesse das políticas expansionistas) que, num primeiro momento, reflectiam um etnocentrismo que reduzia os outros a um «Outro»,  constituindo-o como uma alteridade, ou seja, predominantemente “um objecto, interessante, é certo, mas estranho” (Thines e Lempereur, 1984: 254 – entrada “Despaisamento” ;cf. tb. Said, 1995:11-110; Ashcroft e Ahluwalia, 1999: 57-86;Moura, 1992: 3-15).

    Segundo Segalen, autor francês para quem a aventura poética foi, essencialmente, a da encenação verbal do encontro com os povos distantes, sobretudo os da China, Japão e ilhas do Pacífico, o “Exotismo” é uma “sensação” que “não é mais do que a noção do diferente; a percepção do Diverso; o conhecimento de que qualquer coisa não é nós próprios” sendo inevitável concluir, por isso, que “o poder do exotismo é o poder de conceber o outro” (Segalen, 1986: 41).

    The Sphynx, Egypt

    Na obra em que reflecte sobre o processo da sua criação poética que, até certo ponto, muito deve à profunda consciência crítica com que praticou a postura etnográfica, face aos povos distantes entre os quais viveu, reconhece Segalen que, para atingir a capacidade de “conceber o outro” de forma tão aberta, despreconceituosa e receptiva, é necessário “despojar a palavra de todos os seus ouropéis: a palmeira e o camelo; o capacete colonial; as peles negras e o sol amarelo” devendo ser rejeitados os imaginários “dos programas de agências Cook” (1986: 41).      

    É claro que não basta um olhar lançado sobre regiões distantes, que se revele num discurso que tematiza esse próprio olhar numa narrativa ou registo descritivo de viagem, para produzir a alteridade como elemento exótico. Muitos são os espaços e os entes presentes nas odisseias antigas, nos romances de cavalaria medievais, que não instituem o Outro como entidade exótica, como objecto “interessante e estranho” a conhecer. Os monstros e maravilhas que emergem nessas narrativas não podem ser exóticos porque povoam o universo lendário comum aos autores, leitores, narradores e personagens que habitam, constroem ou actualizam esse mesmo universo.

    O Ciclope não é um ente “descoberto” por Ulisses que fosse necessário incluir no capítulo “Os Entes Animados da Natureza” da “Enciclopédia” grega de “Todos os Saberes” da Antiguidade Clássica. Ele já existia num “capítulo” dessa enciclopédia que constitui uma obra fundamental da na cultura em que cabem Homero e Ulisses (cada qual em seu nível de “realidade”): a Teogonia de Hesíodo. O interessante, nesses contactos clássicos da antiguidade, não reside na descoberta do desconhecido, mas sim na confirmação do universo lendário, revelação perceptível dos entes já constantes no inventário fantástico ou no bestiário de maravilhas.

    O exótico, no sentido que lhe atribuímos, apresenta-se como a figura ou registo retórico do que é “de fora”, como indica o termo grego quase homónimo. Sendo um procedimento retórico, ele liga-se aos modelos expressivos das culturas em que existe. De algum modo, todas as culturas e, sobretudo, todas as civilizações (entendendo estas como uma ampliação e uma organização ideológica reforçadas daquelas) determinam o exótico em relação a si. Entendemos, no entanto, que no processo de expansão dos países europeus, a construção do exótico assumiu formas e funcionamentos ideológicos que, entre os estudiosos modernos, acentuadamente críticos do colonialismo e das várias expressões do domínio imperial (sobretudo “ultramarino”), apresentam acentuada tendência para o etnocentrismo ideologicamente estruturado.

    No fundamental, este não difere muito dos outros – contudo assenta em instituições de poder (capital financeiro, exércitos expedicionários, enclaves de ocupação – quando não mesmo colónias – cimentados e fundamentados ao longo da história) e de conhecimento (estudos histórico-geográfico-antropológicos que localizam, delineiam e caracterizar o “Outro”) que lhe fornecem um escopo qualitativamente diferente.

    Segundo Moura, “se as viagens militares e comerciais e científicas se multiplicam, o importante para a vida literária é que os escritores não hesitam em deslocar-se para fora da Europa” (1992a: 70). O processo é, como o sublinha insistentemente Michel Serres, a propósito de Verne, o da “narrativa da segunda viagem”, que podemos ampliar considerando, por sugestão, a viagem segundo os traços dos outros: “a viagem mundial dos sábios”, a apropriação da terra, em nome da «expansão civilizadora e progressista», é feita pelos “Astrónomos no Cabo, físicos na América do Sul, agrimensores, cartógrafos, e geólogos por toda a parte” (1974:12).

    A viagem dos escritores relaciona-se com esta última modalidade. Podemos encará-la, seguindo Moura, de um modo geral, como “relação de viagem”, a qual “se torna uma espécie de género menor (simultaneamente produção e marca do escritor profissional)” (1992a: 70). “Já não são os marinheiros, os soldados, os agricultores ou os missionários que se apropriam da terra,” diz Serres, “são os cientistas” (1974: 12). O estudioso dos discursos entrecruzados da ciência e da literatura refere-se, nesta enumeração de profissões de captores da Terra, não só a entidades historicamente reais como, e sobretudo, a personagens de Jules Verne, que, quanto a esta matéria, merece ser uma referência piloto.

    Quando Serres acrescenta, como que em resumo daquela enumeração, que “a nossa geografia invadiu o planeta […] eis criada a viagem segunda […]” não conta apenas com as deslocações dos sábios propriamente ditos, mas também com os descritores que os acompanham de perto. Não serão, talvez, as personagens da “viagem terceira”, porque os saberes que ostentam são os que directamente revertem dos textos dos sábios, mas, muitas vezes, são os protagonistas da enunciação expansionista do imperialismo moderno. Essa atitude pode ser descrita, de acordo com a visão que Said apresenta a propósito das viagens dos escritores europeus do século XIX ao Médio Oriente, como a do autor “para quem a viagem real ou metafórica é a realização de um projecto urgente e profundamente sentido” pelo que “o seu texto é construído a partir de uma estética pessoal, alimentada e informada pelo projecto” (Said, 1995: 158). 

    Uma obra muito interessante, para ser observada segundo este ponto de vista, é o livro de “notas de viagem” de Eça de Queirós que foi publicado sob o título de O Egipto[i]. Nele se concentra, de modo muito versátil, essa dupla ambição da época, ao escrever relatos de viagens: apresentar um mundo tal como o concebem os “sábios” mas colocando-o sob a mirada do “autor”. Tal escrita mantém, por um lado, as marcas da reportagem e, por outro, as da elaboração literária. Serres usa uma fórmula muito sua para transmitir essa ideia de encanto, de transparência e dependência do saber: “então, a terra ciclo (cycle), o espaço curvo para as deslocações, é, igualmente, o lugar da enciclopédia.

    O saber é, sem hesitação, o das coisas e do mundo” (1974:12). O conhecimento do mundo é, segundo uma tal produção, valorizado literariamente, levando adiante um esforço de construção do pitoresco, seja ele “o das personagens autóctones”, seja o “dos espaços exóticos descritos” (cf. Moura, 1992a: 120). O objecto literário que produz esse pitoresco pode entender-se sob a designação geral de descrição, enlaçada com toda a problemática da ecphrasis (cf. Lausberg, 1972: 217-219).

    Segundo Jean-Michel Adam e André Petit Jean, assumindo como referência um texto de Hamon[ii],  a afirmação geral subentendida como uma crença pelo romance realista e naturalista é a de que  o mundo é rico, diverso, abundante, descontínuo; dessa convicção básica decorrem algumas posições assumidas pelo escritor realista/naturalista, quando procura  representar toda essa variedade e riqueza: transmitir uma informação acerca do mundo; copiar o real com a palavra; dar o primado a esse real, apagar, tanto quanto possível, a mensagem; fazer do estilo um processo de apagamento da marca estilística (ou seja, instalar, como desinência própria do estilo, um procedimento tendente ao grau zero),  deve apagar-se ao máximo; procurar que a informação fornecida sobre o mundo se torne documental, para produzir o efeito de evidência no leitor.

    Recorrendo aos esquemas analíticos de Ogden e Richards, pela ampla aceitação que tiveram nos estudos sobre a linguagem, podemos dizer que o principal objectivo do realismo romanesco é o apagamento do significante (símbolo, na terminologia por eles usada) em favor do significado (referência em Ogden e Richards) e, sobretudo no naturalismo, na sobrevalorização do referente. Escusado será dizer que, nesta escola, o primor estilístico aponta para a vontade de produzir um significante valorizado pela sua transparência, capaz de dar a ver um mundo experienciado pelos escritores e pelos seus contemporâneos.

    turned on desk lamp beside pile of books

    A obtenção dessa transparência valorizaria a produção de um verbo cristalino, dependente de um virtuosismo estilístico em quase tudo correspondente ao grau zero da escrita de que fala Barthes, mas empenhado na História enquanto processo artesanal de criação de um meio para não ser percebido, mera passagem para o que se dá a perceber – ou seja, mero acesso ao documentado (cf. Barthes, 1965: 59-68)[iii]

    A partir desta arrumação relativa de dados extraídos de teorias e práticas do romance clássico, Adam e Petitjean formulam três funções fundamentais na teoria da representação descritiva: uma função matésica, relativa à difusão do saber; uma funçäo mimésica, relativa à ilusão de realidade; uma função semiósica relativa à regulação do sentido (cf. Adam e Petitjean, 1989:26). Embora tomemos como base esta partilha esquemática de funções, que permite uma visão analítica muito útil para a nossa abordagem das narrativas de viagens de que Jules Verne, sobretudo, seria o exemplo supremo e epigonal, assumimos, em simultâneo, que a função onde primordialmente se dá o efeito de perturbação do sentido na obra romanesca ou “documental” de viagens é a mimésica.

    Se, na lógica da produção, a função matésica é a primeira, até por admitimos que uma sabedoria empírica experiencial antecede qualquer escrita, como “semiótica do mundo natural”[iv], a verdade é que, na literatura de viagens, a grande perturbação aparece com o sistema enciclopédico posto a funcionar hiperbolicamente e transbordando, muitas vezes, dos mecanismos mimésicos (nos quais deveria ser servilmente utilizada) e mesmo semiósicos (aos quais serviria de matéria para a construção da referência e, a partir desta, de produção de sentido do real ou de reprodução da natureza).

