A Associação de Praças acusou hoje Gouveia e Melo de “prepotência” pela forma como conduziu, como Chefe do Estado-Maior da Armada, o caso do navio de patrulha NRP Mondego, aplicando sanções que foram consideradas ilegais e inconstitucionais. Num comunicado em reacção à recente sentença do Supremo Tribunal Administrativo (STA), que anulou as sanções, a Associação afirma que “ficou provado que o NRP Mondego não tinha as condições mínimas para navegar.
No comunicado com o título ‘Os 13 Bravos do NRP Mondego“, a Associação de Praças deixa palavras duras contra a cúpula da Marinha, destacando mesmo, em sublinhado, o nome completo do actual candidato a Presidente da República, “Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo”.
Gouveia e Melo viu o Supremo Tribunal Administrativo arrasar a sua decisão de sancionar os militares do NRP Mondego. / Foto: D.R.
“Temos o direito de ver nesta decisão [do STA] aquilo que sempre defendemos: não é pela prepotência, pelo desrespeito pelas regras nem pelo “quero, posso e mando”, que a disciplina se impõe”, refere a Associação no comunicado.
Adianta ainda que “aqueles 13 Homens, defenderam aquilo que tinham o direito de defender, ao contrário de quem se imiscuiu na sua posição e no seu poder, tentando a todo o custo passar para cima de outros a sua responsabilidade como chefe máximo da Marinha”.
E recorda que, já em 2023, a Associação de Praças tinha defendido “os 13 Bravos, a Marinha e Portugal que está acima de tudo e de todos. Sem exceção!”. E numa referência ao almirante agora na reserva que confirmou esta semana ser candidato à Presidência da República, o comunicado é duro ao apontar o dedo ao que, “com mais poder, apenas tentaram defender algo que nestes tempos já está totalmente ultrapassado: a prepotência e a obediência cega”, acrescentando que “obedecer não é ser subserviente”. E lançam mais um ‘torpedo’ a Gouveia e Melo: “o que se deve exigir a um chefe militar é a defesa dos seus subordinados”, sendo esse “o dever de tutela como conforme está inscrito no Regulamento de Disciplina Militar!”.
O navio patrulha NRP Mondego. / Foto: D.R./Marinha
A Associação conclui o comunicado afirmando que “se houve, em todo este processo, quem defendeu acerrimamente a disciplina, o dever de preservar o meio naval e a integridade física dos Homens e Mulheres embarcados naquele meio naval, foram aqueles 13 Bravos!”. E diz que “não podemos aceitar, muito menos corroborar, que quaisquer interesses pessoais sejam colocados à frente daquilo que deve ser a defesa de Portugal e da Instituição Militar!”.
Recorde-se que o caso teve início a 11 de Março de 2023, quando quatro sargentos e nove praças do NRP Mondego recusaram embarcar numa missão de vigilância a um navio russo ao largo do Porto Santo, alegando falta de segurança da embarcação. Dezasseis dias depois, nova missão falhou.
Os militares foram sancionados e Gouveia e Melo ainda lhes deu uma reprimenda pública, com a comunicação social presente. Mais tarde, o antigo Chefe do Estado-Maior da Armada indeferiu o recurso hierárquico apresentado pelos militares, confirmando os castigos impostos pelo Comandante Naval.
Foto: D.R. / Marinha
No acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo foi demolidor para a cúpula da Marinha e anulou todos os processos disciplinares que castigaram 11 militares do navio de patrulha NRP Mondego.
Os juízes consideram inválido o processo desde a sua origem, apontando múltiplas ilegalidades e violações de direitos fundamentais, incluindo o direito à defesa, à produção de prova e à imparcialidade do processo.
Também consideraram que o Tribunal Central Administrativo do Sul agiu de forma correcta quando declarou nulo um despacho de 1 de Julho de 2024 de Gouveia e Melo, que indeferiu o recurso hierárquico apresentado pelos militares.
A novel associação cívica “espontânea” de apoio a Gouveia e Melo tem sede num centro de negócios na zona das Amoreiras, que compartilha com cerca de 170 empresas, entre as quais duas agências de comunicação, a Plataforma Comunicatorium e a Cupido. A primeira destas empresas é detida por Vera Norte, enquanto a segunda pertence a João Goulão, antigo director de marketing e vendas da SIC. Esta segunda empresa terá funcionado na sede da própria Impresa, em Paço de Arcos, mantendo ainda essa referência na rede social LinkedIn. João Goulão garante, contudo, não ter a associação Honrar Portugal como cliente. Também Vera Norte nega qualquer ligação à associação, afirmando ser uma mera “coincidência”partilharem o endereço da sede.
De acordo com os estatutos da associação consultados pelo PÁGINA UM, constituída na passada sexta-feira num cartório de Odivelas, foi indicada como sede o centro empresarial da LEAP, situada no Espaço Amoreiras no número 24 da Rua D. João V, em Lisboa, com referência ao escritório 1.03. Ora, a LEAP Amoreiras funciona sobretudo como um centro virtual de empresas geralmente associado a colaboradores a trabalhar em coworking, sendo também usada para reuniões pontuais ou recepção de correspondência.
Centro Amoreiras funciona como uma área empresarial, que basicamente acolhe empresas que necessitam de escritórios virtuais ou salas para microempresas ou para reuniões.
Segundo a descrição do site deste centro empresarial, o espaço tem cerca de 2.200 metros quadrados, havendo 17 escritórios, que podem ser alugados a tempo inteiro ou de forma pontual. Além desse espaço existem a denominada LEAF Academy com três dezenas de escritórios e também salas de formação e auditório.
Neste autêntico ‘albergue espanhol’ empresarial não é fácil saber quem se encontra lá instalado, até porque o atendimento telefónico é centralizado, mesmo quando se tenta contactar uma empresa específica, como constatou esta tarde o PÁGINA UM.
Em todo o caso, com o mesmo endereço da associação Honrar Portugal, o PÁGINA UM apurou a existência de 171 empresas ou entidades, com as mais distintas actividades. Além das duas agências de comunicação, encontram-se registadas empresas do sector do imobiliário, da restauração, de serviços de arquitectura e design, de informática, de turismo, e até uma de ‘tuk tuks’, além de advogados.
Apesar de ter sido apresentada como uma “associação cívica” com o intuito de dar “o conforto necessário” para o antigo líder da Marinha se candidatar ao posto de Belém, contando mesmo com o apoio de várias personalidades do PSD, nada há de espontâneo no seu surgimento. Tanto assim que já se criou um site e se divulgou uma longa notícia, com grande relevância pelos media, a partir de uma notícia, em estilo de press release, da agência Lusa. Nessa notícia, surgia mesmo o agradecimento de Gouveia e Melo ao surgimento dessa associação.
Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, ‘retribui’ Medalha Vasco da Gama recebida
No site da associação, hoje divulgado, já constam notícias de arquivo, e os anúncios de eventos com a presença de Gouveia e Melo: em Arouca – amanhã, no âmbito do Dia Mundial da Água – e num almoço-debate na próxima quinta-feira no International Club of Portugal sob um tema recorrente: “Liderança e Ambição Coletiva”. Mas nada é referido sobre a localização da sede nem quaisquer contactos telefónicos.
Uma das particularidades da associação é que tem fim marcado, o que pode indiciar, até porque Gouveia e Melo já “abençoou” a sua criação, que poderá servir como plataforma de financiamento da campanha eleitoral. De acordo com os estatutos, a associação será extinta até 31 de Dezembro de 2026, podendo a sua ‘vida’ ser prorrogada por seis meses “por deliberação da Assembleia Geral”.
Embora seja uma associação cívica teoricamente aberta não será previsível que sejam recebidos muitos sócios, até para garantir a ausência de desvios na sua função primordial: “acções conducentes à concretização da candidatura de Henrique Gouveia e Melo a Presidente da República portuguesa, designadamente, entre outras, através da realização de encontros, acções, encontros, arrecadação de fundos, sempre no sentido e com o propósito exclusivo de concretizar a candidatura da mesma individualidade.”
A associação “espontânea” até já ostenta uma fotografia profissional de marketing pessoal de Gouveia e Melo.
Por esse motivo, no acto da constituição da associação ficaram desde logo definidos os órgãos sociais. A presidente da Honrar Portugal é Catarina Santos Cunha, actual vereadora da autarquia do Porto, eleita pelo Partido Socialista, mas agora independente, sendo a vice-presidência ocupada pela constitucionalista Teresa Violante, investigadora da Universidade Nova de Lisboa e ex-vereadora da Câmara de Coimbra.
A Assembleia Geral será presidida por um antigo ‘companheiro de armas’ de Gouveia e Melo, o vice-almirante Dores Aresta. Recorde-se que Dores Aresta foi vetado em Março de 2022 por Marcelo Rebelo de Sousa para ser o número dois da Marinha, durante a liderança de Gouveia e Melo, mas acabou por ser nomeado director-geral da Autoridade Marítima, cargo que desocupou em finais do ano passado. A presença deste militar mostra também a presença indelével de Gouveia e Melo nesta suposta associação cívica, inundada de políticos no activo e na reserva, alegadamente constituída de forma “espontânea”.
