Etiqueta: José Manuel Silva

  • ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    Na terceira e última parte da primeira ENTREVISTA P1, José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da autarquia de Coimbra, faz o rescaldo de uma gestão pandémica que descurou as outras doenças, abordando também as relações promíscuas de (alguns) médicos com a indústria farmacêutica. E não poupa críticas à gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não hesitando em distinguir Correia de Campos, antigo ministro socialista da Saúde, como a pessoa que pior fez ao SNS.


    Como avalia agora a estratégia do Governo português de ter apostado tudo no combate à pandemia à custa da suspensão de exames, diagnósticos e consultas para outras doenças e afecções? Dá ideia que agora a população está com a saúde descompensada…

    Eu gostaria que essas consequências fossem avaliadas para depois percebermos se essas medidas verdadeiramente salvaram vidas ou não. Está por demonstrar, e não vai ser fácil demonstrar. Investiu-se numa doença mais do que se investiu em todas as outras juntas. Por isso, já apareceram artigos a dizer que, se calhar, a factura a pagar pelos doentes não-covid, em termos de doença e de morte, será muito superior. Do ponto de vista de Economia da Saúde não tem racionalidade investir tantos recursos numa doença, deixando as outras desprotegidas. Nós tivemos um bebé com circulação extracorporal [ECMO por alegada infecção por covid-19], e temos 400 crianças com cancro por ano, e muitas delas infelizmente morrem, mas não se tornam notícia, e não se investe o mesmo que se investiu numa única doença. Houve desproporção de investimento numa doença. Ou seja, em termos de Economia da Saúde as potenciais vidas salvas com as medidas tomadas – e seria bom que contabilizássemos o número de mortos em consequência das medidas tomadas –, o investimento foi brutal. Não se faz esse investimento noutras doenças, porque já estão mais banalizadas. Uma pessoa morreu de cancro, já não é notícia; morrer de covid-19 é notícia. E, portanto, investe-se na covid-19. E morreu-se de cancro, que não é notícia, por se terem adiado rastreios.

    Sem falar da redução do número de nascimentos, quase menos 10 mil, como efeito do medo sobre os efeitos económicos da pandemia…

    Isso foi outra consequência.

    Exactamente. E não se fala. Se se somasse a vida potencial dessas crianças não nascidas por causa da gestão da pandemia por 80 anos, tínhamos um número elevadíssimo num dos indicadores de Saúde importantes: os anos perdidos…

    Houve uma gestão muito baseada no pânico que, a partir de determinada altura, foi difícil de controlar, porque obviamente os profissionais de saúde também tinham receio, o que é humano, embora continuassem a desempenhar as suas funções. Enfim, criou-se todo um ambiente. Eu gostaria de saber a contabilidade de vidas que, no dever e haver final, foram verdadeiramente salvas pelas medidas. Se numa fase inicial, em que se desconhecia ainda o vírus, eu diria que quase tudo se justificou, o tempo em que esteve instituído o Estado de Emergência foi excessivamente prolongado. Não havia necessidade de prolongar tanto.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Ainda queria voltar ao tema do certificado digital, cujo prolongamento da vigência por mais um ano esteve em consulta pública por iniciativa da Comissão Europeia. Justifica-se prolongar esse certificado por mais um ano como controlo de fronteiras e de acesso a locais públicos?

    Não se justifica. Quem se quer proteger, vacina-se; quem não se quer proteger, está no seu direito. Sem impor esse tipo de medidas. Aliás, já reparou que deixou de se falar da Suécia em Portugal? No princípio, era tudo a bater na Suécia, agora deixou de se falar na Suécia. Afinal, a Suécia não está pior do que nós; até está melhor.

    O absurdo das medidas e da falta de razoabilidade… Recordo-me que, em Helsínquia, na Finlândia, se determinou, logo em 2020, que os motoristas dos autocarros deviam estar sem máscara porque estavam suficientemente protegidos com acrílicos, não havia troca de dinheiro, e deveriam sim estar focado exclusivamente na condução. Aqui em Portugal, eles continuam ainda a trabalhar incessantemente mascarados…

    A infecciosidade depende da taxa de inoculação, depende do número de vírus que a pessoa apanha. Se as pessoas estiverem em contacto com uma inoculação baixa, uma dose baixa, isso é insuficiente para provocar a doença, e até contribui para a sua capacidade de defesa imunológica. Os contactos com baixa inoculação até eram benéficos. Portanto, os exageros não trouxeram benefícios adicionais. Veja que, desde cedo, se soube e se demonstrou que o vírus não se  transmitia pelas superfícies, mas andou-se a gastar rios de dinheiro, contribuindo para a poluição do planeta, com embalagens e desinfetantes, sem vantagem nenhuma. Olhe, recomendo-lhe que leia o relatório do Ricardo Jorge sobre a gripe pandémica de 1918-1919. Ele se vivesse hoje teria tido uma postura completamente diferente. Com a gripe espanhola, ele defendeu, por exemplo, que não se fechasse a Cultura, desde cedo se manifestou contra as “desinfecções” com creolinas e mais não sei o quê. Aquilo não vale nada. E também dizia que só com a descoberta da vacina é que a história natural da doença mudaria, mas dizia também que não se conseguia impedir que as pessoas andassem com desinfecções que não servem para nada.

    two men wearing blue lab coats

    Faz lembrar a Peste Negra, com o uso das máscaras, com aquele bico, que, na verdade, tinha sobretudo um aspecto simbólico…

    Era uma máscara. Aquilo era um filtro, tinha lá um filtro de ervas. Aquilo tinha como objetivo funcionar com o filtro.

    Não, não. Tinha um aspecto sobretudo simbólico. Tinha na ponta uma caixinha com vinagre, que até podia ter algum poder desinfetante, mas aquilo não filtrava nada. Acabou-se sim, por descobrir, que os gatos também ajudavam, mais porque andavam aos ratos, que eram os principais difusores das pulgas. E as cabras também ajudavam, porque as pulgas gostavam delas…

    [risos] Sim. Enfim, mas no caso da covid-19, desde cedo que se verificou que o vírus não se transmite pelas superfícies. Houve alguma recomendação para acabar com isso? Não, pelo contrário. Insistia-se na desinfecção das superfícies.

    Sim. Similar situação se verificou com os ares condicionados, que se suspeitava, não sei com que base científica, promoverem a proliferação do vírus. E houve uma recomendação da DGS em desligá-los em pleno Verão. Nos lares. E depois sucedeu coisas como aquelas no lar de Reguengos…

    Os velhinhos a morreram de desidratação.

    Falemos agora da independência dos médicos, que sempre foi reconhecida, como o seu Código Deontológico determina, aquele que foi aprovado quando ocupou o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos. O médico tem a responsabilidade, mas tem também a autonomia de pensar “fora da caixa”, digamos assim…

    Mas a obrigação de respeitar a legis artis.

    Exactamente, exactamente…

    O cartão da Ordem não é uma carta de alforria.

    Por isso falei da responsabilidade. Ou seja, se falhar na legis artis, é punido e deve ser punido. Mas a questão é outra. Durante a pandemia, tivemos médicos a serem altamente criticados pelos seus pares, a serem alvo de processos disciplinares e até a serem desautorizados, como sudeceu com o presidente do Colégio de Pediatria pelo próprio bastonário, que é um urologista. O que aconteceu com os médicos nesta pandemia, com a coragem dos médicos, que são uma elite que deixou de falar livremente?

    Eu não utilizaria o termo coragem ou falta de coragem. Se calhar foram convicções. Não sei.

    Um médico, não vou revelar quem, dizia-me que havia muitos colegas que tomavam ivermectina às escondidas…

    Mas continua a não haver prova nenhuma que previna a covid-19.