    A vontade enciclopédica dos escritores (como o de Eça, por exemplo, em O Egipto) ultrapassa a encenação ficcional, a naturalização mimética da tradição em que se inserem, para pôr esta ao serviço da informação documental da reportagem. É através da hiperbolização da enciclopédia que a ilusão de cópia do real se perde, que a mimese vacila e, em consequência, a obra dos autores realistas, ao referir-se a outras paragens, ultrapassa os limites intencionais da ideologia realista da representação[v].

    low angle photography of brown concrete building under blue sky during daytime

    Como J.-M. Moura afirma, tendo como referência as categorias de Adam e Petitjean que temos vindo a utilizar, a narrativa exótica realista torna-se uma “escrita paradoxal de uma realidade mal (ou nada) conhecida” pelo que “só a pode encarar na condição de conciliar a estranheza denotativa (léxico, temática do espaço exótico) e a narrativa simbólica subjacente”; e é por isso que, na sua opinião, a descrição exótica é original, ao representar, uma vez que  “constrói um espaço-tempo afastado da experiência comum do leitor – susceptível de derivar para a fantasia e para o maravilhoso –, embora a sua vocação principal seja a de autentificar a narrativa […]” (cf. Moura, 1992a: 125).

    A longa descrição que o Eça de Queirós narrador/relator de O Egipto nos faz das terras que visitou, desde Port-Said até às terras de lavradio do Nilo e ao deserto circundante, introduz, com toda a evidência, a novidade semiósica do modelo de descrição que, desde o Itinéraire de Paris à Jérusalem, de Chateaubriand, se vinha afirmando, através dele e de outros autores como Nerval, com a sua Voyage en Orient,até aos grandes realistas como Flaubert, que escreveu, antes de Eça, nas suas memórias, muitas notas documentais sobre a  viagem que efectuou ao Próximo Oriente e ao Norte de África  em busca de informação para Salammbô (1862). 

    Este novo modelo de escrita, que elege a descrição como estrutura textual privilegiada, para dar conta da narrativa do trajecto, tornando a enargeia (cf. Lausberg, 1972: 217-219) como o fazer fundamental do actante, apresenta o percurso deste  como uma espécie de pretexto, ou de elemento secundarizado, ao serviço da actividade do ver e, em seguida, do dizer o que se observou. A descrição, conforme se pode observar na imensidão da obra de Jules Verne, por exemplo, confunde-se com a própria acção da personagem, emergindo como um caso particular e revitalizado da ecphrasis.

    brown camel

    Se aceitarmos como válida a hipótese ainda actual da semiótica na abordagem de intensos efeitos de sentido, numa dinâmica polissémica, em “objectos textuais complexos” (Greimas) como o romance e admitirmos, com Denis Bertrand (cf.1985:29-30), que a «referência» não é uma referência ao “referente”, mas que, mais elaboradamente, o discurso toma como referência uma “realidade” já informada de sentido (um objecto já seria, em si mesmo, um significante carregado de sentidos); se, posto isso, aceitarmos o postulado de essa “realidade” ter sido erigida em figuras significantes que mantêm em conjunto relações explicitáveis, podemos assumir que o mundo a que nos referimos no discurso é ele próprio um discurso. Mas o pacto realista de leitura, o fundamental dos seus efeitos de sentido, assentava, pelo código literário-estético que acima apresentámos, numa “ignorância” prévia desse facto.

        Em Verne, por exemplo, e na escrita realista de viagens em geral, esse acordo tácito, esse pacto estético-poético entre escrever e ler, apresenta constantemente o perigo de ficar perdido. Não lidando com espaços, objectos, coisas e lugares já discursificados como “realidades” partilhadas por eles e pelos seus leitores, referindo-se a mundos desconhecidos, pela esmagadora maioria dos seus contemporâneos (entre eles o próprio Verne que, como viajante, foi muito limitado, se o compararmos com os seus heróis), os escritores que relatavam viagens  revelavam os mundos distantes, “conhecidos” apenas pelos aventureiros e viajantes ousados, como percursos extraordinários e cheios de peripécias.

    Os esquemas narrativos que enquadram tais viagens têm de enfatizar o elemento projecto de aventura para tematizarem o interesse da história para lá da factualidade já divulgada pelos relatos autênticos que servem de documentos aos escritores e, simultaneamente, precisam da prova documental, para não se tornarem suspeitos.

    Essa prática, em Eça, é patente, embora o uso que dela faz seja paradoxal, sobretudo se relacionada com os escritores da sua época que narraram viagens. Por um lado, “O Egipto de Eça de Queirósé, em grande parte, a descrição do país visitado naquele ano de 1869” o qual, segundo o resumo que Luís Manuel Araújo apresenta em seguida se pode considerar “um Egipto muçulmano, «romântica terra dos califas», das mesquitas, dos pachás, Cádis, ulemas, derviches, felás…” (Araújo, 1988: 21); por outro lado, não obstante os registos resultantes da observação directa, mesmo para a redacção das suas notas coligidas em O Egipto não deixa de recorrer a fontes: Maxime du Camp, Gérard Nerval, Edmond About e, sobretudo, Théophile Gautier (cf, Araújo, 1988: 36-37); e, por fim, encarando-o numa terceira modalidade de representar o espaço percorrido, verificamos, em A Relíquia, que praticamente não recorre às suas próprias notas de viagem sobre o Médio Oriente (ao contrário do que fez Flaubert, por exemplo), onde situa grande parte da acção do romance.     

    Propondo-nos observar o processo de representação, nas obras que estudamos enquanto narrativas de viagens ou textos que tematizam os seres e objectos distantes, é de toda a utilidade enfatizar o modo de se construir o outro, como é elaborada a sua imagem – eventualmente articulando-se num imaginário estruturado como paradigma – integrada nos espaços representados.

    Delimitamos, nas possibilidades de abordagem teórica, a que privilegia “o estudo das imagens do estrangeiro numa obra ou numa literatura” aquela que algumas conceptualizações do estudo da literatura comparada “têm chamado a imagologia literária” (Moura, 1992: 10). A designação que aqui mantemos atende, sobretudo, ao sentido circunscrito por A. M. Machado e D.-H. Pageaux, quando afirmam, por exemplo, que “um dos cumes da reflexão comparatista” é a “da representação do outro ou aquilo a que habitualmente se chama imagens” (1988:51), perspectiva dentro da qual cabe o conceito de homo viator. Assim, entendemos este, ora como “viajante solitário”, funcionário de estado, cientista ou mero turista, ora como “membro” de um grupo. Delineia-se, assim, um par contrastivo no imaginário das viagens: o viajante (quase sempre figura do “eu” ou do “nós”) e o nativo (quase sempre a figura do outro do ele ou eles cujas designações tendem a ligá-los aos espaços designados[vi]).

    O herói viajante que tem em Verne uma das suas máximas expressões, quando se movimenta por mundos estranhos, não busca apenas o pitoresco, procura, também, o conhecimento, é um “insaciável que corre mundo, jornalista ou repórter cosmopolita que acumula as experiências e os testemunhos recolhidos sobre o universo definitivamente fragmentado caótico” (Machado e Pageaux, 1988:44).

    De facto, no “espaço estrangeiro vai descobrir (ou esquecer !) o Outro” ou descobrir-se como alguém “para quem o Outro constitui também um elemento básico da narrativa de viagens” (1988: 45), integrando o seu olhar  num colectivo que, ou o acompanha, ou lhe serve de referência como “leitor”. Para ele, o Outro é aquele acerca do qual comunica ao leitor imóvel informações que poderão tornar-se preciosas e princípios de saber enciclopédico. Atendendo a essa funcionalidade, a primeira configuração que podemos dar do homo viator típico da época da expansão imperial é o seu carácter genérico, universal, tópico (no sentido que Eco lhe dá para se referir a um tipo estereotipado) e que tem importância no universo de ficção ou da representação em geral, sobretudo pela sua mobilidade.

    Em Verne, essa característica é a da mecanicidade que o aproxima muito da figura do mobilis in mobile, de que o célebre Nautilus é o modelo mais ilustre do século XIX. No universo ficcional de Eça, a figura de Topsius, tipificação do «orientalista»[vii] germânico, é o topos do viajante apetrechado enciclopedicamente, que viaja sobretudo para confirmar o “já conhecido e sabido”.

    Sem entrar na exploração fantasiosa, o relato “verídico”, O Egipto, Notas de Viagem, deixa transparecer a importância da referida mobilidade. Mesmo quando integra registos fantasiosos que poderá ter recolhido em leituras de mestres e amigos, como Théophile Gautier, que ele encontrou, aliás, no Cairo, durante a viagem de que nos dá conta no seu relato, Eça coloca os dados recolhidos ao longo da sua informação enquanto sujeito que percepciona um espaço que apresenta em tom de reportagem.

    brown and silver desk globe

    Mas deve notar-se que o seu modo de dar a conhecer as terras e os mares que atravessa reflecte o sentido da celeridade que os Europeus já obtinham nas viagens durante o século XIX. A viagem de Eça, que durou pouco mais de dois meses (de 23-10-1869 a 3-1-1870), é rica na representação da deslocação: menos de duas semanas é a duração do percurso de Lisboa a Alexandria, ao longo do qual Eça regista descrições das grandes escalas mediterrânicas.

    Da cidade do delta parte para o Cairo, regressa a Alexandria, vai de barco até Port Said, assiste à abertura do canal do Suez e segue, depois, para Jerusalém pela cidade egípcia do Norte, à qual regressa, vindo da Terra Santa, para embarcar para Lisboa. Mas como se esta movimentação que, ainda hoje, é notável, em tão pouco tempo, não lhe bastasse, ele “estendeu” o seu relato a terras onde não foi, representando um percurso ainda mais surpreendente pela extensão (cf. Luís Manuel Araújo, in Matos, 1993: 362-366; entrada EGIPTO) 

    A experiência do viajante pode perturbar uma interioridade perceptiva capaz de enriquecimento qualitativo, levando à alteração (melhoria, degradação, alteração das concepções do mundo), por se mover em espaços anunciados como novidade, onde o próprio humano aparece diferente. Ora, como Jean-Marc Moura nota, o exotismo, ou seja, o registo do outro e dos espaços diferentes exibidos ou mesmo apresentados ostentatoriamente, enquanto efeito de procedimento, não se faz sem uma certa dimensão do estereótipo, notório, sobretudo, nas narrativas de acção e/ou aventuras: “As formas romanescas rígidas da superioridade do Ocidente, sempre sob ameaça de um Terceiro Mundo pitoresco, carregado de cores, mas votado a uma desordem perpétua [representam ] a afirmação da excelência do primado ocidental sobre a ordem internacional […] A forma privilegiada desse maniqueísmo é o estereótipo” (Moura, 1992: 153).

