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  • A divina gastronomia das beiras

    A divina gastronomia das beiras

    Título

    Receitas que contam histórias

    Autor

    AA. VV. (org. Associação das Aldeias Históricas de Portugal)

    Editora (Edição)

    LeYa (Novembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Ler este livro é um castigo, um tormento, ou antes, uma verdadeira Via Sacra, como quem visita todas as capelinhas do Calvário, carregando aos ombros a cruz da gula, em que cada capítulo se revela como um abismo de tentações. Mergulhar na leitura deste livro, e na cornucópia de receitas que nos dá a conhecer, é como entrar de mão dada num antro de perdição culinária. Aqui e ali, são várias as receitas que nos titilam o paladar, quase como um convite para que tomemos o caminho da cozinha e avancemos à descoberta destes sabores beirões.

    O conteúdo deste livro é ditado pela geografia das Aldeias Históricas de Portugal, encontrando-se o dito dividido em duas partes: a primeira intitulada “Receitas que Contas Histórias”, com textos da autoria de Olga Cavaleiro e Marta Gonçalves; e a segunda dedicada ao tema “O Vinho das Aldeias Históricas: História, Tradição e Formas de Consumo”, com texto assinado por Constança Vieira de Andrade, Virgílio Loureiro e Maria Pilar Reis.

    As Aldeias Históricas abrangem um vasto “território repartido pela clássica divisão Beira Alta, Beira Baixa, Beira Central”, que engloba 12 municípios e onde os rios que os atravessam servem como elementos referenciais, “como os vasos comunicantes, agregadores da uniformidade e diferenciadores da diversidade, de um território que encerra dentro de si várias Beiras para além das distinções habituais”: o rio Côa, que liga Trancoso, Castelo Mendo, Sortelha, Castelo Rodrigo, Almeida, Marialva; o rio Mondego e a sua importância para Linhares da Beira e Piódão; o rio Zêzere, unindo Castelo Novo e Belmonte; e por fim, o rio Ponsul, influenciando Idanha-a-Velha e Monsanto. Não só os rios caracterizam e dão corpo às práticas alimentares destes territórios como também o seu “coração telúrico” formado pela Serra da Estrela, da Gardunha, da Marofa, da Malcata e do Açor.

    Para cada aldeia, apresenta-se informação acerca “Da Paisagem”, da “Arqueologia Alimentar”, dos “Patrimónios de um Calendário Alimentar”, “A Matança”, “O Natal”, “O Entrudo, a Quaresma e a Páscoa”, com indicação de “As Receitas do Quotidiano e dos Trabalhos Agrícolas”, onde o “cruzamento da informação documental e dos testemunhos recolhidos junto da população” permitiu “descrever e definir a identidade gastronómica de cada aldeia histórica”, bem como fixar as “singularidades alimentares de um território de modo a criar instrumentos úteis que permitam diferenciar a sua oferta turística”.

    De acordo com as autoras, “mais do que buscar a origem das receitas, o princípio do sabor, importou trazer à luz a emoção de cada receita, procurar o conteúdo que a contextualiza. Sozinha, escrita numa folha branca, uma receita é quase vazia. Acompanhada por um sorriso, ou por um rosto de emoção, a receita conta histórias, acompanha-nos para o resto da vida.”

    No capítulo dedicado ao vinho, somos surpreendidos por um recorrido histórico sobre a implantação da vinha nestes territórios, desde os primórdios até aos dias de hoje, sendo que a “Denominação de Origem Beira Interior ainda não tem três décadas de existência”, com destaque para um rol muito interessante dedicado às principais castas da Beira Interior, revelando todo o seu potencial vitivinícola. Felizmente, ainda há muito para descobrir e inovar.

    Em boa hora se resgata do olvido e se preserva em letra redonda todo este património culinário que enobrece uma região, as suas gentes e a sua transmissão às gerações vindouras. Um trabalho exaustivo, meticuloso, mas ao mesmo tempo humano, de partilha e de cumplicidade, na relação estreita com as pessoas, verdadeiras arcas da memória culinária destes territórios.

    Um livro para ler lentamente, como quem segue confortável a bordo de uma canoa, rio abaixo, ao sabor da corrente, deliciando-se com as histórias que aqueles territórios contam. Um livro com muitos tesouros dentro e, acima de tudo, um legado para o futuro, para que a memória não se olvide e a identidade se reforce. Não esquecer é sempre um acto de resistência.

  • A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    Título

    A arte de driblar destinos

    Autor

    CELSO COSTA

    Editora (Edição)

    LeYa (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    O título deste romance de estreia de Celso Costa, aos 74 anos, reconhecido matemático brasileiro e agora também escritor, encaixaria perfeitamente numa auto-biografia. E, na verdade, não sendo um livro de memórias, esta é uma obra de autoficção, precisamente inspirada na suas história de vida.

    Com o seu A arte de driblar destinos, Celso Costa recebeu o Prémio LeYa de 2022, para originais anónimos, e foi assim uma verdadeira entrada “em grande” no universo das letras, ainda mais impressionante para quem dedicou a sua (longa) carreira profissional às ciências exactas.