A presença de diversas individualidades próximas de Gouveia e Melo – como Dores Aresta e Isaltino Morais, a quem o antigo Chefe de Estado-Maior da Armada ‘ofereceu’ a Medalha Vasco da Gama – demonstra uma articulação com os desejos do proto-candidato a Belém, evitando assim novos passos em falso como a que ocorreu com a criação do Movimento de Apoio Almirante à Presidência,uma associação ligada à Maçonaria criada em Janeiro passado.
Aos 82 anos, Alberto João Jardim, um dos políticos com mais anos de poder, deu o apoio a um candidato a Belém que diz não querer estar associado a políticos e a partidos.
Para já, no site da associação Honrar Portugal, com sede no ‘albergue espanhol’ empresarial das Amoreiras, encontra-se já uma vasta lista de apoiantes, que incluem o ex-presidente do Governo Regional da Madeira Alberto João Jardim, o ex-ministro da Administração Interna Ângelo Correia, o ex-líder parlamentar social-democrata Adão Silva, os presidentes das câmaras de Cascais, Carlos Carreiras, e de Oeiras, Isaltino Morais, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros António Martins da Cruz, e ainda o antigo líder do CDS Francisco Rodrigues dos Santos, o ex-chefe do Estado-Maior da Armada Melo Gomes, o ex-presidente da Câmara de Cascais António Capucho, o conselheiro nacional do PSD André Pardal ou o ex-diretor-geral da Saúde Francisco George.
O PÁGINA UM tentou contactar, assim sem sucesso, a associação Honrar Portugal para obter comentários e outros esclarecimentos, designadamente sobre a escolha da sede e da empresa de comunicação que acompanhará a campanha eleitoral de Gouveia e Melo.
N.D. Notícia alterada às 20h00 de 22 de Março de 2025, com declarações de Vera Norte, da agência de comunicação Plataforma Comunicatorium. A notícia original do PÁGINA UM, baseando-se na informação pública de Vera Norte no seu perfil do LinkedIn, referia que era directora da Associação Sara Carreira. Vera Norte afirma que abandonou essas funções em Dezembro passado.
XXX – omnipresente na cultura pop, e não só, a conjugação tripla da 22.ª letra do abecedário latino (ou 24.ª para quem usa o Acordo Ortográfico de 1990), começou como um simples X, rabiscado por seguranças de clubes nos anos 80 para assinalar os menores de idade que, em teoria, não podiam beber álcool. Mas como a juventude punk sempre teve um talento especial para transformar restrições em insígnias de rebeldia, alguns decidiram que aquele X não era um sinal de proibição – era um símbolo de pureza e resistência.
Assim nasceu o straight edge, um movimento hardcore que rejeitava álcool, tabaco, drogas e, em alguns casos mais radicais, qualquer vestígio de diversão que não envolvesse moshing e gritos sobre desilusões existenciais, porque no hardcore original tudo precisa de ser elevado ao extremo. Afinal, se um X é bom, três seriam melhores.
Mas houve quem considerasse que esse triplo X poderia bem ser, fora do universo punk, usado como símbolo de pornografia, ou seja, tudo o que os straight edge tentavam evitar. O resultado disto foi uma das ironias mais deliciosas da cultura underground: os mesmos jovens que erguiam orgulhosamente camisolas com XXX estampado no peito acabavam confundidos com entusiastas do cinema para adultos.
Não menos irónico é que o XXX – e um pouco menos o XX e o X – são também caracteres bastante apreciados no edifício com o número 23 da Rua Duque de Palmela, em Lisboa, isto é, na sede do distinto e digníssimo Conselho Superior da Magistratura (CSM). Órgão de gestão e disciplina dos juízes em Portugal, integrando magistrados, personalidades designadas pela Assembleia da República e pelo Presidente da República, o CSM tem como principais funções nomear, avaliar, promover, colocar e exercer a acção disciplinar sobre os juízes dos tribunais judiciais
Em sede deste órgão, existem duas estruturas fundamentais: o Conselho Plenário e o Conselho Permanente. No primeiro, delibera-se a nomeação, avaliação e disciplina de juízes conselheiros e desembargadores, aprovam-se regulamentos, apreciam-se impugnações administrativas, aplicam-se penas disciplinares, incluindo a demissão, atribuem a classificação de Medíocre, decide-se sobre o direito de regresso e sobre situações de suspensão ou perda de mandato, e decidem-se outros assuntos avocados ou propostos pelos seus membros. Já o Conselho Permanente fica com a gestão dos assuntos teoricamente menos polémicos.
Ora, mas, na verdade, pelo menos na aparência, tudo parecerá polémico para o CSM – ou pelo menos, não deve estar ao dispor do vulgar cidadão. Por exemplo, no das actas do Plenário – que se reúne, com frequência ordinária, uma vez por mês, com excepção de Agosto –, existe uma apetência especial para o uso dos caracteres (maiúsculos) XXX, XX e X, usados para ‘eliminar’ o conhecimento público dos casos considerados mais sensíveis. Vejamos um exemplo, na lista de actas que surgem na página do próprio Conselho Plenário, com reuniões mensais.
Na reunião de Janeiro do ano passado, de entre 29 deliberações, há cinco oitos de ‘XXX’. No ponto 12 fica-se a saber que foi deliberado por proposta do “Senhor Vogal Dr. Júlio Gantes” atribuir a classificação de “Suficiente” (aparentemente uma má nota) à “Dra XXX pelo seu desempenho no período compreendido entre 17 de dezembro de 2020 e 19 de Abril de 2023 no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 1”. No ponto seguinte, a “Juíza de Direito XXX” viu ser-lhe negada a pretensão de melhorar a nota que lhe fora atribuída, não ficando sequer em acta em que juízo desempenha funções.
Na mesma reunião revela-se que se indeferiu o pedido do “Exmo. Sr. Juiz de Direito XXX para exercer o cargo de Presidente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Atletismo”. Não se sabe quem foi.
Trecho da acta de Janeiro de 2024 do Plenário do CSM tornada pública com expurgo de informação.
Mas existem também, nesta reunião, casos em que são apagados detalhes muito relevantes que deveriam ser do conhecimento das partes envolvidas em processos judiciais. Por exemplo, no ponto 28 da ordem de trabalhos diz-se que “foi deliberado por unanimidade concordar com a proposta da Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. Ana de Azeredo Coelho, relativamente à prolação de decisões nos processos distribuídos ao Exmo. Senhor Desembargador Dr. XXX no Tribunal da Relação de XXX e assim: determina-se que a suspensão da distribuição se mantenha até à prolação das decisões nos dois processos não redistribuídos (NUIPC XXX e XXX) e nunca depois de 31 de janeiro, sem prejuízo do que resultar da informação a solicitar ao processo de averiguação; seja elaborada informação sumária e meramente indiciária sobre o objeto do processo de averiguação, a prestar até 31 de janeiro”.
Este é apenas um exemplo. E nem sempre o ‘XXX’ é o escolhido para esconder de olhos curiosos os nomes ou tribunais ou processos que são debatidos nas magnas reuniões. Por exemplo, na acta do Plenário de Junho do ano passado decidiu-se esconder os ‘elementos sensíveis’ através não do ‘XXX’ mas do ‘XX’. São seis os casos. No mês seguinte, para expurgar elementos usa-se o ‘XXX’, o ‘XX’ e ainda apenas o ‘X’, embora todos com a mesma função: apagar 10 referências a juízes, tribunais ou processos.
Há casos de absurda omissão, que pode determinar prejuízo tanto para advogados como arguidos em processos. E, claro, nada abona sobre a transparência da Justiça. Por exemplo, no ponto 16 do Plenário de Setembro do ano passado, foi confirmada a classificação de “Medíocre” de uma juíza sob proposta do desembargador Filipe Caroço, perfeitamente identificado em acta. E quem é essa juíza? A acta ‘esclarece’: é a “Senhora Juiz de Direito Dra. XXX” que exerceu no “Juízo Local Cível de XXX, Juiz X (Comarca de XXX)”, entre 7 de Abril e 31 de Agosto de 2022, e saltou depois, entre Setembro de 2022 e Abril de 2024, para o “Juízo Local Cível de XXX, Juiz X (Comarca de XXX)”.
João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do Conselho Superior da Magistratura, a cumprimentar o Presidente da República
Somente no ano de 2024, o PÁGINA UM detectou, pelo menos, rasuras em 140 partes, excluindo do conhecimento público nomes, tribunais e processos. Só mês de Novembro de 2024 tem 39 rasuras.
Similar problema de obscurantismo têm as sessões do Conselho Permanente, com a agravante de existirem em mais actas: no ano passado houve 35 reuniões, onde tomam parte o presidente do CSM, o vice-presidente, o vogal indicado pelo Presidente da República, dois vogais eleitos pela Assembleia da República, três vigais eleitos pelos magistrados judiciais e a juíza secretária. Neste caso, em diversas actas consultadas, talvez por pudor, não se use nem ‘X’ nem ‘XXX’ para expurgar elementos identificativos; opta-se antes por tracejado.
Também aqui há selectividade na eliminação da informação. Por exemplo, na acta de 30 de Janeiro de 2024, um escrivão que viu o seu recurso de classificação de “Bom com distinção” ser recusado, foi identificado: João Gilberto Ramos de Abreu. Porém, logo no ponto seguinte não se sabe quem é a “Exma. Sra.” que viu ser indeferido o requerimento para ser abrangida pela Lei da Amnistia. Nem se sabe pela acta a que castigo se referia ou sequer a função.