    No entanto, e paradoxalmente, não só é estereotipado o que surge como figura do Outro, mas também o viajante surge, muitas vezes, sob os traços de tal tipificação.  Ambos os aspectos podem ser vistos, com forte relevo, em duas obras de Eça de Queirós: A Relíquia e O Mandarim. A sátira surge, em ambos os romances de Eça, sobretudo da rigidez do quadro mental do observador, que se torna, de algum modo, também ele, um estereótipo. No primeiro texto, uma das experiências mais curiosas da literatura de viagens portuguesa, no século XIX, o cruzar sugestivo dos dois estereótipos surge na figura de Topsios, nomeadamente quando o filho da “gloriosa Alemanha”, em “peregrinação científica” a “colher notas para a sua formidável obra” ([1987] s/d: 123) aparece a chamar Teodorico ordenando-lhe: “ergue-te e parte para Jerusalém”.

    Ele assume, a partir daí, o estereótipo do “europeu germânico”, regulando a observação do Outro através do aparato da sua “teoria”, produzindo, assim, ao longo do percurso em sonho de Teodorico, o efeito de guia de um imaginário, todo ele assente nos estereótipos das “sagradas escrituras”, da  representação de algumas das partes da Bíblia, da sua reprodução em textos escritos e pictóricos e, principalmente, das vulgatas, quer do livro sagrado da cultura judaico-cristã, quer das obras artísticas dele decorrentes.

    Algo de muito semelhante se passa na perspectiva que o romancista português nos oferece através do quase-irmão de Teodorico, Teodoro, na sua viagem à China, em O Mandarim[viii]. Com uma diferença fundamental: ao contrário do Egipto, a China não é, nem parcialmente, conhecida ou experienciada, através de qualquer contacto directo, por Eça de Queirós. Porque terá situado o escritor grande parte da sua história no espaço da civilização chinesa? A pergunta não é ociosa: temos a impressão de que, em Eça, se manifesta uma incongruência ou mesmo um artificialismo evidente relativamente às bases e pressupostos a partir dos quais construímos o horizonte de expectativas que guia a nossa leitura do romance realista.

    Tal artificialismo é mais patente em Eça do que em Verne, evidentemente, quando este busca, também, uma perspectiva do Celeste Império, em Tribulations d’un chinois en Chine. O que talvez se deva ao facto de, sendo o autor português, numa perspectiva histórico-literária, entendido como um realista-naturalista em sentido estrito[ix], esperarmos da sua criação romanesca uma apresentação de espaços directamente percepcionados pelo autor e reconhecíveis pelos seus leitores mais prováveis. 

    Se essa condição não se verifica, esperamos uma documentação histórica e geográfica desenvolvida (segundo o modelo flaubertiano, por exemplo) e uma forte argumentação cultural e epistemológica para justificar a digressão pela distância temporal e/ou espacial (patente, também, no percurso de Flaubert na criação da sua Cartago). Como Eça de Queirós nunca foi à China, é provável que a documentação seja indirecta, proveniente de relatos  com objectivos práticos de conhecimentos geográficos ou mesmo para utilização de turistas.

    Por outro lado, o filão histórico-cultural que ele convoca não parece constituir-se como espaço de uma experiência directa do protagonista, fundamental para a sua funcionalidade enbquanto carácter. No fundo, a China emerge em O Mandarim como metáfora (ou mesmo  como dimensão espacial alegórica) da distância: num primeiro momento, espacial, conotando, de imediato, o afastamento cultural e histórico (não por ser distante no tempo, mas por ser outra a historicidade da civilização chinesa), mas, logo de seguida, ética.

    Dois universos de alteridade que será interessante registar, também, como fortemente marcantes da configuração estética e ideológica que a viajem produz na ficção de Eça, são os dos países europeus tecnologicamente mais evoluídos do que Portugal (de que o exemplo flagrante é a Paris de A Cidade e as Serras) e o que se refere a África a Sul do Sara como um todo sincrético (como “aparece”, por exemplo, em A Ilustre Casa de Ramires ou n’A Correspondência de Fradique Mendes), carregado de apelos como espaço fascinante, mas nunca apresentado em pormenor. Como nota à parte, não podemos deixar de referir As Minas de Salomão de Rider Haggard, livro de que Eça se teria quase “apropriado” ao traduzi-lo (na opinião de alguns estudiosos, constituindo quase uma “versão” e não apenas uma simples “tradução”).

    low angle photography of brown concrete building under blue sky during daytime

    No interior do quadro de referências e observações que temos vindo a desenvolver, o romance A Relíquia vem enquadrar-se de modo curiosamente paradoxal. Por um lado, ele cumpre, em quase tudo, os códigos restritos da narrativa de viagens tal como funciona dentro do sistema regulador da poética realista e naturalista. Nem sequer resvala momentaneamente para o apelo do fantástico, tal como acontece em O Mandarim. O processo utilizado para introduzir uma diegese parcialmente fantástica, desenrolada ao longo de acontecimentos cuja narração ocupa uma boa terça parte do texto total do romance, no enquadramento de um mundo possível pautado pelas regras da verosimilhança realista, obedece inteiramente aos princípios de qualquer verificação empírica que um espírito positivista, experimental e naturalista reconhece como fazendo parte dos fenómenos normais. De facto, é através do sonho que o extraordinário aparece e é dentro dele que o universo distante no espaço emerge com a imponência que a distância no tempo lhe acrescenta.

    Tudo se revela aceitável, neste caso, porque o sonho, sendo embora uma representação do mundo não coincidente com a da percepção consciente da vigília, tem um lugar próprio para surgir – na mais ousada das hipóteses um pré-consciente onde se espraiariam os impulsos e os fenómenos inconscientes –,inteiramente compartimentado em firmes eclusas. A ciência, o bom senso e o senso comum reconhecem, milenarmente, o sonho como desvio à ordem fenomenal da percepção e representação do real que não contamina as regras deste, em virtude de a razão o poder enquadrar como uma estranheza exterior ao ser e fluir da consciência, não constituindo, portanto, matéria de inquietação para o conhecimento e a representação “normais”.

    Complementarmente, a intervenção das regras realistas e naturalistas fica assegurada, em A Relíquia, dado o universo diegético que o sonho manifesta emergir inteiramente regulado pelo discurso das crónicas sagradas bem como das narrativas da história que procuraram avaliar a veracidade dos registos religiosos e da tradição.

    A figura central da elaboração desse universo, o sábio Topsius, indica a presença do modelo da fiabilidade da representação realista, no plano da exigência de rigor e erudição documental – embora, como adiante veremos, a paródia hiperbolizante do enciclopedismo faça vacilar a firmeza de um tal saber acumulado. O Oriente que, de facto, se desenrola de modo algo colorido e carregado de entrecho romanesco, resulta da intromissão de Topsius no sono de Teodorico, dando origem, como figura inaugural, ao gigantesco sonho que se desenrola como presentificação do processo de Jesus, no quadro reconstituído da Palestina, no dealbar da nossa era, Anno Domini primordial (entre 30 e 33 da Nossa Era, os eruditos hesitam – cf. Fouilloux e outros, 1995).

    A personagem que intervém no sonho orienta-o como um indicador de percurso, instrutor de um programa de acção, como tinha sido, na diegese em que o sonho se integra, um instrutor da leitura dos objectos culturais avistados, monumentos e “lugares históricos”, durante a viagem realizada no real do romance.

    A sequência do sonho é iniciada com a intervenção ilocutória de Topsius, modalidade performativa de uma palavra de forte poder hortativo: “Teodorico, Teodorico, ergue-te e parte para Jerusalém!”. Já se vê, pelo estilo da exortação, que ela não se propõe apenas formular uma ordem, mas sim fazer ecoar, perlocutoriamente, a dimensão bíblica, ao evocar, por exemplo, a cura do paralítico por Jesus “Levanta-te, pega na tua enxerga e vai para casa” (Mateus 9, 6).

    book lot on black wooden shelf

    Pela intromissão de tal referência canónica, parecem ficar asseguradas duas dimensões de verosimilhança no relato de acontecimentos extraordinários, concatenados na magnificente minuciosidade de um sonho: a da possibilidade da intervenção do sagrado, como propiciadora das manifestações dos acontecimentos extraordinárias, e a da validação ética dos acontecimentos narrados como exemplos de dimensão alegórica.      

    De facto, não é fácil estabelecer quais as fontes que terão servido directamente a Eça, dado que, desde a Bíblia até aos escritos do seu contemporâneo Renan, que escreveu mesmo uma Vida de Jesus, poderíamos encontrar eventuais “documentos” para a narrativa encaixada que representa uma boa parte textual de A Relíquia. Sendo essa narrativa a do processo de Jesus, ou seja, que constitui parte dos relatos canónicos dos Evangelhos que relatam os últimos dias de Jesus em Jerusalém e nos campos e povoados dos arredores da grande cidade, o texto, inevitavelmente, presentifica um cenário natural, social e humano que não corresponde, de forma alguma, ao que se apresentaria, em finais do século XIX, aos olhos do viajante português.

    Eventualmente, muitos outros historiadores da religião e orientalistas que, sumariamente, aparecem caricaturados em Topsius, poderão ter fornecido bases documentais para a “restauração” praticada por Eça, ao apresentar uma “Judeia às portas de Jerusalém” (p. 129) bem como a própria cidade, com um colorido que parece querer rejeitar alacremente a visão sombria dos “caminhos” e das “colinas”, que Teodorico “vira dias antes, em torna da Cidade Santa, dissecadas por um vento de abstracção, e brancas, da cor das ossadas” (p. 128).

    De facto, a quase ausência, no romance, fora da sequência do sonho, de registos paisagísticos, geográficos ou topográficos é impressionante e a secura das breves descrições digna de registo, quando comparada com as narrativas de viagens, quer verídicas quer ficcionais, elaboradas durante o século XIX e conformes aos códigos do realismo. Se compararmos o procedimento de Eça, ao apresentar as terras percorridas pelo seu protagonista, nas páginas em que relata a sua permanência no Egipto, com as que ele próprio escreveu como notas de viagem sobre essa região que visitou, verificamos essa mesma discrepância.  

    a person riding a surfboard on top of a wave

    Uma das razões para tal opção será, talvez, como nota Luís Manuel de Araújo, relativamente às notas pessoais de viagens, o facto de Eça reconhecer que “o seu texto” não poder deixar de “conter”, eventualmente “demasiadas influências de outros autores, ter muitas passagens retiradas (mas não necessariamente copiadas), de obras anteriormente lidas” (1987: 234).