    Mas a questão não é essa. A questão é o médico podia antes receitar off label, fora das directrizes, de acordo com a sua prática e responsabilidade, e teve de andar a esconder durante a pandemia, sob o risco de ter processos. Houve muitos médicos que me dizem que não concordavam com muitas medidas, mas que tiveram de se calar. Porque aconteceu isto?

    Caiu-se num campo da verdade absoluta, que eu sempre discordei.

    Acha que isso vai mudar, depois da pandemia? Acha que este clima sucedeu por causa da pandemia? Ou por causa das pessoas?

    É evidente que foi por causa das pessoas. A pandemia não tem culpa de verdades absolutas. Mas, já que pegou no caso da ivermectina, houve claramente um comportamento distinto das autoridades relativamente ao remdesivir e à ivermectina.

    Pois, o remdesivir foi endeusado, a DGS comprou 20 milhões de euros e estão contabilizadas em Portugal 250 reacções adversas, a pior posição a nível europeu…

    A brincar, eu costumo dizer que acredito em milagres, mas para termos a graça de um milagre temos de ir a pé a Fátima. Ou seja, nem os milagres acontecem por acaso. Passado este momento de humor, nós tínhamos uma molécula, o remdesivir, que foi desenvolvida como antivírico, mas que não tinha eficácia nenhuma em nenhum vírus.

    Nem no ébola?

    Nem no ébola. De repente, por milagre, é eficaz contra o SARS-CoV-2. Eu acredito pouco em milagres. Que eu saiba, o remdesivir não foi a pé a Fátima, portanto, não sei como foi agraciado com um milagre.

    Foi comprado pela Comissão Europeia, que depois obrigou os Estados-membros a comprarem à Gilead, pouco tempo antes da Organização Mundial da Saúde não aconselhar o seu uso como tratamento contra a covid-19.

    E pronto, e deu-se remdesivir, e havia as normas da DGS para dar remdesivir. E se os médicos não o dessem e, porventura, um doente morresse, podíamos ser questionados e processados por não termos dado remdesivir, porque estava na norma da DGS, e depois lá teríamos de andar a demonstrar em tribunal que o remdesivir não fazia nada. Relativamente à ivermectina, enfim apareceram alguns estudos iniciais, não controlados, abertos, que apontavam para alguma eficácia, foi completamente rejeitado por todas as autoridades. Mas o remdesivir foi rapidamente aprovado por algumas. Houve aqui uma divergência de postura que não tinha fundamentação científica. Se calhar teve foi fundamentação económica.

    Vamos então entrar num problema bicudo. Há quatro médicos que integraram a equipa da DGS que definiu as terapêuticas da covid-19 que tiveram relações comerciais directas com a Gilead, inclusive integraram o advisory board do remdesivir. Onde começa o conselho médico para a DGS e as relações perigosas com a indústria farmacêutica?

    Relações perigosas podem haver de muitas maneiras e feitios, mais explícitas, menos explícitas. Aquilo que passou a acontecer nos congressos médicos é que quando uma pessoa faz uma comunicação tem de colocar os seus conflitos de interesse, como contratos, trabalhos, consultadoria. Mostrar os seus conflitos de interesse e depois faz a sua intervenção, e as pessoas, quem está a assistir, devem ter um espírito crítico suficiente.

    white and silver electronic device

    Vou contar-lhe então um caso pessoal, com uma investigação do PÁGINA UM…

    Isso não aconteceu agora na pandemia? Explicitar os conflitos de interesse. À cabeça.

    Eu ajudei a fazer isso. Aliás, ainda há pouco tempo, listei os 421 médicos que tiveram a sua participação ou inscrição paga por farmacêuticas no Congresso de Pneumologia. Revelei os apoios monetários que a Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu deste sector no ano passado foi de 1,3 milhões de euros, quase o dobro do registado em 2020. Pfizer e muitas outras. Tudo público. E agora, tenho uma queixa do presidente da SPP na Entidade Reguladora para a Comunicação Social…

    Certamente não vai ser condenado.

    Acho que vou enviar esta sua resposta para o presidente da ERC…

    Eu acho que informação verdadeira nunca pode ser crime. A não ser que haja questões do foro pessoal.

    Não deveria ser a própria Ordem dos Médicos a criar um código de ética sobre as relações com a indústria farmacêutica?

    Eu diria que essa ética existe nas declarações de conflito de interesse, que são obrigatórias nos congressos.

    Mas depois não há consequências. Eu não quero estar a particularizar, mas estou a investigar alguns consultores do Infarmed e da DGS. Alguns são membros de sociedades médicas que recebem mais de 50 mil euros por ano, em média, do sector farmacêutico, o que é uma incompatibilidade. Quando eu denunciar isto, muito provavelmente pouco acontece. Não deveria ser uma associação profissional, como a Ordem dos Médicos, e ter esse poder regulador e disciplinador?

    Não é preciso nenhuma entidade. Quem faz a lei é o Estado, e pode considerar que determinados potenciais conflitos de interesse são inibitórios para ser consultor de uma entidade pública.

    Portugal tem, neste momento, carências de cuidados de saúde primários, hospitais a abarrotar. Afinal há médicos a mais ou menos? Não consigo compreender

    Essa é uma excelente questão. A Economia da Saúde é interessante, porque está escrito que uma das maneiras do Estado reduzir a despesa é não contratando médicos. Se não contratar médicos, os doentes são obrigados a recorrer a outras soluções, e portanto dão menos despesas ao Estado. Vivemos num mercado concorrencial, aberto. Se o Estado quiser contratar médicos, se calhar tem que lhes oferecer um vencimento minimamente aceitável. E não faz porque não quer fazer. Há quantos anos se fala na exclusividade, na dedicação plena, dos médicos aos hospitais públicos?

    E porque não há exclusividade?

    Não há, porque o Estado não quer. Quem acabou com exclusividade foi o Estado de um governo socialista. Foi um programa socialista que acabou com exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Se um médico quiser estar em exclusividade no SNS não pode. E como um médico especialista no hospital público ganha menos que um pedreiro – e isto é literalmente verdade –, é evidente que procura outras soluções, ou complementares ou totais. Portanto, quando um Governo diz que abriu X lugares, mas ficaram desertos, não é por falta de médicos; é por falta de interessados. Os médicos emigram, vão para o sector privado. E depois temos o Estado a pagar mais aos médicos que no setor privado trabalham para o Estado do que aos médicos do setor público. Quem esvazia deliberada e conscientemente o SNS de médicos é o Estado. Não temos falta de médicos, basta ver as estatísticas mundiais. Mas é evidente que se não lhes pagamos…

    Vêem-se, por exemplo, médicos conceituados que, sendo conceituados, são professores de Faculdades de Medicina, depois ainda são directores de serviço de hospitais públicos, trabalham ainda para o privado, se calhar ainda dão consultas, consultadorias, etc. Não sei como é que eles têm tempo para serem bons em tudo…

    Eu diria que um dia só tem 24 horas. A Leonor Beleza [antiga ministra da Saúde, entre 1985 e 1990], quando instituiu a exclusividade, fez isso como uma arma de arremesso contra os médicos, porque queria demonstrar que não queriam trabalhar no SNS, e que todos queriam ser milionários. Enganou-se redondamente, e depois viu que não tinha orçamento. Houve tanto médico interessado na exclusividade que começaram a colocar restrições. Até acabarem com a exclusividade. Qual a idoneidade de qualquer partido que passou pelo Governo deste país para falar que faltam médicos no SNS se se recusam pagar essa exclusividade.

    Qual seria o valor justo para a exclusividade para um médico?