No ponto seguinte, também não é identificada a juíza que terá pedido um incidente de recusa nem sequer o processo sobre o qual estaria a tratar, Menos transparência não poderia haver.
Em outros casos são transcritas deliberações tomadas sobre averiguações, inquéritos ou exposições, onde são eliminados os nomes dos juízes, bem como os processos, em alguns casos com a indicações de terem ocorrido atrasos alegadamente injustificados. Curiosamente, em algumas situações surge a referência a ter saído da sala algum dos membros do Conselho Permanente, intuindo-se que terá sido por razões de proximidade.
Trecho de uma acta do Conselho Permanente do CSM, onde não há ‘XXX’; usa-se antes o tracejado para a mesma função: ocultar.
Este e muitos outros casos estão semeados ao longo das páginas das dezenas de actas da cúpula da Magistratura portuguesa, sem que se entendam os motivos dos expurgos ou o propósito de se esconder informação apenas quando o visado tem um desempenho sofrível que, a haver prejudicados, serão as partes dos processos.
Por esse motivo, o PÁGINA UM requereu ao CSM o acesso integral a todas as actas sem expurgos do Plenário e do Conselho Permanente relativas aos anos de 2023 e 2024.
Porém, o CSM recusou o acesso, alegando a protecção de dados nominativos, mesmo quando, em muitos casos, o expurgo se refere ao nome de tribunais ou a números de processos, aos quais nem sequer se aplicaria jamais o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Porém, nem sequer ao nível do acesso a documentos administrativos, como são as actas, se aplica o RGPD, tanto mais que aquilo que está em causa são apenas nomes e de pessoas em exercício de funções públicas. Mas na recusa, o CSM alega que “não é o tratamento de dados pessoais no contexto profissional menos merecedor de proteção do que noutras circunstâncias”, acrescentando que “existe jurisprudência consolidada, e [que como existe] um volume significativo de dados pessoais e [que] abrange um vasto conjunto de assuntos, diferenciados”, tal “implicaria desde logo diferentes ponderações em razão da matéria tratada”.
A Justiça não é cega; por vezes, coloca é vendas para que não seja vista.
No entanto, o CSM não indica qual a jurisprudência em concreto – que, na verdade, existe mas é contrária à posição desta entidade, ou seja, não há protecção de dados quando se trata do nome de alguém no exercício de funções público. Além disso, carece de sustentação esse argumento quando a rasura é selectiva – isto é, se um juiz tem uma classificação de distinção, o seu nome é revelado sem pudor; mas se tem uma classificação mediana ou sofrível, ‘beneficia’ de uma ocultação.
Por todo esse motivo, o PÁGINA UM fez uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar, mais uma vez, o CSM a revelar dados administrativos.
Recorde-se que já este ano, depois de um longo processo, o PÁGINA UM conseguiu aceder aos relatórios do inquérito à distribuição da Operação Marquês, depois de uma longa ‘luta jurídica’, que culminou mesmo com uma ameaça de sanção pecuniária compulsória ao presidente do CSM (e também do Supremo Tribunal de Justiça), João Cura Mariano. Também nesse processo, que perdeu em toda a linha, o CSM alegava razões de protecção de dados para não disponibilizar voluntariamente documentos comprometedores.
N.D. Este e muitos outros processos judiciais do PÁGINA UM têm sido apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, que, neste momento, apresenta um défice.
Durante a pandemia da covid-19, muitos Governos e empresas “atiraram para o lixo” as liberdades e garantias constitucionais, que levaram décadas e gerações a ser conquistadas. Ostracismo, pressões, perseguições sociais e mesmo demissões foram o ‘pão-nosso de cada dia’, sobretudo a partir de 2022, quando algumas franjas se recusaram a vacinar-se, quer por razões científicas quer por motivos pessoais, incluindo religiosos. Nos Estados Unidos, durante a Administração Biden, milhares de pessoas acabaram mesmo despedidas, e agora começam a surgir as primeiras consequências pesadas para os empregadores. Esta sexta-feira, um tribunal estadual do Michigan aplicou uma pesada sentença a uma seguradora que demitiu uma funcionária que se recusou vacinar por razões religiosas. A indemnização é astronómica mesmo para os padrões norte-americamos: 12,1 milhões de euros, dos quais cerca de 9,3 milhões por danos punitivos, que, nos Estados Unidos, serve para penalizar condutas especialmente prejudiciais e assim dissadir repetições. Em Portugal, por agora, não são conhecidos casos judiciais similares em curso, mas este caso judicial nos Estados Unidos pode vir a ser a abertura da ‘caixa de Pandora’, mas com efeitos positivos na democracia.
Abriu-se a caixa de Pandora nos Estados Unidos sobre as chocantes demissões aplicadas às pessoas que recusaram a administração da vacina contra a covid-19 por razões de consciência ou de religião – mas, neste caso, não sairão daqui males para o Mundo, mas sim garantias futuras para a protecção dos direitos e liberdades individuais.
Um júri federal nos Estados Unidos condenou esta sexta-feira a Blue Cross Blue Shield (BCBS) de Michigan, uma empresa de seguros de saúde, a pagar uma indemnização à sua ex-funcionária Lisa Domski no valor de cerca de 13 milhões de dólares (12,1 milhões de euros), despedida por se ter recusado a tomar a vacina contra a covid-19 devido às suas crenças religiosas.
Lisa Domski, que trabalhava remotamente para a empresa seguradora desde Março de 2008 foi confrontada em Novembro de 2021 por uma imposição da BCBS para todos os funcionários se vacinarem. Católica devota, Domski considerava que, como as vacinas tinham sido desenvolvidas ou sido testadas em termos de segurança usando células fetais – o que, efectivamente, é verdade –, isso “seria um terrível pecado”, que a distanciaria da sua “relação com Deus”. A empresa acabou por não aceitar essa justificação, despedindo-a em 5 de Janeiro de 2022.
Lisa Domski com o seu advogado John Marko. Foto: D.R.
acção judicial de Lisa Domski entrou no Tribunal do Distrito Leste de Michigan em Agosto de 2023, acusando a empresa seguradora de discriminação religiosa. Segundo o processo, a BCBS de Michigan implementou uma política de vacinação obrigatória para os seus funcionários em Outubro de 2021, exigindo a imunização completa ou uma justificação do foro religioso ou médico. A antiga funcionária sustentava que o pedido de isenção religiosa, submetido com o apoio de uma declaração escrita detalhando as suas crenças e dados de contacto do seu padre, foi rejeitado pela empresa.
John Marko, advogado de Domski, sublinhou em declarações à CBS News que a sua cliente “se recusou a renunciar à sua fé e às suas convicções” e que, apesar de a BCBS ter permitido inicialmente o uso de uma declaração escrita para fundamentar o pedido de isenção, acabou por exigir a vacinação sob ameaça de despedimento.
Segundo o advogado, o júri reconheceu a gravidade do caso e optou por sancionar a empresa com uma indemnização significativa, dividida entre 10 milhões de dólares em danos punitivos, 1,3 milhões em compensação por perda de rendimentos futuros, um milhão por danos morais e 315 mil em salários retroactivos. Lisa Domski trabalhava remotamente em tecnologias de informação e, segundo o seu advogado, mesmo sem a vacina nunca constituiu “perigo para ninguém”.
O caso de Domski – que representa uma vitória das liberdades e garantias individuais em matéria de saúde e sobretudo de recusa de actos médicos no próprio corpo – tem condições para iniciar uma onda de pedidos de indemnizações sem precedentes nos Estados Unidos. Em meados de 2021, para aumentar as taxas de vacinação – numa altura em que se manipulava a informação indiciando, falsamente, a possibilidade de se conseguir uma ‘imunidade de grupo’ –, várias centenas de faculdades e universidades norte-americanas, a Administração Biden, muitas autarquias e grandes empresas impuseram exigências de vacinação – ou um regime de testes – aos seus funcionários, entre as quais a Walmart, Google, Netflix, Uber, McDonalds, Disney, United Airlines, Facebook, Twitter, Apple, Ford e General Motors. O Google chegou mesmo a anunciar que a medida seria estendida para seus 144 mil funcionários em outros países. Em Novembro de 2021, a Administração Biden impôs que as empresas e entidades nos Estados Unidos com mais de 100 funcionários teriam de exigir que os seus funcionários fosse, totalmente vacinados contra a covid-19 ou que fizessem testes semanais a partir de 4 de Janeiro do ano seguinte.
Empresa seguradora vai pagar caro por depedimento.
Em consequência, no mês de Fevereiro de 2022, a cidade de Nova Iorque demitiria cerca de três mil funcionários municipais que se recusaram a cumprir a obrigatoriedade de vacinação contra a covid-19, mas 10 meses depois um juiz da Supremo Tribunal ordenou a reintegração destes trabalhadores. A imposição desta política, que se prolongaria até ao início de 2023, fez com que os funcionários municipais de Nova Iorque tivessem apresentado uma taxa de vacinação de 96%, muito superior à da população nova-iorquina (cerca de 80), uma diferença que mostra sobretudo os efeitos da pressão.