    Provisoriamente, na impossibilidade de podermos pretender compreender integralmente as motivações estéticas, poética e ideológicas para uma tal secura, podemos assumir, como hipótese de sustentação dos argumentos que desenvolvemos neste nosso trabalho, que Eça não só sentia o peso da documentação no seu texto, como entendia que dificilmente poderia escapar à repetição dos “lugares comuns” (topoi) relativos aos “lugares visitados” (loci) preso aos códigos da representação canónica da ecphrasis e da enargeia, caso usasse, no romance, os dados enciclopédicos acumulados como notas.

    Seja qual for o objectivo que encontremos nessa atitude, ela parece desenvolver-se, em Eça,  como uma posição crítica que partilha com outros escritores, mestres e émulos, relativamente a certos aspectos que se poderiam considerar formas estereotipadas da literatura de viagens,  como que em contraponto à exuberância da representação do pitoresco que se afirma na narrativa realista, posição essa tendente a minimizar os aspectos hiperbólicos para que muitas vezes  a descrição tendia nos relatos de viagens. De facto, como lembra Carlos Reis, quando Teodorico Raposo confessa, no prólogo de A Relíquia, ter pretendido que as páginas em que dá conta de outras terras “se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente” (p. 6), parece fazer eco do narrador de Viagens na Minha Terra quando afirma que não “adoptará como modelo «quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam a imprensa da Europa»” (Reis, 1999: 116).

    shallow focus photography of stack of books

    Assim, proposta a abertura de uma diegese onírica, retrospectivamente fantástica, seria possível verter toda a cor da experiência vivida e das sensações experienciadas, misturadas com os topoicitacionais, através de documentações inevitavelmente recolhidas dos historiadores do passado, dos orientalistas, arqueólogos e estudiosos das religiões, além das provenientes das fontes bíblicas, sem com isso iludir ou mesmo enganar o leitor, o receptor da mensagem cultural, sugerindo a utilização de processos de captação directa (documentação em primeira mão, presentificação pelos processos da reportagem, segundo os princípios da enargeia) quando, na verdade, o que inevitavelmente se fornecia era o decalque mais ou menos disfarçado de uma representação do mundo já amplamente textualizada segundo códigos estéticos e literários. Ora, parece evidente que a mais destacada textualização que Eça faz dessa textualidade anterior, a que dificilmente conseguiria escapar, é Topsius.

    Verdadeiro alfa e ómega do dispositivo poético (mas claro que, também e primordialmente, retórico e, em última instância, semiótico) que Eça põe em acção no seu romance, Topsius é a garantia de sustentação de uma superstrutura narrativa realista em equívoca ordenação de todas as propostas paradoxais que o romance apresenta: a naturalização da passagem de um licenciado português algo tacanho para um universo desconhecido, onde acaba por se mover como um verdadeiro cosmopolita, falante desenvolto de várias línguas (pelo que se deduz das suas práticas), capaz reconhecer e avaliar os espaços naturais e arquitectónicos; a importância bem como a limitação e fatuidade de um saber enciclopédico para a captação dos espaços desconhecidos e para a representação dos mesmos; a ordenação do discurso onírico sob a forma de uma narrativa actualizadora das sequências mitificadas ou legendarizadas do processo de  Jesus e da Paixão; e a possibilidade de presentificar textualmente todo o cenário de um espaço distante tal como teria existido há quase dois mil anos.

    De facto, Teodorico, dividido entre uma existência canalha de «Raposão», hipocritmente ocultada, e uma existência familiar, dominada por uma tia beata e preconceituosa que lhe garantia a sobrevivência e lhe assegurava as perspectivas de futuro, quando lhe é proposta a ida a Jerusalém, revela toda a sua ignorância e a estrutura ideológica retrógrada que o informa:

     “Ir a Jerusalém! E onde era Jerusalém? Recorri ao baú que continha os meus compêndios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com ele aberto sobre a cómoda, diante da Senhora do Patrocínio, comecei a procurar Jerusalém lá para o lado onde vivem os Infiéis, ondulam as escuras caravanas e uma pouca de água num poço é como um dom precioso do Senhor” (p. 61).

    man in black suit standing on brown wooden door

    A travessia rápida, até Alexandria, coloca-o, assim, de imediato, diante de um universo novo, para o qual Tpsius, quer na cidade do Nilo, quer “nas ruas fuscas de Jerusalém”, ou “junto aos destroços de Jericó” ou ainda “pelas estradas da Galileia” tinha sido “sempre instrutivo, serviçal, paciente e discreto”, um autêntico cicerone cujas palavras o viajante português “reverenciava” (p.71).

    O simulacro paródico de tal instrução, surge, no prólogo, quando o narrador, em tom de retrospectiva mais distanciado do que aquele que usa na narrativa propriamente dita, indica a peça erudita de Topsius a que o leitor curioso se deverá reportar caso queira saber pormenores acerca da terra visitada, “Jerusalém Passeada e Comentada”. Fazendo a apresentação sumária do monumento de erudição publicado, “em sete volumes […] impressos em Leipzig”, Raposo revela como se processou o intercâmbio cultural luso-germânico, ao referir as palavras do companheiro de viagem: “o esclarecido Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar, ficticiamente, nos meus lábios e no meu crâneo, dizeres e juízos de beata e babosa credulidade – que ele logo rebate e derroca com sagacidade e facúndia!” (p. 7).    

    Tudo sugere que a língua em que falavam seria a “adâmica”, embora possamos acreditar que Tupsius, entre as suas imensas capacidades eruditas, possuísse também a de falar Português. Ainda que nada nos seja dito sobre isso, poderíamos aceitar que comunicavam em Latim, língua que o «Raposão» poderia ter aprendido no colégio para onde a tia o mandou e que Topsius, verdadeiro académico do século XIX, certamente dominaria. O que já não é tão claro é qual a língua que peregrino lusitano utilizaria com a inglesa que conhece em Alexandria e com a qual mantém uma arrebatada relação erótica, a vivência emocional intensa de toda a viagem, ou com Potte, o guia grego, ou ainda com Fatmé, a dona do prostíbulo de Jerusalém.  

    gold and purple beaded necklace

    Fica sempre a dúvida sobre a língua que é utilizada, tanto mais quanto a comunicação nos parece simplificadamente fantasiosa, ao ponto de a barreira da língua só ser evocada no momento em que, no bordel de Fatmé, ao tentar “seduzir” a jovem núbia, Teodorico reparar com uma agudeza que não é a da personagem  mas, eventualmente, a da instância autoral autor através dela: “Não compreendia o meu falar: e nos seus olhos esgazeados flutuava a longa saudade da sua aldeia na Núbia, dos rebanhos de búfalos que dormem à sombra das tamareiras, do grande rio eterno que corre eterno e sereno entre as ruínas das religiões e os túmulos das dinastias…” (p. 105). O que nos leva a pensar que a comunicação é aqui um acto convencional, que não conhece barreiras na construção ficcional, excepto quando a sua falha se revela poeticamente significativa, como é aqui o caso.

    De facto, ela revela a impossibilidade do encontro amoroso, causado pela imensa distância cultural que separava as duas personagens, sublinhando a tosca ignorância de Teodorico sobre a mulher que procurava seduzir, construído numa espécie de litotes, em que uma imagem poética, que é o reverso da mentalidade do narrador, exprime, pelo seu contrário, a boçalidade do sujeito a quem a enunciação é atribuída.

    Já se vê que, mesmo no modo como fantasia as realidades linguísticas, Eça contorna os preceitos da representação realista que, nos diálogos do mundo, encontra a matéria mais dócil para transpor segundo esses mesmos princípios. Essa fantasia parece querer representar, exactamente, o reverso da descuidada facilidade com que toda a comunicação se processa, nova série de litotes que surge paralelamente à que exprime a quase nula comunicação existente entre os viajantes – sobretudo Teodorica Raposo – e os habitantes dos países visitados.

    O contraponto entre o fracasso da relação com a mulher núbia e a plenitude da relação, em Alexandria, com a inglesa Mary é revelador de uma percepção estética, exposta segundo os mecanismos da paródia e do burlesco, da intransponível barreira existente entre o viajante europeu, eivado dos seus conhecimentos e preconceitos, e os  naturais dos países ou regiões com as quais se punha em contacto: afinal o viajante português vai encontrar, no Egipto, não uma mulher oriental – tipo feminino ao qual quer Nerval quer Flaubert, por exemplo, deram forte relevo nos seus relatos, apresentando-o como objecto de extrema atracção – mas uma europeia que, embora aparecendo como luveira, vendia os seus “favores”, encontrando nessa relação o objecto fatal, embrulhado como fetiche,  que transforma completamente as suas perspectivas de futuro, ao ser aberto, por gafe, pela “titi”, que recebe o embrulho como contendo uma “relíquia”.

    interior building

    Se nos lembrarmos que, na Palestina, lugar por onde Jesus andou, não conseguiu encontrar nenhuma relíquia, acabando por recolher um ramo de espinheiro para fazer um simulacro de troço da coroa de espinhos, percebemos quão fracassada é a carreira deste peregrino e de que modo lhe estava vedado o acesso à compreensão do Oriente. 

    Tendo em vista o objectivo de contornar as exigências de uma estética realista estrita, sem, contudo, abandonar o seu horizonte poético ou epistemológico, Eça parece ter enveredado pela acumulação de paradoxos e contradições na utilização dos modelos e dos elementos que costumam ser empregues com dispositivos produtores dos efeitos de real e naturalização da representação.

    Por um lado, o seu narrador autodiegético focalizador quase exclusivo da história contada, centro da maioria dos processos de percepção das ocorrências relatadas e dos objectos, seres e espaços percepcionados, revela-se equívoco pelas suas limitações culturais e ideológicas; por outro lado, o parceiro de viagem que poderia ser a fonte de informação canónica, garante da função matésica ou enciclopédica, aparece como focalizador distorcido por a sua perspectiva ou o seu discurso emergirem através do testemunho limitado do narrador, o que leva a uma hiperbolização paródica do seu saber – qualquer coisa que o aproxima das figuras patéticas de Bouvard e Pécuchet, copiadores e acumuladores de ideias e conhecimentos já “feitos”, como se sabe; e, por outro lado ainda, relativamente à percepção do mundo diferente e estranho, é dada uma dimensão textual maior ao sonho do que à vigília e, como que em corolário de uma lógica do imaginário, uma maior importância ao passado, evocado pelo sonho,  do que ao presente, revelado (mal) em estado de vigília.

    brown rock formation under white sky during daytime

    Entre outras coisas, ao sonho pode ser atribuída a função de fazer emergir, no discurso do narrador, uma versatilidade imaginária e uma capacidade de compreensão que os processos mentais de Teodorico, anteriormente, não tinham revelado. Se o sonho for esse processo a que podemos chamar “iluminação de uma mente embotada pela sua própria brutalidade”, podemos dizer que o seu resultado foi dar uma “visão do mundo”, uma sageza, a um indivíduo que, desperto, não seria capaz de a alcançar.

