Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo…
[…]
Álvaro de Campos, Vem, Noite antiquíssima e idêntica (1914)
Tendo dado à sua última crónica semanal o título “Os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis”, Ana Cristina Leonardo concluía a sua reflexão afirmando que, perante a hipótese de uma III Guerra Mundial, se deviam esquecer os poetas, porque «os exércitos irão salvar o mundo»[1].
Cavaleiros a cavalo (séc. VI d.C.) (a partir de uma pintura mural, na província de Shanxi, na China)
1. Havendo todas as razões para nós, povo aberto a todos os horizontes, línguas e lugares, fazermos o inverso do que aparentemente anunciavam o título e a conclusão daquela nossa escritora[2], recuemos um pouco no tempo, para ir ao encontro de Li Bai (701-762 d.C.)[3], poeta de que as crianças chinesas ainda hoje aprendem a decorar alguns versos, poeta que em vida ficou conhecido como o “imortal exilado do Céu” e que, não obstante tudo, continua a ser divinizado em zonas rurais da China e no Vietname.
Li Bai
2. Do cancioneiro de cerca de 1100 poemas seus que nos chegaram, o poema aqui apresentado, composto em estilo yuefu[4], não versa nem sobre o vinho, nem sobre a Lua, nem sobre a vida de retiro, nem sobre a saudade das esposas-meninas – temas que seguramente o imortalizaram –, mas sobre a guerra, que também acabou por conhecer de perto, pois, se até meados do século VIII, o Império conhecera a paz, é também a partir de 750 que o tema da guerra se desenvolve na sua poesia[5].
Refere António Isidro a propósito deste poema (a que cada tradutor dá um título diferente) que Li Bai terá assistido ao embarque de tropas para uma campanha, saindo a voz «embargada do seu pincel, para contar a tragédia da guerra e o cataclismo que ameaça o reinado do imperador Tang Xianzong»[6].
Não obstante a existência de pelo menos duas traduções portuguesas do poema[7] (além das múltiplas traduções inglesas a que tive acesso)[8], por diversas razões, optou-se por fornecer aos leitores do PÁGINA UM uma versão elaborada a partir da tradução feita por Pietro de Laurentis, Professor da Universidade de Nápoles “A Oriental”, um orientalista que se tem dedicado de modo especial à caligrafia e à estética da China medieval[9].
No ano passado lutámos na nascente do Rio Sanggan.
Este ano lutámos
no curso do Rio Pamir.
Os cavalos de guerra banham-se nas ondas do Lago Tiaozhi,
ao galope nas pastagens nevadas das Montanhas Tianshan.
Expedições de guerra com dez mil milhas de comprimento,
terminado o combate, as nossas tropas envelheceram.
Matar e massacrar são as ocupações dos Tártaros,
desde tempos antigos, vêem-se apenas ossos brancos nas areias amarelas.
Para se defenderem dos bárbaros, os Qin construíram a Muralha,
no tempo em que os Han queimavam as tochas lá do alto.
As tochas de avistamento ardiam incansavelmente,
e as expedições de guerra não terminavam nunca.
Morria-se em campo aberto combatendo corpo a corpo,
os cavalos exaustos relinchavam de dor em direcção ao Céu[11].
Corvos e falcões bicavam dos corpos humanos as entranhas,
que apertadas no bico transportavam para as árvores secas e deixavam dependuradas nos ramos.
Soldados espalhados entre ervas desoladas, que benefício tem a vida de um general?
Sabe-se, objectos nefastos são as armas,
o sábio apenas as usa se não tiver alternativa[12].
Pavilhão Memorial de Li Bai (em Jiangyou)
José Melo Alexandrino é professor universitário
[1] Crónica publicada no caderno ípsilon do jornal Público, em 22 de Novembro de 2024, pp. 30-31 (disponível on-line, para assinantes, aqui).
[2] Basta para o efeito ler e reflectir no artigo, para concluir que a lição a extrair é a inversa.
[3] Para uma, aliás excelente, biografia daquele que é considerado por muitos (ou juntamente com Du Fu) o maior poeta chinês, veja-se Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, cit., pp. 1-20; para uma biografia em português, António Graça de Abreu, Cem Poemas de Li Bai, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2021, pp. 22-69.
Sobre o poeta, em língua portuguesa, merecem referência as obras de António Graça de Abreu: Poemas de Bai, 2.ª ed., Macau, Instituto Cultural de Macau, 1996 (tendo a 1.ª edição, datada de 1990, contado com uma intervenção de Natália Correia, em palavras publicadas em 2021, na obra já citada, Cem Poemas de Li Bai, pp. 12-21); ainda em obra coordenada por António Graça de Abreu e Carlos Morais José, Quinhentos Poemas Chineses, Lisboa, Nova Vega, 2014, pp. 135-152 (na tradução de diversos autores), por último, numa belíssima edição, António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, Macau, Livros do Meio, 2022.
[4] Sobre o qual, Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, cit., p. 56.
[5] António Graça de Abreu, Cem Poemas…, cit., p. 66.
[6] António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, cit., p. 191.
[7] Assim, António Graça de Abreu: Poemas de Bi Bai…, cit., pp. 226-227; Id., Cem poemas de Li Bai, cit., pp. 184-185 (com o título “Lutámos a sul das muralhas”); António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, cit., pp. 191-192 (com o título “As Guerras a Sul da Cidade”).
[8] A maior parte das quais acusando influência da tradução de 1919 de Arthur Waley (e dos excessos de liberdade poética que esse renomado sinólogo britânico confessadamente se concedeu nessa versão).
[9] Cfr. Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, Milano, Edizione Ariele, 2016 p. 93.
[10] A partir da tradução oferecida por Pietro de Laurentis (obra citada, p. 317), uma versão possível deste poema autógrafo de Li Bai pode ser a seguinte:
Altos os montes, longos os rios,
milhares e milhares os fenómenos do universo.
Privado de um adequado pincel,
poderias realmente descrever tanta pureza e potência?
[11] Dada a sua beleza poética, este verso é assim traduzido por António Graça de Abreu:
Relincham para o céu cavalos sem cavaleiro.
[12] Segundo António Graça de Abreu, os dois últimos versos são uma citação do capítulo 31 do Tao Te Ching, apresentando então a seguinte tradução (cfr. Cem Poemas.., cit., p. 185):
Abomináveis e cruéis as guerras!
O homem de bem só obrigado as faz.
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Quando no início de Novembro de 1944 aqueles corpos foram atirados para a vala comum em Abda, junto ao rio Rába, nenhum dos presentes podia imaginar que, no bolso das calças de uma daquelas vinte e duas pessoas acabadas de executar, houvesse alguma coisa digna de verdadeira nota.
Só dois anos depois, terminada a guerra, com a exumação dos corpos, viria a ser descoberto um caderno[1] de papel quadriculado, de quinze centímetros de altura por dez de largura, em cuja primeira página (escrita em húngaro, inglês, alemão, francês e servo-croata) estava escrito: Por favor, entregue este caderno, que contém poemas do poeta húngaro Miklós Radnóti, ao Sr. Gyula Ortutay, professor da Universidade de Budapeste. Antecipadamente grato.
Apesar de reconhecido como um dos maiores tradutores húngaros[2], apesar dos sete livros de poemas que publicara em vida, apesar do doutoramento em Filosofia e dos prémios que já recebera[3], esse caderno com apenas dez poemas viria a tornar-se a peça mais extraordinária do legado (literário, histórico e humano) daquele judeu húngaro de 35 anos, que quisera receber o Baptismo no ano de 1943 e que recusara a fuga que a tempo lhe fora oferecida.
Todavia, a 30 de Outubro de 1944, ou seja, a escassos dias da morte com um tiro na nuca, um jornal de Temesvár (hoje, Timisoara, na Roménia), o Déli Hírlap, publicou dois dos poemas que também estavam escritos nesse caderno (A Sétima écloga e A la recherche), num artigo intitulado “Poetas atrás do arame farpado”. Isto, porque o poeta, em Outubro desse derradeiro ano, conseguira passar a um dos condenados, entretanto libertado do campo pelos partisans jugoslavos, Sándor Szalai, cinco poemas (um dos quais aqui apresentado, escrito a 15 de Setembro).
Cumprindo-se agora 80 anos destes episódios, pretendi lembrar neste texto os últimos seis meses da vida de Miklós Radnóti, através da oferta aos leitores deste jornal de uma versão possível de três poemas seus[4], o primeiro escrito ainda em Budapeste (O perseguido), antes de ser arrancado à cidade, o segundo já no campo de concentração de Bor, na ex-Jugoslávia (Marcha Forçada), e o último dos que escreveu em vida (Bilhete Postal 4).
Reprodução da parte superior do retrato do poeta da autoria de Armando Alves (retrato avulso inserido na obra editada no Porto, em 1982: “Poemas de Miklós Radnóti”)
1. UMA DESCOBERTA CADA VEZ MENOS ESTRANHA
O presente exercício seria descabido se em Portugal houvesse, como era previsível que existisse, um satisfatório cultivo das Letras.
Infelizmente, não é assim.
Desde logo, no plano da Universidade – “um estado de coisas” (Vasco Pulido Valente) agravado pela “funcionalização” imposta por Bolonha e pela imparável “mercantilização” do espírito, do processo e do produto. Na verdade, em nenhuma das nossas Faculdades de Letras (ou em qualquer outra) se encontra uma obra de Miklós Radnóti, uma obra sobre Miklós Radnóti, uma dissertação ou uma tese acerca de Miklós Radnóti.
E se, no mês passado, era o panorama do ensino, da investigação e da prática em Psiquiatria que nos estarrecia, agora – já mais aclimatados a esta periférica tristeza –, é o estreito horizonte da Poesia a intimar-nos.
Mas também é assim no plano da sociedade, no caso, no plano editorial. Apesar das proclamações em contrário – do género: “a geração mais preparada de sempre!” –, as duas únicas edições portuguesas de alguns poemas de Miklós Radnóti têm mais de 40 anos[5] e nenhum desses (pequenos e deficitários) livros, há muito esgotados, se encontra sequer disponível na Biblioteca Nacional.
E tudo isto mesmo depois da rara exaltação do poeta feita pelo Papa Francisco.
Capa da obra editada por Tereza Balté e Zoltán Rózsa em 1982
2. OS POEMAS
Os três poemas que a seguir apresentamos, exemplos de bucólicas “in extremis”[6], além das suas múltiplas versões em inglês, estão igualmente traduzidos em diversas outras línguas (com destaque para a italiana), incluindo a castelhana[7] e a portuguesa[8].
Não possuindo conhecimentos da língua húngara, além do apoio pessoal pontual a que recorri, a opção foi a de confrontar as diversas propostas, particularmente na sua consistência literária, tendo no final optado pela tradução das seguintes versões: no primeiro poema, a tradução foi feita a partir da versão inglesa oferecida por Thomas Ország-Land, no site Visegrad Literature; no segundo e no terceiro poemas, a tradução foi feita a partir das versões italianas disponibilizadas pelo Professor Alessandro Fo, no seu estudo «Sogno pastorale e drammi della Storia: fra Mantova e Bor», publicado inicialmente em 2014[9].
O perseguido
Da minha janela vejo uma encosta,
mas ela não me vê;
estou quieto, o poema destila da minha caneta
mas nada importa ao escondido;
ainda que não possa entendê-la,
vejo essa solene graça antiga:
como sempre, a lua surge no céu
e a cerejeira explode em flor
9 de Maio de 1944
Bujdosó
Az ablakból egy hegyre látok,
engem nem lát a hegy;
búvok, tollamból vers szivárog,
bár minden egyre megy;
látom de nem tudom mivégre
e régimódi kegy:
mint hajdan, hold leng most az égre
s virágot bont a meggy.
Marcha Forçada
É louco aquele que, tombado, de novo se levanta e se encaminha,
e com dor errante move joelhos e tornozelos,
e ainda assim vai pela estrada como se tivesse asas,
a vala chama por ele em vão, não tem coragem de ficar,
e se lhe perguntares por que não? talvez ainda te responda
que uma mulher está à sua espera, uma morte mais sábia, uma morte bela.
Todavia é louco, o manso, porque lá ao longe sobre as casas
há muito não volteia mais do que um vento abrasador,
a parede desabou, despedaçada está a ameixieira[10]
e o medo é o manto das noites lá na pátria.
Ah, se eu pudesse acreditar: não só trazer no coração
tudo o que ainda tem valor, e haverá uma casa para onde voltar?
se houvesse! e como outrora na varanda fresca
a abelha pacífica zumbisse, enquanto o doce de ameixa arrefece,
e o silêncio do final do Verão se banhasse ao sol nos jardins sonolentos,
e os frutos nus balançassem por entre os ramos,
e Fanni estivesse à minha espera loira em frente à sebe
e lentamente a manhã lenta a desenhar a sombra –
talvez ainda seja possível? a lua hoje está tão redonda!
Não passe por mim, amigo, grite-me! e eu levanto-me!
Bor, 15 de Setembro de 1944
Erőltetett menet
Bolond, ki földre rogyván fölkél és újra lépked,
s vándorló fájdalomként mozdít bokát és térdet,
de mégis útnak indul, mint akit szárny emel,
s hiába hívja árok, maradni úgyse mer,
s ha kérdezed, miért nem? még visszaszól talán,
hogy várja őt az asszony s egy bölcsebb, szép halál.
Pedig bolond a jámbor, mert ott az otthonok
fölött régóta már csak a perzselt szél forog,
hanyattfeküdt a házfal, eltört a szilvafa,
és félelemtől bolyhos a honni éjszaka.
Ó, hogyha hinni tudnám: nemcsak szivemben hordom
mindazt, mit érdemes még, s van visszatérni otthon;
Agradeço, penhorado, à minha amiga Nora Kiss o ter-me dado a conhecer o poeta Miklós Radnóti, bem como todos os reparos e observações que nestes dias comigo teve a disponibilidade de partilhar.
Actualização (4 de Novembro de 2024)
No seguimento do atento e cuidado reparo feito pelo escritor e poeta Ernesto Rodrigues acerca das obras de Miklós Radnóti – nome pelo qual é habitualmente citado e conhecido, apesar de, como refere, a ordem dos seus nomes ser a inversa – existentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no dia 4 de Novembro (precisamente aquele em que se completam 80 anos da morte daquele grande poeta húngaro), ficou igualmente disponível o acesso à nova versão do Serviço de Pesquisa Bibliográfica da Universidade de Lisboa. Aquando da redacção do artigo publicado a 31 de Outubro, a pesquisa então feita no catálogo não registava a existência dos livros (nem dos artigos de revista) de e sobre Miklós Radnóti que agora figuram efectivamente como existentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Agradecidos a Ernesto Rodrigues pela oportuna observação, minorada por esta razão a tristeza referida no ponto 1 do referido artigo, aqui deixamos aos leitores do PÁGINA UM o devido esclarecimento, extensível ao registo de se deverem igualmente a Ernesto Rodrigues traduções portuguesas de alguns dos poemas de Miklós Radnóti, designadamente dos que foram integrados nas obras Antologia da Poesia Húngara, Lisboa, Âncora Editora, 2022, e Hungarica, Lisboa, CLEPUL, 2022.
* A citação de Stefano Carral foi colhida no artigo, mais adiante referido, «Sogno pastorale e drammi della Storia: fra Mantova e Bor», do Professor Alessandro Fo.
[1] Apesar de lamentavelmente não estar publicado entre nós, o caderno em questão tem o nome de Caderno de Bor, “Cuaderno de Bor” (em castelhano), “Bor notebook” (em inglês), “Taccuino di Bor” (em italiano), etc.
[2] Desde Safo a Hölderlin, passando, entre muitos outros, por Catulo e Brecht (cfr. Cecilia Malaguti, «“Descensus Ad Inferos”, Il viaggio di Miklós Radnóti negli abissi dell’anima», in Rivista di Studi Ungheresi, III (2004), p. 1.
[3] No sítio da Academia Húngara das Ciências, pode ver-se a biografia de Miklós Radnóti.
[4] As versões originais em húngaro estão disponíveis a partir do seguinte Catálogo Electrónico <http://mek.niif.hu/hu/>.
[5] São elas: Poemas de Miklós Radnóti, trad. de Zoltán Rózsa e versões de Tereza Balté, Porto, O Oiro do Dia, 1982; Zoltán Rózsa (org.), Poetas Húngaros – Antologia, Lisboa, Moraes, 1983, pp. 141-151.
[6] Sobre o tema, Seamus Heaney, «Egloghe “in extremis”, la capacità di resistenza della pastorale», trad. italiana do original inglês de Gabriella Morisco, in Roberto Andreotti (ed.), Resistenza del Classico, Milano, BUR Rizzoli, 2010, pp. 61-78.
[7] Destaque merece ser aqui dado à relativamente recente edição do Cuaderno de Bor, com tradução de Susana Lajtaváry e Peter Kiss, Rosário, Miércoles14Ediciones, 2020 (em edição bilingue e no formato original de 15cm x 10 cm).
[8] Os três poemas aqui oferecidos encontram-se traduzidos na obra Poemas de Miklós Radnóti, cit., pp. 23, 32 e 33, respectivamente; os dois últimos figuram igualmente, em idêntica tradução, na obra organizada por Zoltán Rózsa, Poetas Húngaros – Antologia, cit., pp. 149 e 151; os poemas Marcha Forçada e Bilhete Postal4 foram traduzidos por Paulo Schiller e publicados na revista Ilustríssima da Folha de São Paulo, em 14 de Maio de 2014, disponíveis aqui (para assinantes); o poema Bilhete Postal4 foi também traduzido por Luís Naves e divulgado no blogue Delito de Opinião (disponível aqui).
[9] Alessandro Fo, «Sogno pastorale e drammi della Storia: fra Mantova e Bor», in Bvllettino Sennese di Storia Patria, CXXI (2014), pp. 213-223, disponível aqui e também aqui.
[10] É pacífico o entendimento de estar aí presente o símbolo fundamental (a faia despedaçada) da IX Écloga de Virgílio (sobre o assunto, com outras indicações, Alessandro Fo, «Sogno pastorale…», cit., p. 221).
[11] O corpo era o do violinista Miklós Lorsi, «também ele um “manso”, crescido nas ilusões e nos confortos da beleza» (cfr. Alessandro Fo, «Sogno pastorale…», cit., p. 222).
[12] A passagem em alemão, glosadíssima dentro e fora da Hungria, pelas suas implicações literárias, políticas, religiosas, rácicas e identitárias, pode ser traduzida deste modo: “este ainda saltita”.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Belo Horizonte – “É significativo o fato de que a esquizofrenia atinge as pessoas jovens, exatamente as que têm dificuldade de se adaptarem a uma lógica de vida que os contraria”. Afirmou ontem o psiquiatra italiano Franco Basaglia, que participa do III Congresso Mineiro de Psiquiatria.
Basaglia lembrou que todas as lutas dos jovens dos anos 60 foram abertas por problemas de drogas e, paradoxalmente, diminuíram os problemas da esquizofrenia. Segundo ele, a esquizofrenia é um dos modos de racionalizar ou de justificar a loucura de modo institucionalizado, é um modo de reagir aos insultos da vida.
«Esquizofrenia debatida em MG», in Jornal do Comércio, edição n.º 22844, de 20 de Novembro de 1979.
[No] momento em que o social entra na medicina, o médico já não percebe mais nada, porque está habituado a pensar que o seu doente seja um corpo doente, um tumor, um fígado doente, uma cabeça doente. Não lhe passa pela cabeça que esta pessoa, que esta doença, que esta situação possam ser consequências da vida.
Franco Basaglia, na primeira resposta dada no debate relativo à conferência «Psiquiatria e Política: o manicómio de Barbacena», proferida em 21 de Novembro de 1979, em Belo Horizonte.
A impossibilidade de uma apresentação integral, na edição de 22 de Agosto, do texto inicialmente pensado para recordar o nome de Franco Basaglia nas páginas deste jornal, teve a vantagem de funcionar como um favorável imprevisto, por me ter dado a oportunidade de um regresso ao assunto, designadamente para proceder a um exercício de confronto de panoramas de observação em Portugal e no Brasil.
Caso para usar de empréstimo as palavras de um verso: mais uma vez (noch einmal)!
E o imprevisto veio a proporcionar igualmente a oportunidade de poder apresentar ao público português a (primeira) versão na nossa língua do texto da última conferência proferida por Franco Basaglia[1], em 21 de Novembro de 1979, em Belo Horizonte, tradução que o PÁGINA UM oferece agora em anexo aos seus leitores.
Se a aproximação do centenário do nascimento do carismático fundador da corrente da “Psiquiatria Democrática”[2] já vira renascer o interesse médico[3], histórico-biográfico[4], científico[5] e político[6] pelo pensamento e pela (ambivalente e complexa) acção dessa figura, certo é que em nenhum outro país do mundo Franco Basaglia deixou tantas saudades como no Brasil, pelas razões que, numa pequena amostra, tentaremos dar conta nas páginas seguintes.
1. UMA ESTRANHA DESCOBERTA
Em abono da bem diferente situação portuguesa, está o facto – é melhor dizê-lo desde já – de Franco Basaglia nunca ter tido ocasião de fazer uma visita a Portugal, diversamente do que sucedeu a Barcelona, onde, com uma só lição, conseguiu que o movimento da psiquiatria democrática florescesse no país vizinho, movimento clandestino, numa primeira fase, e depois mais institucionalizado, designadamente em torno de uma editora (La Revolución Delirante), de um estruturado movimento de psiquiatras, de um site e da persistência de outras ligações a Trieste.
Todavia, se foi na bacia ocidental do Mediterrâneo (Itália, Grécia, Sérvia, Espanha, mas também: França, Holanda, Bélgica, Escócia, País de Gales, Suécia, Polónia, etc.) e em geral na América do Sul que Basaglia alcançou maior projecção, é deveras espantoso que em Portugal o seu rasto tenha sido nulo, a começar pela formação universitária dos médicos.