    Com efeito, Celso Costa começou por estudar Engenharia e Medicina antes de eleger definitivamente a Matemática, em especial a Geometria Diferencial, sobre a qual compôs a sua tese de doutoramento. E aí o autor, pode dizer-se, não é um estranho a honras e distinções: teve uma “superfície mínima” baptizada mundialmente em sua homenagem, a “Superfície Costa”, depois de ter descoberto a solução de um problema matemático com 206 anos. Em 1998 foi condecorado com a ordem nacional do mérito científico na classe de Comendador, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil. Recentemente, retirado do papel de professor universitário, que assumia desde 1981, Celso Costa estabelece-se assim, e agora, como uma revelação na Literatura.

    É difícil destrinçar o “criador” do romance do menino no qual a narrativa se centra, já que os seus percursos são idênticos. O narrador e protagonista de A arte de driblar destinos passou os seus primeiros anos de vida numa propriedade localizada no interior do estado do Paraná, chamada “Ribeirão do Engano”. À medida que cresce, descobre a sua paixão e vocação para os números, e quando atinge a maioridade acaba por trocar o meio rural, onde sempre viveu, pelo ambiente cosmopolita da cidade de Curitiba, para prosseguir os estudos na universidade.

    Num contexto familiar e social de agudas limitações financeiras e escassos recursos e oportunidades, no Brasil profundo dos anos 1950 e 60, a história narrada evidencia a importância da educação como agente propulsor da liberdade, para se ir além do que alguma vez se imaginava ser possível, e de voar por alturas mais elevadas.

    A arte de driblar destinos lê-se, na verdade, quase sem darmos por isso. É um romance descontraído, bem-humorado, descomprometido. Através de um retrato vivo e vívido, a narrativa transporta-nos para um Brasil profundo, apaixonante e em bruto, que é sempre o cenário no desenrolar da história. Desperta, aliás, em nós, uma intensa vontade de adquirir um bilhete de avião só de ida (e talvz uma máquina do tempo, também) e conhecer aquela realidade com os nossos próprios olhos.

    À falta de bilhetes, fica-nos a leitura. A escrita de Celso Costa consegue essa proeza de nos fazer viajar, pela forma como descreve os vários episódios, a cada página, imbuídos de uma autenticidade e simplicidade que nos desarma. Sempre presentes estão os elos e os dramas familiares, as amarguras da vida, e os seus momentos mais inebriantes, aqueles que quase pedem que nos belisquemos para ter a certeza de que estamos acordados.

    Com 277 páginas, o romance divide-se em 44 capítulos, que nos contam as histórias e peripécias que o narrador vivencia durante o seu crescimento, entre os seus três anos até aos 19 anos. Com esta idade, começa um novo “capítulo” longe de casa, contrariando todas as probabilidades, ao agarrar a oportunidade de estudar, que lhe permite traçar um outro destino para si.

    A linguagem informal e coloquial torna o romance leve e genuíno, e as castiças e singulares figuras que surgem no decorrer da narrativa, como o coveiro Cipriano Sombra, o ‘Faquir sertanejo’ ou o “prefeito” Malaquias Buarque, parecem ter sido retiradas de um engenhoso e criativo enredo cinematográfico. Há, também, o pai do menino, Zé Branco, que, de génio impetuoso, não mede as consequências dos seus actos, e a mãe, Nena, protectora mas de pulso firme. O jovem casal encanta e intriga o leitor com a suas personalidades fortes. 

    O 44.º capítulo, intitulado “Desembarque do caipira”, é onde o percurso do leitor chega ao fim, mas onde se inicia a derradeira aventura do jovem “herói” da história, que finalmente conhece a capital do Paraná, nas circunstâncias em que estas linhas exprimem:

    “Vindo de longe, tropeando seus sonhos desde o Ribeirão do Engano, ali está, sondando rumos, o caipira que nunca viu um semáforo, nem um prédio com mais de dois andares, e desconhece o mar.

    O moço de tocos de barba despontando tem fome. Com a mochila aos ombros, arrastando a mala grande, anda alguns metros sem deixar a calçada de desembarque e entra no bar. O aroma é apetitoso, cheiro bom de café acabado de passar pelo coador de pano. Com olhos ávidos examina a pequena vitrine em cima do balcão e indaga ao atendente, num sotaque do interior:

    – O que é que o senhor tem aí, de sal, pra comer? 

    O rapaz atrás do balcão, entre estupefato e divertido, estreita os olhos, enquadra a cara do caipira e dispara:

    – Temos sal!

    É o primeiro tranco do novato na cidade grande. Sem alternativa e com medo de ser zoado de novo, opta pelo simples:

    – Quero um copo de café com leite, meio a meio, e um pão com manteiga na chapa.

    Ao pedido, o atendente coloca a cabeça no guichê e grita para a cozinha:

    – Saindo uma canoa na chapa e uma média!

    Uma média, uma canoa! Assim o novato conquista as primeiras palavras de um novo vocabulário.”