    A diferença de percepção é notória, entre a personagem que viaja, em estado de vigília, e a que sonha, embora a entidade romanesca Teodorico englobe ambas. Assim, podemos apreciar o espírito obtuso do narrador protagonista quando, alertado pela voz cicerónica para o facto de estar diante do Santo Sepulcro, reage do seguinte modo: “Fechei o meu guarda-chuva. Ao fundo de um adro, de lajes descoladas, erguia-se a fachada de uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como supérflua; a outra timidamente, medrosamente entreaberta” (p. 94). Não nos deve ser indiferente o facto de o quadro cultural em que emerge a personagem de Teodorico ter antecedentes culturais importantes, como nota, esclarecedoramente Said, estudioso atento e profundamente conhecedor dos relatos de viagens ao Médio Oriente:

    “Todas as peregrinações ao Oriente passaram através das terras bíblicas, ou a isso foram forçadas; a maior parte delas eram, de facto, tentativas, ora para resgatar, ora para libertar do grande e incrivelmente fecundo Oriente uma parte da realidade judaico-cristã/greco-romana. Para esses peregrinos, o Oriente Orientalizado, o Oriente dos académicos Orientalistas, era um percurso obrigatório, assim como a Bíblia, as Cruzadas, , o Islão, Napoleão e Alexandre eram temíveis predecessores a serem reconhecidos. Esse Oriente aprendido não se limitava a inibir os prazeres e as fantasias privadas dos peregrinos; a sua posição prioritária coloca barreiras entre o viajante contemporâneo e a sua escrita, a não ser que, como era o caso de Nerval e Flaubert ao utilizarem os textos de Lane, a obra do Orientalista seja separada da biblioteca e integrada num projecto estético” (1995: 168).

    ocean sea waves on seashore

    De facto, a obtusidade de Teodorico parece provocar um contraponto demasiado gritante relativamente ao acervo cultural que antecede a sua observação, sobretudo quando a confrontamos com um texto  como o de Chateaubriand que podemos ler no seu  Itinéraire de Paris a Jérusalem, o qual é tanto mais impressionante quanto ele o faz preceder pela descrição de um historiador francês do qual cita, na íntegra, quatro páginas:

    “Deshayes, tendo, assim, descrito, segundo a ordem das Estações, tantos lugares veneráveis, só me resta, agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores. Vemos, antes de mais, que a igreja do Santo Sepulcro é constituída por três: a do Santo Sepulcro, a do Calvário e a da Invenção da Santa Cruz. A igreja do Santo Sepulcro propriamente dita está construída no vale do monte Calvário, e no lugar onde sabemos que Jesus Cristo foi sepultado. Essa igreja forma uma cruz; a capela do Santo Sepulcro constitui a nave central do edifício: é circular como o Panteão de Roma e só recebe luz através de uma abóbada, sob a qual se encontra o Santo Sepulcro. Dezasseis colunas de mármore ornam os contornos deste redondel; sustêm, ao demarcar dezassete arcadas, uma galeria superior igualmente composta de dezasseis colunas e dezassete arcadas, mais pequenas do que as colunas e arcadas que a suportam. Nichos correspondentes às arcadas elevam-se por sobre o friso da última galeria; e a cúpula nasce sobre o arco desses nichos. Estes eram, outrora, decorados por mosaicos que representavam os doze apóstolos, santa Helena, o imperador Constantino, e três outros retratos desconhecidos” (1968: 278-279)        

    Esta breve amostra do modelo de descrição reinante na literatura de viagens, provem de uma das mais marcantes figuras literárias do dealbar do romantismo, que imprimiu à prática da ecfrasis os traços marcantes que ela assume na literatura de viagens daí em diante. Tal prática propõe o objectivo de funcionar como enargeia, ou seja, como registo documental que produz uma representação de objectivos testemunhais acompanhando o relato, provando que o narrador ou o focalizador esteve lá e presentificando o objecto (normalmente cultural) tal como ele é, pelo que pode, como diz Chateaubriand, “agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores” incluindo-os no acto perceptivo afirmado: “vemos”.

    close shot of book page

    Percebe-se, comparando os dois textos, quanto os silêncios, as reduções, ou eufemismos ou, até, as depreciações de Teodorico significam profundamente, desenvolvem uma decisão estética cuja amplitude e consequências apenas podemos sugerir aqui. E a diferença que podemos registar não aparece apenas quando o texto de Eça é confrontado com o modelo canónico da prosa de Chateaubriand.

    Mesmo quando comparado com autores geracionalmente mais próximos, como Nerval ou Flaubert, a mesma marca de diferença mantém-se, cabendo a Eça a ostentação de uma estética a que podemos chamar, provisoriamente, da elipse descritiva. Nerval, por exemplo, manifesta o prazer da descoberta dos espaços urbanos, das ruas e dos bazares, na sua chegada ao Cairo, todo o presente do Egipto com que se depara, aparece sob um registo de entusiasmo, podendo encontrar-se no seu texto imagens que poderiam ser vistas como inspiradoras de algumas que Eça usa nas suas notas de viagem publicadas postumamente com o título, O Egipto. Mas nada, ou quase nada dessa vontade descritiva aparece.

    A primeira imagem que é dada de Alexandria, talvez a mais longa descrição de uma cidade que Eça conheceu muito bem e à qual se refere longamente noutros textos, é bem exemplo da estética da representação depreciativa ou da elipse descritiva que Eça usa, numa espécie de formulação da estética parnasiana às avessas:

    “No cais faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da Alfândega. Mais além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o céu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um lânguido palácio dormia à beira da água; e ao longe perdiam-se os areais da antiga Líbia, esbatidos numa poeirada quente, livre, da cor de um leão” (p. 69).            

    Será possível maior esquecimento do presente, do percebido aqui e agora, em nome da evocação do passado, do longe e do esbatido, de uma Líbia distante no tempo e no espaço? E como difere uma tal visão disfórica do presente da vigília, daquela que caracteriza os momentos “vividos” do sonho! Não teríamos melhor maneira de terminar a exposição da nossa perspectiva de leitura do que a que nos oferece um dos olhares de Raposo, iluminado pela dinâmica do sonho ao apresentar uma paisagem pertencente a um passado distante.

    assorted-title of books piled in the shelves

    O contraponto é feito pela própria personagem, no sonho, como já acima referimos: “Oh que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes” (p.127-128). Com esta operação verbal, é o presente da viagem que se torna passado, sendo o passado evocado de um modo quase triunfal de omnipresença:

    “Agora tudo era verde, regado, murmuroso e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida , com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém: as folhas do ramos de Abril desabrochavam num azul moço, tenro, cheio de esperanças com elas. E a cada instante se me iam os olhos nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres e mais esplêndidos que o rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!” (p.128).

      Mesmo atendendo às suspeitas que o texto explicita de que tudo corresponde a uma “Escritura”, fica ainda a sensação de que é no processo onírico que a presença do mundo se oferece como plenitude aos sentidos, sobrepondo-se essa fruição ao desencanto que era encontrar um presente das “coisas” em tudo conforme aos modelos banalizadores dos relatos de viagem.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia activa

    Chateaubriand,  François-René  de,  1968,   Itinéraire  de  Paris  à  Jerusalem, GF  /Flammarion, Paris

    Queirós, Eça, 1992, O Mandarim, IN/CM, Lisboa (edição crítica de Beatriz Berrini com texto da edição de 1889 e do folhetim do Diário de Portugal,)

    Queirós, Eça, s/d, A Relíquia, Livros do Brasil, Lisboa (texto fixado e anotado por Helena Cidade Moura de acordo com a edição de 1887)

    Bibliografia passiva

    Araújo, Luís Manuel de Araújo, 1987, Eça de Queirós e o Egipto Faraónico, Comunicação, Lisboa

    Braudel, Fernand, 1989, Gramática das Civilizações, Teorema, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa

    Fouilloux, Daniel e outros, 1995, Dictionnaire Culturel de la Bible, Marabout, Paris

    Martins, António Coimbra, 1967, Ensaios Queirosianos, Europa-América, Lisboa

    Matos, A. Campos, 1993, Dicionário de Eça de Queirós, Caminho, Lisboa

    Moura, Jean-Marc, 1992, Images du tiers monde dans le roman français contemporain, PUF, Paris

    Moura, Jean-Marc, 1992a, Lire l’exotisme, Dunod, Paris

    Reis, Carlos, 1999, Estudos Queirosianos, Presença, Lisboa

    Segalen, Victor, 1986, Essai sur l’exotisme, Livre de Poche/Fata Morgana, Paris

    Said, Edward W., 1995, Orientalism, Penguin, London

    Thiner, G. e Agnés Lempereur, 1984, Dicionário Geral das Ciências Humanas, Edições 70, Lisboa

    Todorov, Tzvetan, 1989, Nous et les autres, Seuil, Paris

    Todorov, Tzvetan, 1990, A Conquista da América, Litoral, Lisboa


    [i] Como sumária apresentação editorial transcrevemos a que consta na entrada “(O) Egipto na obra de Eça de Queirós” da autoria de Luís Manuel de Araújo, publicada no Dicionário de Eça de Queirós, organizado por Campos Matos: “Em 1926 saía finalmente a público, editado pela Livraria Chardron de Lello & Irmão, do Porto, o volume O Egipto, Notas de Viagem, obra póstuma cuja publicação se fica a dever ao empenho e dedicação dos filhos […]” (1993: 363).

    [ii] “Um discours contraint”, in Poétique, nº16, Seuil, Paris.

    [iii] Como resumo do problema aqui colocado, citamos, do texto referido de Barthes: “O artesanato do estilo produziu uma sub-escrita derivada de Flaubert, mas adaptada aos objectivos da escola naturalista […] A escrita neutra é um facto tardio, só será inventada muito depois do realismo, por autores como Camus, menos sob o efeito de uma estética do refúgio do que em resultado da busca de uma escrita que fosse, enfim, inocente” (1986: 59).