Com efeito, se a curiosidade me levou nestes dias a pesquisar nas bibliotecas das principais Faculdades de Medicina públicas portuguesas (de Lisboa, de Coimbra e do Porto), a primeira descoberta que fiz não me podia ter deixado mais estarrecido: em nenhuma dessas bibliotecas existia uma única obra de Franco Basaglia ou sequer sobre Franco Basaglia.
Glória por isso aos dois exemplares de obras suas de que dispõem o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o Instituto de Ciências Sociais e a Faculdade de Psicologia/Instituto de Educação da Universidade de Lisboa – visitas a recomendar, por conseguinte, aos estudantes de Medicina, bem como aos psiquiatras formados em Portugal.
Sem necessidade de nos alongarmos sobre o assunto, embora o tema da “velha Psiquiatria” praticada entre nós mereça um regresso em força, esta descoberta liminar elucida-nos quanto baste acerca de quatro coisas: (i) que, em Portugal, não há nem pode haver reflexão crítica aprofundada sobre a teoria nem sobre as práticas da Psiquiatria; (ii) que, em Portugal, não existe, nem pode ter existido até agora, pensamento, investigação ou ensino críticos aprofundados da Psiquiatria; (iii) que, em Portugal, não existe, nem pode existir (salvo, como realmente acontece, no plano de personalidades isoladas) uma prática psiquiátrica (hospitalar, comunitária ou privada) que tenha tido em suficiente linha de conta os contributos das novas correntes da Psiquiatria surgidas no último meio século[7]; (iv) é por isso perfeitamente normal que, em Portugal, salvo esses tais casos isolados, o paradigma da Psiquiatria se deva por conseguinte situar ainda entre (o distante) Pinel e o “Manicómio Químico” dos últimos 50 anos[8], com o seu rol de novos “crimes de paz” (Basaglia), a exigir igual denúncia e desmantelamento, tanto mais pelas insidiosas ligações dessas práticas com a sempre cada vez mais poderosa indústria farmacêutica.
2. FRANCO BASAGLIA NO BRASIL
Diversamente por isso do que se passou em Portugal, Franco Basaglia teve ocasião de visitar o Brasil por três vezes, visitas que viriam a ter lugar nos seus últimos anos de vida. E o mínimo que se pode dizer, do lado dele, é que soube aproveitar essas viagens como poucos; do lado dos brasileiros, como poderiam eles esquecer alguém que se ofereceu ao Brasil com tal intensidade e carinho e que deles se despediu, na conferência que agora apresentamos, com a declarada tristeza de poder não os voltar a ver?
Na primeira ocasião, fora convidado para o célebre 1.º Simpósio Internacional de Psicanálise de Grupos e Instituições, realizado entre 25 e 29 de Outubro de 1978, sob organização do argentino Gregório Baremblitt, que conseguiu juntar no Copacabana Palace cerca de 2000 pessoas, para ouvir gente tão célebre como Pierre Guattari, Robert Castel, Erving Goffman, Howard Becker, para não falar da estrela da altura, Sheri Hite[9], mas onde a figura central era sem dúvida o próprio Basaglia[10] (e a vitória que tinha alcançado alguns meses antes na Itália, com a aprovação da lei com o seu nome)[11]. Ora, se o melhor hotel do Rio de Janeiro tinha sido escolhido para o honrar[12], terminadas as palestras, Basaglia preferia no entanto ir para a rua, ao encontro dos sindicatos, dos hospitais psiquiátricos, dos lares e das clínicas, das universidades, dos trabalhadores, dos jornalistas[13]. E, não nos tendo chegado registo escrito das intervenções feitas nesse Simpósio, a boa notícia é a de que estão agora a ser transcritos e preparados os Anais do evento.
Depois desse primeiro grande impacto, com convites vindos de todos os lados, Basaglia regressaria ao Brasil em Junho e Julho do ano seguinte, para a viagem que, nas suas dimensões humana, política, simbólica e comunicativa, ficou seguramente como a passagem mítica do Professor italiano por terras do Brasil, tendo percorrido diversas cidades (Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Barbacena)[14], para nelas proferir conferências, leccionar cursos e seminários e sobretudo agitar decididamente, sem temer o escândalo[15], as águas do status quo.
E viria ainda uma terceira vez, para participar com Robert Castel no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, organizado entre 15 e 21 de Novembro de 1979, em Belo Horizonte.
Franco Basaglia em visita ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. Foto: DR
Se a primeira e a terceira viagens foram sempre acompanhadas pela imprensa (embora com a devida contenção dos meios afectos ao regime (como a Globo e o Estadão), nenhuma delas se havia de gravar para sempre na memória do Brasil como a viagem do Verão de 1979.
Com efeito, não foram apenas as dezenas de notícias e de reportagens de televisão feitas sobretudo no seguimento da visita que efectuou ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, mas também o facto de:
A partir dessa visita, o fotógrafo Hiram Firmino ter feito uma série de reportagens no jornal Estado de Minas, que levariam à publicação do livro Nos Porões da Loucura e, mais tarde, à integração dos respectivos originais no “Museu da Loucura”, inaugurado em 1996 num dos 16 pavilhões do antigo manicómio;
O cineasta Helvécio Ratton ter realizado, a partir dessa visita, o documentário Em nome da razão (hoje disponível aqui), com uma extraordinária repercussão logo nesse ano;
De a mineira Iole de Freitas, que já participara na organização do 1.º Simpósio de 1978, ter realizado igualmente a curta-metragem Deixa Falar, rodada na recém-criada Cidade de Deus, peça que viria a ser comentada com palavras extremamente duras por Franco Basaglia em Novembro de 1979[16];
De ter sido ainda no seguimento dessa visita, uma vez descobertas as fotos feitas por Luiz Alfredo na revista O Cruzeiro de 1961, que veio a ser editado o livro (colônia: uma tragédia silenciosa), organizado em 2008 pelo psiquiatra Jairo Furtado Toledo (aluno do 5.º ano de Medicina por altura da visita de Basaglia a Barbacena e a quem mais tarde seria confiada a direcção do estabelecimento, cujo desmantelamento veio a concretizar);
De radicar também nesse momento simbólico o livro publicado em 2013 pela jornalista Daniela Arbex, o Holocausto Brasileiro, com base no qual viria a ser mais tarde realizado o documentário com o mesmo nome (agora disponível aqui, de visualização não recomendada a menores de 16 anos).
Por fim, deve deixar-se claro que foi também a segunda viagem de Basaglia ao Brasil que esteve na origem das primeiras edições do livro Conferenze brasiliane: na verdade, a primeira edição dessa famosa obra foi publicada no Brasil ainda nesse ano (Franco Basaglia, A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática: conferências no Brasil, São Paulo, Brasil Debates, 1979), em edição coordenada por Darcy Antonio Portolese e Gabriel Roberto Figueiredo (com tradução das partes em italiano de Sônia Soianese e de Maria Celeste Marcondes), tendo havido uma segunda e uma terceira edição (em 1982); ora, foi com base neste texto em português (que não integrava as conferências de Belo Horizonte) que viriam a trabalhar Franca Basaglia e Maria Grazia Giannichedda quando publicaram, na Itália, em 1984, num número especial da revista do movimento, Fogli di Informazioni, a primeira edição italiana das Conferenze brasiliane. E veio a ser apenas no seguimento da descoberta, já no final do século, pelo psiquiatra Antônio Soares Simone, das fitas magnéticas das quatro conferências de Belo Horizonte, proferidas em Novembro de 1979, que se tornou possível publicar na Itália, no ano 2000, o volume das 14 intervenções e debates que constituem a versão canónica das Conferências Brasileiras hoje disponíveis em diversas línguas (ainda que, lamentavelmente, nenhuma delas a portuguesa)[17].
Capa da edição original do livro ‘Holocausto Brasileiro’, de Daniela Arbex, publicado em 2013.
3. FRANCO BASAGLIA EM BELO HORIZONTE
Embora Franco Basaglia, vindo de Itália, tenha feito duas viagens a Belo Horizonte, chegou por muitas vezes a Belo Horizonte, no regresso de périplos por outros recantos do estado de Minas Gerais.
Chegado à cidade nas vésperas da “Semana Franco Basaglia”, que decorreu entre 25 e 29 de Junho de 1979 (onde leccionou um curso, seminários e supervisões), os organizadores do evento quiseram mostrar ao Professor italiano toda a rede de hospitais psiquiátricos públicos que faziam parte da “Fundação hospitalar do Estado de Minas Gerais” (o hospital Gaia Veloso, o Instituto Raul Soares, bem como o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena)[18].
Segundo o testemunho de Antônio Soares Simone[19], se a visita aos dois primeiros hospitais já o tinha deixado em choque, a visita a Barbacena «teve nele um impacto tão violento que o deixou deprimido. Basaglia, que devia falar à comunidade terapêutica, chegou à sede do curso [em Belo Horizonte] mas não queria falar. No início, houve um silêncio pesado e depressivo, enquanto o público o incitava a falar». E, tendo começado a referir-se à história da Psiquiatria, foi deixando frases como estas: “há sítios no mundo onde a história parou”, “há situações em que é impossível encontrar soluções de compromisso, porque se o fizermos estaremos a fazer um compromisso com a morte, e com a morte não há compromisso possível”. E, então, acrescenta Soares Simone, «comoveu o público».
Na narração feita pelas jornalistas italianas Ludovica Jona e Elisa Storace, depois do facto extraordinário de a Junta Militar ter consentido na visita e depois de Basaglia ter visto realmente 1600 pessoas nuas e atadas, na viagem de regresso a Belo Horizonte, ele não disse uma única palavra e, depois disso, mal conseguia falar.
Depois de ver o que não concebia ver[20], de ouvir (do director de Barbacena) o que não concebia ouvir[21] e de, no final da visita, questionar o «governador da época, Francelino Pereira[22], sobre o que via: um campo de concentração e extermínio, responsável pela fabricação de cadáveres para 17 escolas de medicina»[23], Basaglia não conseguia falar.
Vista parcial da cidade de Belo Horizonte nos anos 70 do século XX. Foto: DR.
Mais. Sempre que o tema foi Barbacena, “Basaglia não conseguia falar”: não o conseguiu fazer no final desse dia e tão-pouco o conseguiu na conferência agendada para 21 de Novembro de 1979, com o título “Psiquiatria e Política: o Manicómio de Barbacena”, porque depois de visionar o filme sobre o hospício, a emoção era tal, que teve de confessar mais uma vez a sua dificuldade em falar, ficando-se por desabafos como estes: “Barbacena é a expressão mais evidente de um fascismo reinante, que não quer os pobres à sua mesa”, “Devemos aplaudir chorando este filme, que nos deu a possibilidade de ver contra aquilo que devemos lutar”. E a conferência, nesse último dia do Congresso Mineiro de Psiquiatria, teve de se quedar na realidade pelo debate com os participantes.
Diante da completa estagnação relativamente à resposta aos problemas da saúde mental no estado de Minas Gerais, estava entretanto em preparação desde 1978 a realização do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, aproveitando o élan que já se fazia sentir um pouco por todo o país quanto à necessidade da reforma psiquiátrica, juntamente com o início da abertura política do regime. Por sua vez, o último congresso, cujas conclusões e promessas tinham caído em total esquecimento, datava já de 1972.
O III Congresso Mineiro de Psiquiatria não hesitou por isso em traçar como objectivo principal o de “deflagrar um processo político de mudanças na área da saúde mental, em Minas Gerais”[24], para o que convidou dois dos nomes mais reconhecidos e estimados no Brasil, pois se pretendia igualmente que o congresso tivesse um assumido “enfoque social”.
Robert Castel leccionou o curso «A Ordem Psiquiátrica».
Franco Basaglia ministrou o curso «Assistência Psiquiátrica e Participação Popular», constituído por quatro conferências (e respectivos debates):
Psiquiatria e participação popular (em 17 de Novembro)
Alternativas no trabalho em saúde mental (em 19 de Novembro)
Psiquiatria e Política: o manicómio de Barbacena (em 21 de Novembro)
Público e privado em psiquiatria (em 21 de Novembro)
Se a terceira destas intervenções se resumiu aos curtos desabafos já referidos, não foi esse o caso da última delas, texto que agora o PÁGINA UM dá a conhecer ao público de língua portuguesa, para ele remetendo o leitor.
Sobre a preparação, os intervenientes e as conclusões do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, o leitor interessado poderá igualmente obter informação relevante no respectivo relatório final (disponível aqui).
Se há 50 anos Barbacena era conhecida como a “Cidade dos Loucos”, tal o número de hospitais psiquiátricos nela existentes[25], e se pôde neste quarto de século voltar a ser chamada, como sempre fora, a “Cidade das Rosas”[26], quem poderá dizer até que ponto a passagem de Franco Basaglia por Belo Horizonte terá contribuído para que a cidade seja objectivamente reconhecida como uma das metrópoles com melhor qualidade de vida, no Brasil e no mundo?!
Uma nota final.
Para além da multiplicidade de artigos, de publicações (com dois livros ainda por sair) e de iniciativas que já tiveram lugar durante o corrente ano no Brasil, designadamente o Seminário “A Liberdade é Terapêutica”, realizado nos dias 20 e 21 de Junho pela Fundação Oswaldo Cruz, na Escola Nacional de Saúde Pública (para comemorar o cinquentenário do primeiro congresso da Psiquiatria Democrática, em Gorizia), entre os dias 19 a 21 de Setembro de 2024, vai realizar-se em Barbacena o 28.º Congresso Brasileiro de História da Medicina, tendo entre os seus organizadores o psiquiatra Jairo Toledo.
José Melo Alexandrino é professor universitário
N. D. Pode ler AQUI a conferência proferida por Franco Basaglia em Belo Horizonte, no Brasil, no âmbito do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, na sede da Associação Médica de Minas Gerais, em 21 de Novembro de 1979.
Além dos agradecimentos devidos às editoras da referida versão italiana das Conferenze brasiliane (de que existe uma nova edição revista de 2018), Franca Ongaro Basaglia e Maria Grazia Giannichedda, o tradutor e o PÁGINA UM desejam igualmente exprimir e reiterar os seus agradecimentos a todos quantos tornaram possível a divulgação da obra mais famosa de Franco Basaglia fora de Itália, as pessoas como tal expressamente referidas na Nota introdutória de Franca Ongaro Basaglia, a saber: Fernanda Nicácio, Paulo Amarante, Denise Dias Barros, Antônio Soares Simone, Giampero Demori, Chiara Lesti, Paulo Vendinha, Claudia Ehrenfreund, Letizia Cesarini Sforza e Pier Aldo Rovatti.
[1] Acompanhada, como por certo ele faria questão que fosse, da transcrição dos debates com a assistência.
[2] Não só é esta a designação mais correcta para enquadrar o pensamento e a prática de Franco Basaglia [entre muitos, Maria Stella Brandão Goulart, De profissionais a militantes: a luta antimanicomial dos psiquiatras italianos nos anos 60 e 70, tese de doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004, pp. 241 ss., acessível aqui; por último, Tom Burns/John Foots (eds.), Basaglia’s International Legacy: From Asylum to Community (e-book), Oxford, Oxford University Press, 2020, pp. 147 ss., 205 ss.], como é a única na qual o próprio Basaglia se reconhecia, na medida em que sempre contestou a integração na Anti-Psiquiatria (segundo a recente entrevista de Paulo Amarante ao Brasil de Fato).
[3] Bastando para o efeito atentar, por exemplo, no Encontro Internacional (International meeting “Franco Basaglia’s vision: mental health and the complexity of real life. Practice and research”) que, em Dezembro de 2014, reuniu durante quatro dias em Trieste, na Escola Internacional Franca e Franco Basaglia, mais de 250 participantes de 25 países, para uma conferência centrada na definição das actividades e objectivos do Plano de Acção 2014-2018 do Centro associado à OMS de Investigação e de Treino em Saúde Mental de Trieste.
[4] Francesco Parmegiani/Michele Zanetti, Basaglia. Una biografia, Trieste, Lint Editoriale, 2007; Oreste Pivetta, Franco Basaglia, il dottore dei matti: una biografia, Milano, Dalai, 2012; Rinaldo Conde Bueno, O pensamento de Franco Basaglia: dos caminhos da saúde mental italiana a uma vivência prática em Trieste, São Paulo, Dialética, 2020.
[5] No plano da história transnacional dos debates e da prática psiquiátrica, Tom Burns/John Foots (eds.), Basaglia’s International Legacy…, cit; em especial, sobre as transformações na prática psiquiátrica, Pietro Cipriano, Basaglia e le metamorfose della psichiatria, Milano, Elèuthera, 2018; Mario Colucci/Pierangelo Di Vittorio, Franco Basaglia: un intellettuale nelle pratiche, Milano, Feltrinelli, 2024.
[6] Neste aspecto, sobre a defesa radical dos direitos humanos, Wolfgang Jantzen, «Franco Basaglia und die Freiheit eines jeden. Oder: Die Suche nach der verlorenen Psychiatrie», in Jahrbuch der Luria-Gesellschaft, 2015, pp. 66-75 (disponível em <http://basaglia.de/Artikel/Basaglia%202015.korr.pdf>); Roberto Mezzina, «Basaglia after Basaglia: Recovery, human rights, and Trieste today», in Tom Burns/John Foots, Basaglia’s International Legacy…, cit., pp. 43-68.
[7] Para algumas das vozes italianas dissonantes de Basaglia – aí apresentadas como “relutantes” inventores de novas práticas de saúde mental –, vejam-se, por exemplo, os contributos aí reunidos por Pietro Cipriano (cfr. Basaglia e le metamorfose…, cit., Seconda Parte, pp. 197 ss.).
[8] Para os interessados e para o aprofundamento do tema, Pietro Cipriano, Basaglia e le metamorfose…, cit., pp. 22 ss., 41 ss., 93 ss.
[9] Cujas declarações vieram aliás a ser censuradas, na parte em que se referira ao orgasmo feminino.
[13] Como recorda o psiquiatra Paulo Amarante, em entrevista recente: «[lembro-me] muito da forma afetiva, carinhosa e carismática com que ele lidava com as perguntas mais provocativas. Ele respondia à altura, mas sempre com muita dignidade e respeito»; aliás, como já dissera antes: «Basaglia criou um vínculo e uma relação específica com o movimento brasileiro, porque ele tinha essa tendência a pensar que o processo da reforma psiquiátrica não era um movimento técnico, só de leis (ele mesmo fazia críticas à lei italiana), mas um processo de transformação social, cultura e política, que devia ser feito cotidianamente por atores engajados na construção de novas formas de relação com a diversidade, a loucura, a diferença» (in Brasil de Fato, de 19 de Junho de 2024, actualizada a 4 de Julho, disponível aqui).
[14] Paulo Duarte de Carvalho Amarante (coord.), Autobiografia de um movimento: quatro décadas de Reforma Psiquiátrica no Brasil (1976-2016), Rio de Janeiro, CAPES, 2020, p. 33 (disponível aqui).
[15] Como titulou a revista Veja, na entrevista a Franco Basaglia publicada a 1 de Novembro de 1979, ou como recentemente lembrado por Silvano Agosti, na entrevista «Basaglia, come Cristo, disse: sono venuto a dare scandalo», in Pietro Cipriano, Basaglia e le metamorfose…, cit., pp. 288 ss.
[16] A dar lugar à censura de Brasília (ver a notícia «Psiquiatra denuncia e por isso é censurado», in Jornal do Brasil, de 22 de Novembro de 1979, p. 17).
[17] Designadamente (além das edições italianas de 2000 e de 2018): Franco Basaglia, Psychiatrie et démocratie conférences brésiliennes, trad. francesa de Patrick Faugeras [com Prefácio de Mario Colucci/Pierangelo Di Vittorio e Posfácio de vários], Toulouse, Erès, 2007; Franco Basaglia, Conferencias brasileñas, tradución de Florencia de Molina e Volia, Valladolid, La Revolución Delirante [com Prólogo de Laura Martín], 2021.
[19] Na abertura do capítulo relativo às Conferências em Belo Horizonte, na obra Conferenze brasiliane.
[20] Realidade a que mais tarde chamaria “o Terceiro Mundo do Terceiro Mundo” (cfr. Jornal do Brasil, de 19 de Dezembro de 1979, caderno B, p. 6).
[21] As palavras do director foram estas: «Diante de um doente, sobre o qual se sabe que não têm efeito nem os fármacos nem qualquer outro tratamento, a solução é o método medieval: atá-lo de mãos e pés e deixá-lo apodrecer numa cela, acaso não chegue o neurocirurgião que transforma esta pessoa num vegetal, tirando-lhe vontade e emoções».
[22] Só em 21 de Novembro de 1979, o Governo viria a ditar a proibição a Basaglia de visitar qualquer outro manicómio no Brasil (cfr. Jornal do Brasil, de 22 de Novembro de 1979, p. 17).
[25] Do ponto de vista legal, ao nível federal, a reforma psiquiátrica só veio a ser aprovada no ano de 2001; porém, outros números falam por si: se, em 1980, havia no Brasil 95 000 pessoas internadas em hospitais psiquiátricos (a maioria das quais sem diagnóstico), actualmente, estão internadas apenas 6 000 pessoas; se, em 1980, os manicómios no Brasil eram os locais de morte e abandono que os documentos referidos neste texto testemunham, actualmente, o Brasil conta com mais de 150 centros de saúde mental.
[26] Assim, o depoimento do Secretário de Estado de Saúde de Minas Gerais, Marcus Vinícius da Silva, na obra organizada por Jair Furtado Toledo, (colônia: uma tragédia silenciosa), cit., p. 17.
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Celebram-se em 2024 os cem anos do nascimento, em Veneza, do famoso psiquiatra (ou, como prefere dizer a generalidade dos actuais cultores da área, “anti-psiquiatra”), filósofo e revolucionário italiano Franco Basaglia, a quem, segundo Norberto Bobbio, se ficou a dever a maior reforma realizada no século XX em Itália: a do encerramento dos hospitais psiquiátricos (na altura, com cerca de cem mil pessoas internadas), através da aprovação da Lei n.º 180, de 13 de Maio de 1978 (a Lei Basaglia), depois das experiências por ele levadas colectivamente a cabo em Gorizia e em Trieste, nos anos sessenta e setenta do século passado, com muitos jovens, estudantes e médicos, vindos das mais diversas partes do Mundo.