Na Europa registaram-se, em diversos países, casos de imposição de vacinação contra a covid-19 para certos grupos profissionais e diversas tentativas de implementação de vacinação obrigatória através de legislação específica. A Itália foi um dos primeiros países a adoptar este tipo de ‘mandatos’, tornando a partir de Abril de 2021 a vacinação obrigatória para profissionais de saúde, e em 2022, foi ampliada para pessoas com mais de 50 anos, impondo assim restrições de acesso ao trabalho para não-vacinados.
Por sua vez, o Governo francês exigiu vacinação para profissionais de saúde, trabalhadores de lares de idosos e bombeiros. Aqueles que se recusaram foram suspensos temporariamente e, em alguns casos, impedidos de exercer suas funções. Em Janeiro de 2022, o presidente francês, Emmanuel Macron, assumiu mesmo, em entrevista ao Le Parisien, querer “realmente irritar [‘emmerder’] os não vacinados. E assim vamos continuar a fazê-lo até ao fim. É essa a estratégia”.
A Alemanha e a Grécia também introduziram uma obrigação de vacinação para trabalhadores de lares de idosos e profissionais de saúde, que vigorou durante a fase crítica da pandemia, embora a vacinação fosse mais incentivada para os grupos de risco.
A Áustria foi, para gáudio da imprensa maninstream, o único país europeu a criar legislação específica para tornar a vacinação obrigatória, prevendo mesmo multas entre os 600 e os 3600 euros, supostamente para se “alcançar uma liberdade duradoura e contínua”. Os protestos por esta medida, tomada em Janeiro de 2022, foram intensos, num país que então detinha uma taxa de vacinação de 72%, e a lei apenas vigorou por um mês, tendo sido suspensa em Maço. Na Grécia, a vacinação foi exigida para trabalhadores de saúde e em centros de assistência a idosos. Na Áustria, em janeiro de 2022, foi introduzido um mandato de vacinação para toda a população adulta, tornando-se o primeiro país europeu a tentar uma medida nacional tão abrangente, embora tenha sido suspenso alguns meses depois.
Em Portugal, vacinação contra a covid-19 nunca foi obrigatória, mas houve pressões à margem da lei para forçar empregados. Mas os não-vacinados sem certificado digital tiveram restrições de acesso, durante vários períodos, como a entrada em restaurantes.
Em Portugal, a vacinação contra a covid-19 não foi obrigatória, mas foram implementadas inúmeras restrições a quem não se tinha vacinado, mesmo após adquirir imunidade natural, chegando a haver períodos, no final de 2021 e princípio de 2022, em que não foi possível, a quem não tinha vacinação completa (e sem certificado digital, possível durante seis meses após um teste positivo), a entrada em restaurantes, bares e até ginásios. Além disso, as pressões sociais contra os não-vacinados ou a quem se opunha a práticas de restrição acesso – que eram inconsequentes ou mesmo contraproducentes do ponto de vista da Saúde Pública – foram intensas, e mesmo apoiadas activamente pela imprensa.
O PÁGINA UM foi, aliás, alvo de campanhas de difamação, incluindo orquestradas por diversos órgãos de comunicação social. O Público chegou mesmo a acusar o PÁGINA UM, num processo em Tribunal Administrativo para evitar a publicação de um direito de resposta, de tomar “posições atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação”, algo que o jornal do Grupo Sonae – que, no ano passado, apresentou prejuízos de 4,5 milhões de euros – “assumiu e defendeu desde a primeira hora”.
Saliente-se que, de entre as alegadas posições atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação” do PÁGINA UM esteve a intimação para que a Ordem dos Médicos mostrasse pareceres do Colégio de Pediatria, que não recomendavam a vacinação generalizada a menores de idades, e que foram escondidos intencionalmente pelo então bastonário e actual vice-presidente do grupo parlamentar do PSD, Miguel Guimarães. Deste modo, muitos pais ficaram impedidos, por acção intencional de Miguel Guimarães, a aceder informação crucial para um consentimento informado. Recorde-se que a actual norma da Direcção-Geral da Saúde (DGS) para vacinação contra a covid-19 exclui categoricamente a administração em idade pediátrica, excepto de houver uma indicação médica expressa.
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Em vésperas do Parlamento Europeu votar a eventual reeleição da actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen recebeu uma má notícia: perdeu um processo junto do Tribunal Geral da União Europeia sobre o secretismo em torno dos contratos de compra das vacinas contra a covid-19. O Tribunal anulou a decisão da Comissão de manter secretos algumas das condições e termos do negócio e também esclareceu que as farmacêuticas são responsáveis por indemnizar os lesados das vacinas, mesmo que os contratos de compra as ilibem de responsabilidades. A sentença, tornada hoje pública, adianta que, no entanto, nada impede que outra entidade assuma o custo das responsabilidades pelos efeitos adversos das vacinas se assim o desejar. Este desfecho traz esperança ao processo rocambolesco que o PÁGINA UM tem a correr na Justiça contra o Ministério da Saúde desde Dezembro de 2022, ou seja, há mais de 18 meses. A existência de contratos secretos a nível europeu era um dos derradeiros argumentos do Governo para não se mostrar os contratos e correspondência entre as autoridades portuguesas e as farmacêuticas.
A derrota da Comissão Europeia no processo levantado por eurodeputados sobre o secretismo dos acordos prévios de compra (advance purchase agreement, APA) das vacinas contra a covid-19, celebrados entre Ursula von der Leyen e as farmacêuticas, vai retirar um ‘precioso argumento’ ao Ministério da Saúde num longo processo de intimação do PÁGINA UM para o aceder aos contratos e outros documentos assinados posteriormente pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).
Este processo de intimação – instaurado pelo PÁGINA UM e que, por lei, tem carácter de urgente – decorre há mais 18 meses no meio de mentiras, traduções de centenas de páginas sem qualquer relevância e um pedido de incompetência de jurisdição para decidir o acesso a documentos administrativo por as compras nacionais decorrerem dos tais acordos prévios celebrados em Bruxelas.
Em Dezembro de 2022, o PÁGINA UM intentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa face à recusa da DGS em facultar os contratos de compra por si executados, bem como as guias de remessa e outra correspondência com as farmacêuticas. Quatro destes contratos chegaram a constar no Portal Base, onde surgiam alguns elementos, como preços e quantidades, mas depois do pedido do PÁGINA UM para aceder a todos, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção – a entidade pública responsável pela gestão do Portal Base – permitiu que a DGS sonegasse esses quatro contratos e deixasse de colocar os restantes.
Neste processo no Tribunal Administrativo de Lisboa, dirigido pela juíza Telma Nogueira – que não é ‘mexido’ desde Fevereiro deste ano, apesar de ser considerado urgente, correndo mesmo durante as férias judiciais -, o Ministério da Saúde já tentou de tudo. Em Janeiro de 2023, a ainda directora-geral da Saúde Graça Freitas enviou um ofício ao PÁGINA UM remetendo apenas para os acordos prévios, apesar de aquela responsável ter assinado contratos para a aquisição de doses para Portugal. Além disso, Graça Freitas dizia, para convencer o Tribunal da impossibilidade legal de acesso, que estava a decorrer “uma auditoria aos procedimentos“, o que se mostrava falso. Nunca foi dado a conhecer qualquer auditoria.
Depois disso, o Ministério da Saúde tentou convencer a juíza Telma Nogueira de que os contratos que existiam eram apenas os que constavam no site da Comissão Europeia, o que era falso. Apesar de o PÁGINA UM ter apresentado requerimento a alertar a juíza de que aquilo que constava no site da Comissão Europeia eram os acordos prévios assinados por Ursula von der Leyen – e não os contratos nacionais que tinham sido pedidos -, o Tribunal Administrativo de Lisboa solicitou então que a DGS traduzisse para português os tais acordos, uma vez que não são sequer aceites textos em outras línguas. No processo de intimação constam centenas de páginas traduzidas para português, que demoraram mais de dois meses a realizar, com as imensas rasuras agora consideradas ilegais pelo Tribunal Geral da União Europeia. Todas essas páginas são completamente inúteis.
Graça Freitas assinou mais de uma dezena de contratos, uns sonegados do Portal Base, outros nunca ali colocados.
Perante a constatação de que não se tratavam dos documentos requeridos, o Ministério da Saúde usou outro estratagema, então sugerido por André Peralta-Santos, sudirector-geral da Saúde: como os acordos assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas continham “cláusulas de confidencialidade que obrigam todos os intervenientes”, então “, donde, “os contratos nacionais subordinados a elementos legalmente considerados essenciais do contrato, como quantidades e preços, estipulados nos Acordos/Protocolos/Contratos-Quadro, ficam sujeitos às mesmas regras de confidencialidade, porquanto, devem ser considerados como contratos (parciais) integrantes dos Acordos assinados pela Comissão Europeia em representação dos Estados-Membros, que foram interessados [sic], como foi o caso de Portugal”.