    [iv] Cf. Greimas e Courtés, Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo, s/d, p. 410 (entrada: Semiótica)

    [v] Para um aprofundamento desta questão, segundo pontos de vista próximos e complementares dos que aqui apresentamos, é muito útil o texto introdutório de Maria Alzira Seixo ao seu livro Poéticas da Viagem na Literatura (1998: 11-38).

    [vi] Essas designações processam-se segundo uma nomenclatura que, ao especificá-los enquanto seres do lugar visitado os apresenta como autóctones, nativos, indígenas ou aborígenes – sendo esse indicativo da origem percebido como depreciativo. Não é inconsequente esse modelo classificatório, pois vai participando na elaboração de um imaginário que é o léxico privilegiado da ideologia da expansão, do império e do domínio global. Assim, e sumariamente, o espaço global pertence-“nos”, temos uma pátria de onde tiramos “valores universais”, mas “somos do mundo inteiro” – enunciado que pode perverter-se, num discurso que sirva de apoio às razões de domínio global, em “o mundo inteiro é nosso” expressão que não pode, por si, ser submetida à luz da razão, evidentemente – e os “aborígenes” são da Austrália, os “indígenas” são de África, os “nativos” são da Nova Guiné e das ilhas do Pacífico, podendo reservar-se um dos termos, autóctone,  para uma utilização mais neutra, em que caibam indianos, índios, malaios … e surgindo sempre hesitações sobre o modo como designar chineses e japoneses segundo um tal paradigma de localizantes.          

    [vii] Tomamos como prática orientalista, parodiada, a que é utilizada por Eça ao apresentar o seu companheiro de viagem como “o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bona e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas, pois ele representa, no espaço alemão, a tradição  da“actividade académica empenhada no estudo da Bíblia” que de acordo com Said “teve particular importância na emergência do moderno Orientalismo” (Said, 1995: 18).

    [viii] Desenvolvemos esta matéria sobre o romance em causa, em Figuras do Tempo e do Espaço (Jorge, 2001: 53-70)

    [ix] Referimo-nos, evidentemente, aos códigos básicos de escola, de filiação, de relação literária segundo os quais tem sentido ler Eça, num primeiro momento, os quais não se aplicam do mesmo modo a Verne que, embora se possa considerar integrado nos mesmos códigos, desenvolve uma produção que, editorialmente, se apresenta como a de narrativas de “viagens extraordinárias”. Com este reparo visamos apenas um delineamento dos processos segundo uma perspectiva comparatista, sem pretendermos, de modo algum, apresentar Eça como um autor datado, rigidamente arrumado numa compreensão histórico-literária conformista, em que surgisse, segundo o dizer de Barthes, como  autor “legível”.

  • Literaturas africanas, colonialismo e pós-colonialismo

    Literaturas africanas, colonialismo e pós-colonialismo


    Quando, no dealbar da constituição das novas pátrias africanas, se procurava estudar as literaturas em língua portuguesa dos países emergentes do processo de descolonização, a tendência geral dos investigadores e especialistas, de algum modo comprometidos com os ideais independentistas (desde os inspirados pela democracia liberal até aos de raiz marxista), era a de considerar urgente a delimitação das literaturas nacionais dos novos territórios independentes. Procurava-se fundamentar, de modo forte, com claros delineamentos, o conjunto dos traços que fariam específicas e diferenciadas as novas literaturas emergentes.

    Visando esse fim, era comum enfatizar o que constituiria a base da diferença entre as produções poéticas ou ficcionais  das literaturas africanas (em língua portuguesa – mas, também, generalizando, em língua francesa, ou inglesa; em língua de uma potência colonizadora, enfim) e as equivalentes das metrópoles (pela época histórico-literária, pelos modelos poético-estilísticos, pelos modelos retóricos e/ou pragmáticos dominantes, como formações discursivas[i], na época) de que essas se iam afastando, sobretudo após o corte político e administrativo.

    assorted-title of books piled in the shelves

    Ora, do nosso ponto de vista, embora aquela seja uma boa base para iniciar o entendimento das questões que são preliminares quando avançamos para o estudo das literaturas dos países que até recentemente estiveram sob o jugo colonial, parece-nos urgente reformular, pelo menos dentro de uma óptica comparatista, alguns dos princípios então estabelecidos.

    Entendemos, por essa reformulação, não tanto a anulação dos conceitos, o seu esquecimento, ou mesmo a substituição de antigos por novos, mas o reordená-los segundo pertinências e regimes de dominâncias diferentes. Tal operação impõe-se porque, tal como os estudiosos de há uma década os agrupavam, quase se torna impossível o reconhecimento ou mesmo o estabelecimento conceptual dos termos da relação cultural que, inevitavelmente, instituem laços historicamente evidentes.

    Antes de passarmos à abordagem breve da interdiscursividade, que procuraremos demonstrar através de um diálogo com as propostas de alguns estudiosos (sobretudo críticos e estudiosos do campo científico anglo-saxónico) que se posicionam na área dos estudos pós-coloniais, gostaríamos de comentar algumas concepções, vingando ainda como orientações positivas na investigação e teorização genológica e histórico-literária, relativamente a obras pertencentes às literaturas africanas em língua portuguesa. Aproximamo-nos, deste modo, de uma postulação como a que formula Jean-Marc Moura quando afirma no seu “livro” (que se intitula, exactamente, Littératures francophones et théorie postcoloniale) que o encontro de ambos os pontos de vista “poderia contribuir para renovar um pouco o estudo das letras de expressão francesa”, quando pretende mostrar como as noções de francofonia literária e pós-colonialismo “se esclarecem mutuamente” (1999: 1).

    landscape photography of brown mountain

    Adiando para outro momento a explicitação da nossa própria posição face à “lusofonia” (deslocando-a para  “um nosso texto a vir”, portanto) ou aos estudos que se desenvolvem sobre literaturas das ex-colónias recorrendo à noção de “literatura lusófona”, preferimos assumir que os traços gerais dessas posições teóricas estão integrados na área disciplinar a que se tem chamado “literaturas africanas de expressão portuguesa” e que dentro desta (embora muitas vezes para rebater o que de colonialista em tais estudos pode haver) se têm apresentado os problemas  fundamentais que desenvolve a perspectiva “lusofonista”.

    Por esse motivo, parece-nos que a tarefa mais importante neste ponto da nossa argumentação é conhecer as posições dos autores que se nos afiguram como representantes mais significativos da área de estudos das literaturas africanas, quer como críticos quer como docentes académicos que praticaram as delimitações julgadas necessárias para o estudo dessas literaturas tendo em vista a constituição das histórias de cada uma delas. Para o efeito, baseamo-nos sobretudo nalgumas das postulações explícitas de Manuel Ferreira – atendendo, antes de mais, à sua posição de fundador coerente e eruditamente qualificado dos estudos sobre “literaturas africanas de expressão portuguesa [ii]”.

    Ora, segundo este autor, o momento fundador das literaturas africanas não passa por uma rejeição linguística, mas sim pelo processo poético representativo segundo o qual “o escritor pensa a sua terra em termos de pátria, nação, rejeita o Outro – o colonizador –, e está determinado a uma prática literária integrada na nova situação, toda ela voltada, de vez, para a conquista da libertação nacional” (Ferreira, 1989: 32). Pensada deste modo, a demarcação literária nacional é profundamente político-cultural e não pode ser compreendida fora de um quadro ideológico claramente anticolonialista.

    woman in white shirt and orange skirt walking on gray concrete pathway during daytime

    Por assim dizer, essas literaturas nascem, de acordo com o seu ponto de vista, quando podem ser objectos produzidos e historicamente seriáveis, dentro de fronteiras relativamente claras que as tornam geográfica e politicamente independentes.   Nessa dimensão, a proposta de Manuel Ferreira articula-se, antecipando-as, com algumas das propostas que os investigadores a trabalhar na área do pós-colonialismo têm defendido, como adiante veremos.

    Pelo modo como desenvolve as condições que lhe parecem necessárias para a afirmação de uma literatura nacional, liberta da metrópole colonial, convém apresentar o texto de Manuel Ferreira que imediatamente se segue ao que acabamos de citar, no qual ele procura caracterizar o “escritor” em geral de qualquer país que se torne independente dos valores culturais a que esteve submetido:

    Assume-se como homem inteiramente livre, repensa as suas raízes culturais, faz o reencontro consigo próprio e integra-se no destino colectivo da sua gente. Libertado interiormente, na sua qualidade de cidadão, como dissemos, mas enquanto escritor são ainda alguns e significativos os aspectos que impedem a destruição total da sua dependência e, consequentemente, não permitem a posse da sua inteira individualidade. Pelo menos em relação aos que ficaram na (…) situação de semiclandestinidade. A sua voz está condicionada por diversos liames, que lhe limitam o gesto e a expressão literária. É certo que ele, inclusive, busca nos valores populares e até nas próprias línguas maternas os elementos que há-de incorporar nos seus textos, o que contribui em grande parte para a sua libertação, mas ainda a não alcançou totalmente. Essa só virá a consegui-la com a independência nacional e a destruição completa do sistema colonial” (1989:32-33).

    pen on white lined paper selective focus photography

    Compreende-se, de imediato, que, segundo tal ponto de vista, na base de uma literatura nacional em países constituindo-se a partir do estado de dependência colonial, é necessário estruturar-se um ethos do “homem novo”. O que parece ficar elidido em tal proposta é o quadro concreto do estatuto desse escritor, bem como a entidade texto completamente construída fora do colonialismo. Nessa óptica, o que se delineia é mais um programa carregado de projecções utópicas (o dever ser de um escritor a vir que, por estar em construção, não se pode descrever como aquilo que é), do que uma entidade abstraída de um conjunto de práticas efectivamente verificadas.

    Decorre deste ponto de vista, que nem sempre foi fácil de construir para os primeiros estudiosos de literaturas nacionais desenvolvidas em espaços recém-descolonizados, a necessidade de estabelecer os princípios que deveriam permitir separar os escritores reconhecíveis como pertencendo às novas nações daqueles que não o são.

    É ainda Manuel Ferreira quem mais ousada e cuidadosamente esquematiza o critério para tal distinção que ele próprio designa  “destrinça”, considerando que ela tem de ser “implacável (…) para o entendimento da questão (…) que se coloca ao estudioso das literaturas africanas, sobretudo após a independência dos países africanos [que] é a de descortinar quem vai ter o direito à condição de escritor africano” (1989:216 – linhas 7 a 23).

    brown and black desk globe

    Mantendo, quanto a este ponto, a posição de seu discípulo (entendendo nisso a continuidade e não a mera repetição), Pires Laranjeira estabelece como dicotomia de base a literatura colonial e a negritude (Laranjeira, 1995: 26-29). É atendendo a esta divisão que ele estabelece, desenvolvendo o estudo de Manuel Ferreira acima citado, sete grandes períodos para as literaturas nacionais, sendo o ponto discreto central, em torno do qual constitui “um antes e um depois”, aquilo que ele define como negritude.