Inscrição no muro do ex-manicómio de Trieste.
Depois de uma “marcante” viagem por três cidades do Brasil, em 1978/1979, Basaglia viria a deixar o seu testamento intelectual nas Conferenze brasiliane (reunidas em obra organizada e publicada pela sua mulher, Franca Basaglia Ongaro, e por Maria Grazia Giannichedda).
Se o primeiro contacto que tive com o nome de Basaglia foi no ano seguinte ao da sua morte (ocorrida em Agosto de 1980, aos 56 anos), quando na Itália por todo o lado se ouviam ainda as discussões acerca do problema do encerramento dos hospitais psiquiátricos, a evocação da sua memória tem aqui dois propósitos: o de dar a conhecer um extraordinário trabalho jornalístico, da autoria das jornalistas italianas Ludovica Jona e Elisa Storace, que começou a ser divulgado ao público, pelo jornal Corriere della Sera, no passado dia 8 de Março[1], bem como o de dar também a conhecer (sobretudo àqueles que alimentem sonhos de transformação social) o método (simultaneamente revolucionário, humano e eficaz) de Franco Basaglia.
Um dos hospitais visitados por Franco Basaglia no Brasil. Foto: DR
Num dos momentos mais decisivos da sua revolução, quando Basaglia tinha já aplicado as suas ideias ao monumental manicómio de Trieste, conseguiu-se, a dada altura, que o saxofonista Ornette Coleman viesse à cidade, para aí dar um concerto ao ar livre, tendo a escutá-lo também algumas centenas de utentes do ex-manicómio (entretanto já totalmente transformado); a certa altura, uma mulher no público começou a tocar um realejo, sem que ninguém soubesse o que fazer; ao ouvir a música, Ornette Coleman decidiu então acompanhá-la, até a senhora terminar.
Este momento, tal como dezenas e dezenas de outros, são-nos contados no 4.º episódio (“Tutta colpa di Basaglia” [Tudo por culpa de Basaglia]) de uma série de podcasts esmeradamente realizados por aquelas duas jornalistas, em homenagem a esse grande vulto da psiquiatria, a que no entanto a realidade psiquiátrica italiana dos dias de hoje não faz justiça e que a academia ostensivamente ignora (8.º episódio).
Para quem domine a língua italiana, o melhor é mesmo começar já a ouvir o primeiro episódio da série Tutta colpa di Basaglia, no que só ficará a ganhar em conhecimento, realismo e verdadeira emoção.
Relativamente ao método, sem pretender teorizar nem dogmatizar um tema que tem sido abundantemente tratado, na minha perspectiva e a partir da visão de conjunto do trabalho jornalístico referido, o método de Basaglia talvez se possa resumir através dos seguintes traços:
Abertura interdisciplinar[2], estudo aprofundado e reflexão constante[3];
Aprendizagens a partir da experiência concreta e do estado real das coisas[4];
Inconformismo radical[5], à luz do primado do ser humano e da sua liberdade – das suas potencialidades;
Determinação humanista e trabalho colectivamente articulado;
Clarividência, ousadia, imaginação e resistência à adversidade.
Franco Basaglia (1924-1980)
Sintetizado o método e na impossibilidade de respigar aqui para o leitor português, como se pensara inicialmente, uma ou outra das passagens narradas em cada um dos podcasts (por não ter sido obtida em tempo útil a autorização solicitada para o efeito), deixaremos pelo menos o link e o título em português de cada um dos episódios da bela homenagem assim feita pelo histórico diário italiano a Franco Basaglia.
[1] Constam da respectiva nota de apresentação as seguintes indicações: “Ludovica Jona ed Elisa Storace hanno realizzato una bio-inchiesta, tra scienza, medicina, politica e sociologia, trovando risposte spesso sconvolgenti. Accanto alla ricostruzione del percorso che portò alla chiusura degli ospedali psichiatrici e all’apertura verso il territorio, attraverso le voci di molti testimoni diretti e materiali di repertorio inediti, si sviluppa un’inchiesta su come viene affrontato, oggi, in Italia, il disagio mentale. Una questione di grande attualità, specie tra i più giovani. Una serie, in 7 episodi, di Ludovica Jona ed Elisa Storace. In uscita ogni venerdì. Adattamento e produzione di Carlo Annese. Editing audio di Manuel Iannuzzo e Giulia Pacchiarini. Montaggio di Federico Caruso. L’illustrazione di copertina è di Marta Signori” [sublinhados originais].
(Ludovica Jona e Elisa Storace realizaram uma bio-investigação, envolvendo a ciência, medicina, política e sociologia, encontrando respostas muitas vezes perturbadoras. A par da reconstrução do caminho que levou ao encerramento dos hospitais psiquiátricos e à abertura ao território, através das vozes de muitas testemunhas directas e de materiais de arquivo inéditos, desenvolve-se uma investigação sobre a forma como a perturbação mental é hoje enfrentada em Itália. Um assunto muito actual, sobretudo entre os mais jovens. Uma série, em 7 episódios, de Ludovica Jona e Elisa Storace. Lançada todas as sextas-feiras. Adaptação e produção de Carlo Annese. Edição áudio de Manuel Iannuzzo e Giulia Pacchiarini. Edição de Federico Caruso. A ilustração da capa é da autoria de Marta Signori” [sublinhados originais]).
[2] Sem prejuízo de ter abandonado, logo em 1961, a docência universitária – por razões óbvias.
[3] Agora reunidos nos dois volumes dos seus Escritos: Franco Basaglia, Scritti, vol. 1 – 1953-1968: Dalla psichiatria fenomenologica all’esperienza di Gorizia, Torino, Einaudi, 1981; Scritti, vol. 2 – 1968-1980. Dall’apertura del manicomio alla nuova legge sull’Assistenza psichiatrica, Torino, Einaudi, 1997.
[4] Especialmente sobre esta dimensão, veja-se a antologia, e respectiva nota introdutória, organizada por Franca Basaglia Ongaro, L’ utopia della realtà, Torino, Einaudi, 2005.
[5] Presente logo na sua Conferência “La distruzione dell’ospedale psichiatrico come luogo di istituzionalizzazione” de 1964 (disponível aqui).
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Na sua última entrevista concedida ao jornal Observador – para corrigir um artigo de opinião anteriormente publicado no Expresso – o ex-Presidente Cavaco Silva, quando perguntado sobre a reforma da justiça, respondeu da seguinte forma aos seus entrevistadores: “A justiça não é a minha área. Essa é uma área em que eu não estou em condições de dar a minha opinião.”
Ainda que seja de estranhar a estreiteza da resposta (diante do facto de o entrevistado ter forçosamente convivido, nas altas funções políticas que desempenhou ao longo de muitos anos, com asmais diversas questões da Justiça), a mesma tem no entanto o condão de servir às mil maravilhas como ponto de partida para o confronto com as intervenções das personalidades que venho hoje chamar a terreiro, todas elas também ex-titulares de altos cargos políticos.
Para obviar o corrente pecado (trazido pelo menos do começo do século XIX) do “roubo do tempo”, por parte dos meios de comunicação social, deixaremos a outros a espuma, passando ao lado, para dar um exemplo, da (primeira e última) entrevista concedida há dias pela Procuradora-Geral da República em funções à televisão pública, para nos fixarmos em aspectos deveras curiosos da presente discussão nacional sobre a (dita) reforma da Justiça.
1. PRIMEIRA CURIOSIDADE
Não sendo esta a primeira vez que escrevo nos últimos meses sobre as “reformas da Justiça”, lembrança que deixarei propositadamente para o final, nem sobre o método mais “asado” (no suave dizer de há uns séculos) para conduzir reformas num país tão especial como o nosso – tendo sugerido então o remédio recomendado em 2018 por Vasco Pulido Valente (de fazer muitas pequenas reformas bem feitas) – , não poderia, tão-pouco, deixar de reafirmar: (i) que o funcionamento da Justiça é há muito tempo um dos maiores e mais prementes problemas do nosso país[1]; (ii) que o “Manifesto dos 50” cumpriu um papel relevante[2] (ainda que as suas funções primárias tenham sido mais de reacção e de denúncia de certas práticas do que as de diagnóstico ou de definição de uma estratégia ou de um programa de reforma); (iii) que, em matéria de práticas, é antes de mais às pessoas (que lideram, que corporizam e que supervisionam as instituições em causa) que a responsabilidade pelos abusos deve ser imputada; (iv) que problemas complexos como os da Justiça não podem ter respostas simples, reactivas ou isoladas, nem respostas que desconsiderem o que já foi[3] (ou está a ser)[4] estudado ou proposto, nem respostas incapazes de olhar ao horizonte dos problemas e das vias praticáveis de solução.
Sendo estes, como não podiam deixar de ser, os pressupostos de partida, a primeira grande curiosidade da presente discussão é a de que nenhuma das pessoas que esteve na génese, nem as que na esfera política mais tem dinamizado o “Manifesto dos 50”, é jurista, nenhuma delas realizou ou publicou qualquer estudo sobre a matéria[5] e nenhuma delas deu provas de dispor de uma visão estruturada sobre o problema[6].
Causa Pública – debate sobre a reforma da Justiça (17 de Julho de 2024)
Como essas pessoas são conhecidas e, além disso, tudo têm feito para que as suas opiniões[7] sejam levadas aos mais diversos palácios, instituições e órgãos – incluindo aí, valha-nos Deus, o Conselho de Estado![8] –, são estes os seus nomes: Rui Rio, Eduardo Ferro Rodrigues, Augusto Santos Silva.
Eis o nosso trio.
Algumas palavras então sobre o perfil e o estilo de jogo de cada um desses nomes (cuja média de idades os situa na faixa senatorial dos 69 anos), agora portanto ao serviço do “Manifesto pela Reforma da Justiça e pela Defesa do Estado de Direito Democrático”.
a) Rui Rio, personalidade cujo “retrato político” Vasco Pulido Valente executou repetidas vezes (sem necessidade de lhe acrescentar ou retirar seja o que for), destacou-se[9] por quase ter conseguido destruir o PSD como grande partido nacional e, de caminho, abalroar o estatuto da Oposição (designadamente com os acordos que estabeleceu com António Costa em matérias como a dos debates quinzenais).
Antigo secretário-geral do PSD, autarca reconhecido, desde logo pela forma como conquistou o município do Porto, uma vez chegado à liderança do PSD, na matéria que agora tratamos, Rui Rio notabilizou-se particularmente: (i) por ter sensibilizado[10], logo em Julho de 2018, o Presidente da República no sentido de que os partidos se deveriam juntar «em torno do projeto de reforma da Justiça, no qual os sociais-democratas têm estado a trabalhar»[11]; (ii) por ter, ao que parece[12], realmente apresentado aos partidos, um documento confidencial de 51 páginas, intitulado “Compromisso com a Justiça – Um Compromisso por Portugal!”, texto (para nós desconhecido)[13] a que, segundo a generalidade da imprensa da época, nenhum partido ou órgão do Estado quis dar atenção ou seguimento; (iii) por ter apresentado, segundo o site do PSD[14], em 30 de Agosto de 2019, as “medidas do Partido para a área da Justiça” (documento que, desta vez, não é possível localizar no referido site); (iv) por nos remeter por tudo isso apenas para as páginas do Programa Eleitoral para as Eleições Legislativas de 2019[15][16].
Rui Rio – pessoa que há muito tem ideias fixas e bem assinaladas neste domínio[17] –, pelo que têm revelado diversos dos primeiros subscritores do Manifesto, é desde a origem[18] o maior dinamizador e arauto do documento em causa, fazendo agora da matéria repetido objecto de discurso semanal.
Rui Rio
b) Eduardo Ferro Rodrigues, ex-secretário-geral do Partido Socialista, Ministro em diversas pastas em três Governos, representante de Portugal na OCDE, foi também o Presidente da Assembleia da República com o pior desempenho de todos, entre 1976 e 2022. É verdade que a sorte lhe foi adversa, no exercício deste último cargo: por um lado, calhou-lhe a simultânea presidência de Bruno de Carvalho no seu clube[19]; calhou-lhe também o aparecimento de novos partidos no Parlamento; mas sobretudo calhou-lhe igualmente a pandemia da COVID 19, problema para a liderança parlamentar do qual não estava manifestamente preparado (como o Tribunal Constitucional veio a atestar em 2022).
Não se lhe conhecendo pensamento, experiência ou trabalho relevantes na área da Justiça, é realmente com alguma surpresa que, depois de décadas de exercício dos mais diversos cargos públicos, nele tenha despertado um tão forte empenho argumentativo contra as práticas abusivas do Ministério Público e pela defesa do Estado de Direito democrático, quando foi ao seu desempenho como Presidente da Assembleia da República que se ficou a dever uma boa quota-parte dos mais graves, numerosos e massivos atropelos aos direitos fundamentais das pessoas e ao Estado de Direito democrático, em todas as suas dimensões[20], cometidos em Portugal nos últimos cinquena anos. Muitos desses atropelos e muitas dessas ofensas constituem mesmo crimes (como o da privação ilícita da liberdade), alguns ainda em investigação e maior parte deles de todo por investigar.
Para quem está empenhado na defesa do Estado de Direito democrático, lógico seria que tivesse mandado apurar, logo na sede parlamentar, os abusos cometidos pelas instituições e pelos órgãos do Estado durante os últimos dois anos do exercício do cargo, para que agora lhe pudesse sobrar alguma autoridade – ou que revelasse agora um não menor desvelo cívico relativamente à identificação e responsabilização por atropelos muitíssimo mais graves.
Eduardo Ferro Rodrigues, à esquerda
c) Augusto Santos Silva é, diversamente das duas personalidades anteriores, um académico que também foi Ministro, com créditos reconhecidos, em cinco diferentes pastas de vários Governos Constitucionais, tendo no final desempenhado por quase dois anos o cargo de Presidente da Assembleia da República.
Todavia, como tive oportunidade de referir, «por razões muito distintas das do seu antecessor, o menos que se pode dizer (num Estado constitucional, onde vigora a regra de que os governantes respondem e têm de prestar contas perante o Povo) é que, em menos de dois anos, se foi acumulando um considerável número de erros» da parte do então novo titular do cargo de Presidente da Assembleia da República[21], tendo, alguns meses mais tarde, resumido o seu desempenho deste modo: foi um Presidente que preferiu tomar partido, um Presidente que preferiu a polarização, um Presidente que abusou dos seus poderes, um Presidente que decidiu questões parlamentares relevantes sem olhar às exigências do Estado de Direito[22].
No que respeita aos problemas da Justiça, talvez o mais relevante a trazer à luz seja o facto de Augusto Santos Silva ocupar precisamente o cargo de Ministro dos Assuntos Parlamentares quando, a 8 de Setembro de 2006, foi rubricado no Parlamento, pelos Presidentes dos Grupos Parlamentares do PS e do PSD (Alberto Martins e Luís Marques Guedes, respectivamente), o “Acordo político-parlamentar para a reforma da Justiça celebrado entre o PS e o PSD”[23].
Ora, olhando ao núcleo das actuais disputas, qual era a primeira medida prevista nesse acordo quanto à revisão do Código de Processo Penal?
A de restringir o segredo de justiça, «passando, em regra, a valer o princípio da publicidade, só se justificando a aplicação do regime de segredo quando a publicidade prejudique a investigação ou os direitos dos sujeitos processuais»[24].
Ou seja, a primeira medida prevista no Pacto da Justiça de 2006 (e como tal também acolhida pela Ministra da Justiça do Governo de Passos Coelho e por muita doutrina especializada[25]) é afinal a mais execrada publicamente por Rui Rio e uma das mais criticadas no “Manifesto dos 50”. É questão para perguntar: em qual dos dois lados da ponte (e do tempo) pretende ficar Augusto Santos Silva?
E qual era a última proposta do Pacto de Justiça de 2006?
Era a do reconhecimento da autonomia administrativa e financeira do Conselho Superior da Magistratura, acrescentando que deviam ser «criadas as adequadas condições que assegurem a presença, em regime de permanência, de membros não magistrados no Conselho»[26].
Augusto Santos Silva
Por que razão não constam do “Manifesto dos 50” estas (e muitas outras) propostas? Uma interpelação a dirigir igualmente a Augusto Santos Silva.
Diga-se, por último, que um dos «erros» imputados a Augusto Santos Silva como Presidente da Assembleia da República respeitou às sucessivas declarações por ele prestadas após o dia 7 de Novembro de 2023, acerca de alegadas interferências da Justiça no normal funcionamento do sistema político[27], entendendo estarem aí em causa as limitações funcionais inerentes ao cargo, bem como o respeito pelo princípio da independência dos tribunais, na medida em que a finalidade deste princípio é a de defender os tribunais de ingerências, pressões ou instruções que possam vir dos demais poderes do Estado[28].
2. SEGUNDA CURIOSIDADE
Um outro aspecto que não tem sido devidamente considerado na esfera pública respeita ao facto de Rui Rio estar ‘envolvido’ numa investigação criminal[29] que se prende com a utilização das verbas afectas ao funcionamento dos grupos parlamentares e dos respectivos gabinetes, investigação essa que (pelo tempo que leva e pela matéria sobre que versa) acaba por envolver de alguma forma também os anteriores Presidentes do Parlamento.
Não vem decerto a propósito transformar um texto de opinião em parecer jurídico, mas tão-pouco sendo esta a primeira vez que escrevo sobre o assunto, posso reunir aqui alguns tópicos de ajuda ao leitor, de modo a facilitar-lhe a revelação do potencial alcance da nova curiosidade:
Segundo declarações prestadas pelo Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que se ocupou do tema da natureza jurídica dos grupos parlamentares na sua tese de doutoramento, a regulação legal desta matéria carece de clarificações, por haver nela uma “zona cinzenta” [30];
O facto de uma prática ser comum não a torna aceitável, como prontamente replicou Susana Peralta à pseudo-alegação de Rui Rio[31], enfatizando que, apesar de os nossos representantes terem podido tornar as regras mais claras, «ao invés, maximizaram a conveniente zona cinzenta»[32];
Todavia, o regime do financiamento dos partidos e dos grupos parlamentares em Portugal não tem apenas obscuridades e zonas cinzentas, está ainda envolto em inconstitucionalidades, em práticas abusivas e em mantos de encobrimento.
Inconstitucionalidades, a começar pela inconstitucionalidade formal da Lei de organização e funcionamento dos serviços da Assembleia da República (com as suas sucessivas alterações), uma vez que a matéria respeitante aos partidos políticos é da reserva de lei orgânica[33], razão pela qual não deve, nem pode, haver regimes de financiamento dispersos ou avulsos, como aquele sobre o qual versa o processo criminal em causa;
Práticas abusivas da parte de alguns (embora não de todos) os partidos políticos, que se aproveitam precisamente das zonas cinzentas da Lei de organização e funcionamento dos serviços da Assembleia da República, para satisfazerem despesas correntes de financiamento dos partidos, quando estas nem sequer deveriam ser financiadas (à luz da jurisprudência constitucional alemã e à luz da natureza jurídica primária desse tipo de organizações);
Mantos de encobrimento, resultantes de sucessivas e cavilosas alterações a esse regime jurídico, alegadamente para o clarificar, mas na realidade para garantir a persistência de práticas ilegítimas e iníquas dos partidos, por ofensivas das exigências inerentes ao princípio democrático[34].
Por tudo isso[35], não foram surpresa nenhuma as notícias de Julho de 2023, de que havia investigações criminais a decorrer ou de que estavam a ser feitas buscas à casa de um ex-dirigente partidário ou às sedes do partido político que o mesmo liderara; se nessas diligências foram respeitados os princípios e as regras constitucionais e legais é uma questão totalmente diferente – para isso, existem as normas processuais.
No final, qual é então a grande curiosidade?
É a de que, ao contrário do que parece, Rui Rio, antes de mais, mas também Eduardo Ferro Rodrigues e Augusto Santos Silva, depois, enquanto principais arautos do “Manifesto dos 50”, não estão apenas a lutar pela defesa do Estado de Direito democrático: estão também a defender um interesse particular, no âmbito de uma matéria politicamente delicada, onde todos eles, podem estar no final, de uma maneira ou de outra, pelo menos politicamente ‘envolvidos’[36].
Mais não é preciso acrescentar.
3.DA CAPO
Para regressar ao ponto inicial, como prometido, recordo então aqui a dezena de propostas concretas de “reformas da Justiça” – no caso, as mais prementes, sem considerar as de revisão constitucional – apresentadas no início do ano (e que divulguei à opinião pública em Maio de 2024)[37]
REFORMAS DA JUSTIÇA
Segundo o método de pequenas correcções
Gerais
1 – Atribuição de total autonomia administrativa e financeira ao Conselho Superior de Magistratura, com inerente transferência de responsabilidades e poderes até agora confiados ao Ministério da Justiça.
2 – Imediata aprovação dos decretos-leis de desenvolvimento da autonomia administrativa e financeira dos Tribunais da Relação.
3 – Revisão da Lei do Tribunal Constitucional, com pelo menos as seguintes duas alterações fundamentais:
– Previsão de que o Tribunal Constitucional possa, no seu Regulamento Interno, prever a existência de audiências públicas, bem como a admissão e configuração do regime do amicus curiae, nos processos de elevada transcendência constitucional, assim considerada por proposta do Presidente, confirmada por maioria absoluta dos Juízes do Tribunal Constitucional;
– Previsão do efeito meramente devolutivo nos recursos de constitucionalidade previstos no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional[38].
4 – Aprovação de uma directriz legislativa contra a prolixidade das peças processuais, de todos os actores processuais, magistrados incluídos.
5 – Proibição legal da greve dos juízes[39] e limitação da greve dos magistrados do Ministério Público.
6 – Recrutamento de engenheiros de processos para os principais tribunais.
Justiça Penal
1 – Limitação dos mega-processos aos casos estritamente necessários, exigindo para o efeito resolução fundamentada do Procurador-Geral da República.