Nesta sua temerária interpretação – que advoga que os Estados democráticos perdem o exercício de Justiça independente interna em caso de acordos comerciais por entidades externas e supranacionais não-eleitas (Comissão Europeia) –, o subdirector-geral da Saúde defendia ainda que o Vaccine Order Form – cujos primeiros quatro documentos estiveram no Portal Base, para serem depois sonegados pelo Ministério da Saúde – “não se trata, assim, de um qualquer contrato celebrado pelo Estado português, através da Direcção-Geral da Saúde”, mas “apenas da formalização necessária para operacionalização do APA/PA [acordos entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas] em território nacional com o pedido de entrega das vacinas respetivas”.
Contudo, a juíza Telma Nogueira aparentou acolher esta tese, concluindo em despacho de 15 de Dezembro do ano passado que “resulta dos documentos juntos e supra referidos, que os Formulários de encomenda de vacina são celebrados pelos Estados-Membros e as empresas da indústria farmacêutica em execução dos APA, nomeadamente os supra referidos, sendo que estes APA foram outorgados entre a Comissão Europeia e as empresas da indústria farmacêutica e contêm nas suas cláusulas um pacto atributivo de jurisdição”.
Esconder, mentir e ludibriar: esta tem sido a estratégia do Ministério da Saúde para não mostrar contratos de compra, guias de remessa e correspondência com farmacêuticas.
E a juíza solicitou então que o PÁGINA UM se pronunciasse “sobre a verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal decorrente da violação das regras de competência internacional, que a ser procedente conduzirá à absolvição da Entidade demandada da instância”. No entanto, depois da resposta do PÁGINA UM em 12 de Fevereiro deste ano, a juíza nunca mais se pronunciou. Ou seja, mais de cinco meses de silêncio. Em mais de duas dezenas de intimações do PÁGINA UM em tribunais administrativos, nunca nenhum outro demorou mais de um ano até à sentença de primeira instância. Este, sobre os polémicos contratos das vacinas, já vai em mais de 18 meses sem se vislumbrar uma primeira decisão, sempre passível de recursos de ambas as partes.
Em todo o caso, este inexplicável atraso do Tribunal Administrativo de Lisboa acaba por ser agora favorável às pretensões do PÁGINA UM. Com efeito, o acórdão de hoje do Tribunal Geral da União Europeia – que derrota a opacidade sobre os polémicos contratos de compra das vacinas contra a covid-19, que terão permitido a facturação pelas farmacêuticas de mais de 2,7 mil milhões de euros provenientes dos Estados-Membro – retira indelevelmente o argumento do secretismo para recusar o seu acesso. Além disso, a Lei do Acesso dos Documentos Administrativos refere-se sempre a documentos produzidos ou detidos por uma entidade pública, independentemente da sua origem..
Na sua histórica decisão, que constitui uma importante defesa dos princípios democráticos da transparência e boa gestão dos dinheiros públicos, o Tribunal Europeu considerou que a Comissão “não demonstrou que um acesso mais amplo a essas cláusulas [tornadas secretas] prejudicaria efetivamente os interesses comerciais” das farmacêuticas.
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer, na entrega de um prémio do Atlantic Council, em Novembro de 2021. (Foto: Captura a partir de vídeo do evento)
Nos últimos anos, Ursula von der Leyen vinha sendo pressionada para mostrar todos os termos e condições dos contratos, tanto por eurodeputados como por particulares, mas a Comissão Europeia sempre concedeu acesso muito limitado aos contratos, os quais foram disponibilizados online com muita informação expurgada.
Na sentença conhecida hoje, o Tribunal também proferiu decisão sobre as condições estipuladas nos contratos das vacinas contra a covid-19 sobre eventuais indemnizações por danos que estas empresas estão obrigadas a pagar em caso de defeito das suas vacinas. De acordo com o comunicado de divulgação da decisão, o Tribunal Geral da União Europeia sublinhou na sentença que “o produtor é responsável pelo dano causado por um defeito no seu produto e a sua responsabilidade não pode ser reduzida ou excluída em relação ao lesado por uma cláusula limitativa ou exoneratória de responsabilidade ao abrigo da Diretiva em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos”.
Contudo, salientou que “nenhuma disposição da referida Diretiva proíbe que um terceiro reembolse a indemnização a título de danos que um produtor tenha pagado em razão do defeito do seu produto”.
Quando era ministra da Defesa da Alemanha, Ursula von der Leyen também foi investigada num caso que envolveu o uso de telemóveis. (Foto: D.R./Comissão Europeia)
Não é a primeira vez que Ursula von der Leyen surge numa polémica de contratos milionários opacos envolvendo mensagens e chamadas por telemóvel. A ainda presidente da Comissão Europeia foi investigada quando era ministra da Defesa da Alemanha, entre 2013 e 2019. Ursula von der Leyen acabou por ser ilibada no chamado “Caso do Consultor”, em Junho de 2020, mas também aqui houve telefones à mistura.
A compra de vacinas contra a covid-19, à qual os Estados-membro estão ‘presos’, tem gerado um enorme desperdício, com milhões de vacinas a ir para o lixo. O próprio Tribunal de Contas, num relatório de Setembro do ano passado, apontava para um elevado desperdício financeiro devido à inutilização de doses não administradas, com o número provisório a atingir as 3,5 milhões de doses no valor de 54,5 milhões de euros, até ao final de Dezembro de 2022. Mas, segundo uma análise do PÁGINA UM, com base em informação oficial, Portugal terá desperdiçado mais de 40 milhões de doses de vacinas.
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Já passaram cerca de 950 dias desde que, em Dezembro de 2021, o PÁGINA UM pediu acesso aos registos anonimizados das reacções adversas às vacinas contra a covid-19 (e também ao antiviral remdesivir). Nesse longo intervalo de mais de dois anos e sete meses, houve um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, com uma sentença enviesada, e agora um acórdão histórico do Tribunal Central Administrativo Sul. O Infarmed, segundo o acórdão, tem agora cinco dias para se tornar transparente e mostrar, linha a linha, quais foram os efeitos adversos de um programa vacinal em massa que nem crianças e jovens saudáveis ‘poupou’, apesar da virtualmente nula letalidade nessas idades. O PÁGINA UM não pretende ter acesso aos registos anonimizados para criar “alarme público”, mas tão-só para que se saiba a verdade dos factos – como é a regra (talvez esquecida por muitos) do jornalismo (verdadeiramente) independente.
Trinta e um meses depois do pedido inicial, o Infarmed vai ter mesmo de facultar o acesso à base de dados nacional com informação anonimizada detalhada que regista todas as reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e também do polémico antiviral remdesivir.
A obrigatoriedade surge com um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, do passado dia 11, que revogou uma polémica sentença de primeira instância da juíza Sara Ferreira Pinto que, em Março do ano passado, recusara a inclusão de provas inequívocas do PÁGINA UM de o Portal RAM estar já anonimizado e por considerar que a exportação dos ficheiros da base de dados constituía a criação de um novo documento, algo que inviabilizaria a obrigatoriedade do regulador do medicamento de fornecer esse acesso.
O histórico acórdão de 28 páginas – aprovado por unanimidade pelos desembargadores Joana Costa e Nora, Ricardo Ferreira Leite e Carlos Araújo – decidiu “condenar a entidade requerida [Infarmed] a, num prazo procedimental de cinco dias, facultar o acesso aos dados pretendidos das referidas bases de dados [Portal RAM], com expurgação dos dados pessoais, independentemente da forma por que a mesma se faz.
Embora o Infarmed, presidido por Rui Santos Ivo desde Junho de 2019, ainda possa recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo – apenas para adiar a concretização de um acto de singular transparência sobre informação relevante de Saúde Pública –, este acórdão histórico constitui já uma vitória do jornalismo independente e perseverante. Com efeito, de uma forma absolutamente abnegada, o Infarmed tem usado todos os subterfúgios para não permitir o acesso à listagem anonimizada – ou seja, sem nomes e outros elementos que permitissem a identificação concreta de pessoas – das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdevisir. O primeiro pedido formal para aceder a essa informação, constante no Portal RAM, ocorreu em 6 de Dezembro de 2021, quando o PÁGINA UM ainda se encontrava em preparativos de lançamento.
Perante o silêncio inicial do Infarmed, o PÁGINA UM começou por solicitar um parecer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), no início de 2022, tendo esta entidade considerado que o Infarmed deveria facultar essa informação, mesmo se, como então aludia o regulador do medicamento, a informação pudesse ser analisada por “não-especialistas”, o que teria, alegadamente, “um elevado potencial para criar um alarme social totalmente desnecessário e infundado”.
Acórdão histórico obriga Infarmed a ‘abrir’ acesso aos registos anonimizados das reacções adversas às vacinas contra a covid-19 e ao remdesivir.
Como ‘solução’ para esse receio não parece ser o simples obscurantismo – até porque nunca fora intenção do PÁGINA UM criar “alarme social”, que foi, aliás, a tónica dominante da imprensa e das autoridades de Saúde durante a pandemia –, foi então apresentada uma intimação ao Tribunal Administrativo de Lisboa, num processo complexo que chegou a envolver uma rara sessão de julgamento para ser ouvido o presidente do Infarmed e uma técnica superior, tendo nesse mesmo dia sido recusado pela juíza Sara Ferreira Pinto a junção de documentos que o PÁGINA UM requereria meses antes nos autos para provar a anonimização do Portal RAM.