    Não sei qual será o valor justo. Isso varia com o mercado, varia de especialidade para especialidade. Mas pagar 1400 euros líquidos por mês…

    Isso não. Isso é ridículo…

    Mas, pronto, esse é o valor que o Estado paga actualmente. Quando havia exclusividade, havia um acréscimo de 40% no vencimento, que se reflectia também nas horas extraordinárias. Se um médico fizesse algumas horas extraordinárias no hospital tinham um vencimento que lhe permitia uma vida tranquila, não de rico, mas uma vida para se dedicar à Medicina num hospital público e não ter outro tipo de preocupações. Porém, havia uma dicotomia no pagamento das horas extraordinárias, porque estavam indexadas à exclusividade ou não, o que colocava, enfim, um incómodo entre os médicos que poderiam estar a fazer exactamente o mesmo serviço e com a mesma graduação, mas a receber valores diferentes.

    Não parece, de facto, muito justo…

    O Governo socialista recusou pagar o mesmo. E não só recusou como permitiu que os médicos que estavam com 35 horas em não exclusividade deixassem de fazer horas extraordinárias, e de repente… Sabe quem fez pior ao SNS. O senhor professor Correia de Campos foi o ministro da Saúde [2001-2002 e 2005-2008] que pior fez ao SNS. Permitiu que determinados médicos deixassem de fazer horas extraordinárias, os das 35 horas, e de repente ficou sem médicos para as urgências. E o que fez foi contratá-los ao privado, pagando muitíssimo mais. E desorganizou todo o SNS. O professor Correia de Campos quis deixar de ter médicos a ganhar algum dinheiro e passou a contratar médicos a ganharem 150 euros à hora. Sabe qual foi a diferença? Em vez de pagar horas extraordinárias aos médicos do SNS foi contratar ao privado e colocou os gastos na mesma rubrica das batatas e dos feijões.

    man in white dress shirt wearing white goggles

    Portanto, a valores reais, se incluirmos a contratação por essa via, a hora de um médico é hoje muito superior à de há 10 ou 20 anos, mas grande parte do dinheiro vai para os privados.

    Sem essa política, teríamos agora mais médicos no SNS e o Estado estaria a ter menos despesa. Vou lhe dar outro exemplo. O Grupo Mello, que geriu em parceria público-privada (PPP) o Hospital Amadora Sintra, tinha uma política, que eu sugeri para o SNS quando fui bastonário, de pagar o mesmo vencimento da Função Pública, mas para os melhores fazia um segundo contrato para trabalharem mais horas. Era uma forma diferente de exclusividade, sendo que não era uma exclusividade formal, mas esses médicos ficavam com o seu horário mais ocupado. Isso manteve-se com o fim da PPP. Por pressão da troika, houve um despacho do Ministério da Saúde que passou a proibir os médicos de terem dois contratos com o SNS, e aquilo que era legal passou a ser ilegal. E depois lá veio um título num jornal a dizer que não sei quantos médicos tinham contratos ilegais no Amadora-Sintra. Em consequência, esses segundos contratos foram eliminados e, de imediato, o Hospital Amadora-Sintra passou a ter um défice de milhares de horas de trabalho médico por mês. E entrou em colapso. Isso foi deliberado ou foi inocente?

    Eu acho que não deve ter sido muito inocente…

    Eu acho que foi deliberado, para prejudicar a assistência num hospital do SNS. Reduzir a despesa pública em Saúde e obrigar as pessoas a recorrer ao sector privado. Portanto, nós não temos falta de médicos em Portugal, que fique bem claro. O SNS é que não quer contratar médicos. Se lhes quer pagar menos do que a um pedreiro é porque não os quer contratar, e depois vai contratualizar com o sector privado a dita produção.

    Agora, se calhar, são os grupos privados, que beneficiaram com isso, que fazem pressão para não se inverter essa política…

    Já só podemos estar a especular sobre isso. Mas lembro-me que já tivemos um ministro da Saúde que veio do Grupo Mello, que não tinha nada a ver com a Saúde, não percebia nada de Saúde. E foi para ministro da Saúde. Portanto, essas ligações perigosas há a todos os níveis. Costumo dizer que a política de saúde do PS e do PSD é exactamente igual; só a retórica é um bocadinho diferente.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    Mais que o novel presidente da autarquia, José Manuel Silva ficou conhecido por dois mandatos à frente da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017. Nesta segunda parte da longa entrevista com o PÁGINA UM, não se furta a falar de tudo sobre a pandemia. E tanto disse ele que haverá ainda uma terceira parte nesta primeira ENTREVISTA P1.


    Antes de ligar o microfone, falou-me que, se os munícipes assim o entenderem, ficaria à frentes dos destinos da Câmara de Coimbra durante dois mandatos, ou seja, oito anos. A prática médica estará assim, para si, em segundo plano…

    Completamente suspensa.

    Em todo o caso, será sempre um médico. Por isso, e também porque esta entrevista se justifica por ter sido bastonário da Ordem dos Médicos durante seis anos (2011-2017), como vê agora a pandemia? Ou melhor, se calhar já estamos na fase pós-pandemia, não?

    Para mim já estamos. A partir do momento em que um vírus se transforma num vírus endémico, como é o caso, já estamos na fase pós-pandémica, embora isso seja um debate interessante, mas de efeitos concretos pouco estimulantes.

    Não vou fazer nenhuma inconfidência, mas estamos aqui todos sem máscara, mas não estamos aqui a cumprir a lei e as orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS), certo?

    Se estivéssemos todos num restaurante estávamos todos sem máscara, a comer, e onde há mais gente. E com maior concentração de pessoas do que aqui, onde estão cinco. Um dos exemplos que dou das medidas absurdas durante a pandemia é a dos semáforos em 2021 nas praias, que foi uma manifestação de estupidez humana. E, por exemplo, nos restaurantes, em que temos de entrar com uma máscara, estamos lá dentro a comer, a beber, a conversar e a cantar, se for o caso disso, sempre sem máscara, e depois para sair do restaurante temos que pôr uma máscara outra vez. Isso é a insanidade total. A irracionalidade total nas medidas.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Havia algumas medidas não-farmacológicas que até faziam sentido: a promoção do teletrabalho e a redução do número de pessoas nos transportes públicos, por exemplo. Mas chegou-se ao limite de multar pessoas por comerem sandes no carro, ou por comprarem gomas em máquinas de vending. E vedaram-se bancos de jardim com fitas para as pessoas não se sentarem. E por que não ouvimos médicos distintos a dizerem que essas medidas eram loucas? Ou melhor, porque não se permitiu ouvir? Na verdade, houve alguns que criticaram essas medidas, mas foram logo catalogados. Porque é que houve esta gestão, assim?

    Porque se instalou uma circunstância de pânico, e depois de controlo das populações pelo medo. O condicionamento das pessoas pelo medo. Eu fui tentando, nomeadamente nas redes sociais, fazer alguns comentários que divergiam das verdades oficiais, e era quase crucificado pelos extremistas das medidas e do controlo das pessoas pelo medo. Chegaram mesmo a defender que era preciso que as pessoas tivessem medo.

    Sim. Houve uma task force da DGS que defendeu essa estratégia do medo…

    E eu dizia que não; devia-se, sim, informar as pessoas. Temos aqui um distinto psiquiatra [Pio Abreu, que assistiu à entrevista], que pode confirmar que houve problemas grave de saúde mental por causa do pânico. Um pânico como se a Humanidade se fosse extinguir por causa de um vírus, quando, desde o início, se percebia que a taxa de mortalidade até era relativamente baixa.