    No centro da sua conceptualização, que usamos pela sua simplicidade operatória e por nos parecer sumariar de modo claro as teses fundamentais que vão de Césaire a Fanon, está a ideia de que a negritude “nega a dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial”, da cultura europeia, sem que, por essa negação, se ignorasse ou diminuísse “o valor das culturas europeias ”(Laranjeira, 1995:29). 

    Sugerem estes estudiosos que a existência de tais literaturas se constitui em plena igualdade quando as obras se afirmam independentes, libertas dos laços coloniais, ostentadoras dos símbolos e imaginários que assentam em dois grandes campos ideológico-culturais:   na tradição dos povos ancestralmente naturais dos territórios que assumem como pátrias de origem; na adesão aos valores explícitos e representações emblemáticas da luta anticolonial.

    Ora, mesmo admitindo que  tais obras representam e “encenam”, nos sentidos que constróem textualmente, a evidência da sua nacionalidade e que, portanto, reconhecê-las como independentes (angolanas, moçambicanas…) não carece de uma operação pragmática em que o leitor e a sua interpretação as entende desse modo por contextualização e integração histórica do texto, o que se passa é que essa mesma encenação da nacionalidade dialoga com os discursos históricos que são produzidos a partir de uma matriz, funcionando como enunciado de facto na globalidade planetária, que afirma sempre a presença do colonialismo: quer como realidade presente, actuando política, económica e ideologicamente; quer como sombra de um sistema que se evidencia por sequelas e estigmas.

    turned on desk lamp beside pile of books

    Como exemplo de que a observação dos factos literários mais actuais revela essas mesmas sequelas, resumimos o quadro (ele próprio brevíssimo) que Pires Laranjeira nos dá da produção literária angolana entre 1981 e 1993, lapso de tempo que considera 7º (e último, à data) período da literatura angolana. Entendendo esse período por o da “Renovação”, descreve-o como sendo o da criação da Brigada Jovem de Literatura, instituição “dependente sempre do apoio estatal” que “partiu em busca de certa autonomia decisória e estética”, mas que “se revelou herdeira do realismo social” (1995: 42).

    Vê-se bem que todo o conjunto de movimento e deliberação, anunciados na decisão do corte, acaba por assumir, como temática central, a própria conjuntura sócio-político-cultural do estado política e administrativamente “pós-colonial”.

    As circunstâncias assim evidenciadas levam-nos a pensar que, para formularmos com justeza uma área de estudos que desenvolva, a partir dos centros de produção intelectual e académicos europeus (as instituições do saber, enfim), o conhecimento das literaturas nos países outrora colonizados, temos de operar, na constituição dos nossos discursos, com os instrumentos conceptuais que inscrevam inequivocamente a presença do colonialismo (os seus discursos, os seus aparelhos ideológicos) nas práticas de produção dos textos que dela resultam e na retórica (ou na pragmática) que orienta a leitura ou recepção desses mesmo textos.

    Assumimos, deste modo, com Ania Loomba que o “«discurso colonial» [nos estudos  pós-coloniais, como se depreende do resto da sua argumentação], não é apenas um novo termo fantasioso a aplicar ao colonialismo; ele indica um novo modo de pensar o processo cultural, intelectual, económico e político, modo esse em que tais processos são perspectivados segundo o seu laborar conjunto na formação, perpetuação e desmantelamento do colonialismo.” (1998: 54).

    black statue of man holding yellow umbrella

    Resulta, desta tomada de posição no plano teórico, que se manifesta um conjunto de conceitos, de noções, de instrumentos operatórios de análise a serem reavaliados, de modo a tornarem-se dominantes, nas abordagens de pendor anticolonialistas, ou a serem revelados, no caso de discursos de perpetuação da ideologia colonialista tornados objectos de tais análises. Desse modo, e ainda segundo Loomba, o pós-colonialismo não se caracteriza pelo que vem “depois do colonialismo”, se entendermos pelo prefixo “pós” a dimensão cronológica segundo a qual o que devemos ter em conta, predominante ou exclusivamente, é o que se segue ao pretérito, totalmente encerrado.

    Devemos, sim, entender esse depois como uma temporalidade “mas, tornando o termo mais flexível, assumindo-o também como a contestação da dominação colonial e as heranças do colonialismo” (1998: 12). Pensado desse modo, o pós designa uma causalidade que, como no-lo ensinaria a teoria estrutural ao estudar a armadura da fabulação, se demarca da estrita sucessividade temporal. Afirma-se, assim, a causa como o processo complexo, desenrolado no plano cronológico, mas com fortes incidências quer no que o precede, quer no que lhe é coevo, quer ainda no que vem depois. “Pós”, usado como conceito operatório forte, permite pensar todo o campo literário, bem como o campo cultural que o envolve, no quadro amplo de um processo histórico complexo, onde o passado não é, forçosamente, pretérito, encerrado e causa permanente, mas pode, também, ser construção do que se lhe sucede.  

    Não pretendemos afirmar que assim é em relação a todos os conceitos que se formem com a associação do prefixo, mas, quando aplicado a um conceito periodológico de grande amplitude espacial e/ou temporal, como é o caso de colonialismo, não se nos afigura que as coisas se passem de outro modo. Quanto a esta extensão temporal e espacial, devemos ainda acrescentar que consideramos ser evidente o facto de muitos fenómenos que podem ser encarados numa perspectiva diferente, serem pensáveis numa óptica de estudos pós-coloniais como integrados numa conexão que lhes dá matizes peculiares.

    white and brown concrete house

    O caso mais interessante, que nos parece de perspectivar aqui, é o que diz respeito à actual conjuntura que une/desune as literaturas dos novos países africanos entre si e relaciona, na mesma bipolaridade (união/independência) o conjunto destes com a “ex-metrópole”. O aspecto perfeitamente óbvio dessa relação é o que liga temática e formalmente escritores de origem africana ou portuguesa residindo em África, mas em países diferentes, entre si, ou qualquer deles a escritores que são originários de África (ou que nela “nasceram” literariamente) mas não vivem lá e optaram por ser portugueses.

    Não só encontramos afinidades entre eles, mas também entre eles e escritores de países aparentemente sem sequelas coloniais, ou desligados de um processo colonial recente. Também as encontramos entre autores africanos e escritores que apenas estiveram em África de passagem, e entre qualquer deles e escritores de países com outra língua oficial. Mia Couto, por exemplo, está ligado formalmente a escritores como Guimarães Rosa, brasileiro e Amos Tutuola, nigeriano.

    Encontramos afinidades entre os seus textos e os de Luandino Vieira. Percebemos que, nalguns aspectos pontuais, Lobo Antunes se aproxima de Luandino. A lista poderia continuar, se o espaço e o tempo para uma análise mais aturada fosse possível. Fiquemos por aqui, quanto a este ponto de contactos, para levantarmos outro tipo de aproximações: o que une, quanto à temática das vivências em tempo de guerra, escritores portugueses e escritores das ex-colónias.

    Se atendermos à tónica que Loomba, a autora que acima citámos, coloca no facto de a abordagem pós-colonial “permitir incorporar a história da resistência anticolonial nas resistências ao imperialismo e à cultura dominante Ocidental” (1997: 12), percebemos que um vasto campo de investigações, sobre as representações literárias da guerra colonial travada entre o salazarismo e os movimentos de libertação, ganharia muito em ser perspectivado numa posição teórica que acentuasse a dimensão da relação. Poderiam revelar-se com mais segurança e proveito, sem com isso se estar a incorrer numa inclusão abusiva ou tendencialmente neocolonialista, as relações entre os escritores modernos dos novos países africanos e os seus homólogos europeus.

    shallow focus photography of stack of books

    Do nosso ponto de vista só se ganharia em pensar o que de profundamente original há na negritude, por exemplo, associada ao surrealismo ou mesmo a outras vertentes das vanguardas europeias, ou a certas posições dos escritores independentistas africanos que, durante o regime salazarista, se aproximaram do neo-realismo português. É certo que Manuel Ferreira, por exemplo, apontou essas “aproximações”; mas fê-lo, quase sempre, para demonstrar quanto a necessidade da separação era importante.

    Na sua peugada, Pires Laranjeira propõe o mesmo processo de valorização dos nacionalismos, mesmo culturais, proclamados pela valorização do homem negro na negritude, acabando por minimizar o lado universal e de relação intensa que se desenhava na atitude vanguardista dessa mesma negritude, ao partilhar valores temático-formais com o surrealismo e com várias correntes de modernismo ou das vanguardas históricas.

    Neste ponto, parece-nos ser possível argumentar plenamente a favor de uma óptica que permita ler o conjunto dos autores “militantes”, segundo um aparato de noções e conceitos (instrumentos de observação e discernimento, enfim) capazes de abordarem os elementos semelhantes, comparáveis entre si, sem a deixarmos arrastar-se para uma posição em que umas das partes seja política e culturalmente dominante entre os elementos do conjunto em confronto.

    woman looking at the ground while smiling

    A manutenção do estado conflitual dos elementos comparáveis estaria sempre assegurada pela própria evocação do estado litigioso das situações e dos discursos que as transmitem, pois esse mesmo estado é designado, como tópico supremo, pela convocação de tudo o que decorre do termo colonialismo (a relação entre dominadores e dominados), e pelo reconhecimento de uma situação que se perpetua, em repetições, sequelas e estigmas, assegurado pelo termo “pós”.

    Resumindo com anuência a tese de Jorge de Alva sobre o sentido inovador que os estudos coloniais podem ter, Loomba sublinha a afirmação desse autor, que sumaria a compreensão da atitude teórica que aqui avaliamos, ao citá-lo: “a pós-colonialidade deve ser afastada do estado de dependência de um antecedente que seria a condição colonial, devendo o termo ser colocado no suporte pós-estruturalista que evidencia a sua emergência”.

