Etiqueta: Libertária

  • As cabeças rapadas: das raízes ao ódio

    As cabeças rapadas: das raízes ao ódio

    Título

    Nação Skinhead

    Autor

    GEORGE MARSHALL (tradução: Flávio Gonçalves)

    Editora

    Libertária (Novembro de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    A publicação de ‘Nação Skinhead’ (‘Skinhead Nation’, no original) em Portugal, pela editora independente Libertária, oferece uma oportunidade interessante para conhecer uma das subculturas mais controversas e polarizadoras da História Contemporânea. Escrita em 1994 por George Marshall – que, anos antes editara ‘Spirit of 69: a skinhead bible’, publicado em Portugal também pela Libertária no ano passado –, este livro é sobretudo, e em simultâneo, uma análise cultural e uma investigação sociopolítica, explorando as origens, as dinâmicas e a apropriação do movimento skinhead, frequentemente associado à extrema-direita e à violência. Ao mergulhar nas camadas históricas e sociais desta subcultura – que surge traduzido como “o cena”, Marshall desmistifica muitas percepções simplistas, proporcionando um retrato multifacetado que ainda agora permanece relevante.

    Na verdade, apesar de o termo skinhead remeter agora, de imediato, para a violência e o racismo, a origem desta subcultura remonta ao final da década de 1960, no Reino Unido, quando jovens da classe trabalhadora adoptaram um estilo visual distintivo – botas Doc Martens, suspensórios e cabeças rapadas – como símbolo de identidade e resistência. A influência cultural era, originalmente, multicultural, com raízes no ska e no reggae jamaicano trazidos pelos imigrantes caribenhos, bem como no estilo mod britânico. Contudo, em particular nas décadas de 1970 e 1980, este movimento foi apropriado por grupos de extrema-direita e nacionalistas brancos, transformando-se em sinónimo de intolerância e violência.

    Neste seu livro, George Marshall traça esta evolução de forma meticulosa, argumentando que a associação dos skinheads à extrema-direita não foi inevitável nem natural, mas sim resultado de um contexto social e político específico, marcado por crises económicas, desemprego e descontentamento generalizado. A falta de oportunidades e o colapso das comunidades da classe trabalhadora criaram o terreno fértil serem atraídos por organizações nacionalistas e claramente racistas, como o Front Nacional e o British Movement. O ódio racial, segundo Marshall, foi uma ferramenta para canalizar a frustração da juventude proletária, transformando-a numa força política reaccionária.

    Um dos aspetos mais interessantes do ponto de vista sociológico desta obra é centra-se nas contradições internas deste movimento, que nunca foi homogéneo, sobretudo depois da sua linha principal derivar para o extremismo da direita. Enquanto grande parte dos skinheads abraçou ideais racistas e violentos, outros grupos, como os SHARP (‘Skinheads Against Racial Prejudice’), ainda hoje uma corrente existente em diversos países, lutavam para recuperar a subcultura das garras da extrema-direita.

    A questão da violência é outro tema central neste livro que pode ser considerado desculpabilizante. Marshall salienta não ser possível dissociar a brutalidade de alguns skinheads do seu contexto social, designadamente desemprego, alienação e exclusão, e critica a forma como os media, ao pormenorizarem os incidentes violentos, reforçaram estereótipos negativos, ignorando as complexidades sociológicas do fenómeno.

    Recorde-se que quando ‘Nação Skinhead’ foi publicado pela primeira vez, na década 90, levantou questões controversas que dividiam tanto a esquerda como a direita. Os críticos de esquerda acusaram Marshall de indulgência com um movimento que associavam exclusivamente ao racismo e ao autoritarismo, enquanto sectores mais conservadores viram esta obra como uma denúncia perigosa das suas estratégias de recrutamento e propaganda. Este clima de contestação, porém, destaca a relevância da obra como peça sociológica, exigindo assim aos leitores uma análise crítica e informada.

    No contexto português, a tradução de ‘Skinhead Nation’, neste ‘Nação Skinhead’ oferece um contributo valioso para a compreensão de como subculturas podem ser apropriadas por ideologias extremistas. Embora o movimento skinhead em Portugal, mesmo contabilizando lamentáveis crimes, nunca tenha tido a mesma expressão que no Reino Unido, os paralelos com outros fenómenos sociais e políticos são evidentes, nomeadamente no que diz respeito à instrumentalização do descontentamento popular por parte de forças populistas e radicais.

    Por isso mesmo, a importância desta obra de Marshall, mesmo num tema pouco aprazível, serve para que reflictamos sobre como crises económicas e sociais podem alimentar movimentos de ódio e divisão, sendo por isso mais do que uma obra sobre skinheads; antes investigação sobre a relação entre identidade, política e poder.

  • A genialidade que descambou na loucura

    A genialidade que descambou na loucura

    Título

    A sociedade industrial e o seu futuro

    Autor

    THEODORE KACZYNSKI (tradução: João Franco e Álvaro Fernandes)

    Editora

    Libertária (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Um prodígio da matemática, com um Q.I. de 167, Theodore Kaczynski – mais conhecido como Unabomber –, parecia enquadrar-se na definição de génio, com um futuro promissor, até à primeira metade da sua vida. Contudo, o “génio” transformou-se em “louco” e num terrorista condenado. Depois de obter um doutoramento em Matemática e de, com apenas 25 anos, tornar-se professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Kaczynski decidiu demitir-se no final dos anos de 1960 e mudou-se para uma cabana no Estado de Montana, adoptando um estilo de vida primitivo, sobrevivendo como agricultor, caçador e recolector.