2 – Fortalecimento e responsabilização da função e do papel da hierarquia do Ministério Público, com exigência designadamente da apresentação de um relatório anual à Assembleia da República por parte da Procuradoria-Geral da República.
Justiça Administrativa
1 – Instituição de um mecanismo transitório[40] alternativo[41], de natureza voluntária, para a parte que não seja a entidade pública no processo, com vista ao desembaraço da acumulação e da excessiva duração dos processos na primeira instância dos tribunais administrativos.
2 – Rápido provimento dos juízes em falta nos tribunais administrativos.
José Melo Alexandrino é professor universitário
Parque das Nações – Campus da Justiça
[1] Sabendo-se à partida como a Justiça é uma deusa difícil de servir (como, em vão, tive oportunidade de dizer na saudação inicial de uma conferência proferida em Luanda, no ano de 2010 (em texto disponível aqui); para corroboração, ao nível das percepções dos portugueses, desse ponto-cego do nosso sistema (Teresa Violante), veja-se o recente estudo de Pedro Magalhães/Nuno Garoupa, Estado da Nação 2024: inquérito sobre a justiça, Lisboa, 2024 (disponível aqui), com ¾ dos inquiridos a responder que o sistema de justiça funciona mal ou muito mal (ibidem, p. 10).
[2] José Melo Alexandrino, «Justiça: reforma ou reformas?», in Observador, de 11 de Maio de 2024, disponível aqui, para assinantes).
[3] Nomeadamente os estudos desenvolvidos no âmbito académico ou no de observatórios criados para o efeito, os estudos ou livros preparados no âmbito parlamentar ou governativo, o teor de Pactos de Justiça (como o de 2006) ou de propostas similares apresentadas ao longo dos anos, bem como as investigações, gerais (como as de Nuno Garoupa) ou parcelares aprofundadas (como sucede, quanto ao problema da fiscalização concreta e dos recursos para o Tribunal Constitucional, com o sólido contributo de Jorge Reis Novais) já levadas a cabo.
[4] Lembro particularmente a discussão formalmente desencadeada em 17 de Julho de 2024 pela associação Causa Pública (num processo que se pretende concluir no final do ano, com a apresentação de uma proposta concreta, informada e discutida).
[5] Apesar de, em medida diferente, todas elas terem publicado alguma coisa, em diversas outras áreas.
[6] Muito diversamente, para dois bons exemplos de pessoas que têm esse tipo de visão, veja-se a entrevista concedida por Cunha Rodrigues ao Jornal Público e à Rádio Renascença, em 18 de Julho de 2024 (disponível aqui), ou o texto de opinião de Alberto Costa («Uma trajectória na esfera penal», in Diário de Notícias, de 18 de Julho de 2024, disponível aqui), neste segundo caso, na linha precisamente da excelente intervenção feita pelo Conselheiro Noronha do Nascimento no dia anterior (no debate organizado pela associação Causa Pública).
[7] Mal não fará a releitura do fragmento (de 1919) de Fernando Pessoa “Em matéria de assuntos sobre que se possam ter opiniões” (disponível aqui); em idêntico sentido, mas em concreto, Cândida Almeida, «Os especialistas em tudo», in Jornal de Notícias, de 14 de Julho de 2024 (disponível aqui).
[8] Eduardo Ferro Rodrigues, «Sobressalto e sobressaltos», in Diário de Notícias, de 6 de Julho de 2024 (disponível aqui).
[9] Depoisdo desaparecimento físico desse nosso saudoso historiador e colunista.
[10] Depois das críticas feitas ao legado de Passos Coelho nesse sector (veja-se a esse respeito, por exemplo, a notícia do jornal Observador, de 7 de Julho de 2018, disponível aqui).
[11] Notícia da Agência Lusa, divulgada pelo jornal Observador, em 31 de Julho de 2018 (disponível aqui).
[12] Segundo notícia do Expresso de 13 de Outubro de 2018 (retomada por outros jornais).
[13] Apesar dos esforços desenvolvidos nestes dias para o desencantar.
[14] Cfr. <https://www.psd.pt/pt/noticias/rui-rio-apresentou-medidas-para-justica> (16 Julho 2024).
[16] À luz deste resumo, é perfeitamente natural que 73% dos portugueses concluam que nenhum partido político «tenha melhores respostas [do] que os outros para os problemas da Justiça» (cfr. Pedro Magalhães/Nuno Garoupa, Estado da Nação…, cit., p. 43), tendo por isso inteira razão Nuno Garoupa nas considerações que a esse respeito produziu, por ocasião do lançamento desse estudo.
[17] E por isso mesmo, com razão, liminarmente rejeitadas por António Costa.
[18] Na medida em que na lista dos 50 subscritores iniciais do documento, há alguns amigos e pessoas pelas quais tenho grande estima académica e cívica, é inteiramente devida esta anotação sobre a génese do “Manifesto dos 50”: passando ao lado do conteúdo, por conhecer o pensamento, as obras e o estilo dessas pessoas, estou absolutamente seguro de que não foi da pena de nenhuma delas que partiu um texto tão mal estruturado e tão medíocre do ponto de vista estilístico – bastando para o efeito atentar no abuso da adjectivação (com interesse, veja-se o artigo de 14 de Julho de 2024 do Professor Nuno Guimarães, disponível aqui).
[19] O que viria a “obrigá-lo” a uma (rara) intervenção pública no Parlamento (notícia disponível aqui).
[20] A que se deve acrescentar a, sempre ignorada, ofensa grosseira e continuada, nesse período, ao princípio do Estado unitário.
[21] José Melo Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, texto inserido a 26 de Março de 2024, p. 1, 1 (texto disponível aqui).
[22] José Melo Alexandrino, «A liberdade de expressão no Parlamento», in PÁGINA UM,emtexto inserido a 19 de Maio de 2024 (disponível aqui).
[25] Doutrina na qual sempre me revi, tendo imediatamente defendido que a constitucionalização do segredo de justiça (no artigo 21.º, n.º 3), feita pela revisão constitucional de 1997, é «um caso onde uma previsão constitucional favorece a segurança jurídica e a ordem social, mas, em contrapartida, determina limitações na extensão dos direitos fundamentais, requerendo não só uma interpretação restritiva, quanto impondo uma hermenêutica insusceptível de colidir com um adequado sistema de direitos fundamentais, sob pena de resultar inconstitucional» (cfr. José Alberto de Melo Alexandrino, Estatuto constitucional da actividade de televisão, Coimbra, 1998, p. 128, nota 257).
[27] José Melo Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, cit., p. 6.
[28] José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, p. 74.
[29] Notícia do Público on-line, de 12 de Julho de 2023: «PJ fez buscas a casa de Rui Rio e às sedes do PSD em Lisboa e Porto» (disponível aqui, para assinantes).
[30] Registo da RTP Notícias, de 14 de Julho de 2023 (disponível aqui).
[31] Susana Peralta, «Rui Rio riu», in Público, de 14 de Julho de 2023, p. 9 (disponível aqui, para assinantes).
[33] Neste sentido, cfr. J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2010, p. 313 [em anotação ao artigo 164.º, alínea h), disposição para que remete o artigo 166.º, n.º 2, da Constituição].
[34] Sobre a matéria, José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 101-111.
[35] Para uma avaliação informada do conjunto do problema, Paulo Trigo Pereira, «O dinheiro dos grupos parlamentares deve ser dos partidos?» in Observador, de 23 de Julho de 2023 (disponível aqui, para assinantes).
[36] Escusado será dizer que é, por conseguinte, perfeitamente natural que o dedo esteja igualmente apontado ao próximo Procurador-Geral da República.
[37] José Melo Alexandrino, «Justiça: reforma ou reformas», cit.
[38] Esta medida permite, de uma assentada, realizar os seguintes quatro fins: 1) acelerar os tempos da Justiça; 2) racionalizar o acesso dos particulares e empresas ao Tribunal Constitucional; 3) pôr um travão sério a que haja “uma Justiça para pobres e uma Justiça para ricos”; 4) pôr termo a uma das mais perversas e discriminatórias manobras dilatórias existentes no nosso sistema.
[39] Sobre o problema, por todos, José de Melo Alexandrino, «A greve dos juízes – segundo a Constituição e a dogmática constitucional», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento, vol. I, Lisboa, 2006, pp. 775-777.
[40] Propondo-se para o efeito um prazo de 5 anos, a contar da entrada em vigor da respectiva lei.
[41] Como pode ser a opção pelo recurso aos tribunais comuns e às normas do Código do Processo Civil, com as necessárias adaptações, parametrizadas por lei.
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Como já uma vez aqui referi, através de Fernando Pessoa, os portugueses, como Povo, apesar de darem a impressão inversa, no final do dia[1], são extraordinariamente lentos. Com efeito: levaram três séculos a libertar-se da Santa Inquisição[2]; levaram mais de dois séculos a aclimatar-se à ideia de introduzir um módico de liberalismo nos seus velhos costumes (diante da falta de espírito capitalista[3] e da arreigada dependência do Estado)[4]; levaram idêntico tempo a escrever porventura “a mesma” Constituição[5] – numa obra que de resto ainda não completaram[6]; levaram mais de século e meio a perceber que não garantiam os direitos dos cidadãos nem a lisura do sufrágio; levaram 60 anos para se libertar de diversas ditaduras durante o século XX; não fora a irritação dos Capitães, e ainda andariam com as colónias às costas mais uns tempos, quando as demais potências, melhor ou pior, já se tinham livrado de tais encargos nas décadas precedentes; levam 50 anos sem conseguir garantir verdadeira autonomia e autoridade à escola pública; e ainda não tomaram consciência de que contam com três décadas de estagnação e de crise do regime político em que vivem, de que também dá prova o problema aqui versado.
Vem isto a propósito dos anos que os portugueses ainda precisam para se aperceberem[7] de que são “representados” pelas cores de uma bandeira que não os representa, nem como Povo, nem, antes disso, como lugarúnico no Planeta – num momento onde, tal como sucede em diversos outros países da Europa, ela é agora vestida, calçada e hasteada por milhões de mãos, por força de um inocente e poderoso fenómeno social em que, para felicidade geral[8], nos tornámos especialistas.
E quem assim escreve jurou e serviu a Bandeira Nacional, mas infelizmente não teve oportunidade de tratar, ao contrário do que pensara ainda vir a fazer, o problema da bandeira, como questão de fundo a analisar durante todo um semestre de Direito Constitucional, num dos anos em que leccionou essa disciplina. Ainda assim, sempre teve o cuidado de explicar, na primeira aula, aos seus alunos a razão pela qual a capa do livro de apontamentos (que para eles especialmente preparara) era branca e azul[9], e não vermelha[10] ou verde[11] – tal como, num plano distinto, sempre contestou a previsão do crime de ultraje aos símbolos nacionais, por entender que não há justificação com peso[12] suficiente nem circunstâncias, seja de que natureza forem, que possam afastar o primado da liberdade de expressão nesse domínio[13].
Eis, muito resumidamente, as razões para este texto, que agora naturalmente transcenderá as apertadas fronteiras do Direito Constitucional.
1. PONTO DE PARTIDA
Logo no início deste Verão, com temperaturas a provocarem aluviões e inundações na Suíça ou apagões de energia nos Balcãs, Miguel Esteves Cardoso, glosando o tema “por contraste”, deleitava-nos com os seguintes panoramas:
«Às vezes imagino que o rectângulo português está ao contrário – projectando-se horizontalmente para dentro da Espanha – e acordo todo suado.
Mas que boa ideia situar Portugal onde Portugal foi situado. Que boa ideia estar de pé e não deitado. Que boa ideia estar de pé para um oceano enorme, cheio de água fria e de bom peixe»[14].
Na verdade, que boa ideia – já nem pergunto de quem terá partido, mas atrevo-me a pensar que, segundo Camões, terá muito provavelmente sido de Luso.
Certo é que não terá sido Miguel Esteves Cardoso o primeiro a dar por ela: Sintra não existiria há tantos séculos – na verdade, há milénios[15] – sem que alguém tivesse primeiro dado por ela. E quem diz Sintra, diz o resto do país.
Como escreve José Mattoso, no âmbito da história nacional, o espaço não pode ser tomado como «um mero quadro vazio ou abstracto, mas como um lugar concreto, dotado de características físicas, climáticas e pedológicas»[16].
Cacela Velha
Ora, foi nesse idêntico sentido que Mariana Santos Martins, recorrendo também aí ao romeno Mircea Eliade, lembrou, não há muitos anos[17], a relevância da fixação prolongada do Homem junto à água, factor que levou o famoso antropólogo Jorge Dias a explicar «como o Atlântico é a verdadeira capital de Portugal, pela sua força simbólica. E, se nas populações do interior resiste o sentimento “serrano”, ainda assim todo o povo deste país [se] agarra ao mar, resistindo séculos à força de Espanha»[18]. Além disso, como o mesmo autor também explicara noutra obra, é também ao mar que se devem a unificação e a permanência da Nação portuguesa[19]. Como se explicaria de outro modo a anual corrida dos portugueses para o mar ou a mítica amizade com um peixe?[20]
Mas, para lá da sua força simbólica e atractiva (como verdadeira “alma da Nação”)[21], se a grande capital deste pequeno recanto reside no mar (agregador, benfeitor, desafiador e temeroso, ao mesmo tempo)[22], não é só o Oceano a indicar-nos como as nossas cores nunca poderiam ser semelhantes às da Espanha[23].
Basta sair à rua ou abrir a janela! Basta ver como mesmo as nossas trovoadas nada tenham a ver com as tempestades americanas, africanas e asiáticas ou com as trovoadas dos Alpes, da Europa central ou da Riviera italiana[24]: além de menos frequentes, violentas e sonoras, há quase sempre no meio delas aqueles farrapos de azul e branco que nos retratam – como, de resto, também à pátria de Sófocles (e dos mitos que ele para sempre consolidou).
Pártenon (século V a.C.)
3. RELANCE HISTÓRICO
Deixando deliberadamente de lado a perspectiva da Heráldica[25], enquanto tal – ainda que no momento próprio, quando o Povo português venha a ser chamado a decidir sobre o assunto, esses conhecimentos não possam deixar de ser devidamente ponderados[26] –, impõe-se um breve percurso histórico.
A heráldica afonsina original, que se cingia a uma cruz azul sobre campo branco[27], «à maneira dos cruzados»[28], sofreu uma dupla mudança com a aclamação de D. Afonso Henriques como Rei dos portugueses (Rex Portugalorum), no seguimento da Batalha de Ourique: (i) pela incorporação nas suas Armas dos cinco escudos ou quinas azuis (com os respectivos besantes); e (ii) pela transformação do escudo em bandeira do novo corpo político autónomo (de que D. Afonso I passou a ser o Rei).
Escudo de D. Afonso Henriques (1139)
O momento foi assim cantado por Camões, no Canto III d’Os Lusíadas[29]:
Aqui pinta no branco escudo ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco Reis vencidos
Basílica Real de Castro Verde – Painel de azulejos relativo ao termo da Batalha de Ourique.
Começando pois pela (lenda da) Batalha de Ourique (sobre a qual quase tudo ainda se discute)[30], se a mesma teve o significado militar e político agora referido, no entender de alguns especialistas, é sobretudo no campo da heráldica que se situa a relevância do episódio[31]: «Um escudo deveras rico do ponto de vista do armorial nacional europeu, e ainda em uso na bandeira nacional da República Portuguesa, num caso sem precedentes do ponto de vista simbólico, ainda para mais associado à esfera armilar manuelina, resultando daqui, na opinião do heraldista e historiador Michel Pastoureau, a mais rica bandeira em simbolismo, de entre todas as adoptadas modernamente»[32].
Armas de Portugal em 1185 (D. Sancho I)
Mas se os escudos (e o seu azul) se mantiveram até hoje, a bandeira foi-se modificando ao longo dos séculos, aliás logo com o segundo Rei de Portugal (D. Sancho I), através de diferentes arranjos dos escudos e besantes, através do acrescento (ou retirada) de elementos (como sucedeu com a já referida esfera armilar) ou através do acrescento, em 1646, da coroa e de uma orla azul (quando D. João IV declarou Nossa Senhora da Conceição Padroeira do Reino de Portugal).
Bandeira do Reino de Portugal adoptada por D. João IV.
Ora, não obstante a ruptura radical inerente à Revolução de 1820[33], por decreto das Cortes Geraes, Extraordinárias, e Constituintes da Nação Portugueza, de 22 de Agosto de 1821, o branco e o azul continuaram a ser acolhidas como as cores nacionais, por serem aquelas que formaram a divisa da Nação Portugueza desde o princípio da monarquia em mui gloriosas épocas da sua História, decreto que foi mandado executar por D. João VI no dia imediato.
Última bandeira do Reino de Portugal (1830-1910)
4. IDEM: A VIRAGEM REPUBLICANA
Chegada a Revolução de 5 de Outubro, o Governo Provisório (chefiado no papel pelo politicamente inepto Teófilo Braga[34], mas na realidade comandado pelo todo-poderoso Ministro da Justiça, Afonso Costa[35]), embora estando inicialmente inclinado para o azul e branco, foi forçado, pela Carbonária[36], a nomear uma comissão encarregada de projectar uma nova bandeira (comissão de que faziam parte, entre outros, Columbano Bordalo Pinheiro e João Chagas), tendo a mesma enviado o seu projecto ao Conselho de Ministros logo a 6 de Novembro de 1910, projecto esse que, por pressão dos radicais[37], viria a ser aprovado pelo Governo (pela maioria de um voto) a 29 de Novembro, o qual se aprestou a fixar o dia 1 de Dezembro como o dia da Festa da Bandeira.
Ainda que pudesse haver algumas razões históricas a considerar na adopção do padrão rubro-verde[38], o projecto foi nessa parte um fruto relativamente maduro do “período da propaganda” (1891-1910), dado que na revolta de 31 de Janeiro de 1891 fora pela primeira vez desfraldada uma bandeira verde e encarnada[39] (tal como o fora também no dia 5 de Outubro, na rotunda e no Castelo de São Jorge)[40]; ou seja, numa opção modernista[41], as cores da bandeira que vieram a ser acolhidas, não obstante o contexto de grande polémica (política, intelectual e social) então gerada – com os partidários do azul e branco a reclamar no final um plebiscito e muitos militares a recusarem-se a reconhecer o novo símbolo –, são na verdade as cores identificadoras do Partido Republicano Português (dos seus centros), tendo o relatório da comissão justificado a novidade da seguinte forma: (i) o vermelho, por ser uma cor combativa e quente, é a cor da conquista e do riso. Uma cor cantante, alegre. Lembra o sangue e incita à vitória; (ii) o verde, por ser uma cor de esperança e do relâmpago, significa uma mudança representativa na vida do país.
Embora tal seja relativamente claro aos olhos de um comum mortal, deste simples resumo decorrem dois sérios problemas tanto na opção, quanto na justificação apresentada, um tópico a reter para depois.
Quanto ao mais, a bandeira mantém o escudo das Armas Nacionais, assente sobre a esfera armilar, em amarelo e avivado de negro (segundo o artigo 1.º do respectivo decreto).
Ora, como tudo o que era efectivamente relevante, a começar pela famosa e “intangível” Lei da Separação, foi decidido pelo Governo Provisório[42], com algumas dessas decisões a serem mais tarde levadas a “ratificação” (expressa ou ardilosa) da Assembleia Nacional Constituinte, foi este o modo como, por decreto de 19 de Junho de 1911 (publicado no Diário do Governo em 8 de Julho seguinte) foram aprovados os dois símbolos nacionais (a bandeira e o hino) que ainda hoje formalmente nos “representam” (artigo 11.º da Constituição de 1976).
5. IDEM: APRECIAÇÃO CRÍTICA
Até pelo facto de outros já terem procedido a tais exercícios, não é este o lugar para enumerar as muitas vozes que, ao longo destes 113 anos, se pronunciaram criticamente sobre a viragem republicana a respeito das cores da bandeira, bastando para o efeito citar, logo no início (além do duro juízo, já evocado noutro momento, de Fernando Pessoa), o nome de Guerra Junqueiro: por um lado, por ter apresentado um projecto próprio de bandeira que, mantendo o azul e branco, colocava cinco estrelas sobre a esfera armilar e esta sobre o Escudo[43]; por outro, por ter apresentado à opinião pública da época as críticas que achou devidas à opção autoritariamente decretada pelos radicais, referindo-se às cores tradicionais (presentes no seu projecto) nestes termos: “O campo azul e branco permanece indelével. E’ o firmamento, o mar, o luar, o sonho dos nossos olhos, o extase eterno das nossas almas”[44].
Por sua vez, no final, bastemo-nos com as derradeiras palavras de Vasco Pulido Valente: «Já reparou na bandeira portuguesa? Aonde fomos buscar o encarnado e o verde, cores que não estão na tradição portuguesa? O encarnado era a cor dos miguelistas, o verde nunca foi a cor de ninguém».[45]
Todavia, para nós, mais importante do que recensear opiniões será: (i) regressar por um instante ao contexto e aos processos utilizados em 1910; (ii) apreciar a relevância das razões então invocadas; e (iii) proceder ao confronto do resultado final com o peso das razões acumuladas ao longo de sete séculos (desde logo, pela voz dos nossos dois maiores poetas)[46] e, como tal, formalmente resumida pelo decreto de 22 de Agosto de 1821 das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, à entrada da “era constitucional”[47].
a) Assim, quanto ao contextoe aos processos, regressemos às palavras aqui deixadas, no dia em que se celebrava o cinquentenário do 25 de Abril de 1974:
[Na fase do Governo Provisório, a I República foi] um regime com partido único (e o único período da nossa História em que o poder político esteve concentrado nas mãos de um único órgão do Estado), sem que se tenha realizado sufrágio efectivo em mais de 40% dos círculos nas eleições para a Assembleia Constituinte e com esta a desdobrar-se abusivamente, no final, em Câmara dos Deputados e Senado;
Um regime sem legitimidade nem legitimação popular, com as primeiras eleições gerais (com sufrágio mais restrito do que na Monarquia) realizadas apenas em 1914;
Um regime que hostilizou desde a primeira hora, como nunca, a liberdade religiosa (com medidas que seriam tidas por intoleráveis no século XIX);
Um regime que recorreu tanto à mentira (desde logo, relativamente às promessas em matéria de sufrágio universal e de direito à greve) como à violência organizada, e onde, por tudo isso, se regressou às intervenções militares, a rupturas constitucionais (como a de Sidónio), aos assassinatos políticos, mas sobretudo à desinstitucionalização de um sistema desequilibrado desde o início[48] e que, poucos anos volvidos, quase todos os Portugueses aspiravam por derrubar.
b) Passando então agora à apreciação crítica das razões invocadas pela comissão encarregada de apresentar o projecto de bandeira, começando pelo vermelho, as razões então apresentadas oscilam entre o subterfúgio e o delírio: subterfúgio, porque o significado profundo que se pretendia representar com essa cor, como reconhece Severiano Teixeira, não era aquele, mas sim o das revoluções populares de 1848 (dita “Primavera dos Povos”) e da Comuna de Paris, em 1870; o delírio, por querer associar, sem critério algum que se perceba:conquista, riso, sangue e incitamento à vitória (quando bem se poderiam ter encontrado fundamentos relevantes, como até Guerra Junqueiro concedeu).