    Eu ia colocar-lhe essa pergunta, porque o medo ou o pânico advêm sobretudo do desconhecido ou da ignorância. Ora, muito rapidamente se constatou que a taxa de letalidade rondava os 2%, que era muito superior nos idosos ou pessoas com comorbilidades, mas baixíssima na população abaixo dos 40 anos. A mortalidade pelas pneumonias, sendo irrelevante abaixo dos 20 anos, mesmo assim é superior à da covid-19. Mas quem falava disto era rotulado de negacionista. E aquilo que mais vimos foi a classe médica, corporizada pela Ordem dos Médicos e o seu Gabinete de Crise, a alimentar o pânico… Teria sido diferente consigo, se a pandemia tivesse ocorrido durante o seu mandato?

    Isso é uma pergunta que me deixa numa posição desconfortável.

    red and white car on road during daytime

    Mas é essa a função dos jornalistas, ou não?

    [pausa] Sim, teria havido diferenças.

    E em que aspectos, mais em concreto?
    [risos] [pausa] Teria havido diferenças. Aliás, basta ver o que fui escrevendo no Facebook para se perceber.

    Os leitores do PÁGINA UM podem não o ter lido…

    Os objetivos deveriam ter sido claramente definidos. Saber o que queríamos com as medidas de combate à pandemia, na prevenção e minimização do impacto na saúde das pessoas. Aliás, como dizia aquele epidemiologista sueco [Johan Giesecke], isto não é como começa, mas como acaba; é como no futebol. Aquilo que interessa não são os picos – que só importam para avaliar a capacidade de resposta do sistema de saúde. O impacto da pandemia mede-se não pelo pico, mas pela área sobre a curva. A única coisa que as medidas [não-farmacológicas] fazem – e bem, porque foi preciso garantir que a capacidade de resposta não fosse completamente ultrapassada, como foi em alguns momentos – é achatar a curva. Mas o que se estava a fazer não era evitar casos; era adiar casos. Aliás, do ponto de vista epidemiológico, basta ver a evolução dos outros quatro coronavírus que já circulavam antes do SARS-CoV-2 para percebermos como este se comporta. E sabemos o que são pandemias quando aparece um novo tipo de vírus. Não há nada de novo nem transcendental. E a verdade é que os confinamentos achatavam a curva, adiavam mas não evitavam casos. Isso foi importante, numa primeira fase, para dar tempo ao país para se preparar melhor, porque estava completamente impreparado. Não foi por acaso que a nossa primeira medida foi o Estado de Emergência [em Março de 2020], e depois tivemos algum tempo para nos prepararmos.

    Nos primeiros confinamentos, em 2020, com os Estados de Emergência e os lockdowns até fomos elogiados internacionalmente, e quase levámos uma medalha…

    Porque usámos a “bomba atómica”, mas depois…

    Pois, a questão é essa: depois, em Outubro de 2020, o Ministério da Saúde anunciou que tinha 17 mil camas para doentes-covid, mas chegámos ao Inverno de 2020-2021 e foi o descalabro completo. O Serviço Nacional de Saúde colapsou.

    Colapsou…

    E no último Inverno, com tantos casos positivos, não se repetiu porque claramente a Ómicron, a variante dominante, tem uma letalidade muito mais baixa…

    Os casos pela Ómicron não interessam…

    Exactamente

    E quanto mais testes se fizessem mais casos tínhamos, porque se detectavam pessoas assintomáticas. O nosso número elevado de casos foi devido à decisão de se fazerem mais testes.

    Mas sempre que se falava em aplanar a curva, era afinal uma curva de casos positivos. Estava-se sempre a falar nos casos. Estávamos sempre numa epidemia de casos…

    O problema foi que não houve capacidade ou interesse do Governo, do Ministério da Saúde e da DGS em se fazer uma análise sobre o antes e o depois das vacinas. Quando apareceu a pandemia dizia-se que só se resolvia isto com a imunidade de grupo, só quando todos apanhássemos a doença, porque não havia vacinas. Ou, dependendo da contagiosidade, quando 85% da população tivesse apanhado covid-19. Felizmente – e porque a técnica já existia, já estava a ser muito desenvolvida e testada para várias doenças, incluindo terapêutica do cancro –, foi possível descobrir-se ou preparar-se, com rapidez, uma vacina contra o SAR-CoV-2, e tudo mudou. A população que nunca tinha tido contacto com o vírus, podia desenvolver imunidade sem doença, de modo a estar preparado para quando houvesse contacto com o vírus. E assim teria a situação amenizada, como acontece com as vacinas, e como acontece com a gripe. Portanto, isso preparou-nos. Houve uma redução significativa do número de casos. Por isso, a partir de Outubro ou Setembro do ano passado, quando tínhamos 86% da população vacinada – só não estavam vacinadas as crianças, que nunca precisaram de ser vacinadas, e as pessoas que não se queriam vacinar, cuja opção eu respeito –, devíamos ter recuperado uma vida normal. Desenvolver uma vida normal.

    Vamos falar da vacina. É uma tecnologia nova, que não tinha sido ainda utilizada de uma forma massiva. Ora, estamos perante uma doença em que sabemos que acima de 80 anos a taxa de letalidade rondava os 15%, depois baixava para os 4% ou 5% nos septuagenários; na minha idade descia para 1%. E por aí fora… Num adulto jovem e numa criança era 0,00 qualquer coisa. Ora, conhecendo-se isso cientificamente, e sabendo-se ainda que, afinal, a vacinação não dava imunidade de grupo, que um vacinado podia infectar e ser infectado, justificava-se a vacinação universal, como fizemos, de uma forma praticamente coerciva?

    As crianças, não. Os jovens… [pausa] Repare: fez-se uma coisa que não existe na Medicina, que é tratar uma pessoa para prevenir a doença noutra. E essa foi a justificação para se vacinarem as crianças e os jovens.

    Isso é etico?

    É discutível.

    Mas, na sua opinião, é ético ou não?

    É discutível. A ética é um conceito relativo. É eticamente discutível fazê-lo.

    Desculpe insistir, mas não me respondeu. Imagine que estava num fórum sobre ética a discutir esta questão. Qual seria a sua posição? Pode dizer-me que ainda não tomou uma posição. Mas diga-me se é a favor ou se é contra, ou se ainda não tomou uma decisão…
    Nós não vivemos num mundo de extremos, de preto e branco. Temos os tons de cinzento. A ética é um conceito relativo e subjectivo.

    Mas eu coloquei-lhe a hipótese de não ter uma posição definitiva. Nem branco nem preto, estou ainda a reflectir…

    Digo-lhe que é eticamente discutível e não foi discutido. Por exemplo, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) não foi ouvido, e eu acho que devia ter sido ouvido. Não sou um eticista. Tenho o meu conceito de ética, mas eu gostaria de ter visto esta questão ser discutida pelos especialistas em ética. E eu soube de um representante do CNECV a dizer que deviam ter sido ouvidos e não foram. Eu não vou dizer preto ou branco, é ético ou não é ético, porque há imensas matizes na ética. Agora, eu gostaria de ter ouvido o CNECV pronunciar-se sobre vacinar pessoas que não beneficiam de uma vacina alegadamente para proteger outras. E é mesmo alegadamente – não é que a vacina lhes fizesse mal, atenção. Não está isso em causa, na minha opinião. Aliás, muitas pessoas perguntaram-me se deveriam vacinar os filhos ou não. E eu disse-lhes: façam como vocês entenderem, porque eles não precisam de ser vacinados, mas a vacina também não lhes faz mal. Dizia-se, por exemplo, que os jovens vacinados têm menos miocardites [do que os não-vacinados]. Sim, e depois? É verdade, têm menos miocardites; qualquer pessoa que tenha uma doença virusal pode ter uma miocardite, mas a mim não me interessa que tenha uma miocardite; sim interessa é saber se essa miocardite tem consequências.

    woman in black crew neck t-shirt wearing white face mask

    É a velha questão dos casos e dos assintomáticos…

    Sim. O que me interessa termos 10 mil casos de covid-19, se muitos são completamente assintomáticos? Não contam. Portanto, pode-se dizer, até inequivocamente, que os jovens vacinados têm menos casos de miocardite, porque não têm uma infecção vírusal – embora a própria vacina, mas enfim de uma forma discutível, pudesse eventualmente desencadear casos de miocardite, porém numa taxa inferior aos não-vacinados. Mas a questão essencial é: beneficiaram disso? Não há provas nenhumas que beneficiem disso; por isso é que nos estudos de prevenção não se aceitam os endpoints intermédios, que são os casos, porque aquilo que tem peso são os hard endpoints, como as mortes e os internamentos em unidades de cuidados intensivos. Ora, não está demonstrado que as vacinas reduzam os hard endpoints nas crianças, portanto não precisavam de ser vacinadas.