    Foi também nesse período que, em nome dos seus ideais revolucionários e contra o progresso tecnológico, começou a enviar bombas por correio entre 1978 e 1995, que mataram três pessoas e feriram outras tantas – os alvos dos seus ataques eram sobretudo companhias aéreas, faculdades e empresas. Em 1996, prometeu pôr um fim aos seus atentados se o New York Times e Washington Post publicassem o seu manifesto, A sociedade industrial e o seu futuro – condição que os dois jornais norte-americanos aceitaram.  

    Após a publicação do texto pelos jornais, Kaczynski foi finalmente identificado pelas autoridades e detido, em Abril de 1996. Foi na prisão que passou os seus últimos dias e onde faleceu em Junho deste ano, com 81 anos. A sua história deu origem a filmes, documentários e séries, tendo o mais recente sido o filme Ted K, de 2021. 

    A sociedade industrial e o seu futuro é, fundamentalmente, um manifesto “anti-tecnologia”. Para Kaczynski, a Revolução Industrial levou a uma cisão entre os cidadãos e a Natureza, transformando o estilo da vida da população de um modo que atenta contra a sua essência. O autor argumenta que os males provocados pelo progresso tecnológico não superam os seus eventuais benefícios, e que, mesmo com todos os desafios que enfrentava, o homem primitivo estava melhor do que o homem moderno. 

    Na parte inicial do livro, Kacznyski teoriza que os seres humanos têm uma necessidade intrínseca de “empoderamento”, que é satisfeita através da conquista de objectivos por via do seu esforço. Contudo, defende, uma vez que na actual sociedade industrial e tecnológica, todas as pulsões mais primárias do Homem são supridas sem que ele tenha de empreender grandes esforços, o resultado é um sentimento de frustração e impotência.

    Como forma de colmatar o vazio e a ausência de sentido na vida pela impossibilidade de assegurar a sua subsistência pelas próprias mãos, o Homem dedica-se a “actividades de substituição” – que incluem todos os trabalhos nos sectores secundário e terciário, ascensão na hierarquia social, estatuto, ciência e tecnologia. Porém, para o autor, estes ofícios nunca preenchem verdadeiramente a necessidade de empoderamento da sociedade.

    Kaczynski considera que a única forma de erradicar os danos colaterais do progresso tecnológico é por meio de uma revolução. Nesse sentido, afirma que qualquer tentativa de reforma ou de “remendo” é inútil e não surtirá qualquer efeito; apenas um corte radical e a abolição da tecnologia poderá salvar o mundo da escravidão e de uma distopia de calibre similar à de Admirável Mundo Novo. A este respeito, é irredutível: a liberdade e tecnologia são irreconciliáveis (pág. 77).

    Curiosamente, o “esquerdismo” moderno é um dos principais alvos da sua crítica, atribuindo ao movimento uma série de características que considera perniciosas e até mesmo impeditivas da revolução que pretende levar a cabo. Por “esquerdista”, o autor entende, em traços gerais, aquele que simpatiza com as ideologias do “feminismo, dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas, dos animais e politicamente correcto” (pág. 138). 

    Kaczynski acusa estes esquerdistas de tendências totalitárias e colectivistas, e de um tom moralista, sentimentos de inferioridade, e uma vontade de poder reprimida e frustrada, que os impele ao seu activismo prepotente, hostil, e a queixumes fúteis e constantes.

    Sobre a modernidade, o autor também denuncia uma abundância de direitos “no papel”, mas que, na realidade, não são tão “importantes” para o cidadão comum quanto possam parecer. Um dos exemplos que dá é o da liberdade de imprensa:

    “(…) a liberdade de imprensa de pouco serve ao cidadão comum enquanto indivíduo. Os mass media estão na sua maioria sob controlo de grandes organizações, integradas no sistema. Quem tiver algum dinheiro pode mandar imprimir o que quiser, ou ainda distribuir conteúdos na Internet ou qualquer coisa que o valha, mas o que tiver a dizer será submerso pelo vasto volume de material publicado pelos mass media, não surtindo qualquer efeito prático. Abalar a sociedade com palavras é, por conseguinte, quase impossível para a maioria dos indivíduos e pequenos grupos.” (pág. 61) 

    “Excessos” à parte, nomeadamente o ímpeto revolucionário e a apologia da violência, Kaczynski avança ideias válidas, alicerçadas em argumentos sólidos, factuais e coerentes. A sua preocupação com a ameaça de uma tecnocracia em que uma ínfima minoria de burocratas “invisíveis” consideram as massas inúteis e descartáveis – e decidem, sem escrutínio, o seu destino –, utilizando-as apenas como peças bem oleadas de uma engrenagem por si montada não só é plausível, como parece cada vez mais real. 

    De facto, com a crescente concentração de poderes, possibilitada pela inovação tecnológica, torna-se difícil discordar de Kaczynski quando afirma que “a restrição da liberdade é inevitável na sociedade industrial” (pág. 69).

    Nenhum dos cenários que o autor vislumbra para o futuro da sociedade tecnologicamente evoluída é risonho, mas entre as suas previsões, estas farão o topo das mais negras: 

    “(…) uma vez que o trabalho humano já não será necessário, as massas serão supérfluas, um fardo sem utilidade para o sistema. Se a elite for impiedosa pode simplesmente decidir-se pelo seu extermínio. Caso tenham uma réstia de humanidade poderão usar de propaganda ou outras técnicas, biológicas ou psicológicas, para reduzir a taxa de natalidade até as massas se extinguirem, deixando o mundo para a elite”.

    Certo é que, atendendo aos acontecimentos dos últimos anos, o que Kaczynski, que morreu em Junho passado num prisão da Carolina do Norte, vaticinou não parece assim tão descabido. Por isso, a respeito deste revolucionário, à pergunta “louco ou génio à frente do seu tempo?”, a resposta terá de ser, infelizmente: um pouco dos dois!