A sentença desta juíza acabaria assim, em Março de 2023, por não surpreender ao recusar o acesso ao Portal RAM, argumentando que “para satisfazer o pedido do Requerente [Pedro Almeida Vieira], a Entidade Requerida [Infarmed] teria que exportar o conjunto de dados constantes do ‘Portal RAM’ para formato Excel ou outro e, posteriormente expurgar esse ficheiro / documento de dados pessoais, ou seja teria de criar um documento para o Requerente, dever que, contudo, a lei não impõe”.
A fazer jurisprudência esta ‘tese’ da juíza poderia ser o fim do acesso público a base de dados de carácter sensível, porquanto significaria que a simples impressão ou transferência para outro formato passaria a ser considerado um novo documento – logo, não obrigatório -, permitindo assim uma escapatória a uma Administração Pública cada vez mais obscurantista.
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: há quase 1.000 dias a esconder informação de interesse público.
Porém, o viés desta sentença de Março do ano passado mostrava-se também no próprio facto de, mesmo se sem intencionalidade, a juíza Sara Ferreira Pinto até ter citado doutrina de Cláudia Monge, professora da Faculdade de Direito de Lisboa, especializada em direito de protecção de dados em saúde. Sucede, contudo, que Cláudia Monge é também uma destacada sócia da sociedade BAS, que, nesta intimação, defendia a posição do Infarmed.
Apesar de o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul ter agora concluído que estava “errado o pressuposto desta improcedência” sentenciada pela juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, certo é que este caso se entre 6 de mostra paradigmático de uma exasperante, morosa e onerosa luta por um banal acesso a documentos administrativos. Apenas considerando a data de entrada do processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – 20 de Abril de 2022 –, a primeira sentença ocorreu 322 dias depois, em 8 de Março de 2023.
O recurso do PÁGINA UM foi apresentado em 27 deste mês e o acórdão acabou apenas por ser aprovado 472 dias depois. Se contarmos os dias entre requerimento inicial – ao abrigo de uma lei que determina o acesso ao fim de 10 dias –, decorreu até ao acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul um total de 948 dias. Teve mais de seis dezenas de actos procedimentais, e mesmo mais um processo de intimação paralelo para obtenção de manuais e cadernos de encargos.
PÁGINA UM tem sido, no panorama da comunicação social, uma luz ao fundo do túnel na busca de informação oficial escondida durante a pandemia.
Saliente-se que os processos de intimação são considerados urgentes, correndo, em teoria, durante as férias judiciais. Além disso, não existe qualquer penalização para um gestor público que demonstre uma atitude obscurantista e que recorra por sistema, com o dinheiro dos contribuintes, para obstaculizar, até ao limite do absurdo o acesso a informação relevante e de interesse público.
O PÁGINA UM aguarda agora que, cumprindo o acórdão, o Infarmed disponibilize o acesso aos dados anonimizados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir para que, em seguida, com espírito de seriedade, rigor e independência, analisar a informação aí constante. Essa análise não substitui o trabalho em curso, e quase concluído, sobre a base de dados da Agência Europeia do Medicamento, a EudraVigilance, relativa às 14 vacinas contra a covid-19 comercializadas no Espaço Económico Europeu.
N.D. Esta intimação, iniciada em Abril de 2022, desencadeou uma das iniciativas do PÁGINA UM de que mais nos orgulhamos: o FUNDO JURÍDICO, como aqui se recorda. Para financiar estas acções em tribunal – e entretanto houve mais de duas dezenas -, o PÁGINA UM contou com o precioso apoio financeiros dos seus leitores e um inquebrantável patrocínio jurídico do advogado Rui Amores. Como este caso do Infarmed demonstra, estes processos são morosos, lentos, onerosos e desgastantes, ainda mais por enfrentarmos, quase sempre, sociedades de advogados bem pagos (com dinheiros públicos). Tem sido uma batalha de David contra Golias, ainda mais desgastante por esse Golias (Administração Pública) dever existir para servir os cidadãos. Gostaríamos de fazer mais, ainda mais, mas estaremos sempre limitados financeiramente, e também em meios humanos, uma vez que muitos destes processos são demasiado complexos para serem ‘manejados’ por um único advogado que, obviamente, não trabalha a tempo inteiro (muito longe disso) para o PÁGINA UM. Para continuarem a contribuir especificamente para o FUNDO JURÍDICO, será preferível usarem o MIGHTYCAUSE, mas podem sempre optar por outras vias indicando o destino final. Obrigado.
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Os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a violência doméstico em contexto de casal já assustam, ultrapssando os 26 mil crimes registados só no ano passado. Mas o PÁGINA UM foi mais longe na análise e calculou os rácios deste tipo de crimes em função dos registos das autoridades policiais em cada município e da respectiva população residente. E mostra que a violência conjugal, embora presente em quase todo o lado, apresenta prevalências pavorosas em zonas rurais e do interior, sobretudo em partes do Alentejo, dos Açores e do interior da região Norte. Em exclusivo, o PÁGINA UM revela todos os números entre 2021 e 2023, naquele que será o primeiro trabalho de um dossier de investigação dedicado à criminalidade em Portugal.
As autoridades policiais registaram, só no ano passado, uma média diária de mais de 72 crimes de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, ou seja, incluindo todos os casos de coabitação em comum entre casais. Em todo o ano de 2023 foram 26.041 crimes registados pelas autoridades policiais. Estes números absolutos, revelados na semana passada no site do Instituto Nacional de Estatística (INE), estão em linha com os valores apurados em 2022 (26.073 crimes similares), mas são substancialmente mais elevados do que em 2021 (22.524).
Nos últimos três anos, o INE apresenta estes registos em números absolutos por município, colocando assim os concelhos de maior dimensão no topo, mas uma análise do PÁGINA UM, com base nas estimativas oficiais da população, possibilita apurar os rácios de criminalidade que se revelam, em muitos casos, surpreendentes.
Com efeito, em termos absolutos, os três concelhos mais populosos do país – Lisboa (cerca de 547 mil habitantes), Sintra (388 mil) e Vila Nova de Gaia (quase 307 mil) – são os que contabilizam mais crimes de violência doméstica. A capital portuguesa registou 1.777 destes crimes ao longo do ano passado, uma média de quase cinco casos por dia, enquanto em Sintra se contabilizaram 1.309 crimes, uma média de cerca de sete casos em cada dois dias. Estes dois municípios são os únicos que estiveram acima da fasquia do milhar de casos num só ano, evidenciando-se um crescimento entre 2021 e 2023 da ordem dos 26% em Lisboa e de quase 39% em Sintra.
Já a grande distância, no terceiro município mais populoso, Vila Nova de Gaia, as autoridades policiais contaram, no ano passado, 680 crimes de violência, uma média pouco inferior a dois casos por dia. Acima de um caso por dia durante o ano passado estão somente municípios com mais de 100 mil habitantes: além dos três já referidos, são os casos de Loures (676 crimes em 2023), Porto (620), Cascais (522), Almada (512), Amadora (504), Oeiras (489), Funchal (481), Seixal (422), Matosinhos (394) e Vila Franca de Xira (368).
Particularmente preocupante é a evolução em alguns destes municípios. Por exemplo, entre 2021 e 2023, no concelho do Funchal os crimes de violência doméstica cresceram 53%, em Loures 41%, no Seixal, em Oeiras e em Oeiras 38%.
No lado oposto, de entre os concelhos com mais de 100 mil habitantes com menor registo de crimes de violência doméstica estão Barcelos (221 casos em 2023), Maia (224) e Viseu (226).
Porém, quando se analise o rácio da violência doméstica – ou seja, os crimes por ano em função da população residente –, o cenário modifica-se, revelando-se a verdadeira dimensão de um grave problema socio-económico. Com efeito, considerando o número de crimes por mil residentes, o município mais violento é Barrancos: embora tenha um registo de 10 casos em 2023, tal sucedeu numa comunidade com menos de 1.500 habitantes. Se o seu rácio (6,8 casos por mil) fosse o de Portugal, em vez dos 26 mil casos registados a nível nacional, haveria mais de 71 mil. Ou seja, o pequeno município alentejano – conhecido pelas festas com touro de morte –, não é, neste aspecto, um exemplo muito dignificante.
Barrancos não é, contudo, um caso isolado no Alentejo, que se revela, nesta análise, como a região com maior prevalência de violência doméstica, seguindo-se os Açores. Com efeito, no top 10 dos municípios com maior rácio de violência doméstica em Portugal, sete são do Alentejo – Barrancos, Ferreira do Alentejo, Avis, Viana do Alentejo, Alter do Chão, Arronches e Cuba – e três dos Açores – Velas, Lagoa e Ribeira Grande. Nestes municípios, as autoridades policiais registaram no ano passado entre 4,8 e 6,8 crimes por cada mil residentes. Em alguns destes municípios, o crescimento entre 2021 e 2023 foi bastante significativo. Em Velas passou de 1,4 por mil em 2021 para 5,7 em 2023; em Alter do Chão de 1,3 para 5,4 e em Arronches de 1,4 para 5,0.