    Ainda sobre a segurança das vacinas, e o tal princípio da prevenção…
    Eu não tenho dúvidas sobre a segurança das vacinas. Algumas pessoas receiam levar RNA mensageiro porque dizem que mexe com a nossa genética, porque entra na célula. É verdade, mas se nós levamos com o vírus, em vez de levarmos uma dose controlada de RNA mensageiro, apanhamos uma dose maciça de RNA mensageiro do vírus. Eu acredito na inocuidade da vacina. Vacinei-me com as três doses, embora ache que nem precisava da terceira dose, porque tinha anticorpos positivos. Aliás, estive a trabalhar em enfermarias-covid, lidei com o vírus todos os dias, já depois das duas doses de vacina. Eu tinha valores de anticorpos positivos, porque os medi. Não precisava da terceira dose, mas ok vacinei-me, para ter o certificado, porque aquilo também não me fez mal. Andei para aí um dia com cansaço anómalo, mas isso também faz parte.

    Falou dessa questão dos anticorpos, e vou aproveitar para uma “consulta”. Tive covid-19 com internamento em Junho do ano passado, nunca usei o certificado digital por considerar que não é método de controlo da pandemia, e serve apenas para discriminar, fui recusando os “convites” para me vacinar desde Agosto, li literatura científica sobre imunidade natural, sobre efeitos adversos. Em finais de Dezembro do ano passado, fiz um teste serológico (IgG) que deu um valor 427 BAU/ml; repeti agora em finais de Março e deu 438 BAU/ml, o que indicia que, provavelmente, até terei contactado com a Ómicron. Pergunto ao médico: devo vacinar-me ou não?

    Com anticorpos positivos, não vale a pena. A não ser para ter um certificado digital, que é o passaporte para a liberdade [dito com sarcasmo]…

    Mas que é isto do passaporte sanitário? Mas o que é que é isto de se usar um passaporte sanitário? E pergunto-lhe a si como cidadão e como médico. Onde está a Ciência no passaporte sanitário? Porque, salvaguardando a analogia, é o mesmo que impor, numa campanha de redução dos cancros da pele, que qualquer pessoa se besunte de factor 50 para entrar na praia, mesmo um negro do Senegal…

    É um exagero sanitarista, até porque isso é o resultado de as autoridades não acreditarem na vacina. Eu não preciso que se vacine, ou que tenha um passaporte, para eu me proteger. Para me proteger, vacino-me. Se eu quisesse, até podia estar aqui de máscara, enfim, também tinha uma proteção adicional, mas se me quero proteger, vacino-me. Quem se quer proteger, vacina-se. Eu não tenho nenhum problema com as pessoas que não se querem vacinar. Eu acho que não devia ser necessário passaporte sanitário nenhum. Quem não se quer vacinar, prefere estar desprotegido, corre riscos maiores, mas é uma opção. Aliás, a base do exercício da Medicina é o consentimento informado; ou seja, eu não posso obrigar nenhum doente a fazer uma coisa que ele não quer. Como é que eu posso obrigar alguém a vacinar-se se ele não quiser? Como é que eu posso obrigar alguém a ter um passaporte sanitário, se ele não quiser? Eu protejo-me da forma que entendo mais eficaz, e vacinei-me. No entanto, convém dizer que há alguma similitude, por exemplo, com febre amarela em alguns países. O conceito do passaporte sanitário já existe, não é novo, não há também razão para o diabolizarmos. Mas no caso da febre amarela – que pode ser uma chatice – está em causa sobretudo evitá-la quando se está em certos países com piores cuidados médicos.

    Mas voltando atrás. Se o certificado digital deixar de estar em cima da mesa, uma pessoa nas minhas circunstâncias deve vacinar-se?

    Nos outros coronavírus já sabemos que a imunidade, a memória imunológica, aos coronavírus é transitória, e é reactivada por ciclos regulares de reinfecção a cada dois a quatro anos. Já tivemos muitas infecções por coronavírus, e vamos ter muitas infecções por SARS-CoV-2, que está endémico. Por isso, andarmos de máscara agora, quando não há uma pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, até é contraproducente. Por isso digo que a partir de Outubro do ano passado devíamos ter passado a fazer uma vida normal, porque tínhamos a população com a taxa máxima de vacinação. E, nessa medida, seria preferível ter um contacto com o coronavírus quando se tem ainda memória imunológica, e ele reactiva, do que quando a memória imunológica se perdeu completamente. Por isso, usar máscara depois de termos 86% da população vacinada não tem nenhuma fundamentação científica. Nenhuma.

    Ou seja, até convém que as pessoas recentemente vacinadas tenham novamente contacto com o vírus…

    Claro. Para reactivarem a sua memória imunológica, e irem fazendo uma transição progressiva entre as novas variantes do coronavírus, que se sucedem, porque assim ficarão mais bem preparadas.

    Quanto à questão do consentimento informado. Soube-se no mês passado que quatro membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 votaram contra o parecer que deu luz verde para o programa de vacinação de adolescentes em Agosto de 2021, mas isso foi escondido por meses pela DGS. Essa informação não deveria ter sido dada aos pais, tanto mais que não houve unanimidade, mas sim unanimismo?

    Claro que sim, claro que sim.

    E porquê que houve este unanimismo?

    Não me pergunte a mim, porque não participei dele.

    Entretanto, esta semana a directora-geral da Saúde defendeu ser ainda muito cedo para deixar as máscaras em espaços fechados.

    Eu gostaria que jogássemos pela Ciência. Eu gostaria de ter um debate com ela sobre esta questão do “seguro”. O que é isso “jogar pelo seguro”? Defina “jogar pelo seguro”. Vamos evitar alguma coisa num vírus endémico? Ou vamos adiá-lo?

    Ou esperar que tenhamos mortes zero…

    A DGS tem que decidir com rigorosas bases científicas. Ora, ela diz “vamos jogar pelo seguro”; o que é isso? Ela tem a certeza que se continuarmos a usar máscara é mais benéfico do que não-benéfico? Não tem nenhuma evidência. Aliás, temos agora uma epidemia de gripe A exactamente por termos estado a usar máscara durante dois anos. É evidente que usar máscara também tem efeitos negativos. Sim, foi necessária na fase pior; foi necessária enquanto não estávamos vacinados; foi necessária não para evitar casos, mas para adiar e achatar a curva. Agora, para um vírus que se tornou endémico, ou nós usamos máscara para toda a vida e andamos a ser vacinados de seis em seis meses, ou vamos ser infectados regularmente como acontece com os outros quatro coronavírus.