Relativamente ao verde, que também segundo Severiano Teixeira remete para Augusto Comte e para o Positivismo (por oposição à teologia e à metafísica), apesar de tudo, tem alguma correspondência na lógica do momento, por se pretender associar a nova cor à importante mudança política (aliás, com um único precedente na Europa: a III República francesa), bem como à correspondente legitimação da forma republicana de governo, como signo de esperança a ela inerente; sucede, no entanto, que o Anjo da História (Walter Benjamin) depressa viu essa esperança a converter-se em violência, caos e basto sangue derramado – tal foi o que veio realmente depois da “clara e meiga melodia do azul e branco” (Guerra Junqueiro)[49].
c) Chegados assim ao exercício final de confrontação dos dois planos antecedentes, é possível traçar a partir de tudo o que foi dito as seguintes ilações:
Numa das Nações mais antigas da Europa, tudo parece depor no sentido de que a ligação simbólica e identitária das cores azul e branca da respectiva bandeira tem fundadas ligações físicas, fundacionais, espirituais e psicológicas: a fixação milenar dos habitantes deste espaço junto ao mar começou por fazer do Atlântico a força atractiva e agregadora (primordial e permanente) da Nação, a que o céu se veio juntar; por sua vez, além da sua impressão na paisagem, o branco era a cor eleita pelo Fundador (tal como fora a do seu pai); no instante da fundação, a cruz azul (sobre o fundo branco) vem a ser substituída pelos cinco castelos, também azuis, cuja permanência até hoje dá eloquente testemunho da respectiva força simbólica e carga espiritual; por fim, resulta serem essas as cores as que melhor se ajustam à feição cordial e sonhadora dos portugueses;
Os sete séculos de permanência dessas duas cores, não obstante as muitas mudanças sofridas pela Bandeira do Reino ao longo do tempo, são, como se reconheceu em 1821, uma prova para lá de qualquer dúvida de que há nelas uma “constante nacional” digna de consideração;
Mesmo quando chegados à I República, a permanência do azul nos cinco escudos aí está a demonstrar a sua vitória quase milenar, mesmo contra a violência da Carbonária e as maquinações de Afonso Costa;
Por fim, além do (severo) juízo que a História finalmente se encarregou de fazer sobre o que foi realmente a I República, fracassam por completo as razões apresentadas na altura para a ruptura com as cores tradicionais da bandeira de Portugal;
A tal acresce uma razão póstuma: uma vez que a bandeira foi aprovada em ditadura, por um governo sem legitimação popular e que, por isso mesmo, se manteve no poder nessa fase como partido único, com recurso à violência e ao arbítrio, não é aceitável que, num regime democrático e em Estado constitucional, se possa legitimar, ratificar ou reconhecer a manutenção da produção de efeitos a um acto tão ostensivamente ofensivo da “alma da Nação” (acto que Salazar, em ditadura e na sua profunda hipocrisia, nunca teve coragem de rever).
6. EPÍLOGO
Depois de ter dedicado quinze anos à análise comparada dos sistemas de língua portuguesa, a respeito do tema em análise, talvez o exemplo mais ilustrativo, para a nossa estranha “situação”, seja o que resulta do confronto entre a observação de dois países que nos são especialmente próximos: Cabo Verde e Angola.
Ambos se tornaram Estados independentes em 1975, então com regimes de partido único e com bandeira nacional imposta por cada um desses partidos (PAIGC e MPLA), à “imagem e semelhança” de cada um deles. Porém, Cabo Verde resolveu o problema da bandeira em 1992, uma vez chegado à democracia, ou seja, em 17 anos; já Angola ainda não resolveu nenhum dos dois problemas, mas tem sobre Portugal a vantagem de levar apenas ainda 49 anos, tanto num processo como no outro.
Para quem teve o privilégio de visitar várias vezes essas ilhas (aparentemente) perdidas no meio do “Atlântico tesouro” (Camões), o privilégio de ser convidado a celebrar aí, em 2010, a chegada à maioridade da sua jovem Constituição democrática[50], bem como a repetida ocasião de poder sentir, a cada noite, o calor das estrelas e o rumor do mar, que objecções poderia levantar às opções feitas pelo sábio Povo cabo-verdiano?
Pelo contrário!
Bandeira Nacional de Cabo Verde.
É ao Povo português que continuo a ter contas a pedir.
É ao Povo Português que cabe reflectir maduramente sobre diversas coisas (como a funcionalidade do sistema de justiça ou o excesso de Poder Executivo) na sua Constituição, lei fundamental sobre a qual nunca foi chamado a pronunciar-se, designadamente a respeito da matéria dos símbolos nacionais, que lhe foram autoritariamente impostos.
Quanto à forma de o fazer, há muito foi proposta e reproposta.
Cumprindo-se em 2026 cinquenta anos da aprovação da Constituição de 1976, não seria a ocasião propícia para iniciar um tal processo?
José Melo Alexandrino é professor universitário
[1] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950), Lisboa, reimp., 1995, p. 44.
[2] Para consulta do decreto de extinção do Santo Ofício, em 31 de Março de 1821, ver aqui.
[3] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 31.
[4] Escusando de insistir no facto de sermos o único país da Europa onde o Governo é o principal órgão legislativo (com uma competência legislativa normal, concorrente com a do Parlamento, desde 1945).
[5] José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, 2 volumes, Coimbra, 2006; Id., Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, pp. 59-60.
[6] José Melo Alexandrino, Nos quarenta anos da Assembleia Constituinte, Lisboa, 2015, pp. 9-10 (texto disponível aqui).
[7] Com efeito, na recente discussão sobre o logótipo do Governo da República, não se discutiu o essencial (se a Bandeira, desde logo nas suas cores, é aquela em que o Povo e Portugal se revêem), mas apenas o acessório: o design, a inclusividade, a comodidade digital.
[8] Com raras excepções – de vozes que pouco entendem do pulsar da cultura, dos homens e das Nações (valorizando, pelo contrário, a função de representação do jogador português no estrangeiro, Miguel Esteves Cardoso, «A selecção natural», in Público, de 24 de Junho de 2024, p. 5, disponível aqui, para assinantes).
[9] Com o título Lições de Direito Constitucional, em 2 volumes.
[10] Como sempre fora até aí, mas não depois disso, a tradição do Professor Jorge Miranda, nos sete tomos do seu Manual de Direito Constitucional, ou de Paulo Otero, nos dois volumes do seu manual de Direito Constitucional Português.
[11] Como foi e continua a ser a opção nos dois volumes do curso de Jorge Bacelar Gouveia.
[12] Ou leveza (entendida justamente como subtracção de peso), se empregarmos o critério de Italo Calvino [cfr. Seis propostas para o próximo milénio (lições americanas),trad. de João Colaço Barreiros, 5.ª ed., Lisboa, 2006, p. 17], valor em homenagem do qual chegou mesmo a pensar dedicar a primeira dessas famosas conferências à Lua (ibidem, p. 39).
[13] Por último, no texto de 2014, ainda inédito, «Deus é bem e Justiça» (incluído em obra no prelo).
[14] Miguel Esteves Cardoso, «Bendita banheira», in Público, de 23 de Junho de 2024, p. 5 (disponível aqui, para assinantes).
[15] Com as indicações necessárias, sem ignorar Varrão, que se referiu à Serra de Sintra como Monte Sagrado (Mons Sacer), cfr. Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Montes Sagrados, Altos lugares e Santuários, Lisboa, 2010, pp. 127 ss.
[16] José Mattoso, «Apresentação», in Id. (dir.), História de Portugal , vol. 1 – Antes de Portugal, Lisboa, 1992, p. 13.
[17] Na sua distinta dissertação Arquitectura do Silêncio: a (in)temporalidade do objecto [inédita], Universidade Lusíada, Porto, 2012 (em texto disponível aqui).
[18] Mariana Santos Martins, Arquitectura do Silêncio…, cit., p. 121.
[19] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 9.
[20] José Manuel Sobral/Patrícia Rodrigues, «O “fiel amigo”: o bacalhau e a identidade portuguesa», in Etnográfica, vol. 17, n.º 3 (2013), pp. 619-649; Álvaro Garrido, «O bacalhau. Nexos globais de um mito nacional», in Carlos Fiolhais/José Eduardo Franco/José Pedro Paiva (dir.), História Global de Portugal, Lisboa, 2020, pp. 585-591; por último, neste jornal, Paulo Moreiras, O fiel amigo lascado em1001 curiosidades [Recensão], texto inserido a 28 de Junho de 2024 (disponível aqui).
[21] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 16.
[22] O “Atlântico tesouro” – como, no Canto X d’Os Lusíadas, lhe chamou Luís de Camões.
[23] Cuja Bandeira Nacional, faça-se justiça, “reflecte” bem os imponentes e sobreaquecidos espaços calcorreados pelo Quixote.
[24] Isto, para citar apenas espaços que frequentei ou conheci directamente.
[25] Para uma introdução à matéria, executada há um século, Olímpio de Melo, A Bandeira Nacional – Sua evolução histórica desde a fundação da monarquia portuguesa até à actualidade, Lisboa, 1924 (disponível on-line a partir daqui); para uma súmula, Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», in A Lucta, n.º 1772, de 21 de Novembro de 1910, p. 1 (disponível aqui); para uma revisitação da história política da passagem do azul e branco ao verde e rubro, Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar – História dos Símbolos Nacionais, Lisboa, 2015, pp. 19 ss.
[26] Sobre a relevância neste aspecto, por exemplo, do projecto apresentado há 114 anos pelo poeta Delfim Guimarães e pelo pintor Roque Gameiro, merecem leitura as considerações de Nuno Severiano Teixeira, na obra já citada.
[27] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1.
[28] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal: Paraísos Perdidos e Terras Prometidas, Lisboa, 2009, p. 22.
[29]Por sua vez, A Crónica Geral de Espanha, adaptada por D. Pedro, conde de Barcelos, em 1344 (para cuja revisitação crítica, cfr. Maria do Rosário Ferreira/Maria Joana Gomes/Filipe Alves Moreira, «A Crónica de 1344 e a historiografia pós-alfonsina», in e-Spania [on-line], n.º 25, Outubro de 2016, disponível aqui), narra assim o episódio: «E depois da lide, mudou os sinais das suas bandeiras. Porque antes da lide, trazia as armas brancas como seu padre e, depois da lide, pôs no seu pendão cinco escudos azuis por memória dos cinco reis que vencera, e pô-los em cruz, por lembrança da cruz em que Nosso Senhor Jesus Cristo teve as espáduas».
[30] E parte de cujo sentido fundamental é desmentido pelas alianças que os Reis portugueses por vezes fizeram com os principados muçulmanos (José Mattoso), como sucedeu em 1151 com o tratado estabelecido entre D. Afonso Henriques e Ibn Qasî (então governador de Silves) e em razão do qual este veio a ser morto no mesmo ano, às mãos dos iminentes novos conquistadores do Al-Andaluz (os Almóadas), injuriado então como “o mahdi dos Cristãos”.
[31] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Paraísos Perdidos…, cit., p. 24.
[33] José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema…, cit., vol. I, pp. 299-300.
[34] Apesar dos longos e penosos discursos que fez na Assembleia Constituinte (para as demonstrações correspondentes, José Relvas, Memórias Políticas, vol. I, Lisboa, 1977, pp. 64-65;José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa na Assembleia Nacional Constituinte»,agora em José Melo Alexandrino, Elementos de Direito Público Lusófono, vol. II, Lisboa, 2024, pp. 18-20, 26, 40 [no prelo]).
[35] José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa…», cit., pp. 19 ss., com amplas indicações.
[36] Como dá nota Raúl Brandão (cfr. Memórias – Obras Completas, vol. I, tomo II, Lisboa, 2000, p. 89), diante da enorme polémica então surgida (cfr. J. Plácido Jr., «Quando a nossa bandeira deu uma polémica incendiária», in Visão, de 30 de Abril de 2023, texto disponível aqui).
[37] Jaime Nogueira Pinto, Nobre Povo: Os Anos da República, Lisboa, 2010, pp. 118-119.
[38] Especialmente a efémera bandeira da dinastia de Avis (cfr. Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 22).
[39] Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 26.
[40] Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 11.
[41] No sentido de traduzirem uma opção oposta à das correntes perenalistas (cfr. Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 12).
[42] Em acelerada “motorização normativa”, com mais de dois mil actos normativos aprovados.
[43] Para uma reprodução do projecto do poeta, ver aqui.
[44] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1 (artigo republicado dias depois, no n.º 285 da revista Brasil – Portugal, de 1 de dezembro de 1910, pp. 331-334).
[45] Cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 99.
[46] Para um novo olhar a respeito do primeiro deles, por último, Frederico Lourenço, Camões – Uma Antologia, Lisboa, 2024.
[47] Sobre este conceito, José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 22 ss.
[48] Na fórmula de Rolão Preto (que nunca desconsiderou o 5 de Outubro e que acabou a colaborar activamente com os republicanos, a partir de meados do século XX), a I República foi um regime que teimou em marchar «só com uma perna» [cfr. «Carta a um Republicano» (1972), in José Melo Alexandrino (org.), Rolão Preto, Obras Completas, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2023, p. 410].
[49] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1.
[50] Para o texto da intervenção então proferida, na Cidade da Praia, ver aqui.
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Tal como sucedeu, no final de Fevereiro, com um outro texto, que jamais pensara vir a divulgar[2], também agora sou forçado a dar a conhecer um outro do mesmo género. Bendita seja a liberdade de expressão e de crítica política, por poder recair sobre lícitos ou ilícitos que jamais prescrevem, embora esteja longe de ser esse o maior dos seus atributos!
1. Perfizeram-se no passado dia 18 de Junho dois meses que dirigi ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, sem que dele ou do Município a que preside tenha recebido qualquer resposta, o requerimento que passo a transcrever:
Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Prezado Dr. Carlos Moedas,
O signatário, docente universitário, depois de muito ter pesquisado no sítio do Município de Lisboa, no Boletim Municipal e de o tentar indagar junto de Departamentos do Município e mesmo do Gabinete de V. Ex.ª e do da Senhora Vereadora Joana Almeida;
Depois de registar o deplorável episódio de ontem, na Bélgica, da proibição de uma reunião por uma autoridade local, estando no entanto a Polícia munida do respectivo despacho escrito, com os fundamentos tidos por aplicáveis;
Sabendo que nem a Câmara Municipal de Lisboa (na sua reunião de 24 de Janeiro de 2024), nem a Assembleia Municipal, que apenas se pronunciou sobre o assunto a 30 de Janeiro de 2024 [conforme o Boletim Municipal, 5.º Suplemento ao n.º 1564, de 8 de Fevereiro de 2024, p. 192(80)], deliberaram sobre o assunto – nem podiam deliberar, por tal competência policial ser exclusiva do Presidente da Câmara, órgão ao qual foi transferida por lei em 2011;
Vem, perante V. Ex.ª requererinformação sobre a data, os termos, o conteúdo e os fundamentos do despacho [presumo que de 26 de Janeiro de 2024], e seus anexos, relativos à proibição da manifestação requerida [presumo também que] por elementos do grupo 1143, para ser realizada junto ao Martim Moniz, no início de Fevereiro.
Aproveita a ocasião para dar nota da falta de critério visível na publicação de informações devidas no Boletim Municipal, designadamente dos actos relevantes do Presidente da Câmara Municipal (e outros), e para a desrazoabilidade de informações escusadas que dele não deviam constar, matéria que deve ser realmente repensada, tanto por razões legais, como pelo declarado empenho do Município na concretização do valor da Transparência.
2. Se tomo aqui como ponto de partida o decurso desses dois meses, após o requerimento apresentado em 18 de Abril de 2024, no que toca à minha inquietação com o tema da liberdade de manifestação num “caso concreto”[3] em Portugal (inquietação académica, primeiro; depois, cívica; agora, já de “outra natureza”[4]), tal não significa que entre 26 de Janeiro e 18 de Abril de 2024 não tivesse havido uma infinidade de percalços e de episódios, envolvendo múltiplas e variadas pessoas, estruturas e instituições. Bem pelo contrário.
Para não aborrecer o leitor, darei nota resumida de uma pequena parte deles:
Perante a estranheza das notícias (aliás bem homogeneizadas na generalidade dos meios de comunicação social)[5] que, na tarde do dia 26 de Janeiro, davam conta da recusa da autorização de uma manifestação pela Câmara Municipal de Lisboa, consegui, às zero horas e sete minutos do dia 27 de Janeiro, obter informação fidedigna de que fonte oficial do Município tinha transmitido aos jornalistas, no dia anterior, a seguinte nota: “A CML não irá autorizar a manifestação marcada para o próximo dia 3 de fevereiro e que tinha previsto percorrer diversas ruas da Mouraria. O parecer da PSP é claro ao salientar um elevado risco de perturbação grave e efetiva da ordem e da tranquilidade pública”[6];
Como, segundo os mesmos meios de comunicação social, a proibição da manifestação tinha sido notificada aos requerentes nessa mesma noite de 26 de Janeiro de 2024, havia qualquer coisa que não “batia certo” na nota transmitida à comunicação social pelo Município, preocupação que dei a conhecer a diversas editorias políticas (incluindo a da LUSA), bem como a diversos jornalistas;
Perante o contexto, fui-me socorrendo entretanto do meio que, desde Agosto de 2023, comecei a fazer uso efectivo: o do recurso aos comentários como assinante do jornal Público, tendo escrito, entre os dias 26 e 28 de Janeiro (e de entre textos próprios e de resposta a interpelações de outros leitores), um total de 12 comentários sobre a matéria em questão;
Entre esses comentários, contavam-se designadamente os seguintes:
– A audácia pode fazer um líder; mas a decisão de Moedas é política, não é jurídica, pois não tomou na devida conta o Direito aplicável, nem a relevante doutrina sobre a liberdade de manifestação. 26 de Janeiro foi um dia demasiado pesado. O futuro o julgará.
– O Povo é sereno. Esperemos para ver o teor da decisão do órgão competente; por enquanto, pelo que vejo, ainda só há um parecer da PSP.
– A Câmara não tomou decisão nenhuma!
– Um país autoritário gosta sempre de regressar às raízes. Não se esperava era isso de um cosmopolita como Carlos Moedas, que há poucos dias se encontrou com Ayuso. Ela tem de lhe explicar o valor da Liberdade, porque na França, reconheço, é muito difícil aprender tal coisa. Moedas aplicou portanto o que aprendeu ainda em Beja.
– Só os santos é que têm direitos? Onde é que isso está consagrado?
Durante todo esse dia, e até à noite de 28 de Janeiro de 2024, o último comentário que constava da “caixa de comentários” (relativo à notícia de 26 de Janeiro «Câmara de Lisboa impede manifestação de extrema-direita. Há “elevado risco”, diz PSP») era meu e dizia:
É a democracia constitucional que garante a TODOS a universalidade dos direitos. Há quem queira destruir a democracia, por fundadas ou infundadas razões. A esses, tem de ser feito o devido combate “político”, com todas as armas do combate político legítimo, ou seja, no respeito por aquilo que é sagrado na Democracia – e não pisando-o. Os defensores da Liberdade têm de ser os primeiros a dar o exemplo, respeitando os direitos e as regras que a TODOS protegem, sob pena de serem adjuntos dos coveiros da democracia. Aí, sim, são eles que vão de mãos dadas com os grandes inimigos da Liberdade – que não podem vencer!
Ora, na manhã do dia 29 de Janeiro, tendo verificado o desaparecimento dos comentários na notícia em causa, depois de interpelado o jornal, foi-me respondido, em e-mail das 14:52 desse mesmo dia (da responsável pela área das redes sociais): «Caro leitor, a caixa de comentários foi encerrada para limitar a proliferação de discurso de ódio»;
Para adiantar serviço, depois de duas reclamações dirigidas à direcção do jornal, por ofensa às regras do próprio jornal, à liberdade de expressão e ao princípio da proporcionalidade (alegando designadamente que não fazia sentido o encerramento de uma caixa de comentários quando já tinham sido publicados mais de uma centena de comentários, quando já tinham passado mais de dois dias da publicação do artigo e quando se estava a poucas horas do encerramento automático dessa mesma caixa de comentários), reclamações às quais até hoje não obtive a graça de uma resposta[7], resolvi dirigir igualmente uma queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (abreviadamente, ERC), o que fiz em 6 de Fevereiro de 2024;
Obtive então finalmente uma resposta. 13 dias volvidos da apresentação da “queixa” contra o Público[8], recebi um ofício do Gabinete do Conselho Regulador onde se dizia basicamente o seguinte: (i) a ERC tem defendido que os comentários dos leitores estão protegidos pela liberdade de expressão; (ii) tais comentários estão, no entanto, sujeitos designadamente às “Guidelines” definidas na Diretiva da ERC 2/2014, de 29 de outubro de 2014; (iii) «tem sido entendimento da ERC que a decisão de proceder à publicação de comentários de leitores se situa no âmbito da responsabilidade da direção do respetivo órgão de comunicação social (…), tendo os jornais a autonomia para definir os critérios para análise e seleção de comentários»; (iv) «Face ao exposto, entende-se que não se justifica, no presente caso, uma intervenção da ERC».