    Tal perspectiva leva-nos para leituras que têm em conta os jogos de “ desvio, transgressão, paródia e desconstrução dos códigos europeus tal como eles têm sido afirmados na cultura que está em causa” (Moura, 1999: 5), e não apenas  evidências constatáveis em códigos civis, ou éticas pautadas por um patriotismo espectacular. Parece-nos que a razão mais ampla e profunda pela qual os estudos pós-coloniais e as concepções teóricas, que os consolidam na abordagem da literatura, triunfaram nos meios académicos anglo-saxónicos foi a de evitar “tratar [as literaturas dos países ex-colonizados] como simples extensões que não careceriam de serem situadas para serem compreendidas” (Moura, 1999: 7).

    car passing by in between trees

    Contudo, um certo eurocentrismo condescendente pode esconder-se por detrás de tal atitude. Seguindo ainda Moura, poderíamos dizer que a concepção desenvolvida pelos estudos pós-coloniais desliza facilmente para uma “globalização” em perspectiva europeia, “incapaz de compreender a diversidade das práticas de escrita e das situações culturais” (1999: 7). Admitimos tal possibilidade, mas essa atitude não difere muito da que se revela sempre que pretendemos compreender um “Outro” qualquer, mesmo que nessa posição de desconhecimento da alteridade em causa não esteja pressuposta uma atitude de dominância.

    E, do nosso ponto de vista, a perspectiva teórica do pós-colonialismo é mais correcta do que qualquer outra que não convoque explicitamente a dimensão globalizante do colonialismo exactamente por abrir o seu campo teórico à evidência incontornável do colonialismo como acto, quer em curso quer perpetuando-se em sequelas. É essa possibilidade que poderá levar a criar uma postura relativamente normal e “saudável” face à alteridade que se revela nos textos oriundos dos países ex-colonizados, ou a outras emergências culturais dentro do quadro afectado pelas dominações mais ou menos recentes ou pelas dependências relativamente a uma potência imperial.

    Reconhecemos, ao assumirmos tal posição, que lidamos com um processo marcado por violências, violações e usurpações. Mas reconhecemos também que ele se inscreve num processo global que assim tem de ser encarado e pensado para, a partir dessa explicitação, podermos reordenar os factos e as sequelas graves e desestabilizadoras a que o colonialismo deu origem.

    brown pencil on white book page

    A atitude contrária, que seria, quanto a nós, a de um respeito por culturas inassimiláveis, levaria, quanto a nós, a um olhar de admiração pelo “exótico”, que teríamos de sacralizar na sua pureza. Para já não falar no processo de apagamento do outro, pela inclusão numa comunidade linguística de que ele seria o elemento subsidiário, sujeito às avaliações em que surgiria como menor ou imperfeito.

    Ora, quando sabemos que a realidade institucional da cultura dos países que foram outrora colónias é a de uma dependência de “terceiro-mundo” face a um “primeiro”, não seria hipocrisia respeitar a pureza dos conteúdos, quando sabemos que os suportes materiais, e muitas das práticas socioculturais dependem dos países ex-colonizadores ou de franca dominância imperial?

    Do nosso ponto de vista, a correcta continuação dos estudos que em Portugal foram iniciados por Manuel Ferreira implica o reassumi-los numa óptica pós-colonial. Não para tirar o sentido aos estudos das várias nacionalidades literárias que se manifestam, e que continuarão, independentemente das nossas considerações e vontades, a delinear-se e a circunscrever-se segundo princípios que cada nacionalismo cultural determinar internamente – sobretudo internamente. Mas não será operação de má-fé, hoje, agrupar cinco países africanos como constituindo uma literatura, ou um conjunto de literaturas, visto não podermos, hoje em dia, com toda a pertinência, ostentar os critérios militantes que norteavam os estudiosos nos primeiros momentos da descolonização? 

    green-leafed plant

    Na ética subjacente a um conhecimento das literaturas africanas, julgamos ser mais justo, permitir maior discernimento, assumir a má-consciência teórica de nos inscrevermos num campo afectado pela expansão imperial do Ocidente – que se demarca, desde a primeira ocupação “legitimada” por códigos “internacionais” (mas nunca planetários), como pós-colonial. Ela permite-nos perspectivar fenómenos como o da edição, o da procura do público, o da definição de um “leitor” virtual, todos eles revelando uma franca e persistente dependência dos “autores africanos de língua (ou expressão) portuguesa” relativamente à ex-metrópole, sem que com isso tenhamos de construir “silêncios”, “não-ditos”, “eufemismos” ou acanhados circunlóquios.

    Uma das dimensões que fica claramente estabelecida na abordagem às literaturas das ex-colónias segundo a posição teórica do pós-colonialismo é, para o bem ou para o mal, o sistema das relações, das dependências, dos confrontos e da busca da igualdade assente no longo processo das interacções culturais.       

    A construção de uma perspectiva baseada na evidenciação dos processos coloniais permite-nos tornar centrais aspectos que, de outro modo, seriam periféricos ou mesmo esquecidos, para não dizer silenciados. Sobretudo ela dá-nos a possibilidade de desenvolver o conhecimento dos processos de relação sobre problemáticas literárias que, de outro modo, em qualquer das histórias literárias que se constróem, se poderiam tornar adiáveis, matéria que, como já foi caso, seria objecto de uma disciplina de “estudos de literaturas marginais”.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    Também beneficiarão dessa perspectiva os grandes escritores mundialmente reconhecidos que, por serem oriundos desses territórios periféricos, poderão deixar de figurar como modelos. Com efeito, por estarem, paradoxalmente, desprovidos de relação de paridade integral (integradora e integrada) com a série literária onde de processa a legitimação do grande “cânone”, a do país colonizador, poderão ser desfigurados como entidades dependentes, visto pertencerem a uma série dependente por inerência, se os perspectivarmos fora do sistema pós-colonial, tal como o temos definido.

    Contudo, em vez de figuras inoperantes num cânone de “exóticos”, poderão ser pensados, numa perspectiva pós-colonial, no lugar de onde herdam valores e de onde activamente se inserem como mestres. Obter essa justeza de valoração já é razão suficiente para ter em conta, nem que seja a título de hipótese provisória, a perspectiva pós-colonial nos estudos literários.  

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Adam, Jean-Michel, 1990, Éléments de linguistique textuelle, Madraga, Liège

    Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas africanas de expressão portuguesa, U.Aberta, Lisboa

    Loomba, Ania, 1998, Colonialism/Postcolonialism, Routledge, London/New York

    Ferreira, Manuel, 1977, Literaturas africanas de expressão portuguesa, (1º vol.) ICP, Lisboa

    Ferreira, Manuel, 1989, O discurso no percurso africano, Plátano, Lisboa

    Moura, Jean-Marc, 1999, Littératures francophones et théorie postcoloniale, PUF, Paris

    Ricard, Alain, 1995, Littératures d´Afrique noire, CNRS/Karthala, Paris


    [i] Designamos deste modo o produto resultante daquilo que Foucault nomeou, inicialmente, ordem discursiva. Os objectos resultantes dessa ordem, que sobredetermina, através de instituições político-sociais de dimensão retórica –desde a escola à instituição política, sendo, nesta, evidente a pragmática da oratória deliberativa –, as produções discursivas de uma época os aspectos que, num texto, se ligam mais directamente à história, constituem a formação discursiva. Como nota Ania Loomba, num texto a que voltaremos para redimensionar a questão na perspectiva dos estudos coloniais/pós-coloniais, o conceito foucauldiano de discurso (e os seus correlatos “ordem discursiva” e “formação discursiva”) permite abordar o conceito de “«discurso colonial» […] como um novo modo de pensar, no qual os processos cultural, intelectual, económico ou político  são encarados como trabalhando em conjunto na formação, perpetuação e desmantelamento do colonialismo” (Loomba, 1998, 54). É evidente que, abordando a questão literária, a dimensão verbal do discurso se torna dominante, ou seja, o discurso é observado na sua dominante mais especificamente discursiva/textual, sendo o aparato institucional económico político o quadro que temos de considerar como “de fundo”. Entenda-se, desde já, que uma formação discursiva não delineia apenas o território da ideologia dominante, ou seja, a dos aparelhos que dominam politicamente um sistema – sobredeterminados por estes, pela sua “ordem”, emergem também, na formação, os contra-discursos, como se pode depreender das palavras da estudiosa acima citada. Para uma boa compreensão do conceito de formação discursiva são de considerar os desenvolvimentos que M. Pêcheux apresenta no seu artigo “Analise du discours, langue et idéologies” in Langage, n. 37, 1975. A análise do discurso nas suas várias formações com base nas instituições de dimensão cultural, de interacção social e ideológica é retomado, a partir dele, por Maingueneau referido por Jean-Michel Adam (1990: 20-21).

    [ii] Inclinamo-nos, hoje em dia, para o uso do termo “língua”, em vez de “expressão”. É preciso que se note, no entanto, que a opção de Manuel Ferreira (que, aliás, “fez escola”: o manual de Pires Laranjeira, editado pela Universidade Aberta, por exemplo, tem como título Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – exactamente o mesmo título do pequeno livro de Manuel Ferreira publicado na Biblioteca Breve – e é essa, também, a designação da cadeira que recentemente temos leccionado na Licenciatura em Português/Francês, na Universidade de Évora) se inspira no conceito hjelmesleviano de “expressão” como oposto a “conteúdo”. Evitava ele assim, com alguma razão, o uso do conceito de língua que, segundo algumas posições filológicas (não de todo desaparecidas, pois ainda se manifestam por detrás de alguns usos do termo lusofonia, por exemplo, que, por sua vez, busca fundamentos numa compreensão antropológica “lusotropicalista” das relações culturais asseguradas por uma espécie de “anima lusíada”, eventualmente “legítima” civilizadora, ou pelo menos aculturadora benéfica das possessões tropicais – ou atrás de expressões como a que frequentemente se atribui a Pessoa: “a minha pátria é a língua portuguesa”), seria representativa e até fundadora do “espírito” de um povo. Os conhecimentos mais actuais revelam-nos, no entanto, que a língua é um instrumento complexa e dialecticamente actuante que, se permite a fundação de uma visão do mundo, não fica ontologicamente ligada a ela – nem como produto de uma “alma” preexistente, nem como cimento imóvel de uma fundação de espiritualidade. A língua, como hoje a entendemos, não é portadora de essências imutáveis: permite criar espiritualidades diferenciadas sempre que o seu interagir o permite. Assim, a língua portuguesa, ao deslocar-se para outros espaços e outras vivências (africanas, por exemplo), e ao ser utilizada por pessoas que têm outras línguas de uso (maternas ou não), naturaliza-se. Se o nome da primeira pátria se mantém, a realidade das práticas torna a língua brasileira, ou angolana, ou passível de qualquer outra designação que a ligue ao espaço geopolítico onde atinge um determinado grau de representatividade cultural.