Se considerarmos os 20 municípios com maior violência doméstica, com excepção do Funchal (que tem mais de 100 mil habitantes), todos têm características sobretudo rurais, ganhando também preponderância o Alentejo. Metade destes municípios são alentejanos. No continente, o município do litoral com pior rácio de violência doméstica é Albufeira, com 4,1 crimes por mil residentes, ocupando a 21ª posição.
Barrancos, pequeno município alentejano conhecido pelos touros de morte, apresentou os piores rácios de violência doméstica no ano passado.
No caso da Grande Lisboa, os concelhos da Moita e Barreiro – respectivamente com 3,7 e 3,6 crimes por mil habitantes – são os piores. Já Lisboa e Sintra – que, em termos absolutos lideram a violência doméstica – acabam por descer de posição consideravelmente numa perpectiva de taxa de criminalidade. O município de Sintra ocupa o 48º lugar para o ano passado em termos de rácio, com 3,4 crimes por mil residentes, enquanto Lisboa ocupa a 56ª posição, com 3,2 crimes por mil residentes, ainda acima da média nacional (2,5 por mil).
No Norte – que em termos globais apresenta taxa de violência doméstico inferior à média nacional (2,1 por mil) –, há poucos municípios com rácios superiores a Lisboa, sendo todos de Trás-os-Montes e Alto Douro: Vila Flor (4,3 crimes por mil residentes), São João da Pesqueira (3,8), Freixo de Espada-à-Cinta (3,8), Alfândega da Fé (3,5), Peso da Régua (3,4), Vila Nova de Foz Côa e Torre de Moncorvo (3,3). Os dois principais municípios nortenhos – Porto e Vila Nova de Gaia – apresentaram também rácios mais baixos do que Lisboa: 2,6 e 2,2 por mil residentes.
Em todo o caso, a região Centro é aquela com melhores rácios – ou seja, com menos crimes de violência doméstica por mil residentes. As autoridades policiais registaram, no ano passado, menos de 1,8 crimes desta natureza por mil residentes. Em todo o caso, existem excepções muito negativas, mais uma vez quase sempre concentrados no interior, onde se destacam os municípios de Belmonte, Arganil, Celorico da Beira, Vila Velha de Ródão, Vila Nova de Paiva, Oliveira do Bairro, Seia, Penamacor, Manteigas, Cantanhede, Marinha Grande, Mangualde, Batalha, Góis, Fundão, Sever do Vouga, Ílhavo, Mêda, Estarreja e Covilhã. Estes concelhos apresentaram rácios compreendidos entre 3,0 e 4,5 crimes de violência doméstica por mil residentes.
Corvo: a pequena ilha açoriana, com quatro centenas de pessoas, é o único concelho do país sem registo de crimes de violência doméstico entre 2021 e 2023.
No extremo oposto – neste caso, favorável –, deve salientar-se os sete concelhos onde, no ano passado, não houve registos policiais de violência doméstica. Curiosamente, três são dos Açores – Corvo, São Roque do Pico e Lajes das Flores – e dois são do Alentejo – Mértola e Ourique –, duas regiões onde campeiam rácios elevados de violência doméstica. Neste grupo de sete ‘pacíficos’ (e magníficos) municípios estão ainda dois do distrito de Bragança: Vimioso e Vinhais. Em todo o caso, somente Corvo manteve o pleno de ausência de crimes de violência doméstico no triénio 2021-2023, enquanto Lajes das Flores teve também um ‘nulo’ em 2021.
Se se considerar um período de três anos, o cenário não se modifica muito. Os cinco piores concelhos ao nível da violência doméstica são Barrancos (20,5 crimes por mil residentes no triénio), Ferreira do Alentejo (17,9), Avis (16,0), Ribeira Grande (15,1) e Celorico da Beira (14,6), enquanto os cinco mais ‘pacíficos’ são Corvo (sem crimes), Mértola (1,6 crimes por mil residentes no triénio), Vimioso (1,9), Vinhais (2,7) e São Vicente (2,9). Quanto a Lisboa ocupa a 61ª posição a nível nacional, com um rácio no triénio de 8,9 crimes por mil residentes, estando um pouco abaixo de Sintra (56ª posição, com 9,1 por mil no triénio). O concelho do Porto está mais abaixo, na 115ª posição, com 7,3 crimes registados por mil habitantes entre 2021 e 2023, situando-se Vila Nova de Gaia na posição 164, cimj um rácio de 6,6.
Por ser uma entidade publicamente reconhecida pOR serviços neste sector, o PÁGINA UM contactou a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) para obter comentários, explicando previamente a análise efectuada com os dados do INE. Mas esta instituição de solidariedade social – que, no ano passado, recebeu 3,8 milhões de euros em donativos e subsídios estatais, funcionando à base de uma dezena de acordos e protocolos com o Estado e quase outros tantos protocolos camarários – não mostrou qualquer disponibilidade.
O gabinete de comunicação da APAV alegou ao PÁGINA UM não haver agenda nesta semana de qualquer responsável para comentar este assunto. A APAV conta com sete membros da direcção, presidida por João Lázaro, 109 trabalhadores e contabilizou custos com pessoal superiores a 2,4 milhões de euros no ano passado.
Aliás, esta associação tem registado um crescimento económico assinalável, duplicando o seu activo entre 2015 e 2023, passando de cerca de 2,8 milhões de euros para quase 5,7 milhões no ano passado, muito por fruto do aumento dos rendimentos, sobretudo subsídios públicos. No ano passado, os rendimentos da APAV aproximaram-se dos 4 milhões de euros, quando há cerca de uma década rondavam os 2 milhões de euros.
Pode consultar AQUIos valores de todos os concelhos, com o número total de crimes de violência doméstica e o respectivo rácio (crimes por mil residentes). Para o cálculo do rácio de cada um dos três anos (2021, 2022 e 2023) considerou-se as estimativas da população (do INE) para o respecfivo concelho relativas ao ano anterior.
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Se um Governo quiser impedir o acesso a documentos da sua função político-administrativa tem agora um bom argumento ‘fornecido’ por um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS): basta que diga que possuem natureza política. No decurso de uma intimação do PÁGINA UM para acesso ao inquérito sobre incompatibilidades preenchido por Caleia Rodrigues antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em Fevereiro do ano passado – o único que o fez ainda durante o Governo Costa –, três desembargadores do TCAS, entre os quais um ex-inspector-geral da Administração Interna, vieram agora confirmar uma sentença de há um ano do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para os desembargadores, aqueles inquéritos – que terão sido agora também preenchidos pelos membros do Governo Montenegro – são de natureza política, o que implica o seu imediato secretismo. Como a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, se mostra ambígua sobre os documentos que não são administrativos, significa que esta tese do TCAS, a fazer jurisprudência, concede o direito a qualquer membro do Governo alegar que todos os ofícios, estudos, relatórios e pareceres têm um cunho político, evitando assim a sua divugação. E mesmo o acesso a jornalistas.
Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), aprovado no final do mês passado, concede, de forma indirecta, a receita para qualquer Governo, no contexto da actual Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), fugir à transparência: alegar que relatórios, inquéritos ou outras quaisquer decisões escritas ou em formato digital são documentos políticos. Esse ‘truque’ transforma-os em documentos secretos, independentemente de qualquer classificação.
Em causa estava um processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos inquéritos dos convidados a integrarem os Governos, designadamente ministros e secretários de Estado, uma prática introduzida por uma Resolução de Conselho de Ministros no início do ano passado, mas que foi apenas usada no Governo de António Costa uma única vez. Gonçalo Caleia Rodrigues, antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em 15 de Fevereiro de 2023, foi o único que preencheu o inquérito, ao qual o PÁGINA UM pedira o acesso, que foi recusado pelo Governo de António Costa. Com a entrada em funções dos novos ministros e secretários de Estado do Governo de Luís Montenegro, terão sido, eventualmente, preenchidos novos inquéritos, embora com este acórdão não seja possível sequer conseguir confirmar documentalmente a sua existência.
Aprovado por unanimidade, o acórdão do TCAS assinado por três desembargadores, o primeiro dos quais é Pedro Figueiredo, inspector-geral da Administração Interna entre 2015 e 2019, tendo recebido um louvor do então ministro Eduardo Cabrita aquando da sua saída daquelas funções. Os outros dois desembargadores foram Marcelo Mendonça e Carlos Araújo.
A decisão do tribunal é muito lacónica e nem se perde sequer em grandes considerações. Ocupa pouco mais de duas páginas e confirma uma sentença de Abril do ano passado do Tribunal Administrativo de Lisboa com 10 páginas. O PÁGINA UM alegara que, embora se estivesse perante acto preparatório de uma decisão política – a posterior nomeação de governantes –, o inquérito (o documento em si) constituía o cumprimento de um requisito administrativo, emanado de uma lei, tanto mais que era preenchido por alguém que não exercia ainda funções governativas, sendo antes um pré-requisito de um cidadão para ser nomeado pelo primeiro-ministro ou por um ministro. Além disso, o PÁGINA UM salientava que, tendo a dita Resolução do Conselho de Ministros, justificado o inquérito pela “importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, o secretismo em redor do seu conteúdo era incongruente para esse propósito.
Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros estipula que “uma vez preenchido, o questionário [pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.” A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.
Contudo, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”
Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.
Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”
Em todo o caso, esta justificação nem sequer seria necessária, na interpretação dos juízes e desembargadores do Tribunal Administrativo. No acórdão, que confirma a linha de uma primeira sentença, conclui-se que “o preenchimento do dito ‘questionário de apreciação prévia’ insere-se no processo de escolha dos membros do Governo, pelo Primeiro-Ministro, tal actividade é política, não administrativa e visará salvaguardar o prestígio do Governo”. E dizem ainda os desembargadores que “as restantes preocupações referidas pelo recorrente [PÁGINA UM], nomeadamente o desejo de averiguar se o Governo deu cumprimento à Resolução Fundamentada referida nos autos, não são susceptíveis de alterar o decidido, porquanto a LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos] não o permite”.
Este acórdão abre, deste modo, uma panóplia de possibilidades a qualquer Governo em considerar político todos os pareceres, relatórios ou mesmo troca de comunicações elaborados para a posterior tomada de uma decisão ministerial ou do Conselho de Ministros, prejudicando assim a transparência tão propagandeada na teoria mas pouco evidente na prática. Aliás, ao contrário do que sucede em diversos países europeus, a legislação portuguesa na transparência nas decisões políticas é pouca.
Nesse âmbito, a LADA é, intencionalmente ambígua, permitindo interpretações à la carte como as do acórdão do TCAS, na definição do que não é documento administrativo. Nesse diploma, cuja primeira versão tem 31 anos, salienta-se que estão excluído do acesso “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – ou seja, não são, em princípios, acessivos mensagem de e-mail ou de WhatsApp –, ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português” e também “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação”.
Ora, este “designadamente” permite ambiguidades, porque não exclui outras actividades para além das que se referem às reuniões formais de governantes. No limite, se um qualquer governante assim desejar pode, a partir de agora, se a interpretação dos desembargadores fizer jurisprudência, alegar que todos os documentos, mesmo que aparentem ser de índole administrativa, constituem actividade política, até porque um Governo tanto administra como exerce funções políticas sendo a fronteiras entre estas funções bastante ténue ou mesmo inexistente.
Saliente-se que o PÁGINA UM, conhecendo à partida a possibilidade de insucesso desta intimação, avançou mesmo assim para que, em caso de indeferimento – como se confirmou agora –, pelo menos ficasse patente a hipocrisia de uma medida política de evidente populismo: decretou-se um inquérito prévio, em prol da transparência, para averiguar da idoneidade de futuros governantes, mas depois publicamente fica tudo secreto. No limite, pode nem sequer haver inquéritos preenchidos. E mesmo que existam, no fim das funções dos governantes, ou se os candidatos não forem aceites, a Resolução do Conselho de Ministros determina a sua destruição. Nem para os historiadores ficam. Na verdade, existirem ou não existirem os ditos inquéritos é ‘igual ao litro’. Nem servem ‘para inglês ver’.
As iniciativas do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo são financiadas pelo FUNDO JURÍDICO, com apoios dos nossos leitores. Em situações como a desta intimação, desfavorável ao PÁGINA UM, os encargos acabam por ser maiores por ser impostas as custas. Para manter a possibilidade de continuar as iniciativas em prol de uma maior transparência administrativa e política, apoie oFUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM. Neste momento, está em preparação a entrada de mais três intimações por recusa de documentação administrativa.
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A Justiça britânica reconheceu, esta terça-feira, que o pedido de extradição do jornalista Julian Assange por parte dos Estados Unidos viola o direito à liberdade de expressão, expõe o fundador da WikiLeaks à pena de morte e também à possibilidade de ser prejudicado no julgamento devido à sua nacionalidade. O tribunal deu aos Estados Unidos até ao dia 16 de Abril para apresentar garantias de que aqueles receios não se cumpram. Na sequência desta decisão de hoje, o PÁGINA UM republica a entrevista a Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, divulgada no dia 5 de Março. Na entrevista, Stella afirmou não ter dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, disse que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?
Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.
Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM. (Foto: PÁGINA UM)
Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?
Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.
Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?
Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.
Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.
Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.
Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)
E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?
Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.
Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.
Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.
Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.
E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.
Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.
Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.
E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?
Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…
Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)
Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?
Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.
É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.
Entrevista traduzida e editada para português
A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube
Portugal deve ser mesmo um país excelente para investimentos. Mesmo se um projecto espoletar indícios de falcatrua, tráfico de influências e prevaricação, com queda de Governo e processos judiciais à mistura, pode tudo continuar como se nada se passasse. E assim é no caso da empresa Start Sines Campus, no ‘olho do furacão’ da Operação Influencer, que deliberou há três semanas um novo empréstimo obrigacionista de valor chorudo: 25 milhões de euros. Na verdade, ‘enxotados’ os dois administradores portugueses no início do escândalo de Novembro passado, tudo aparenta estar como estava, incluindo a não revelação das contas da empresa do exercício de 2022. O atraso nesta obrigação tributária já vai em quase seis meses. Mas, quem se importa com isso?
Caiu um primeiro-ministro, caiu um Governo, caiu uma Assembleia da República, caíram administradores de empresas, caiu o Carmo e a Trindade que alimentou o mundo mediático e o mundo político em Portugal, vai realizar-se eleições legislativas em 10 de Março, mas a Terra continuou a rodar em torno do Sol, e os negócios a correr e a prosperar. Mesmo os da Start – Sines Transatlantic Renewable & Technology Campus.
Aparentemente imune ao ‘terramoto político’ que desencadearam as buscas em 7 de Novembro passado a São Bento – e as detenções de Vítor Escária e de Diogo Lacerda Machado –, a empresa que está, desde Abril de 2022, a construir uma mega-centro de dados em Sines, não abrandou os trabalhos nem a atracção e interesse de investidores, que aparentam acreditar num projecto apoiado até por uma “lei malandra”, que coloca António Costa sob suspeita de crime de prevaricação. E prova da ‘normalidade’ é a emissão de uma nova emissão de obrigações deliberada pela Start Sines Campus no antepenúltimo dia de 2023, e anteontem divulgada no Portal das Publicações de Actos Societários do Ministério da Justiça. E não foi de pequena monta, demonstrativo de que o projecto, indiferente aos processos judiciais e às eleições que se avizinham, continua em marcha acelerada.
Esta emissão de obrigações realizada por oferta particular totalizará os 25 milhões de euros, sendo que cada obrigação tem um preço de 100 mil euros. Esta foi a 15ª série de obrigações emitidas, e que já totalizam 208,1 milhões de euros, o que revela que existem infindáveis investidores (anónimos) pouco interessados em ver o polémico projecto. Ou seja, esta última emissão conseguiu ‘capitalizar’ cerca de 12% do dinheiro já amealhado pela empresa para investir no data center de Sines.
A empresa formada por um ‘consórcio’ de dois fundos de investimento (Davidson Kempner e Pioneer Point Partners), mas numa complexa e obscura “cascata de empresas”, bem detalhada por uma investigação do jornal Eco, tem apenas um capital social de um milhão e euros, mas esconde as suas contas. As últimas contas conhecidas são relativas ao exercício de 2021 e na Base de Dados das Contas Anuais continuam sem surgir a declaração da Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa ao ano de 2022, que deveria ter sido entregue até 15 de Julho de 2023, de acordo com o Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (CIRC). Ou seja, já há um atraso de quase seis meses na entrega.
Assim, conforme já revelara o PÁGINA UM em Novembro passado, as únicas informações relevantes da Start – Sines têm sido os sucessivos empréstimos obrigacionistas que aumentaram a sua dívida em 151 milhões de euros desde Novembro de 2022. A partir desse período, são conhecidas, portanto, já nove emissões: seis milhões de euros em Novembro de 2022, mais duas tranches no mês seguinte no valor total de 23,6 milhões de euros, e as restantes em 2023, sendo que 16,5 milhões de euros foram em Fevereiro, 12 milhões em Julho, 20,1 milhões em Agosto, duas tranches em Outubro (15,6 milhões e 32 milhões) e 25 milhões no dia 29 de Dezembro, já depois da destituição de Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e a nomeação de Robert Dunn.
Governo Costa caiu, surgem suspeitas em torno de uma ‘lei malandra’, mas empresa de Sines continua como se nada fosse, e arrecadou mais 25 milhões de euros para continuar investimentos.
Continuam sem ser conhecidas as condições destas emissões obrigacionistas, mas com o agravamento da Euribor a 12 meses ao longo deste ano será sensato admitir que a empresa estará a pagar uma taxa de juro próxima de 14%, ou seja, um spread de 10%. Com efeito, nas contas de 2021 da Start Sines Campus refere-se que foi celebrado “um contrato com a Adare Finance DAC, denominado de ‘Programme Agreement’, que determina um montante de empréstimo à Empresa até ao montante agregado de 50.000.000,00 euros, com juros à taxa fixa de 10%”. Como nesse período a Euribor estava em terreno negativo, e agora está nos 4,2%, significa que a Start Sines estará a oferecer um rendimento potencial acima de 14%.
Em todo o caso, sem a consulta das contas de 2022 não será possível ter uma ideia mais concreta da saúde financeira deste investimento, nem sequer confirmar aquilo que foi dito pelos então responsáveis da empresa durante o interrogatório no Tribunal de Instrução Criminal: um investimento, até este mês, de 162 milhões de euros” na aquisição de direitos sobre terrenos, em equipamentos e em construção”.
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