3. Resumidos os dados, não é este o lugar, nem o momento, para apreciar, como haverá por certo ocasião de fazer, as muitas lições a extrair da minha relação com o jornal Público (desde o início da pandemia até ao dia 29 de Janeiro de 2024[9]), nem tão-pouco é este o momento para regressar à apreciação do papel da ERC[10], entidade à qual se deve em boa medida o colapso do jornalismo no nosso país, embora, para sermos justos, militem a seu favor duas atenuantes de monta: o karmanegativo recebido do “especial contexto português” (e, nele, de todas as entidades que a antecederam)[11], mas sobretudo as causas profundas desse défice de prestação, que radicam no modo como são designados os respectivos titulares e nos efeitos nefastos da cartelização do sistema partidário[12].
4. Resta, por isso, regressar ao ponto de partida: o requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
Um leitor atento – que, mentalmente ou numa folha de papel, tenha tomado nota dos pontos principais deste enredo – já se terá dado conta dos motivos pelos quais o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa ainda não conseguiu – e porventura não irá conseguir – responder àquele meu singelo pedido de informação.
A explicação é até muito simples: não é possível que a nota transmitida pelo Município à comunicação social corresponda à realidade, o que, por sua vez, leva à conclusão de que a agência de notícias e todos os jornalistas que até hoje escreveram sobre o assunto compuseram “notícias” sem base alguma real: num facto (ou acto), numa norma, num documento, num autor.
Por um lado, porque a Câmara Municipal de Lisboa não tomou decisão alguma de proibição da manifestação antes de 26 de Janeiro de 2024, tão-pouco a tendo tomado nesse dia ou depois desse dia (uma vez que os interessados foram notificados de que a sua pretensão não fora atendida, na noite de 26 de Janeiro);
Por outro lado, se assim foi, como podia o Município transmitir, como transmitiu, aos jornalistas que «A CML não irá autorizar a manifestação»? E como é que os jornalistas puderam fazer as suas notícias sabendo (ou devendo saber) que a Câmara Municipal de Lisboa não reuniria nesse dia (nem nos seguintes), ao contrário do que fazia crer o teor da nota que lhes fora transmitida?
Mais: como é que os jornalistas puderam elaborar pacificamente as suas peças, sem se questionarem a quem pertencia a competência para decidir sobre a matéria, sabendo (ou devendo saber) que tal poder policial tinha sido transferido do governador civil (figura inconstitucionalmente extinta nos tempos da troika)[13] para o Presidente da Câmara Municipal?
Pior: como é que os jornalistas portugueses puderam fazer e replicar a mesma notícia, por quase todos os meios de comunicação social, sem terem visto um único documento e sem conhecerem a data, o conteúdo ou o autor do acto que relatavam?
5. Haveria, no entanto, uma hipótese remota a considerar, ainda que a mesma apresentasse a fragilidade de ser ofensiva do núcleo sagrado do Estado de Direito e se aproximasse terrivelmente da prática dos regimes de não-Direito de há um século (onde as leis efectivamente aplicadas aos cidadãos eram secretas, e só as demais eram publicadas): a escapatória (Kafka) de ter existido uma reunião secreta da Câmara Municipal (algures entre o momento da transmissão da nota à comunicação social e o momento da notificação da não autorização da manifestação aos interessados).
Mas, se a reunião fosse secreta, como poderíamos nós saber que tinha existido?
José Melo Alexandrino é professor universitário
[1] No texto «Um relatório a uma academia», agora disponível na cuidada tradução de António de Sousa Ribeiro, Franz Kafka, Contos, Parábolas, Fragmentos, Lisboa, Relógio D’Água, 2024, p. 110; em versão distinta (quer no título, quer na passagem citada), Franz Kafka, O Abutre e outras histórias, trad. de João Bouza da Costa, Lisboa, Presença, 2024, p. 51.
[2] Na verdade, o primeiro texto que dei a conhecer na imprensa escrita (não académica), por razões que derivam deste caso.
[3] Em abstracto, já me pronunciara sobre o assunto, em sessão realizada no Supremo Tribunal de Justiça, em 3 de Abril de 2014 (o leitor interessado pode ver o texto dessa intervenção aqui).
[4] Sobre a abdicação do recurso, para já, ao sistema judicial – reservado como está essencialmente aos ricos e poderosos ou, com graves limitações, aos indigentes – e sobre algumas das reformas a empreender nesse domínio, veja-se aqui.
[5] E, como tal, ainda disponíveis on-line em (corroboradora) abundância.
[6] Muito mais tarde, viria a verificar que o próprio Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, transcrevera, sem outras considerações, essa nota na rede social X, às 21:08, desse mesmo dia 26 de Janeiro de 2024.
[7] A única resposta que existiu foi capciosa, por recurso ao expediente de encerrar, nos dias imediatos, duas outras caixas de comentários, a um artigo de opinião de Carmo Afonso, a 31 de Janeiro, e a outro de Cristina Roldão, a 1 de Fevereiro – prática de que jamais dera conta de ter sido utilizada pelo jornal.
[8] Queixa a que a ERC, apesar de a lei dizer o contrário, insiste em chamar “participação” (tanto nos formulários que disponibiliza ao público, como no ofício que me remeteu).
[9] Note-se que os comentários à notícia de 26 de Janeiro, até à data da redacção deste artigo, ainda não foram repostos no jornal.
[10] Jorge Miranda/José de Melo Alexandrino, «Art. 39.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros (orgs.), Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 875 ss.
[11] Sobre o assunto, José Melo Alexandrino, Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, Petrony, 2024, pp. 99 ss., 153-154 (no prelo).
[12] Com interesse, pode ler-se esta Introdução a um conjunto de estudos publicados em 2020.
[13] Porque a Constituição continua a dispor que os governadores civis permanecem até à criação das regiões administrativas (sobre o assunto, José Melo Alexandrino, Contexto e sentido da reforma do poder local, Bragança, 2011, pp. 16 ss., em texto disponível aqui).
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“[Esta estranha gente] move-se tão rapidamente que deixa tudo por fazer, incluindo ir depressa. Não há nada menos ocioso do que um português. A única parte ociosa do país é a que trabalha. Daí a sua falta de evidente progresso.”
Fernando Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural – A ficção dos heterónimos, Mem-Martins, 1985, p. 84.
“O Português, dentro de determinadas condições, se a vida lhe fosse inteiramente favorável, ele gostaria muito mais de contemplar e poetar do que trabalhar. Mas quando é levado a uma função em que tem de trabalhar, ele trabalha.”
Agostinho da Silva, Citações e Pensamentos, 2.ª ed., Alfragide, 2009, pp. 94-95.
O passado dia 17 de Maio, em virtude da posição assumida pelo novo Presidente da Assembleia da República, ao declarar expressamente que se recusava a ser o censor da liberdade de expressão dos Deputados (remetendo o ónus para o Plenário), deu origem a uma acalorada discussão, dentro e fora da Assembleia da República, com dois campos extremados a digladiarem-se em partes relativamente iguais, com a curiosidade de no lado da comunicação social escrita e televisiva se pressentir maior hostilidade, nas 24 horas seguintes, à posição de José Pedro Aguiar-Branco.
A circunstância de ter podido avaliar a prestação do seu antecessor no cargo, Augusto Santos Silva, num escrito divulgado no dia que que se iniciou a presente legislatura[1], permite-me, além de apreciar a questão central do âmbito e limites da liberdade de expressão dos Deputados quando no exercício de funções (ou actuem nessa qualidade – ainda referível ao mandato parlamentar), fazer uma comparação entre o desempenho do cargo por esses dois titulares, não obstante a diferença temporal de um ano e onze meses, num caso, e de menos de dois meses, no outro, comparação pela qual começarei.
1. Perfil de dois Presidentes da Assembleia da República
a) Relativamente ao anterior titular do cargo de Presidente da Assembleia da República, começo então por recuperar alguns dos tópicos do que escrevi anteriormente (cingindo-me aos aspectos que deram o mote ao presente texto):
Logo no discurso de tomada de posse, a propósito da língua portuguesa, o então Presidente procurou estabelecer uma diferença política e moralmente marcante entre o “patriota” e o “nacionalista”, vendo neste último aquele que “odeia a pátria dos outros”[2]; como escrevi, independentemente do arriscado da comparação, o problema de fundo reside no facto de germinarem nessa passagem as “sementes de um discurso de exclusão” de uma determinada força política, força política essa que não está “excluída” da Constituição[3] e que, de modo algum, deveria ter sido hostilizada, na hora em que se davam as boas-vindas aos Deputados[4];
Arrogou-se poderes que não lhe cabiam, designadamente o poder de interpretação do Regimento, matéria que, segundo o (actual) artigo 264.º, n.º 1, do Regimento, está cometida à Mesa, com recurso para o Plenário;
Uma vez invadidos esses poderes, aplicou aos Deputados do Chega a disposição do (actual) artigo 16.º, n.º 1, alínea p), do Regimento (que dispõe que compete ao Presidente manter a ordem e a disciplina, bem como a segurança da Assembleia, podendo para isso requisitar e usar os meios necessários e tomar as medidas que entender convenientes), quando esse preceito não é manifestamente aplicável aos Deputados, como na altura recordaram diversos juristas;
No dia 25 de Abril de 2023, sentiu-se autorizado não só a interromper o discurso de um Chefe de Estado Estrangeiro, o Presidente da República Federativa do Brasil, como a censurar e admoestar duramente os Deputados do Chega;
Dias depois, sem que até hoje se conheça a norma aplicável, o procedimento havido (e sequer a existência de audição prévia do grupo parlamentar interessado), segundo a imprensa, tomou a decisão de suspensão de acompanhamento de comitivas parlamentares por parte de Deputados do Chega[5];
Depois de tais episódios, foi solicitada e analisada a legislação de Direito Comparado sobre ética parlamentar, sucedendo que, no final, por sugestão do próprio, a Conferência de Líderes veio a concordar em nada fazer, quando o que se impunha era, evidentemente, o inverso.
b) Confrontemos agora esses registos com os do actual Presidente da Assembleia da República:
Superada a confrangedora situação do dia anterior, em que a sua eleição fora rejeitada por duas vezes, o novo Presidente, antes de subir ao seu lugar na tribuna, fez questão de cumprimentar todos os líderes políticos e dos grupos parlamentares sentados na primeira fila da sala de sessões;
No seu discurso de tomada de posse, depois do imediato (e, quanto a mim) premente desafio lançado a todos os grupos parlamentares de repensar o Regimento[6], começou por referir que o voto de cada português “deve merecer igual respeito por parte de todos os cidadãos” e que é “fundamental a liderança pelo exemplo”, acrescentando: “sei e aceito a exigência de imparcialidade, equidistância e rigor que todos esperam de mim” e que “a lealdade do Presidente da Assembleia da República aplica-se para com todos os 229 Deputados. Por uma razão simples, se não somos capazes de nos entender na casa da democracia, que exemplo estamos a dar para fora? Que esta mesa que vai ser hoje eleita seja capaz de unir o que as ideologias separam”[7];
Ciente do peso para as instituições da iniciativa desencadeada contra o Presidente da República, sem fundamento material ou jurídico algum, o Presidente da Assembleia da República fez tudo o que era possível não para obstacularizar ou adiar o procedimento em causa mas para o acelerar e promover no tempo mais expedito possível;
Chegados assim à manhã de 17 de Maio de 2024, tudo decorreu tão normalmente que não foi esse procedimento a desencadear a polémica, mas sim uma outra declaração acerca do prazo de conclusão das obras do futuro aeroporto Luís de Camões, comparando os 10 anos previstos pelo Governo com os 5 anos que teria levado a construção do aeroporto de Istambul.
c) Ainda sem termos descido ao problema da liberdade de expressão, podemos desde já facilmente concluir haver aqui dois padrões muito distintos do exercício da função de Presidente do Parlamento (Speaker):
Num caso, temos um Presidente que toma partido, no outro, um Presidente neutral;
Num caso, um Presidente que prefere a polarização, no outro, um Presidente que prefere a diluição da polarização;
Num caso, um Presidente que abusa dos seus poderes, no outro, um Presidente que prefere a autocontenção;
Num caso, um Presidente que decide (mesmo sem olhar às exigências do Estado de Direito), no outro, um Presidente que prefere remeter a resolução dos problemas para as regras e para os instrumentos ao dispor dos principais actores parlamentares.
2. Âmbito e limites da liberdade de expressão dos Deputados
a) Quanto ao âmbito e limites da liberdadede expressão em geral, é matéria sobre a qual já me pronunciei de forma abundante[8], em termos que vão sendo muito lentamente acolhidos, numa sociedade que, por muitas e complexas razões, como tentei revelar num outro texto publicado neste jornal, por ocasião dos 50 Anos do 25 de Abril, tem ainda muitas aprendizagens por fazer.
Não havendo por isso razões para reincidir num discurso já feito pela quarta ou quinta vez, posso começar pela revelação de um primeiro “critério de aferição”: quando alguém (incluindo aqui uma instituição, um tribunal, um advogado, um jornalista ou uma entidade reguladora) disser “a liberdade de expressão não é absoluta”, isso é o primeiro sinal de que essa pessoa não faz ideia do que é a liberdade de expressão – ora porque recebeu o essencial da tradição francesa, ora porque o legado do Estado Novo ainda está presente, ora por razões de outra índole.
Facto é que nas dezenas de processos em que Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por violação da liberdade de expressão, os tribunais portugueses visados utilizaram sempre essa triste gramática, que pode servir à generalidade dos demais direitos fundamentais, mas não serve à liberdade de expressão.
E por que razão não serve à liberdade de expressão?
Porque, ao contrário do que sucede com a generalidade dos demais direitos fundamentais (que protegem bens, valores ou interesses unilaterais, como a vida, a integridade física, o segredo das comunicações, o poder de decretar a greve ou de a ela aderir, etc.), a liberdade de expressão é um princípio que já envolve múltiplas dimensões do conjunto, havendo por isso nela «uma implícita presunção de correspondência com a ordem do todo, por não serem facilmente concebíveis bens ou circunstâncias com força suficiente para [a] neutralizarem, mesmo quando o respectivo exercício se situe já na orla crítica do ordenamento (como acontece na generalidade dos genuínos movimentos radicais de protesto político ou nas situações a que os norte‑americanos apelidaram de clear and present danger)»[9].
Identificado e justificado o “critério de aferição”, na Constituição Portuguesa de 1976, a liberdade de expressão em geral, só conhece um limite: o limite de que o pensamento seja o da pessoa que se está a exprimir (artigo 37.º, n.º 1, da Constituição), não protegendo por isso a mentira objectiva (dolosa) ou o plágio.
Os demais princípios constitucionais ou direitos fundamentais, ao contrário do que muitas vezes se diz, não são, nem podem ser considerados, limites da liberdade de expressão, nem têm de ser com ela compatibilizados (veja-se como as Constituições alemã ou angolana, ao contrário da nossa, expressaram quais desses direitos eram limites). Quando muito, na nossa Constituição, esses princípios ou direitos fundamentais podem servir de fundamento para restrições legislativas, mas estas têm de obedecer a apertados critérios, porque se defrontam com a liberdade matricial do sistema. E, na verdade, não faltam no Código Penal tipos de crimes que não passam as barreiras dos “guardas de flanco” da liberdade de expressão (como é o caso, só para dar dois exemplos, do de ultraje a Chefe de Estado estrangeiro ou de ultraje aos símbolos nacionais).
Imaginemos que um cidadão diz o seguinte de um governante: que é um perfeito salteador político; que é as fezes da República; que é um escroque nato; que andou abrindo as pernas do espírito prostituidamente; que é um Carimbiborrão de quem o pariu; que é um intrujão, de tipo patibular a quem não vale a pena de morte estar abolida; que é falho mesmo como malandro; que é um pulha, um bandalho.
Pode esse cidadão dizê-lo ao abrigo da sua liberdade de expressão?
Pode! E disse-o, em meia página, Fernando Pessoa do Dr. Afonso Costa[10].
Imaginemos agora um cidadão que sobre a bandeira nacional e o regime que a criou diz o seguinte (apesar da norma do Código Penal): “o regime está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional – trapo contrário à heráldica e à estética porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que por direito mental, devem alimentar-se”.
Pode esse cidadão dizê-lo ao abrigo da sua liberdade de expressão?
Pode![11] E disse-o igualmente, em poucas linhas e sem que estivesse em democracia, Fernando Pessoa[12].
Em suma, fora das restrições ditadas pelo artigo 270.º da Constituição para as pessoas que se encontrem nessas situações (militares, agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, forças de segurança) e de casos conhecidos como de “estatuto especial” (como é, entre outros, o de diplomatas ou juízes), um cidadão pode dizer essas e muitas outras coisas.
b) Se é assim tão amplo e assim deve ser entendido o âmbito da liberdade de expressão do comum das pessoas (não têm de ser cidadãos, na medida em que os estrangeiros e os apátridas também dela beneficiam, por decorrência imediata da dignidade da pessoa humana), que dizer dos Deputados?
A primeira coisa a dizer é, obviamente, que os Deputados também beneficiam, como pessoas, deste âmbito alargado da liberdade de expressão.
A segunda coisa a dizer é que, fruto da Revolução Inglesa dos finais do século XVII, os Deputados gozam de um reforço da liberdade de expressão, quando se encontrem no exercício de funções, através de um instituto entre nós conhecido como “imunidades parlamentares”: segundo a regra mais relevante para este efeito (o artigo 157.º, n.º 1, da Constituição), «os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções».
Ora, além das imunidades, a Constituição estabelece igualmente poderes dos Deputados (artigo 156.º), direitos e regalias (artigo 158.º) e também deveres (artigo 159.º). Entre estes deveres não há porém nenhum que contenda com a liberdade de expressão ou que imponha ao Deputado a moderação no uso da linguagem.
Devemos, no entanto, ter especialmente em conta o facto de a Constituição não ser uma ordem completa, mas apenas uma “ordem-quadro”[13], deixando muitos aspectos por regular, remetendo o que falta para o legislador (e outros aspectos ainda para a ponderação dos órgãos políticos)[14], competindo por isso à Assembleia da República definir e completar (no Estatuto dos Deputados, no Regimento da Assembleia da República e em outros instrumentos que definam padrões normativos aplicáveis ao trabalho parlamentar) o que não está, nem podia estar, integralmente previsto no texto da Constituição.
Sucede que entre os vícios do parlamentarismo democrático português se contam a dificuldade de reformar (datando o último esforço de 2006, por mérito de António José Seguro), a fixação no Regimento (quando muitas outras regulações e estruturas complementares são necessárias) e a prática das sucessivas pequenas alterações ao Estatuto dos Deputados, sem mudar o essencial – típica característica lusitana. A aprendizagem aqui tem de fazer-se a olhar para outros lados[15], designadamente para os países que foram o berço ou continuam a ser os bastiões da democracia, e onde há muito existem e são sistematicamente afinados os padrões aplicáveis ao comportamento dos Deputados, dentro e fora do Parlamento[16].
Importa, no entanto, também aqui, ponderar alguns exemplos.
Pode um Deputado, no exercício de funções, fazer um discurso discriminatório ou xenófobo?
À luz da nossa Constituição, pode.
Pode um Deputado, no exercício de funções, fazer um discurso racista ou fascista?
Neste caso, a resposta é matizada: em princípio, pode, mas o registo do acto fica para um eventual processo para efeitos do artigo 46.º, n.º 4, da Constituição (preceito que indicia que esse tipo de discurso, sendo à partida individualmente permitido, não é apreciado pela Constituição).
Pode um Deputado mentir, no exercício de funções?
A resposta, também aqui, é variável: tratando-se de mentira subjectiva (ou seja, estando o próprio convencido de que aquilo que diz é verdade), pode; tratando-se de mentira objectiva e caso não haja regra expressa em contrário[17], à luz da Constituição, também pode[18], a menos que se encontre numa situação em que esteja obrigado a dizer a verdade (como, por exemplo, no âmbito de uma Comissão de Inquérito), devendo nesse caso o acto ilícito ser participado ao Ministério Público.
Se tudo isto é assim no que respeita ao âmbitojurídico da liberdade de expressão do Deputado, tal não significa que esses discursos não devam ser combatidos e contestados na esfera política e social, pelos meios que os demais cidadãos, grupos e partidos considerem convenientes, no uso dos respectivos direitos. Mas esse é um plano totalmente distinto do que é visado neste texto.
3. Conclusão
Não parece que tenha justificação o alarido que se ouviu no dia 17 de Maio nas bancadas do Bloco de Esquerda, do Livre e do Partido Socialista sobre a opção do Presidente da Assembleia da República de remeter para o Plenário o ónus da censura de um potencial discurso xenófobo ou discriminatório.
Tal não significa que o Parlamento não deva meditar numa profunda reforma da Casa, a começar pela aprovação de um adequado Código de Conduta dos Deputados e respectivas estruturas de supervisão (que não devem ser compostas apenas por Deputados), pela reforma do Estatuto dos Deputados e da Lei orgânica da Assembleia da República (onde não são poucas as ambiguidades e as normas flagrantemente inconstitucionais), e a terminar na reforma do Regimento, que espera há 18 anos por grandes obras de reparação (e não remendos).
José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
[1] José Melo Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, texto inserido em 26 de Março de 2024, disponível aqui.
[2]Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 1, de 30 de Março de 2022, p. 11.
[3] Artigo 46.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
[4] José M. Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, cit., p. 3.
[5] Decisão que, no Verão desse mesmo ano, declarou estar disposto a reconsiderar.
[6] Discurso de 27 de Março de 2024, disponível aqui.