    O PÁGINA UM divulgou informação detalhada de uma base de dados oficial de internados-covid, revelando situações estranhas de contabilização de óbitos por covid-19. Temos doentes terminais de SIDA considerados vítimas do SARS-CoV-2, centenas e centenas de mortes por AVC e ataques cardíacos atribuídas à covid-19 apenas por causa de testes positivos. Quedas de camas e infecções nosocomiais não-covid são imensas. Uma mulher com queimaduras de 3º grau na cara e peito, metem-lhe a zaragatoa, testa positivo, acaba por morrer três dias depois, mas por covid-19. Num hospital, um doente atira-se pela janela, como está descrito, portanto suicidou-se…

    Foi o SARS-CoV-2. Provocou-lhe um surto psicótico…

    white samsung charger on white textile

    Como foi possível tanta contabilização criativa?

    Houve uma contabilização sem rigor científico relativamente às causas de morte.

    E isso aumentou mais o pânico?

    Isso contribuiu para aumentar o pânico, porque aumentou a casuística. Por acaso, falei com um colega do Alentejo quando morreu o primeiro doente nessa região. E ele disse-me que era uma pessoa de idade com polipatologia, acamado, demenciado, a quem, por acaso, fizeram uma zaragatoa, já ele tinha falecido, ou estava a falecer. Aliás, como está já publicado, muitas das pessoas que morreram de covid-19 iriam falecer nesse mesmo ano pela sua doença de base, pela sua idade ou pela sua polipatologia.

    E o PÁGINA UM também noticiou que até Maio de 2021, em cada 10 internamentos-covid, quatro eram afinal por outras causas…

    A congestão dos hospitais também foi agravada por causa das determinações da DGS. Eu estive a coordenar três enfermarias-covid há um ano aqui no Hospital de Coimbra, e quisemos mandar doentes para as suas instituições de origem, e não podíamos porque, embora ao décimo dia estivessem absolutamente assintomáticos, tinham de ficar lá mais 10 dias sem necessidade nenhuma. Tudo por causa de regras não cientificamente fundamentadas da DGS. E eu reclamei por escrito, depois de falar com vários colegas do hospital, e nunca obtive resposta.

    (continua amanhã)

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    Foi uma das surpresas das eleições autárquicas de Setembro do ano passado, apeando o histórico socialista Manuel Machado da presidência da Câmara Municipal de Coimbra. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017, o independente José Manuel Silva, fala sobre a “decadência” e o novo vigor (anunciado e defendido) da cidade do Mondego, com o director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, que aí nasceu há 52 anos. E também aborda a descentralização e a regionalização do país. Mas preparem-se: esta é apenas a “introdução” de uma longa entrevista. Na segunda parte, o tema é mais escaldante e nacional: pandemia, médicos e Serviço Nacional de Saúde. Eis a primeira ENTREVISTA P1.


    Historicamente, Coimbra é a capital da Beira Litoral, mas perde população há 20 anos. Na última década registou uma sangria demográfica em freguesias rurais, com três a perderem mais de 10% da população. Tem a certeza de que Coimbra fica mesmo na Beira Litoral?

    Essa é uma boa pergunta. Coimbra tem uma localização extraordinária. Tem todas as vantagens de estar no litoral e a meio do país. Aliás, quando fui bastonário da Ordem dos Médicos, a maioria das reuniões dos colégios era em Coimbra, por ser central. Tem uma boa localização geográfica, apesar de algum problema de acessibilidades, nomeadamente para o interior, que nos prejudica um pouco. Mas possui um potencial extraordinário: foi durante 100 anos a primeira capital do país, tem uma História, um Património, uma Cultura que não existe em nenhuma outra cidade.  Os italianos dizem que Coimbra lhes lembra Florença. Temos uma universidade com características únicas, temos uma música própria…

    E também tem mais de 25% da sua população com curso superior, mas…

    Exactamente. Eu diria tem tudo, só lhe faltava uma coisa, que a prejudicou e justificou a esta recente mudança: uma Câmara Municipal que acompanhasse a evolução dos tempos, que fosse um motor de desenvolvimento, e não um factor de obstaculização. Eu agora tenho andado por muitos fóruns onde me dizem que é primeira vez que Coimbra aparece.

    José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra e antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017)

    A sensação que tenho, que nasci em Coimbra mas estou há várias décadas em Lisboa, é de que a cidade vive muito à margem da sua universidade, e que a própria universidade foi perdendo – e acho que não foi por causa do seu irmão [José Gabriel Silva, reitor entre 2011 e 2019] – um certo élan nos últimos anos…

    Eu diria que começou a reganhar algum élan nos últimos anos. Perdeu durante muitos anos, mas começou a recuperar. Ainda esta tarde estive na apresentação da segunda call da INNOV-ID para projectos empresariais na área da inovação pela Portugal Ventures, e posso dizer-lhe que na primeira call oito dos 40 projetos financiados tiveram origem no Instituto Pedro Nunes [de Coimbra]. E, portanto, há também em Coimbra um potencial científico e cultural, eu diria inigualável, na área da Educação e da Ciência. Coimbra sofre um pouco de problema de marketing, mesmo se a marca Coimbra é fortíssima em todo o Mundo. Em muitos países, como no Brasil, é mais forte que a marca Lisboa.

    Exacto. Desde o século XVIII quem no Brasil queria estudar Direito vinha sempre para Coimbra…

    Estive agora também em Pavia num encontro de cidades do Cultural Cities Twinning. São cidades de média dimensão, não-capitais com uma universidade histórica. Coimbra é conhecida na Europa por ser a cidade com uma das universidades mais antigas do Mundo.

    Mas estamos apenas perante uma questão de marketing, ou de algo mais? Repare, além desse marketing intrínseco histórico, Coimbra viu em 2013 a zona da Universidade, da Alta e da Sofia ser classificada como Património Mundial pela UNESCO, e parece que não foi nada. O que faltou para dar o pulo?

    Faltou Câmara, na minha opinião, que é naturalmente enviesada. Mas faltou Câmara, faltou uma maior ligação entre a Câmara e a universidade – e eu aí sei, por razões familiares, das dificuldades de relacionamento entre a Universidade e a autarquia, e não por responsabilidade da Universidade. Durante os últimos quatro anos [como vereador independente da oposição no anterior mandato do socialista Manuel Machado], ouvi várias vezes a Universidade a ser vilipendiada nas reuniões da Câmara, e os seus professores diminuídos. Havia alguma reserva na Câmara face à Universidade. As duas principais instituições da cidade andavam de costas voltadas. E agora andam de braço dado.

    É normal, em cidades de média dimensão, uma ligação íntima, mas nem sempre pacífica, entre a sua universidade e a sua autarquia. Mas, no caso de Coimbra, a Universidade tem um passado institucional forte, chegou a ter uma polícia própria [os verdeais], o que cria antagonismos…

    Havia. Já não há. Durante muitos anos foi uma reserva mútua, que depois deixou de ser por parte da Universidade, mas manteve-se por parte da Câmara. Por exemplo, o Pólo II da Universidade está ilegal há praticamente 40 anos…

    Porquê?

    Não está legalizado por falta de aprovação do loteamento. E o Pólo III foi parcialmente legalizado, sob risco de Coimbra perder os financiamentos do UC Biomed, um dos maiores de sempre para edifícios de investigação.

    white bridge near houses

    O estacionamento caótico no Pólo II está relacionado com questões dessa natureza?  

    Sim, mas agora está a trabalhar-se no sentido de se ultrapassarem esses problemas do passado, de relacionamento. De forma tranquila, as duas principais instituições de Coimbra, e sem esquecer outras, como o Centro Hospitalar e o Instituto Politécnico, estão a trabalhar em conjunto, em bom diálogo. Se algum problema houver, eu e o reitor conversamos sem qualquer tipo de reserva. Outro exemplo: a Câmara Municipal não recebia empresários. Ora, uma Câmara que não recebe empresários é porque não quer investimento; se não quer investimento, não quer empresas, não quer emprego; e, portanto, se não há emprego, a população vai-se embora. Tenho um exemplo concreto: o IKEA quis instalar-se em Coimbra, comprou um espaço de oito hectares na encosta de Santa Clara, mas por obstáculos levantados pela Câmara nunca se instalou. Agora, a filosofia mudou, embora a pandemia tenha alterado a filosofia deste tipo de investimentos, porque se fortaleceu a componente de compras online.