[8] Especialmente: José Alberto de Melo Alexandrino, Estatuto constitucional da actividade de televisão, Coimbra, 1998, pp. 80-111; Id., «O âmbito constitucionalmente protegido da liberdade de expressão», in Carlos Blanco de Morais/Maria Luísa Duarte/Raquel Alexandra Brízida Castro (coords.), Media, Direito e Democracia – I Curso pós graduado de Direito da Comunicação, Coimbra, 2014, pp. 41-66 (agora in José Melo Alexandrino, Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, 2004, pp. 137-163 [no prelo]); Id., «Artigo 37.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 3.ª ed., Lisboa, 2017, pp. 612-623.
[9] Cfr. José Melo Alexandrino, «Deus é bem e Justiça» (2014), in Elementos de Direito Público Lusófono, vol. II, Lisboa, 2024, p. 124 (no prelo).
[10] Fernando Pessoa, Páginas de Pensamento Político – 1, 1910-1919, org. de António Quadros, Mem-Martins, 1986, p. 79.
[11] José Melo Alexandrino, «O âmbito constitucionalmente protegido…», cit., p. 54, nota 68.
[12] Fernando Pessoa, Da República, org. de Joel Serrão, Lisboa, 1979, p. 47; também acessível aqui.
[13] Sobre este conceito, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 233 ss.
[14] Como sucede, por exemplo, com a nomeação do Primeiro-Ministro ou a dissolução da Assembleia da República.
[15] Sobre o tema, com interesse, Pedro Costa Gonçalves, «A expulsão de deputados “desordeiros”», in Observador, de 8 de Maio de 2023, disponível aqui.
[16] Sobre o Código de Conduta da Câmara dos Comuns, aprovado em Dezembro de 2022, ver aqui; para outras indicações relevantes, ver aqui.
[17] Segundo a doutrina que tenho por mais consistente, é ao Parlamento (e não aos tribunais) que compete, em primeira linha, regular, investigar e sancionar estes e outros comportamentos.
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Os últimos meses e dias, mais ainda do que a iminência das eleições para o Parlamento Europeu, obrigaram-nos a lembrar uma criatura quimérica concebida há um quarto de século, numa cimeira do Conselho Europeu: a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Proclamada solenemente logo em 2000, em Nice, veio, depois de adaptada, a ser tornada vinculativa, saberá Deus porquê, junto ao Atlântico, com as assinaturas de José Manuel Durão Barroso, então Presidente da Comissão Europeia, e José Sócrates, então Presidente do Conselho da União Europeia, no Tratado de Lisboa, em 12 de Dezembro de 2007.
Como tive ocasião de dizer pouco tempo depois, em Bragança, «de costas voltadas para as realidades e para os povos europeus, na última década, a Europa andou a brincar às Convenções, às Cartas dos Direitos Fundamentais e às Constituições»[1].
A verdade é que, passados 25 anos daquele dia 4 de Junho de 1999 em Colónia, a Europa dos 27 continuou a descurar o essencial, a começar pelo reforço do seu processo de democratização (prosseguindo como uma estrutura de poder político sem verdadeiros partidos políticos, sem um fórum público de formação da opinião, sem aperfeiçoamento dos mecanismos de prestação de contas ou da aproximação dos cidadãos aos decisores), a participar (através de alguns dos seus principais membros) em dois dos seis ou sete episódios mais trágicos do milénio até agora (a Guerra do Iraque e a destruição da Líbia) e a terminar no descaso relativamente às necessidades vitais em matéria de segurança e de defesa dos europeus, a ponto de se revelar incapaz de cumprir os compromissos assumidos com a Ucrânia em matéria de fornecimento de munições, após a invasão russa de Fevereiro de 2022.
1. Ora, na presente situação, embora esse pequeno pormenor seja geralmente omitido, tudo começou mais uma vez nos Estados Unidos (um pouco ao modo das Revoluções de há 250, 235 e 204 anos, respectivamente, nos Estados Unidos, na França e em Portugal, embora agora com inusitada aceleração do tempo de reacção): no dia 24 de Junho de 2022, uma sexta-feira, o Supremo Tribunal (no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization) decidiu reverter a jurisprudência que ele próprio firmara 50 anos antes, no célebre caso Roe v. Wade, que reconhecia à mulher (desde logo, contra o poder dos estados) o direito à interrupção voluntária da gravidez, com os três Juízes dissidentes a escreverem agora: «[d]iscordamos, com pesar – por este Tribunal, mas mais ainda, pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma protecção constitucional fundamental»[2]. Havia efectivamente uma protecção constitucional da interrupção voluntária da gravidez desde 1973, mas ela não era dada por uma norma da Constituição, mas por uma sentença, que pretextava, no caso “mais difícil de todos”, interpretar a Constituição num sentido que nunca deixou de ser contestado e que não reunia as condições para ser considerada “fonte” de normatividade constitucional[3], estando por conseguinte sujeita ao inerente risco da reversibilidade, por uma decisão equivalente de sentido contrário, como veio a suceder[4].
2. Tendo sido este o detonador, foi com a habitual pompa que no Palácio de Versalhes, por proposta do Presidente da República, em 4 de Março deste ano, o Congresso francês fez inscrever no artigo 34.º da Constituição a seguinte disposição: La loi détermine les conditions dans lesquelles s’exerce la liberté garantie à la femme d’avoir recours à une interruption volontaire de grossesse. Deve, em justiça, dizer-se que a fórmula se adapta perfeitamente ao modelo francês das “liberdades administradas por lei” e que a nova garantia está sistematicamente bem colocada no Título V da Constituição de 1958, que se ocupa das Relações entre o Parlamento e o Governo. Tudo porque a Constituição francesa não dispõe de um catálogo, nem conhece sequer o conceito, de direitos fundamentais. E tudo isso numa Constituição que o actual Presidente francês se comprometeu a reformar logo no seu primeiro mandato, mas onde, tal como na generalidade das demais reformas, o insucesso foi total.
3. De Versalhes a Estrasburgo é um passo, pelo que o Parlamento Europeu fez questão de marcar igualmente a sua posição sobre o tema: no dia 11 de Abril, adoptou uma resolução (sem força vinculativa, pois tal decisão está nas mãos, não do Conselho, como foi noticiado, mas dos Povos europeus) propondo uma alteração ao artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que deveria explicitar: todas as pessoas têm o direito à autonomia sobre o seu corpo, o acesso gratuito, informado, pleno e universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, e a todos os serviços de saúde conexos, sem discriminação, incluindo no acesso ao aborto seguro e legal.
4. Ora, como da França a Lisboa o caminho sempre foi curto, sobretudo em matéria de importações, também a Assembleia da República se quis associar ao assunto, com um voto de saudação à decisão do Parlamento Europeu, apresentado pelo Bloco de Esquerda, logo no dia 15 de Abril[5].
Sem pretender exagerar na apreciação jurídico-política da ideia, salvo no uso do advérbio inicial – que nestes contextos podemos perdoar –, vejo assomarem aí variadas dificuldades:
A primeira é a de que o direito à habitação já está consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia;
A segunda é a de que a formulação presente no artigo 34.º, n.º 3, da Carta (segundo o qual a União reconhece e respeita o direito a uma ajuda à habitação destinada a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais) não só é contrária à ideia (do candidato) de universalização do direito, como é a mais condizente com a natureza do “princípio” nela enunciado, designadamente à luz das próprias “Anotações” anexas à Carta, mas também à luz da doutrina e da jurisprudência (constitucional, comunitária e internacional) mais consistentes;
A terceira é a de que a realização do direito à habitação é uma competência dos Estados – como teve de ser lembrado ao anterior Governo português, há escassos meses, pela Comissão Europeia –, pouco sentido fazendo apostar, mesmo que simbolicamente, numa medida que não reentra nas atribuições da União Europeia;
Como “princípio” que é, a referida garantia está sujeita a um regime muito distinto do regime aplicável aos “direitos e liberdades” previstos na Carta dos Direitos Fundamentais (artigo 52.º), não se podendo, no caso de um direito cujo conteúdo principal se traduz em prestações positivas, transformar a água em vinho; melhor seria o empenho no revigoramento da Carta Social Europeia, cujos direitos, quando comparados com os da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não passam de balões vazios, no conteúdo e na (ausência de) tutela;
Por último, que o candidato não me leve a mal, mas é no mínimo ridículo que um país que, há 48 anos, inscreveu o direito à habitação como direito fundamental na sua Constituição e que (salvo quanto ao programa de erradicação das barracas) se esqueceu desse direito durante mais de 40 anos (bastando para o efeito consultar os sucessivos Orçamentos do Estado), sinta que tem alguma autoridade para reclamar o que não conseguiu realizar na Constituição da sua terra, com o seu “direito fundamental de papel”.
Em resumo: embora quanto à Grécia tenham sido povos, tradições, deuses e poetas a decidi-lo e uma vez que ela já nos legou Édipo, a Europa precisa menos da esfinge às suas portas do que Tebas dela precisava[6].
José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
[1] José Melo Alexandrino, Contexto e sentido da reforma do poder local, 2011 (disponível aqui, p. 6), agora in Uma década de reformas do Poder Local?, Lisboa, 2018, p. 21.
[2] Não é este o lugar para analisar ou discutir o caso. Certo é que as coisas não ficaram por aqui e, nestes dois anos, tudo já se passou nos Estados Unidos: a repristinação de leis do século XIX, que proibiam totalmente o aborto; a revogação dessa repristinação; a aprovação de leis restritivas da prática do aborto numa série de estados (para um conspecto, um ano depois, ver aqui), com e sem subsequentes referendos constitucionais a favor da introdução do direito ao aborto nas Constituições desses estados mais conservadores (assim tendo sido decidido, em pelo menos cinco deles); o efeito boomerang que a decisão do Supremo Tribunal veio a ter junto da campanha de Donald Trump (obrigando-o à moderação do discurso relativamente aos direitos da autodeterminação da mulher); além de toda a série de referendos, de discussões e de deliberações que prosseguem a sua marcha.
Por outro lado, ao contrário de uma ideia, por vezes, difundida em Portugal, segundo a qual “os direitos fundamentais não se referendam”, estes dois anos norte-americanos provam justamente o contrário, como já tinham de resto provado, entre muitos outros, os referendos ao aborto realizados em Portugal ou o referendo à eutanásia realizado na Nova Zelândia em 2020. Mais. Se, num regime democrático, a Constituição deve por regra ser referendada (o que ainda não sucedeu na Constituição de 1976) e se é na Constituição que estão consagrados os direitos fundamentais, a lógica só pode ser a inversa: tal como a Constituição, “os direitos fundamentais são e devem ser igualmente referendáveis”.
[3] Sobre estas condições, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 246-247.
[4] Curioso é igualmente que decisões semelhantes do mesmo Supremo Tribunal, entretanto tomadas, por motivos da mesma ordem, não tenham sido apreendidas (como demonstrativas da autonomia do jurídico sobre o político) deste lado do Atlântico, como sucedeu com a decisão unânimeTrump v Anderson, que não reconheceu aos estados o poder de excluir um candidato à eleição presidencial, com base no disposto na secção 3.ª do 14.º Aditamento à Constituição.
[5] Um voto que acabaria rejeitado pelo PSD, Chega e CDS, já em Maio de 2024.
[6] Quanto à justificação desta tese, como já tive oportunidade de afirmar, nem os direitos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia são direitos fundamentais, nem eles perturbam os direitos fundamentais da Constituição e que, além disso, «se deveria ter atentado melhor na experiência de verdadeiras federações (como os Estados Unidos ou a Austrália), para verificar como uma vinculação prematura dos Estados membros a um catálogo uniforme de direitos fundamentais não faça sentido» (cfr. Elementos de Direito Público Lusófono, 2.ª ed., Lisboa, 2024, p. 121); para a demonstração da ideia à luz da comparação referida, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, cit., vol. I, pp. 213 ss.
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Segundo Fernando Pessoa, sendo o nosso espírito romano-árabe, foram os árabes que nos civilizaram[1]; em troca, ainda segundo ele, o pagamento que fizemos a esses árabes nossos maiores foi o crime de os expulsarmos[2].
Mas, porque os deuses não dormem, um mal ainda maior nos esperava: no ano em que se cumpriam quatro décadas da expulsão dos muçulmanos e dos judeus por D. Manuel I, já no sinistro reinado de D. João III (em 1536), foi instituída a Inquisição em Portugal. Esta nova realidade – só extinta três séculos mais tarde, no seguimento da Revolução Liberal de 1820 –, por si só, «leva ao êxodo ou à obnubilação das populações de muçulmanos (e de judeus), provoca no país uma sangria de valores humanos, culturais e económicos, que mesmo os proventos dos Descobrimentos não logram nunca compensar. A longo prazo, acabará por vir ao de cima uma decadência de que o país não mais recuperará, inteiramente, até aos dias de hoje»[3].
Quanto ao espírito romano, cresce no outro lado do Atlântico a corrente histórica que vê “lá bem antes”, na mentalidade do “homem cordial”[4], a principal causa do atraso histórico do Brasil: «na mentalidade que se firmou e se reproduziu em Portugal, logo após a queda do Império Romano»[5] – a mesma que na burocracia tinha reproduzido o predomínio da pessoalidade sobre a aplicação da lei, do privilégio sobre a igualdade, do coração sobre a razão[6].
Em suma, na parte que agora interessa, do tempo dos últimos romanos, ter-nos-ia ficado assim a lógica da cordialidade e dos privilégios, ou seja, dos favores.
2. A ERA DAS TREVAS
Se tivermos por boa a tese, depois de expulsos (ou convertidos à força) aqueles que nos educaram[7], seguiram-se três séculos em que o espírito (cordial) dos Portugueses foi calcado aos pés de uma Igreja soberana e, por isso mesmo, “inimiga do pensamento”[8]. Ficaram assim os Portugueses, até aos duros primeiros 50 anos do século XIX, privados da companhia daqueles seus educadores[9], mas também – terrível castigo! – efectivamente privados da possibilidade de aprender, porquanto o nefando Index Lusitano lhes proibia o acesso não só a uma imensidão de livros aí expressamente arrolados (mais extenso do que qualquer outro)[10], como a livros de línguas inteiras (especialmente as que transportavam a corrente da igualdade e da liberdade que então se abria ao Ocidente, entre os séculos XVII e XVIII)[11].
Um efeito directo – e uma evidente prova – desta nossa triste condição foi o de que, a partir de então (salvo talvez na Música[12], onde o canto popular, o ostinato e depois o Fado nos podem ter salvado), nos tornámos especialistas na arte decopiar: ideias, doutrinas, movimentos, instituições, leis e códigos administrativos[13], constituições, personalidades, modas e sapatos – tudo, em suma, passou a ser importado (por vezes, em segunda e terceira mão), e importado normalmente de Paris. Uma segunda consequência foi a de que apenas os emigrantes mais qualificados (os ditos “estrangeirados”)[14] podiam de alguma forma socorrer-nos como “mestres de recurso”, diante do «abismo da miséria e da ignorância portuguesa»[15].
3. A GRANDE RUPTURA
Ora, voltando àquele momento final da nossa era das trevas, para Vasco Pulido Valente, o regresso à aprendizagem começou a fazer-se no início do século XIX, não pela via do pensamento, por óbvia impossibilidade, mas pelo efeito transformador da reacção popular às invasões francesas. «A mudança veio de fora. A invasão de Junot (a mais durável), a invasão de Soult (a de menos consequências), a invasão de Massena (a mais destrutiva) e até a tardia invasão de Marmont desfizeram o antigo regime»[16]. «Napoleão, embora perdendo, revolucionou o país, como revolucionara a Europa. A invasão e a guerra, por assim dizer, “provocaram” o “liberalismo” em Portugal. Um produto exógeno, que não podia ser aceite pacificamente»[17].
Sobre a dureza e o caos da primeira metade do século XIX[18] – porventura o século a que a historiografia moderna mais atenção dedicou – não cabem dúvidas:
No plano simbólico, o Rei e a Corte tiveram (ainda que com grande instinto político) de se refugiar no Brasil, situação que se arrastou até 1821;
No plano político, o país – que, desde 1815 até 1822, passou a ser uma união real: o Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves[19] – era, para todos os efeitos, um protectorado inglês;
No plano material e social, as carências eram de toda a ordem, incluindo o facto de as “elites” terem igualmente emigrado para o Rio de Janeiro, cidade que desde então não deixou de prosperar, a grande benefício do Brasil e da sua rápida e notável independência;
Já no plano cultural, foi, no entanto, no segundo quartel do século XIX que alguns historiadores e literatos (a começar por Garrett e Herculano), deram início à recuperação dos laços com a antiga pertença árabe da Nação[20].
Num contexto como esse, se as lutas populares sem trégua (aos franceses), o pronunciamento de 1820, a contra-revolução, o(s) golpe(s) de Estado[21], os anos de guerra civil, a revolução de 1836, as incontáveis intervenções militares[22], as mortes, os confiscos, os abusos sem-fim, as ditaduras, as revoltas e os protestos dos povos foram muitos e se as práticas da importação (de ideias, de modelos e de constituições) não foram em menor número, não se pode dizer que um tal período pudesse ter sido propício a uma (superior) aprendizagem colectiva, que não a resultante das grandes transformações operadas por tais factos.
Em compensação, a segunda metade do século XIX[23] foi o único período em que os Portugueses, desde a instauração a Inquisição até ao 25 de Abril de 1974, puderam, individual e colectivamente, respirar um pouco de alívio e aprender realmente outro tanto:
Em termos institucionais, 1852 representa um ano a todos os títulos marcante[24], na pacificação das diversas correntes “liberais”, com a estabilização constitucional do sistema, sob a cobertura do 1.º Acto Adicional à Carta Constitucional de 1826;
No plano político – apesar da acumulação de poderes no Rei (progressivamente atenuada, por múltiplas razões, pelo menos até à frustrada tentativa de a recuperar no final do século por D. Carlos), apesar do voto limitado e da inautenticidade do sufrágio[25], apesar da ausência de igualdade formal e do défice de garantia jurisdicional –, o chamado “rotativismo”, a política de melhoramentos materiais, bem como a lenta evolução das instituições liberais permitiram introduzir no país as primeiras noções de uma de “democracia limitada”[26], não muito distinta (salvo na qualidade da relação entre poder e sociedade) daquela que se praticava na generalidade dos países da Europa continental;
No plano da cultura cívica, deve começar por notar-se, face à grave carestia hoje reinante, que foram muitas as centenas de jornais que então vieram à luz; alguns grandes oradores (como José Estêvão) deixaram a sua marca na instituição parlamentar, instituição que todavia até hoje não conseguiu ainda alcançar o lugar que lhe é devido, diante da primazia de facto do Poder Executivo[27];
No plano material, o grande e inesperado governante do século veio a ser Fontes Pereira de Melo, um militar e engenheiro;
Do ponto de vista intelectual, não faltaram neste período as provas de um ressurgimento nacional, de que as Conferências do Casino, a Geração de 70 ou os esforços de Alexandre Herculano ou de Oliveira Martins foram evidentes sinais;
Finalmente, do ponto de vista individual, os direitos fundamentais do cidadão – que demoraram na realidade 160 anos a implantar-se[28] –, que não passavam de “direitos de papel” (na Constituição de 1822, nas duas primeiras vigências da Carta Constitucional e na vigência da Constituição de 1838), puderam finalmente ver algum tipo de realização e garantia, nomeadamente no que respeita à liberdade de culto, à liberdade pessoal, bem como às liberdades de expressão, de imprensa e de reunião.
4. UM PASSO APENAS: DA I REPÚBLICA AO ESTADO NOVO
Chegados ao século XX, com a I República, o mínimo que se pode dizer é que a fase de aprendizagem liberal, que já entrara em relativa crise nos finais do século XIX, sofre um novo e generalizado retrocesso[29]:
Uma Constituição nascida num regime com partido único (e o único período da nossa História em que o poder político esteve concentrado nas mãos de um único órgão do Estado), sem que se tenha realizado sufrágio efectivo em mais de 40% dos círculos nas eleições para a Assembleia Constituinte e com esta a desdobrar-se abusivamente, no final, em Câmara dos Deputados e Senado;
Num regime sem legitimidade nem legitimação popular, com as primeiras eleições gerais (com sufrágio mais restrito do que na Monarquia) realizadas apenas em 1914;
Num regime que hostilizou desde a primeira hora, como nunca, a liberdade religiosa (com medidas que seriam tidas por intoleráveis no século XIX);
Num regime que recorreu tanto à mentira (desde logo, relativamente às promessas em matéria de sufrágio universal e de direito à greve) como à violência organizada, e onde, por tudo isso, se regressou às intervenções militares, a rupturas constitucionais (como a de Sidónio), aos assassinatos políticos, mas sobretudo à desinstitucionalização de um sistema desequilibrado desde o início[30] e que, poucos anos volvidos, quase todos os Portugueses aspiravam por derrubar.
E assim foi plantada a semente de onde, sem surpresa, nasceu o golpe de 28 de Maio de 1926, a Ditadura Militar e, poucos anos depois, o Estado Novo de Salazar, com a grande diferença de Afonso Costa[31] ter conseguido, num ano, promulgar toda a sua obra.
Quanto a Salazar[32], relativamente ao tema aqui tratado, não há muito a dizer. Salazar sempre foi um declarado inimigo da democracia e da liberdade[33], sobretudo da liberdade de pensar, dando primazia, pelo contrário, ao princípio da autoridade e à ideia de um Estado forte[34]; assumidamente conservador e autoritário, antiparlamentar e anti-partidos, como governante, «acumulou mentiras sobre mentiras»[35], como homem, era frio e, segundo um seu eterno opositor, Salazar «não era português»[36], o que não significa que não tenha deixado profundas marcas no espírito dos portugueses que lhe sucederam, nem que não tenha sido ele próprio produto (do bafio) dos séculos que o precederam.
5. O 25 DE ABRIL DE 1974
Não admira por isso que o golpe militar de 25 de Abril de 1974 tenha sido recebido com o júbilo reservado ao momento pelo qual há muitos séculos o Povo Português aguardava – o que talvez não era de esperar foi a rápida instrumentalização do espírito do 25 de Abril, por forças radicais minoritárias, tanto na sociedade (como se viria a comprovar nas eleições para a Assembleia Constituinte), como dentro das Forças Armadas (como se comprovou definitivamente em 25 de Novembro de 1975).
Como instante fundador do novo regime, três notas podem ser referidas ao seu significado: (i) como acontecimento histórico, o 25 de Abril de 1974 talvez se possa aproximar da Aclamação de D. João I, nas Cortes de Coimbra, pelas três Ordens do reino[37]; (ii) do ponto de vista dos valores, por contraste com a ditadura então derrubada, o 25 de Abril veio proclamar a Liberdade e a Democracia; (iii) do ponto de vista da cultura política, em comparação designadamente com o que se passou depois na Espanha, há quem continue a ver na evolução social a que o 25 de Abril deu imediatamente lugar um aumento do envolvimento político dos cidadãos, da tolerância e da atenção para com os mais fracos (Robert Fishman).
Com a queda do Estado Novo, os dados estavam lançados para mais um interregno constitucional; ora, na linha dos anteriores[38], também este “período de excepção” (como, com grande premonição, lhe chamou o Programa do Movimento das Forças Armadas) viria a ser marcado pelo autoritarismo, pela concentração de poderes e pela típica criatividade negativa dos Portugueses nestas fases (a imposição do rumo ao socialismo, a ideia da sociedade sem classes, a Aliança Povo-MFA, o poder popular, as nacionalizações, incluindo a do sector da comunicação social, a reforma agrária, etc. etc.), que viria a ser incorporada (mais ou menos à força) na Constituição[39], e cujas marcas vieram a exigir mais de uma década para serem dela removidas e para a correspondente estabilização do regime, naquilo que alguns autores consideram, com razão, “um processo constituinte longo”.
(Foto: D.R./Arquivos RTP)
6. APRENDIZAGENS DOS ÚLTIMOS 50 ANOS
Num exercício paralelo, intitulado “O que aprendemos sobre a economia portuguesa em 50 anos de democracia”, Ricardo Paes Mamede retirava pelo menos duas lições: uma, a de que grande parte do que se passa com a economia portuguesa, dada a importância central do contexto externo, depende de factores que não controlamos; outra, a de que apesar de Portugal ter feito muito em 5 décadas para um crescimento sustentado, «aprendemos em diversas ocasiões que as nossas instituições ainda carecem de regras e mecanismos que assegurem uma governação responsável, menos sujeita à captura por interesses particulares e que esteja ao serviço do bem comum»[40].
Regressando a Robert Fishman, um cientista político que sempre olhou com extrema benevolência para o caso português, no último estudo que lhe dedicou, sem deixar reiterar a sua paixão pela Revolução dos Cravos e pela herança cultural dela derivada, pondera agora algumas objecções, nomeadamente diante de dados relativos a desigualdades sociais significativas, a importantes casos de corrupção, ao declínio da participação política ou à crescente predisposição do povo português para depender de um líder forte[41], admitindo no final que outros estudiosos possam de facto questionar a sua «narrativa de relativo sucesso»[42].
Importa, portanto, ir mais fundo, para o que pediremos apoio a um ilustre constitucionalista italiano, Gustavo Zagrebelsky, segundo o qual todos os regimes políticos têm um extracto e um substracto: «O extracto é a superfície, o substracto é a substância. O extracto é frágil. O substracto pelo contrário tem muitas coisas pesadas: valores e interesses, relações de poder e de submissão, interesses e necessidades, esperança e desespero, crenças e ilusões, mitos e ingenuidades, amizades e inimizades, altruísmo e egoísmo, legalidade e corrupção, cultura e ignorância: em suma, é por assim dizer o sangue misto que corre nas veias da sociedade»; em segundo lugar, «a cada regime político corresponde um certo tipo de sociedade, pois o extracto deve estar apoiado num substracto coerente»; ora, se a todo o regime político corresponde na verdade um certo tipo de sociedade, um regime democrático «pressupõe uma sociedade democrática»[43]. Eis-nos, por conseguinte, num terreno mais propício à análise da nossa difícil questão, tendo em conta que aprendizagem da democracia tanto pode dar-se ao nível das instituições, como ao nível da sociedade.
O remate deste meu exercício, a executar por tópicos, não podia em todo o caso dispensar o contributo dos historiadores, complementado pelo esclarecimento que pode ser colhido por uma (das muitas) explicações teóricas sobre a mecânica do funcionamento da democracia, no caso, a de Nadia Urbinati[44].
Sem ignorar a relevância dos contextos específicos, a autora entende a democracia representativa como “diarquia da decisão e da opinião”, no sentido de que na democracia se articulam dois níveis: o nível da decisão (que envolve as instituições e os procedimentos) e o nível da opinião (que pressupõe uma esfera pluralista do ambiente de formação da opinião). Papel relevantíssimo nessa explicação diárquica vem a ser desempenhado pelos “mediadores” (entre os planos da decisão e da opinião), com destaque para os partidos políticos, os meios de comunicação social e as universidades – por sinal, todos eles em crise, mais ou menos visível neste momento.
Assim:
Antes de mais, quanto ao extracto, não pode decerto ignorar-se o pano de fundo do desajustamento entre as profundas mudanças tecnológicas entretanto ocorridas e a capacidade de aprendizagem e de adaptação institucional disponível, nem o contexto de “desconsolidação democrática” dos últimos anos, visível um pouco por todo o mundo[45].
Por outro lado, quanto ao substracto, é evidente o quanto a sociedade portuguesa se transformou ao longo destes 50 anos, não só ao nível dos valores e dos costumes (tendo agora nós das leis mais “progressistas” que há), mas desde logo ao nível demográfico, face ao impressionante envelhecimento da população.
No plano histórico geral (Rui Ramos), e assim também no plano constitucional, quanto ao vigor,capacidade de aprendizagem e capacidade de transformação do sistema político, é possível definir duas grandes épocas, nestes 50 anos: a época anterior a 1995 e a época posterior a 1995: (i) na primeira época (ou seja, nas duas primeiras décadas), a partir da semi-democracia (Sá Carneiro) que lhe fora deixada pela atribulada Constituição de 1976, e com o apoio de três revisões constitucionais necessárias, o sistema político conseguiu: afastar o elemento militar do regime e submeter as Forças Armadas ao poder político democrático; remover o objectivo do socialismo (bem como a referência à sociedade sem classes); superar com sucesso dois programas de resgate financeiro; entrar na CEE e integrar a União Europeia; alcançar maiorias absolutas de governo; ajustar a Constituição económica às novas realidades, entre as quais a da inevitável abertura da comunicação social e a política das reprivatizações; garantir o crescimento económico e transformações materiais significativas – tudo isso sem faltar ao respeito pelas “regras do jogo” e passando por grandes consensos entre os três partidos do (então dito) arco da governação, especialmente em 1982, 1985 e 1989; (ii) na segunda época (em que nos encontramos), o rosto do sistema político é totalmente diferente: as revisões constitucionais ou foram voluptuárias ou estão ainda por concretizar; as reformas políticas (pelas quais ainda se lutou nos anos 90) foram adiadas sine die; se em 1978 e 1985, o Partido Socialista aprendeu as lições de realismo que os pedidos de ajuda financeira lhe trouxeram, em 2015, seguiu a via inversa: a de enveredar, pela primeira vez, na “fantasia” de um 25 de Abril às avessas (com a igualdade social à cabeça e com a democracia e a liberdade no final)[46]; o objectivo da convergência tornou-se uma miragem (ressalvados os anos mais recentes); as reformas feitas ou foram as ditas “reformas fracturantes” ou foram as reformas ditadas por pressões externas (especialmente as do Memorando da Troika); em vez dos anteriores consensos, as últimas décadas viram o crescimento da polarização política entre dois blocos, a somar às marcas da cartelização do sistema partidário; a insatisfação do eleitorado, já expressa pelos números abstenção, veio por fim a revelar-se no surgimento de novos partidos, um dos quais um partido anti-sistema, a despoletar, em 10 de Março passado, uma alteração estrutural do sistema de partidos.
Ainda ao nível do sistema político, as reformas mais importantes que estão por fazer são a reforma dos partidos políticos (incluindo aí a substituição das juventudes partidárias por verdadeiras escolas políticas, às quais uma parte significativa do financiamento dos partidos deve ser obrigatoriamente alocado[47], do mesmo modo que deve ser eliminado todo o financiamento das despesas correntes dos partidos) e a reforma do sistema eleitoral, ainda que se deva admitir que tanto uma como a outra possam ser feitas por etapas.
Quanto ao funcionamento das instituições, a pandemia da COVID-19 (com excepção de alguns tribunais judiciais e da Provedoria de Justiça) veio pôr a nu (tal segunda pandemia) um quadro de pré-colapso: o Parlamento deixou que, impune e reiteradamente, órgãos executivos (nacionais e regionais) usurpassem as suas funções soberanas; o Governo-legislador redescobriu os decretos ditatoriais da Monarquia e os decretos-leis de urgência do Estado Novo, revelando-se incapaz de apresentar uma proposta de lei sobre a pandemia ao Parlamento, como era seu dever; perante violações em massa da legalidade, à Procuradora-Geral da República não se ouviu uma palavra durante dois anos, nada se sabendo, por outro lado, do desfecho dos inquéritos mandados abrir em 2020 sobre a privação ilícita da liberdade; as muitas entidades com poder funcional de suscitar a fiscalização da constitucionalidade fizeram vista grossa às sucessivas inconstitucionalidades que o Tribunal Constitucional só no final teve coragem de explicitar devidamente (e que os demais tribunais geralmente ignoraram); os órgãos administrativos, a começar pelo Governo e pelos governos regionais, cometeram toda a sorte de ofensas à lei, ao interesse público e aos direitos das pessoas, sem que a comunicação social tenha sabido cumprir, em todo esse período, o seu papel de “cão de guarda” do poder.
Fora do sistema político, talvez a reforma da escola pública seja a mais premente: no sentido da concretização do princípio da autonomia das escolas e de uma reformulação profunda da relação entre escola, os alunos, os professores e o meio (família, comunidade e autarquia local competente), à maneira do maturado processo que há algumas décadas se levou a cabo, por exemplo, na Nova Zelândia.
Relativamente aos demais mediadores, se a comunicação social tradicional em Portugal, particularmente os jornais, se encontra numa situação lastimável, nem a sociedade nem os tribunais estão ainda compenetrados do “lugar sem paralelo” que deve ser ocupado pela liberdade de expressão numa sociedade livre[48].
Finalmente, as Universidades: diante da grande dificuldade de mudar e apesar dos esforços de Mariano Gago – que se repercutiram sobretudo na investigação e na internacionalização –, ao nível do ensino, a massificada universidade pública portuguesa ainda não tem como verdadeira aspiração a excelência – como disse alguém, é um “estado de coisas”.
Seja como for, não há razões para desânimo quando, nestes 50 anos, se viu um Professor de uma Universidade Pública abalançar-se a traduzir a Bíblia, a partir do Grego – pelo prisma, com a profundidade e da forma como o fez! – , enquanto prosseguia a tradução de todas as principais obras gregas e romanas. Não há razões para desânimo quando três Universidades (a Católica e duas públicas) conseguiram coordenar-se para traduzir, organizar e publicar a obra que Hannah Arendt considerou o documento mais importante do Século XX: o livro que nos deixou em legado Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança – Memórias (publicado originalmente em Nova Iorque, em 1970)[49].
E porque é disso que se trata, no final, a grande tarefa da sociedade portuguesa, tanto no que respeita à Democracia, como à Liberdade e ao Desenvolvimento, é a da “recuperação das aprendizagens”, aprendizagens que, por inúmeras razões, não conseguiu realizar durante metade da sua História.
Lisboa, 25 de Abril de 2024
José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
[[1]] Para Rui Ramos, a “forte marca civilizacional muçulmana” prolongar-se-ia por vários séculos, sobretudo nas regiões do Centro e do Sul [cfr. «Introdução», in Rui Ramos (coord.) História de Portugal, Lisboa, 2009, p. XI].
[[2]] Teremos de pôr aqui evidentemente de lado a parte revolucionária (a segunda) da proposta por ele formulada nesse texto (intitulado «O problema ibérico»).
[[3]] Adalberto Alves, Portugal e o Islão: Novos escritos do Crescente, Lisboa, 2009, p. 61; exprimindo as suas reservas, Paulo Ferreira da Cunha, «Da construção histórico-mítica do passado pré-nacional», AAVV, in Estudos em homenagem a João Francisco Marques, vol. I, Porto, 2001, pp. 259 ss.
[[4]] Na fórmula devida ao ensaio inaugural (de 1936) de Sérgio Buarque de Holanda (cfr. Raízes do Brasil, 26.ª ed., 14.ª reimp., São Paulo, 1995, pp. 146 ss. – também disponível aqui); no entanto, já Oliveira Martins utilizara, no século anterior, o adjectivo “meigo” (cfr. História de Portugal, 15.ª ed., Lisboa 1968, p. 19).
[[5]] Vinícius Müller, A História como Presente, Brasília, 2020, p. 199.
[[6]] Ibidem, p. 208; do lado português, para um primeiro grande retrato, veja-se Alexandre Herculano, História de Portugal, vol. VIII, Livro VII, Lisboa, 1985, pp. 7 ss. (especialmente sobre as tradições romanas acerca das condições das pessoas nesse período de transição, ibidem, pp. 81-139); para uma revisitação desse período, José Mattoso, «A Época Sueva e Visigótica», in José Matoso (dir.), História de Portugal , vol. 1 – Antes de Portugal, Lisboa, 1992, pp. 300-359.
[[7]] Adalberto Alves, Portugal e o Islão, cit., p. 77.
[[8]] Ao contrário, como bem demonstrou o Professor Diogo Ramada Curto, da recente apreciação feita por Nuno Palma (cfr. As Causas do Atraso Português: Repensar o passado para reinventar o presente, Alfragide, 2023) e no sentido do que sempre tenho igualmente defendido (por último, José Melo Alexandrino, Dez apontamentos sobre a Igreja Católica – À luz dos direitos humanos e da transformação necessária, 2023, p. nota 8 (disponível aqui).
[[9]] E privados até da possibilidade de os lembrar, salvo, segundo Adalberto Alves, nas lendas e romances populares, em três versos de Garcia de Resende e na obra do comediógrafo Simão Machado (cfr. Portugal e o Islão, cit., pp. 77-79).
[[10]] Embora tenham sido sobretudo os Castelhanos a ter de arcar com as pesadas culpas que lhes foram justamente dirigidas, a partir das Ilhas Britânicas, por John Milton.
[[11]] Curiosamente, uma das teses do místico luso-muçulmano Ibn Qasî, expressa no seu tratado “Descalça as tuas Sandálias”(Khal’al-na ‘layn), escrito nas vésperas da fundação de Portugal (na arrábida que mandou construir na Arrifana), também o Islão deveria dar lugar a outra coisa no século XVII (cfr. Josef Dreher, Das Imamat des islamischen Mystikers Abulqâsim ibn al-Husain Ibn Qasî: eine Studie zum Selbstvverständnis des Autors des “Buch vom Ausziehen der beiden Sandalen” (Kitab Halan-na ‘laim), tese de doutoramento em Filosofia na Universidade de Bona, 1985; Nagel Tilman, «Le Mhadisme d’Ibn Tûmart et d’Ibn Qasî une analyse phénoménologique», in Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, 91-94 (2000), p. 8 (disponível aqui).
[[12]] Aliás, mesmo aí, não foi (a visão polifónica e infinita de) Damião de Góis (cfr. Edward Wilson-Lee, A Torre dos Segredos, Lisboa, 2022, p. 276) acusado pela Inquisição, num processo que durou 20 anos, do uso da polifonia, perante o testemunho de alguém que ouvira cantorias «que não era o tipo de canções a que estava habituado» (ibidem, p. 264)?
[[13]] Como o de Mouzinho da Silveira – segundo Vasco Pulido Valente, «um homem primário e presumido» [cfr. «O liberalismo português» (2007), in Portugal – ensaios de História e de Política, Lisboa, 2009, pp. 22-23].
[[14]] A começar por Damião de Góis e Luís de Camões (a cujo estimulante confronto procedeu Edward Wilson-Lee, no seu já citado livro A Torre dos Segredos) e a terminar com figuras como Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Agostinho da Silva, Mário Soares ou Miguel Esteves Cardoso.
[[15]] Vasco Pulido Valente, «Imitar a Revolução», in Diário de Notícias, de 25 de Abril de 2004, p. 6.
[[16]] Vasco Pulido Valente, «O liberalismo português», cit., p. 7.
[[17]] Ibidem, p. 12.
[[18]] Por todos, sobre o primeiro quartel do século, Oliveira Martins, História de Portugal, cit., pp. 509-538; Vasco Pulido Valente, «O liberalismo português», cit., pp. 7-16; sobre o segundo, Rui Ramos, «Parte III – Idade Contemporânea», in História de Portugal, cit., pp. 439-478.
[[19]] Sobre o assunto, AAVV, Portugal e Brasil: Um Direito Comum no Bicentenário do Reino Unido, e-book, Lisboa, 2016.
[[20]] Para esse registo, quanto aos séculos XIX e XX, Adalberto Alves, Portugal e o Islão, cit., pp. 81-95.
[[21]] Vasco Pulido Valente, O Fundo da Gaveta, Lisboa, 2018, pp. 15-86.
[[22]] Por todos, Vasco Pulido Valente, Os Militares e a Política (1820-1856), Lisboa, 1997, que começa justamente por definir as várias formas típicas de intervenção no período em análise (ibidem, pp. 9-10).
[[23]] Sobre a segunda metade do século até 1890, por todos, Rui Ramos, «Parte III – Idade Contemporânea», in História de Portugal, cit., pp. 521-548; particularmente, sobre a fase final do terceiro quartel, Vasco Pulido Valente, O Fundo da Gaveta, cit., pp. 89-224.
[[24]] Como tenho defendido, esse momento histórico só voltou a ter o seu equivalente na aprovação da revisão constitucional de 1982 (cfr. José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, pp. 51 e 58).
[[25]] Que, na realidade, durou até ao dia 25 de Abril de 1975.
[[26]] Sobre o conceito, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, p. 175.
[[27]] Sobre essa constante do constitucionalismo português, José M. Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 26, 53, 150, 253.
[[28]] Foi esta uma das teses a que cheguei, depois de analisar detidamente (cfr. José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. I – Raízes e Contexto, Coimbra, 2006, pp. 289-844) a história, a doutrina e a realidade constitucional (ibidem, vol. II – A construção dogmática, 2006, p. 704).
[[29]] Segundo Vasco Pulido Valente, «a República era uma degenerescência de uma degenerescência» (cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 88).
[[30]] Na fórmula de Rolão Preto (que nunca desconsiderou o 5 de Outubro e que acabou a colaborar activamente com os republicanos, a partir de meados do século XX), a I República foi um regime que teimou em marchar «só com uma perna» [cfr. «Carta a um Republicano» (1972), in José Melo Alexandrino (org.), Rolão Preto, Obras Completas, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2023, p. 410].
[[31]] Para um retrato de alguém que outorgou sub-repticiamente a Constituição de 1911, cfr. José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa na Assembleia Constituinte», in Jorge Miranda/Alexandre Pinheiro/Pedro Lomba (coords.), A Assembleia Constituinte e a Constituição de 1911, Lisboa, 2011, pp. 481-511.
[[32]] Mais ainda agora quando temos acesso aos seus diários pessoais [cfr. Maria Madalena Garcia (org.), Diários de Salazar (1933-1968), e-book, Porto, 2021].
[[33]] Sobre o que pensava neste domínio, sobre a forma como o verteu e como o interpretou na Constituição de 1933 (por ele realmente outorgada), cfr. José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, vol. I, cit., pp. 450-469.
[[34]] Ibidem, p. 468.
[[35]] Vasco Pulido Valente, in João Céu e Silva, Uma longa viagem, cit., p. 84.
[[36]] Rolão Preto, «Entrevista com Rolão Preto», in João Medina, Salazar e os Fascistas – salazarismo e nacional-sindicalismo a história de um conflito 1932/1935, Lisboa, 1978, p. 184.
[[37]] Para conhecimento do respectivo auto, veja-se aqui.
[[38]] José M. Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., p. 39.
[[39]] Para uma narrativa do processo, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, vol. I, cit., pp. 517-635.
[[40]] Público, de 22 de Abril de 2024, p. 9 (disponível, para assinantes, aqui).
[[41]] Robert Fishman, «De “retardatário” problemático a estrela do Sul?», in Jorge M. Fernandes/Pedro C. Magalhães/António Costa Pinto (org.), O Essencial da Política Portuguesa, Lisboa, 2023, p. 35 (sem necessidade do recurso a sondagens de ocasião).
[[42]] Ibidem, p. 46.
[[43]] Gustavo Zagrebelsky, «Basta con il silenzio, è venuto il tempo della resistenza civile», in la Repubblica, de 23 de Novembro de 2018 (disponível aqui).
[[44]] Para uma introdução, Nadia Urbinati, «Crise e Metamorfoses da Democracia», trad. de Pedro Galé e Vinicius de Castro Soares, in RBCS, vol. 28, n. 82 (junho de 2013), pp. 5-16 (disponível aqui).
[[45]] Cfr. José Melo Alexandrino, «Introdução», in Estudos sobre o constitucionalismo no mundo de língua portuguesa, vol. III – O sistema político no Brasil e em Portugal, Lisboa, 2020, p. 10 (disponível aqui).
[[46]] O resultado das eleições legislativas de 2024 parece querer dizer que o Povo registou o facto.
[[47]] Em sentido próximo, Miguel Poiares Maduro, «Entrevista», in Público, P2, de 5 de Janeiro de 2020, p. 7 (também disponível, para assinantes, aqui); Paulo Trigo Pereira, Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio, Coimbra, 2020, pp. 189 ss.
[[48]] José Melo Alexandrino, «Prefácio», in Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, 2024, pp. 7-8 (no prelo).
[[49]] Nadejda Mandelstam, Vospominánia, trad. de Ana Matoso e Larissa Shoropa, Contra toda a Esperança – Memórias, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2021.
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