    Vejo-o com grande optimismo. Significa então que aquele projeto que se ouve falar desde os anos 90 do século passado, e do qual a autarquia de Coimbra detém 14% do capital social da empresa, não vai continuar a ser uma obra de Santa Engrácia? Estou a falar do Metro do Mondego…

    [risos] Está bem… Temos 14% no Metro do Mondego. Mas agora está a andar, está a andar…

    E também está a andar por causa de si?

    Não, não; já estava acontecendo…

    Estava a brincar consigo. Aquilo que eu gostava de saber tem a ver com uma questão muito simples: quando estava a preparar a entrevista, fui consultar o site do Metro Mondego e só quase se via estudos e mais estudos; quase só papel…

    Sim, durante muitos anos foi assim. Mas esse é um projecto do Estado, não é da Câmara. Todos os grandes projectos em Coimbra, que são nomeados, são projetos do Estado.

    No Metro do Porto, o Estado também era maioritário, mas havia força política dos autarcas para se avançar mais rápido nas obras…

    Eu não sei quais eram os obstáculos antes no Metro do Mondego, porque não estava cá, mas a mobilidade e as acessibilidades em Coimbra ficaram sempre para trás. Veja o IP3, o IC6, o IC8. Este último projecto é uma vergonha. Aliás, por causa do IC8, ainda há pouco tempo tive uma reunião com os municípios desde a Raia até à Figueira da Foz, e mais uma vez foi dito que era a primeira vez que o município de Coimbra participava numa reunião. Os outros municípios têm a noção da importância de Coimbra na defesa da Região Centro. Coimbra não podia estar enquistada sobre si mesma e ignorar o que se passava à sua volta. Por isso, 10 anos depois de serem criadas, se fez finalmente uma reunião entre as Comunidades Intermunicipais de Coimbra e de Leiria para um diálogo sobre assuntos comuns, para investimentos comuns; para constituir um lobby da Região Centro.

    Qual a sua opinião sobre a regionalização?

    Eu diria que é a mesma que tenho sobre a descentralização. A descentralização é um bom conceito mal aplicado, porque houve transferência de responsabilidades que podem ser exercidas com melhor propriedade pelas Câmaras Municipais, mas não vieram acompanhadas do financiamento necessário. O Estado descentralizou “chatices administrativas” e défice do Orçamento Geral, criando constrangimentos e dificultando o exercício das autarquias. Isto é uma perversidade sobre um conceito que era de acarinhar, pois não foi devidamente financiado. O Estado deveria transferir pelo menos o mesmo montante que gastaria se exercesse essas competências. Se calhar o principal objectivo, oculto, da descentralização foi descentralizar o défice do Orçamento Geral do Estado.

    Portanto, a regionalização pode ser má se o caminho for semelhante ao da descentralização…

    Aí, mais vale estarem quietos. Eu acredito no processo de regionalização se for conquistado pelas regiões. Se for feito pelo Estado, em benefício do Estado Central, então não; mais vale estarem quietos. Basta, aliás, ver aquilo que sucedeu com a intenção de desconcentração de algumas instituições, como o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional: alguns juízes acharam ser uma indignidade vir para uma cidade como Coimbra, quando eu dou repetidamente o exemplo da Alemanha onde não há nenhum tribunal superior na capital. Se calhar é por esta mentalidade centralista de Lisboa que a descentralização não está a correr bem. Aliás, recusamos assinar o auto de transferências em Saúde, e agora quiseram-nos impor, a partir de Janeiro de 2023, a descentralização na Acção Social, fazendo uma coisa que eu não compreendo: exigindo que criássemos uma estrutura enquanto a nível central se mantém tudo igual, para fazer não sei o quê. Assim, só vamos duplicar estruturas, ainda por cima com um financiamento claramente insuficiente. Por amor de Deus, isto não é descentralização.

    Deduzo então que também não concorde muito com o actual modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que já não é completamente dominado pelo Governo…

    É completamente…

    O presidente e um vice-presidente são agora eleitos pelos autarcas. São órgãos desconcentrados da Administração Pública…

    Eu acho que a presidente da CCDR do Centro [Isabel Damasceno, ex-presidente da autarquia de Leiria pelo PSD] é uma pessoa muito estimável com quem temos tido várias reuniões construtivas. Mas, com todo o respeito pelas pessoas, mais importante do que os modelos são as pessoas, e um modelo de organização funciona bem com as pessoas certas no lugar certo, e qualquer modelo de organização funciona mal com as pessoas erradas no lugar errado. Portanto, sem estar devidamente explorado este modelo de CCDR, quer-se acelerar um processo de regionalização sem estar suficientemente debatido. Tem de haver primeiro uma proposta de regionalização, exaustivamente discutida. Dou-lhe um exemplo: vamos regionalizar com partidos nacionais? Eu não sei que regionalização é essa se vamos regionalizar o país, mas mantendo, à frente das regiões, partidos nacionais. Isso é a verdadeira regionalização? Não sei se é; e eu acho que não é.

    Serão satélites do Governo ou da oposição…

    Mas a nossa Constituição proíbe partidos regionais. Então, como é que nós regionalizamos sem permitir criar forças políticas regionais? Isso não é uma verdadeira regionalização; é um eufemismo de regionalização. Mas por que é que a Constituição tem essa essa alínea que proíbe partidos regionais? Se nós olharmos para a vizinha Espanha começamos a perceber porquê. Nós criticamos o Governo de Madrid pela forma como actuou na Catalunha, mas ninguém foi capaz de dizer que os partidos regionais do tipo catalão são proibidos em Portugal. Estamos a falar de realidades diferentes. Se avançarmos no sentido de uma regionalização com partidos regionais podemos, de facto, daqui a duas gerações, pôr em causa a coesão nacional. Mas eu não sei, com a nossa tradição municipalista e agora desenvolvida com o conceito das comunidades intermunicipais, como é que vamos regionalizar com partidos nacionais. Eu acho que é algo incompatível, porque se queremos uma região a defender os seus interesses, temos de permitir a criação de forças políticas regionais.

    E locais… Nas eleições autárquicas admitem-se movimentos cívicos mas não partidos formais…

    Sim. Por exemplo, há quatro anos quando criámos o nosso movimento independente [Somos Coimbra], este deixou formalmente de existir por lei no dia das eleições, quando fomos eleitos como autarcas. Também é proibido que um movimento independente faça uma coligação com um partido político. Porquê? Isso é uma limitação à democracia. Portanto, vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização. Se não permitimos verdadeiras manifestações de cidadania, então estamos a falar de regionalização com que objetivos? A nossa legislação autárquica nunca mais foi modernizada. Hoje tem seríssimas limitações, eu diria que é pouco democrática. Portanto, a regionalização transformou-se num chavão político, e eu tenho muito receio de chavões políticos.

    Os célebres chavões políticos…

    Muitas vezes dizem-me: ah, as decisões são políticas, isso é político. Pois é, mas a política paga-se com euros, não é? Eu digo sempre: a decisão pode ser política, mas vamos avaliar as consequências económicas, porque depois do 25 de Abril já fomos três vezes à bancarrota. Eu não gostava de ir uma quarta vez. Vamos avaliar as consequências do impacto económico para depois decidirmos então, dentro do critério de não causar mais prejuízo do que benefício – como na medicina, com o célere primum non nocere –, e depois, sim, pôr um uma componente política na decisão.

    Já que fala dos investimentos, como avalia a situação do iParque, o vosso centro de Ciência e Tecnologia? Temos ali 30 hectares e 34 lotes para instalar empresas. Quantas lá estão neste momento?

    Estão poucas. O projeto do iParque autolimitou-se um bocado no seu início ao restringir os investimentos à área tecnológica e da saúde. Algumas empresas que se poderiam lá instalar ficaram impedidas por não caberem neste conceito devido às condições dos financiamentos europeus. Depois, esteve parado durante vários anos, e agora está outra vez a procurar desenvolver-se, até porque esteve tecnicamente falido por dívidas ao Novo Banco.

    Qual era o valor da dívida?

    Da ordem dos quatro milhões de euros. Com a falência do Banco Espírito Santo, e a criação do Novo Banco, grande parte da dívida do iParque foi vendida a fundos, e assim perdoou-se talvez 75% da dívida, o que permitiu que a Câmara repusesse o equilíbrio financeiro. Mas quando se diz agora que o iParque tem contas equilibradas, deve dizer-se que sim, mas porque nós todos, portugueses, pagámos a dívida.

    Sente sinais de mudança no iParque?

    A fase II tem agora interessados. Eu diria que há grandes critérios para um empresário seleccionar o investimento: a localização e as acessibilidades. Nós temos boas acessibilidades longitudinais – não tanto transversais –, uma boa universidade, um bom hospital, uma boa localização geográfica. Temos, no essencial, tudo o que é necessário para um empresário investir, e com potencial imenso. Por exemplo, fala-se pouco – se fosse em Lisboa seria certamente diferente –, mas temos em Coimbra a sede em Portugal da única empresa unicórnio nacional, a Feedzai. Temos muita procura. Aquilo que nos diziam os empresários é que nem valia a pena ir a Coimbra. A ideia que se instalou é que tudo esbarrava na Câmara, e agora as pessoas já perceberam a mudança.

    Pode então perspectivar-nos onde se estará daqui a quatro anos? Quanto daqueles 34 lotes do iParque estarão ocupados?

    Eu não me comprometo. Não sou eu que vou comprar os lotes, não tenho dinheiro para isso, mas estamos a trabalhar…

    Então eu reformulo a pergunta: porque está a dar um destaque ao papel fundamental da Câmara na atracção de investimentos, o que seria um insucesso?

    Não meço isso no caso do iParque.

    Eu queria que determinasse uma métrica. Por exemplo, que consegue ter 10 lotes ocupados, ou 20, para ficar satisfeito…

    Aquilo que nós queremos é aumentar, ano após ano, o investimento empresarial em Coimbra.

    Isso é muito vago.

    Claro que é vago. Não tenho uma métrica para dizer: olha, agora vamos vender mais seis lotes do iParque e ficamos contentes.

    Os investimentos também não devem traçar objetivos e ter métricas?

    Métricas que dependem de nós, sim. Para captar investimento, por exemplo, há tantos a tantos factores imponderáveis, como vimos com a pandemia da covid-19. Agora, a guerra na Ucrânia também, que vai “comer”, se nada mudar, seis milhões de euros do nosso orçamento. Veja-se o aumento do custo dos materiais, da energia e dos combustíveis. Somos uma cidade com 100 autocarros por dia a circular.

    Qual o impacte desse acréscimo no orçamento camarário?

    Cerca de 4% do orçamento; é um impacto brutal, porque a capacidade de investimento próprio da Câmara é muito baixa, rondando os cinco ou seis milhões de euros. A diferença entre as receitas e as despesas correntes é muito pequena. Aquilo que podemos fazer é captar investimentos. E estamos numa fase de transição entre dois quadros dos fundos estruturais: o Portugal 2020 acabou e o Portugal 2030 ainda não começou. Quando aqui cheguei, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) já estava alocado, e perguntaram-nos apenas se tínhamos projectos maturados na Câmara, porque aí poderia ser que entrasse. Mas não há. Um dos nossos problemas era não ter projetos em desenvolvimento a nenhum nível, excepto aqueles relacionados com a rotina diária da gestão autárquica. Isso mudou. Já me disseram dos serviços que nunca trabalharam tanto como agora. Imprimimos outro ritmo, também com a informatização e digitalização. Nos processos de urbanismo ainda não está completado, mas a digitalização sim. Se eu tiver um processo por despachar mais de 10 dias fica registado. Tem havido uma maior pressão para uma aceleração processual, e tem sucedido com a participação dos trabalhadores da Câmara, a quem eu tenho de estar reconhecido e agradecido.

    Um cunho pessoal?

    Temos aqui muita gente de valor, que estavam numa organização completamente disfuncional. As pessoas não falavam umas com as outras. Agora, fazemos reuniões que juntam directores de departamento para discutir problemas, e ouvir as suas opiniões. Isto não era feito antes. Trabalhar com as pessoas, envolve-as, e ganha-se com isso, porque têm muito conhecimento e muita experiência. E isso depois atrai investimento. O parque industrial de Taveiro está cheio, o de Eiras está praticamente cheio, o iParque em desenvolvimento. E não temos muito mais. Há ainda lotes industriais que podem ser vendidos, mas a infraestruturação é muito deficiente, mas podemos sempre inverter agulhas. Não temos dúvidas que Coimbra vai crescer em termos de investimento empresarial, mas sem métricas quantitativas. 

    O impacto da pandemia agudizou a situação do comércio e dos serviços também em Coimbra. A Baixa já sofre de problemas de segurança. Como pretende revitalizar aquela zona?

    A Baixa foi abandonada ao investimento por parte da Câmara durante muitos anos. Com a colaboração negativa da autarquia concentrou-se na Baixa quase todos os apoios sociais da cidade. Não se resolveram os problemas das pessoas e criou-se sim um problema social na Baixa, que é necessário inverter. Isso é um trabalho de fundo. Queremos, por exemplo, reabilitar a entrada da Rua Direita, que está degradadíssima. Apesar da Câmara deter a maioria dos activos imobiliários daquela zona, há um proprietário que tem criado obstáculos numa zona essencial. Antes, a autarquia nunca tentou um diálogo. Aquilo está assim há anos. Já não me lembro de ver o início da Rua Direita de outra maneira. Agora, já dialogamos com um representante do proprietário, e está a correr bem. Eu próprio já me disponibilizei para ir falar com o proprietário, que vive em Poiares. É o nosso interesse de resolver o problema; não tenho nenhuma questão em ir falar com o próprio.

    Conversa de médicos: José Manuel Silva com o psiquiatra Pio Abreu, antes da entrevista.

    Para a reabilitação da Baixa de Coimbra vai ser preciso uma espécie de Polis?

    Chamo-lhe um Plano Marshall. É preciso investimento e a Câmara tem de dar o exemplo, resolvendo as questões que estão sob sua responsabilidade directa. Estamos também a desviar para a Baixa muitos eventos culturais; para a Praça do Comércio, por exemplo. Qualquer pessoa fica deslumbrada com o potencial daquela praça, que basicamente estava ao abandono por parte da Câmara, e os empresários viam a autarquia a não responder às solicitações para lá dinamizarem eventos. Agora já respondemos. Em qualquer cidade espanhola, a Praça do Comércio seria uma plaza com vida 24 horas por dia. Nós estamos a pensar também poder adquirir um edifício na Baixa – há vários à venda, o que não é um sinal muito positivo – para dar um exemplo de investimento e criar um espaço co-work. Queremos trazer os estudantes para a Baixa, criando ali residências. Estamos a distribuir agora as pessoas com carências habitacionais por outras zonas da cidade, dando-lhes apoio condigno. Não podemos concentrar todos os problemas na Baixa. Vamos repensar a videovigilância e melhorar o policiamento. O seu potencial é imenso.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro