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  • O SNS e um sapo encontram-se numa panela

    O SNS e um sapo encontram-se numa panela


    É conhecida a experiência em que colocando um sapo numa panela de água quente, ele saltará rapidamente para fora, mas se for colocado em água fria que vai aquecendo lentamente, o bicharoco acabará cozido sem dar por ela.

    Esta imagem veio à memória ao reflectir nas “mudanças” do SNS a caminho do seu futuro, ao ouvir o que nos diz quem gere o sistema.

    Há poucos dias, o Primeiro-Ministro afirmou, no decurso da celebração do 45º aniversário do SNS que “a Saúde não se gere com preconceitos ideológicos”. Os responsáveis políticos devem ter presente que fazer afirmações “bombásticas” pode encher os cabeçalhos dos jornais, mas devem obrigar-se a ser rigorosos e bem interpretados.

    frog on gray surface

    Há numerosas formas de tratar quem está doente e são muitos os sistemas em uso pelo mundo: em alguns países cada um trata de si e assume o pagamento do que deseja ter quando precise; noutros, há seguros cobertos por fundos públicos, mas que vão aumentando o pagamento directo dos cidadãos quando se ultrapassa um determinado plafond (como os nossos seguros automóveis) pelo que devem ser poupados para situações graves enquanto se vai pagando directamente como se puder; noutros, como foi criado o nosso SNS, a Sociedade assume a sua responsabilidade solidária de cuidar de quem precisa a partir da colecta de impostos sobre quem trabalha. Qualquer destes modelos, ou outros, tem inevitáveis pressupostos ideológicos. Ignorá-lo, ou tentar convencer-nos de que não é assim é, no mínimo disparatado ou intencionalmente ligeiro.

    Portanto, é inevitável que a forma como lidamos com a saúde e a doença colectiva tem de definir quem, e como, se paga. Ninguém ignora que os parceiros privados actuam com o legítimo objectivo de proporcionar lucro aos seus proprietários. E isso condiciona a sua estratégia negocial e de actuação diária, ou de estímulo de consumo e venda dos próprios produtos. Se isto não é ideológico, o que será então ideologia? Bater palmas em comícios partidários?

    O pressuposto fundador do nosso SNS foi assegurar promoção de saúde e apoio na doença a todos os cidadãos, mediante pagamento solidário de quem trabalha, sem esquecer que os doentes já vão pagando uma significativa e progressiva fatia da despesa. Há alguns anos começaram a surgir iniciativas privadas, que já não são pequenos consultórios individuais, mas estruturas enormes e sólidas que competem com os hospitais públicos. São bonitos, atraentes, silenciosos e somos atendidos com sorrisos, por vezes por quem é menos cortês noutros horários do dia…

    O hospital russo tem tudo menos doentes… Fotos: Serviço secreto ocidental

    Mas, quem tenta marcar uma consulta sem ter cobertura de um seguro (pago pelo próprio) terá de cobrir todos os custos e mesmo se tiver ADSE em muitos casos não conseguirá marcar consulta ou, com sorte, terá vaga daqui a muitos meses! O que começou por ser um serviço paralelo para pequenas ocorrências foi crescendo e tornou-se em muitos casos a primeira opção quando se pensa em ir ao médico. Quem tem automóvel sabe como funcionam os seguros. São simpatiquíssimos para receber o nosso dinheiro, mas muito relutantes a pagar os serviços contratados, com frequentes dúvidas e hesitações. Há anos num pequeno incidente automóvel o seguro insistiu, sem apelo, que parte dos estragos não decorriam daquele incidente. Juro que eram!

    Esta onda “seguradora na saúde” tem crescido de tal forma que até vimos candidatos em eleições a prometer seguros de saúde aos cidadãos eleitores! Isto é, o exercício de funções públicas já cria e alimenta o bichinho do seguro privado!

    Nada há de censurável a quem oferece emprego ou quem o aceita em instituições privadas. O negócio é legítimo e deve existir sempre que haja interessados em comprar-lhes serviços. A questão que quero suscitar é esclarecer onde é que o Estado gasta os recursos de que dispõem e que garantia de continuidade de cuidados assegura aos Portugueses sem lhes pedir ainda maior contribuição nos custos. Sabemos também que o diagnóstico e tratamento de muitas doenças tem tido incontrolável aumento de custos. Ora, se o Estado se for desvinculando de gerir directamente os cuidados que pode proporcionar e os for transferindo para prestadores privados, conhecendo a altivez com que negoceia os pagamentos que promete, e a inegável necessidade de obter lucro dos privados, temos uma receita pronta para um desastre social! Que começou a cozinhar-se há vários anos, como o pobre sapo que vai cozendo.

    A contraption with a drawing of a man on it

    Talvez assim se perceba e contextualize a falta de vontade em melhorar as condições de trabalho de profissionais, vitais ao saudável funcionamento do SNS, preferindo gastar em prestações de serviço avulsas que diminuam o tamanho das manchetes de alarme nos noticiários, mas abalando pouco a capacidade assistencial regular das instituições públicas. É significativo que se exija mais de metade do horário de trabalho semanal em Bancos de Urgência. Tudo o resto vai sendo suavemente entregue aos tais parceiros…

    Talvez se perceba também que alguns dos responsáveis pelos planos amplamente anunciados tenham pés em vários “parceiros” do sistema (público, social, privado) pelo que haverá benefício em qualquer vertente do processo.

    Como é habitual dizer-se, “primeiro estranha-se e depois entranha-se”. E assim o SNS corre o risco de encontrar um destino parecido com o batráquio na panela.

    Talvez seja preciso dar um salto enquanto é tempo, reclamando melhores objectivos, aceitando que tem de haver um pressuposto socialmente ideológico, o que é diferente de estritamente partidário, ainda que algumas partes venham já irremediavelmente cozinhadas…

    Jorge Amil Dias é médico pediatra


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  • ‘Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas’

    ‘Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas’

    Na segunda parte da conversa aberta com o PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, fala dos avanços que nos permitem dar vida e mais esperança às crianças que nascem com problemas congénitos, mas aborda também os desafios e problemas que se colocam na saúde dos mais jovens. Se é certo que existe uma maior capacidade de detectar doenças crónicas mais cedo (e tratá-la com maior sucesso), Amil Dias relembra os factores ambientais e sociais que estarão a contribuir para haver, no futuro, adultos com comorbilidades mais cedo. E alerta também para as dificuldades no processo de transição dos cuidados médicos pediátricos para o “mundo adulto”. Leia também a primeira parte desta entrevista, aqui, que se debruça sobre o vírus sincicial respiratório.


    A mortalidade infantil em Portugal diminuiu de forma muito significativa no último século. Chegou a rondar os 6% no final dos anos 70; agora está nos 0,2%, o que é um valor extremamente baixo, mesmo à escala mundial. Atribui essa evolução favorável às vacinas, ao saneamento básico ou ao papel da Pediatria e contributo dos médicos pediatras?

    A resposta não é simples. Com as devidas diferenças, é um pouco como na Fórmula 1. Há 30 anos, um tipo mudava o tipo de pneus, e ganhava dois segundos. Ou mudava a suspensão, ou o que seja, e ganhava mais dois ou três segundos. Hoje, fazem investimentos milionários nos túneis de vento, no deflector, enfim, num pisca qualquer, para ganhar um milésimo de segundo. Há 30 anos, foi-nos fácil modificar o panorama da mortalidade infantil sobretudo porque houve um senhor chamado Torrado da Silva, que foi encarregado pelo Ministério da Saúde de ir pelo país discutir com as várias maternidades dos hospitais onde é que havia condições para as criancinhas nascerem com segurança. E este médico viu que não havia condições em muitos sítios, ora porque as instalações não eram adequadas, ora porque o movimento anual não permitia manter competências. E pelo simples encerramento de maternidades de maior risco, e em coordenação com os outros; pela implementação do programa de vacinação infantil; pela criação da especialidade de Medicina Geral e Familiar, conseguiram-se avanços fantásticos.

    Mas a evolução tem um limite…

    É claro. Quando a curva começa a espremer, a espremer… O básico e aquilo que garante qualidade de vida à grande maioria das crianças, isso está perfeitamente consolidado. Hoje, para conseguirmos um pequenino avanço temos de seguir técnicas muito mais sofisticadas, porque continuam a nascer crianças de elevado risco – sejam os grandes prematuros, sejam aquelas com doenças metabólicas graves. Para conseguir que estas crianças sobrevivam é preciso investimentos tremendos. Há doenças, nomeadamente as metabólicas, em que se necessita de gastar milhões para ganhar uns anos da vida. Portanto, a resposta à pergunta: é possível melhorar, só que é cada vez mais complexo, mais caro e sofisticado conseguir uns pequeninos avanços.

    Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos.

    Nos casos de doenças congénitas ou metabólicas sabemos que, há uns 20 ou 30 anos, as crianças acabavam por morrer ao fim de uns meses ou de poucos anos, mas agora podem ter uma sobrevida muitos anos. Mas envolvendo uma grande complexidade no sistema de saúde e com um custo brutal, não é?

    Por exemplo, a fibrose cística era uma doença que matava as crianças no fim da infância ou no início da adolescência. E hoje chegam à idade adulta. E como esta, há uma lista enorme de situações. Portanto, houve de facto um avanço tremendo, mas essencialmente à custa de medidas básicas que influenciaram a grande maioria da população. De facto, neste momento, para conseguir pequeninos avanços, temos de ser muito mais sofisticados.

    As mortes por malformações congénitas eram muito frequentes há algumas décadas. Hoje, com os diagnósticos durante a gestação pode-se fazer interrupções da gravidez se se detectarem problemas. Tem ideia de quantas interrupções se fazem por este motivos em cada ano?

    Não, não sei. Existem seguramente dados sobre isso, mas não os tenho… É uma questão mais do domínio dos cuidados obstétricos, e eu não faço ideia dos números.

    Diz-me muitas vezes que é contra-natura os pais enterrarem os filhos, mas há um século quase todas as famílias tinham de fazer funerais de crianças. Por exemplo, nos anos de 1930, cerca de 40% das mortes em Portugal era de crianças com menos de cinco anos. Agora, ronda 0,25%, mas existe um medo constante em redor das crianças…

    As crianças tornaram-se hoje um bem muito mais precioso do que eram há 50 ou 60 anos. Nessa altura, os casais tinham quatro, cinco, seis, oito, nove, dez filhos; sabiam que um, dois ou três se calhar ficavam pelo caminho, mas os outros iam aguentando. Ajudavam na agricultura ou no comércio; enfim, onde os pais trabalhavam. E, portanto, os filhos tinham este peso também de contribuição social; eram um investimento de retorno relativamente rápido. Hoje, os casais têm zero, uma, duas crianças… Quem tem três crianças, tem uma família enorme. E, portanto, nestas novas circunstâncias, as crianças passaram a ser um bem muito mais precioso. E ainda bem que assim é. E, naturalmente, quando se perde a vida de uma destas crianças, isto é uma tragédia enorme para a família e para a sociedade.

    Mas nem tudo está bem com as nossas crianças e adolescentes, apesar dos avanços de que já falou…

    Temos, de facto, do ponto de vista social, um problema que me preocupa muito mesmo, e já tentei sensibilizar as autoridades, mas não tive muita sorte… Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas, seja a obesidade, seja doenças alérgicas, inflamatórias, endócrinas. Temos um aumento da prevalência de várias doenças que conhecíamos na idade adulta e que hoje vão invadindo também a população pediátrica. Isto quer dizer que daqui a 10 ou 20 anos vamos ter um peso significativo de doenças crónicas em adultos jovens.

    Como já sucede muito nos Estados Unidos?

    Pois. E o tratamento para cada uma destas doenças é cada vez mais caro. Portanto, daqui a 20 anos teremos um peso de adultos jovens com doença crónica. E com custos de saúde significativos. Provavelmente, todos com declarações de deficiência e redução de obrigações fiscais, e por aí adiante. Vamos ter depois, cada vez mais, uma população idosa com morbilidades próprias e a exigir os cuidados de saúde, os quais têm direito pela vida toda em que contribuíram. Aquilo que há muitos anos era a chamada pirâmide etária, neste momento já é uma pirâmide invertida, e ainda por cima com o peso da doença a começar muito mais cedo. E eu não sei muito bem quem é que vai pagar isso tudo.

    Esses problemas advêm sobretudo da nutrição?

    Tem a ver com várias coisas. Hoje, nós sabemos muito – não sabemos tudo, mas sabemos cada vez mais – sobre factores precoces de risco. Sabemos que a maneira como se nasce, o facto de se ser amamentado ou não, e o tipo de medicamentos que se toma nos primeiros meses de vida, tem uma influência que pode ir a dezenas de anos de distância. E, particularmente, os dois primeiros anos de vida são um período de extrema vulnerabilidade e de risco, que pode condicionar riscos para crianças em idades mais avançadas, e também na vida adulta. E eu acho que não estamos a investir adequadamente nessa área, e isso devia ser devidamente ponderado.

    Em que aspectos?

    Por um lado, estamos a formar pediatras hospitalares que conhecem doenças complicadíssimas e sabem fazer coisas sofisticadas, e que competem tranquilamente com especialistas de outros países. Mas, pelo menos metade desses pediatras quando acabam a sua formação, dizem: “eu não estou para esta vida hospitalar tão pesada, eu prefiro ir trabalhar na clínica tal e ganhar a minha vidinha sem me chatear tanto“. E o que vão fazer nessa clínica é pediatria básica, pediatria de prevenção de cuidados de saúde, para o quais não receberam formação sólida, que hoje é possível oferecer. Portanto, estamos a formar profissionais desfasados; ou pelo menos uma parte. É evidente que precisamos de intensivistas, de cardiologistas, enfim, de especialistas de ponta e que saibam tratar coisas complexas. Mas precisamos também de ter a noção que uma boa parte destes médicos vão trabalhar em medicina de crianças saudáveis; e que deveriam ter recebido uma formação cuidadosa para, enfim, tentar minimizar tanto quanto possível os factores de risco de doença crónica. E isto não está a ser feito.

    O que é preciso fazer?

    Era preciso que os dois primeiros anos de vida das crianças fossem particularmente protegidos através de profissionais que tivessem recebido uma formação específica. Os médicos de Medicina Geral e Familiar são profissionais seguramente excelentes, mas que não receberam essa formação. Os pediatras são médicos excelentes e não receberam essa formação. Enfim, são conceitos que todos nós conhecemos das muitas reuniões e do que estudamos. Mas uma coisa é eu ter esta noção em geral; outra coisa é receber uma formação específica sobre isso. Nenhuma criança fica com uma doença inflamatória do intestino ou uma alergia por ter tomado um antibiótico em determinado momento dos primeiros meses de vida; se não tivesse tomado se calhar tinha morrido da doença infecciosa e a situação acabava ali. Mas, sabemos que estatisticamente, determinadas práticas condicionam um risco maior. E, portanto, isto devia obrigar-nos a ser mais cuidadosos e, enfim, ter sempre esta perspectiva global em vista. E ver o que é que se ganha e o que é que se perde. Por exemplo, a prática que houve, durante muitos anos, de um menino ir à urgência, tinha febre, chorava, tinha o ouvido vermelho e saía com antibiótico, se calhar tem de ser revista. Tem de se ser mais parcimonioso.

    Deduzo que, na sua opinião, isso se aplique também às vacinas contra a covid-19, onde teria sido mais sensato uma maior ponderação em relação às crianças e jovens. Foi um dos profissionais de saúde que participou num abaixo-assinado a pedir a suspensão da vacinação de crianças, tendo em conta o risco-benefício…

    A história da covid-19… Eu julgo que, neste momento, felizmente, o assunto está encerrado.

    Eu não sei se está encerrado. Aqui em Portugal, no caso dos adolescentes e crianças, talvez. Mas noutros países vacinam-se crianças com seis meses…

    Não queria ser eu a reabrir essa discussão. Todavia, a história da covid-19… Todos nós fomos confrontados bruscamente com uma situação inteiramente nova para a qual ninguém no Mundo estava preparado. Quer dizer, havia alguns teóricos que tinham imaginado que um dia haveria uma pandemia não-sei-do-quê, mas em termos práticos ninguém estava, e os serviços não estavam, preparados para isto. E, portanto, houve um pânico inicial, e justificável, porque morreu muita gente; mas depois foi uma espécie de formação em exercício. E a situação que nós temos hoje, felizmente, é de as variantes em circulação terem uma alta difusão mas uma letalidade relativamente baixa, embora de maior risco em determinados grupos etários ou com outras doenças. E, exactamente pela mesma razão que se recomenda a vacinação contra o pneumococo ou contra a gripe a determinados grupos etários, para a covid-19 a lógica é a mesma.

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    Portanto…

    Em relação à vacinação da população infantil, houve algum pânico; houve a ideia de que vacinando as crianças se prevenia porque se acreditava que as crianças eram o reservatório da doença, e assim não iriam contagiar ninguém. Aquilo que se veio a verificar, com documentação, é que, de facto, as vacinas não foram testadas para a prevenção da difusão. Isto é, poderiam ter alguma eficácia em evitar que o próprio ficasse doente, mas não impediam que ele passasse a doença aos outros. E, portanto, surgiu o argumento de que vacinando as crianças – por serem responsáveis pela difusão da doença – se controlava a difusão… Agora dizem: “bom, de facto, quer dizer, isto não foi testado“. Neste momento, a lógica das vacinas é a de proteger o próprio. Eu tomo a vacina contra a cólera para não apanhar cólera, se for a um país onde a cólera existe. Esta é a lógica global das vacinas, com pequeninas excepções, como sucede com a da rubéola, por exemplo. Ora, se a doença nas crianças não era um problema grave, então qual era a lógica de as vacinar? “Ah, é para não contagiar“, diziam. Mas, então, afinal o que se viu é que a vacina não impedia o contágio. É preciso que nos falem com verdade. Como se costuma dizer, não nos atirem areia para os olhos.

    O Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos tem reunido e falado sobre estas questões, ou não?

    Vai desculpar, mas, enfim, esses assuntos internos… Os Colégios de especialidade são órgãos consultivos da direcção da Ordem dos Médicos. E como tal, sempre que os colégios são confrontados com alguma situação, ou por solicitação de corpos directivos da Ordem, ou porque se deparam com alguma situação de preocupação especial, elaboram documentos internos que submetem ao Conselho Nacional e ao bastonário. E depois cabe ao Conselho Nacional apreciá-los, e convocá-los ou não. As agendas de trabalho dos colégios são assuntos que vão decorrendo das condições que existem, mas são submetidas internamente à direcção.

    Independentemente de querer falar sobre isso, pode-me dizer se sente que, antes da pandemia, havia maior liberdade de debate e de discussão sobre questões de saúde pública? Tanto no seio da Ordem dos Médicos como fora?

    Havia seguramente menos confrontação, porque pisávamos todos um terreno mais conhecido do que esta situação [da pandemia] que, de repente, saiu completamente do controlo. A Ordem dos Médicos provavelmente precisará – na sua renovação, e os seus corpos vão ser renovados muito brevemente – de analisar a transparência do funcionamento. E uma gestão transparente de documentação. Todos os colégios e os órgãos técnicos da Ordem submetem determinados documentos à direcção, e depois cabe à direcção, como lhe disse, aprová-los ou não. E, enfim, gerir as agendas conforme entende que o deve fazer. Mas sempre houve situações em que uns pensavam de uma maneira e outros pensavam de outra. Acontecem seguramente situações em que a opinião desta especialidade é num determinado sentido e a opinião de outra especialidade é num sentido diferente. Por exemplo, a questão da criação da Medicina de Urgência é um assunto que não é pacífico. Os maiores colégios dentro da Ordem dos Médicos têm uma opinião diferente da maioria dos outros colégios.

    Hoje pressente-se que há uma espécie de veto de gaveta, que determinado tipo de pareceres chegam ao bastonário e não vão ao Conselho Geral. Isso também aconteceu com os outros bastonários?

    Não sei dizer. Eu só conheço a minha “paróquia” [Colégio de Pediatria]. Não tenho uma visão global para ter uma opinião informada.

    Mas houve pareceres do Colégio de Pediatria que nunca foram desengavetados?

    Repare, há numerosas situações com as quais a Ordem dos Médicos lida no dia-a-dia, onde o ponto de vista de determinada especialidade pode colidir com o ponto de vista de outra especialidade. Por exemplo, em relação à criação de algumas áreas de subespecialidade. Portanto, o conhecimento médico vai evoluindo; costuma dizer-se que um tipo começa por saber quase nada sobre quase tudo, e depois vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos, até que um dia sabe quase tudo sobre quase nada. E o conhecimento médico tem muito disso. Há áreas em que a tecnologia de diagnóstico, de terapêutica, da fisiopatologia, avançou com tal rapidez, e com tal profundidade, que é impossível dominar todos os assuntos. No caso da pediatria é um pouco como a Medicina Interna das crianças. Toda a gente compreende que se um tipo está doente do coração, tem um cardiologista; se está doente da “tripa“ tem um gastroenterologista, enfim; e por aí adiante. A pediatria era vista como a especialidade dos leitinhos e das papinhas.

    E não é…

    Ora, não é. É uma medicina interna do grupo etário com uma diferenciação extrema em numerosos domínios. E por isso faz sentido, do nosso ponto de vista, que haja médicos que se dedicam mais à nefrologia ou à oncologia pediátricas porque é diferente. E por isso nós defendemos que haja subespecialidades em determinadas áreas em que se justifica. E isto colide com o ponto de vista de colegas da especialidade paralela de adultos, que acham que eles é que vão a todas. E, por exemplo, a criação da subespecialidade de alergologia pediátrica é uma situação de conflito extremo, que chegou até aos tribunais! Há anos criou-se um ciclo de estudos especiais para alergologia pediátrica – portanto para pediatras que se quisessem dedicar-se especificamente a isso e que durante dois anos se dispusessem a trabalhar especificamente nessa formação –, e o Colégio de Alergologia dos adultos tentou impugnar em tribunal. Portanto, há interesses que são contraditórios mesmo no interior da Ordem dos Médicos. E pelos motivos que bem conhece, e não precisa que seja eu a explicar-lhe.

    [risos] Bom, na verdade a própria Sociedade Portuguesa de Pediatria, é quase como uma…

    É uma federação… e hoje é cada vez mais.

    Com idade inferior a  18 anos, em Portugal temos um pouco menos de dois milhões de pessoas, portanto 20% da população. As complicações de saúde em idade pediátrica são assim tantas que justifique tanta subespecialização?

    Sim, e numas áreas mais do que outras. Repare; há um número importante de doenças que começam cedo, cada vez mais cedo. Têm a ver com a exposição ambiental, que se vai modificando; mas também com factores genéticos. Se eu pegar no caso, por exemplo, da doença inflamatória do intestino – como a doença de Crohn ou a colite ulcerosa –, num adulto ou numa criança são quadros substancialmente diferentes. A componente genética é claramente mais importante quando a doença aparece aos cinco ou aos 10 anos do que quando aparece aos 40. E é preciso ter isto em devida ponderação. As crianças com doenças congénitas que precisam de transplante de medula óssea – e que são por imunodeficiências – precisam de uma medicação diferente da dada ao tipo que faz um transplante porque tem um cancro. Se não houver este conhecimento específico – e do tipo de medicamentos que se usam antes e depois em cada um destes casos –, os resultados naturalmente não são satisfatórios. Por exemplo, numa área que domino melhor: a colite ulcerosa num adulto geralmente é uma colite segmentar, de uma pequena porção do intestino grosso, enquanto a grande maioria das crianças com uma colite, esta envolve todo o intestino grosso. O risco cirúrgico e de complicações é diferente. Isto é verdade também para as outras áreas.

    As crianças e os jovens estão agora menos saudáveis do que estavam há dez ou vinte anos atrás?

    Não acho que estejam menos saudáveis. Há mais doenças com expressão precoce; há mais diagnóstico precoce. Portanto, há situações que há uns anos eram diagnosticadas ao fim de cinco ou seis anos de doença e que hoje são diagnosticadas muito mais cedo. Por isso, não tenho uma resposta clara sobre se há mais ou não. Em algumas doenças há seguramente mais, mas em relação a outras há mais conhecimento e, portanto, há uma identificação mais precoce, e há condições de tratamento mais eficazes.

    É um bocado como aquela velha piada: não há pessoas saudáveis; só há pessoas mal diagnosticadas…

    [risos] É isso…Um tipo são é um doente mal estudado… Deixe-me dar mais um exemplo também muito corrente: a doença celíaca. Os pediatras conhecem a doença celíaca há uma data de anos, e os médicos dos adultos começaram a conhecê-la há muito menos tempo, porque os doentes adultos nem sequer iam ao gastroenterologista. Andavam no reumatologista, porque tinham dores nas articulações; no hematologista, porque tinham anemia; na ginecologia, porque não conseguiam engravidar. Enfim, tinham manifestações que não apontavam para a origem real do problema e andavam noutras áreas. E como este, há vários outros exemplos que se podem citar.

    Antigamente, se as crianças e adolescentes não estivessem mesmo doentes, não iam com regularidade ao pediatra.

    Claro. Também o facto de haver um acompanhamento não só na doença, mas também na saúde, permite que alguns diagnósticos se façam mais precocemente e, portanto, que haja tratamentos mais eficazes. Em algumas doenças significa que se anda mais tempo a ser tratado, mas também se ganhou alguma qualidade de vida.

    As alterações sociais e ambientais – por exemplo, a poluição ou agora haver mais população urbana do que rural – vieram criar uma maior panóplia de eventuais problemas de saúde na infância?

    Sem dúvida nenhuma, e há estudos interessantíssimos sobre essas matérias… Há um colega canadiano que se dedica a estudar especificamente a epidemiologia da doença inflamatória do intestino, e que estuda grupos populacionais, tanto da população local canadiana como de grupos de imigrantes; e em que se mostra claramente que os imigrantes da África ou da Ásia quando emigram para o Canadá têm uma prevalência baixa da doença inflamatória intestinal; mas os seus filhos que nasceram no Canadá, e que comem o que comem os canadianos, têm um aumento dramático da prevalência desta doença. Quer dizer, têm a mesma genética, mas têm uma exposição diferente e o aumento da prevalência dessa doença é enorme. Garantidamente que a nossa exposição ao ambiente condiciona toda a nossa biologia. Ganhamos umas coisas, perdemos outras.

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    Se os agentes ambientais actuarem na fase de crescimento, isso é um factor de agravamento? Por exemplo, é indiferente, ou é pior, começar-se a fumar aos 15 anos ou começar-se a fumar aos 25 anos?

    Uma pessoa cresce mais e mais depressa nos primeiros dois anos de vida do que no resto da vida. E, portanto, numa fase de crescimento rápido, se houver, no início da adolescência, alguma doença que influencie a capacidade de crescimento, obviamente que as consequências são muito mais graves. Graves em termos de crescimento.

    Sim, mas ao fim de 20 anos a fumar, é indiferente ter começado aos 15 ou aos 25?

    O efeito é cumulativo. Determinados estímulos, como por exemplo o tabaco, são irritantes das mucosas, do epitélio respiratório, e causam algum tipo de displasia e de alteração. Quanto mais o agredir, maior é o risco de haver uma linhagem celular que se afasta do que devia e levar a consequências mais graves. É pouco provável que alguém tenha cancro do pulmão por ter fumado um cigarro. Mas se fumar não sei quantos anos, enfim, o risco é real, para além de doenças vasculares e de outras complicações.

    Há pouco estávamos a falar sobre a questão dos pais serem cada vez mais superprotectores. Vê que os jovens têm maiores riscos, sobretudo ao nível da adolescência, por exemplo no consumo de álcool ou de tabaco… Onde se deveria apostar mais para que as crianças e os adolescentes venham a tornar-se adultos mais saudáveis do que nós?

    [risos] Se eu soubesse responder-lhe a isso em 30 segundos, tinha ganhado o Prémio Nobel… Bom seria que houvesse alguma resposta mágica para isso.

    green and silver stethoscope on white envelope

    Mas quais deveriam ser as prioridades?

    Aquilo que cada um de nós é depende da genética, dos traumas que se teve, dos amores e os desamores que se teve, com o sítio onde se trabalha, com os hábitos que se tem, com o que se come… Enfim, é uma equação tão complexa e com tantas variáveis que não há uma resposta simples. Em relação à acção possível dos pais, se estes forem superprotectores e tratarem o menino como um frasquinho de cheiro, e o menino vive infantilizado durante a vida toda, provavelmente vai ser um adulto inseguro, frágilzinho, que não é capaz de resolver problemas. Se os pais o deixarem ir para a varanda e fazer o que lhe apetecer, corre o risco de cair e partir a cabeça. Portanto, tem que haver senso, tem de haver uma intervenção multidisciplinar em muitos domínios. A questão, por exemplo, dos filmes e da televisão, da extrema violência: é evidente que se uma criança vir uma cena qualquer de violência sozinha, ou se um adulto estiver ao lado e lhe explicar que isto não se faz, e é um disparate porque causou mal a outras pessoas, ela vai aprendendo a contextualizar, vai aprendendo os valores que se devem prezar e o que é a transgressão. Portanto, é necessário que os pais sejam capazes de ajudar os filhos a crescer, mas compreendam que eles crescem. E que num belo dia têm que sair debaixo das saias dos pais.

    Mas os filhos cada vez saem mais tarde da tutela dos pais…

    A média nacional já ultrapassa os 30 anos [33,6 anos]… Há uns anos, na Escandinávia, aos 10 anos os pais diziam: “ó meu filho, vais lá para o alojamento do colégio e governas-te“. Gostar muito dos filhos é fantástico, mas convém perceber que eles têm de crescer e aprender a ter as suas próprias defesas e a resolver os seus próprios problemas. E, portanto, este equilíbrio, entre o que é prudente fazer e o que é disparatado e infantilizado, é muito delicado. Na pediatria, nós vivemos isso com alguma frequência nos doentes crónicos, quando os passamos para a consulta dos adultos. Se não tiver havido um processo de preparação progressiva – e não estou a falar ao nível dos médicos –, um dia entregamos os doentes aos médicos de adultos e os miúdos caem do céu aos trambolhões. Há anos, eu tinha uma consulta com um colega de adultos para os doentes que cresciam, e um dia ele telefonou-me a dizer que “já está aqui no consultório o fulano e eu lá fui, passei por ele e fiz-lhe uma festinha na cabeça“. Quer dizer, a um bebé de um metro e oitenta… E o meu colega olhou para ele, pasmado, e disse; “olhe que eu não lhe vou fazer isso“. Se não tivermos alguma cautela, os meninos passam para a consulta dos adultos e dizem: “então o meu papá não vem?“, e os pais ficam em pânico.

    Nota agora um certo “atraso no desenvolvimento” dos jovens?

    É uma infantilização, que é muito generosa num determinado momento, mas depois pode passar a ser um problema. E hoje a transição de cuidados é um assunto muito sério. Eu estive há pouco numa reunião a tratar disso, e vou estar em mais no próximo ano. Por um lado, nós vamos tentando que os adolescentes nessa fase sejam cada vez mais autónomos e que sejam eles a responder em vez de ser o papá ou a mamã; que sejam capazes de conhecer os seus problemas, os medicamentos que tomam… Mas os nossos colegas que tratam de adultos não estão, por vezes, preparados para os receber. E em algumas doenças nem sequer as conheciam, porque havia doenças que matavam na infância e, portanto, nunca chegavam aos dos adultos. Para algumas doenças metabólicas, há médicos de adultos que nunca tinham visto nenhuma.

    Não seria então mais sensato que, em vez de haver essa transição para determinado tipo de doenças, o pediatra continuasse a acompanhar esses doentes na fase adulta?

    Isso acontece. Há muitos anos, em 1988, fui pela primeira vez aos Estados Unidos a um congresso, e visitei um serviço que atendia jovens com doença digestiva, e perguntei à enfermeira com que idade é que eles faziam a transição para os adultos. E ela disse-me: “olhe, isso realmente é um problema; eles não querem ir e os médicos não os querem mandar, e por isso já combinámos que quando eles forem mais velhos que as enfermeiras têm de sair daqui“. Portanto, isto há 40 anos, não é? Este problema é muito antigo, existe em todos os sítios, e das duas, uma: ou cada um de nós, da mesma maneira que tem um bilhete de identidade, tem um médico que o acompanha até aos 80 ou 90 anos, ou então temos de definir que cada um trata ao seu nível de intervenção. De contrário, qualquer dia temos na sala de espera um bebé de seis meses e um velhinho de 80 ou 90 anos, ambos à espera de ser consultados pelo mesmo médico [risos].

    [risos] Aí é que não havia mesmo pediatras… Já agora, há pediatras suficientes, ou estamos com o mesmo problema que noutras especialidades?

    Aqui também a resposta não é simples. Serem suficientes ou não, depende daquilo que precisarmos. Eu tive um director de serviço nos anos 1980, que achava que as criancinhas deviam ter pediatra, tanto o filho do pedreiro como do juiz. E, portanto, os consultórios dos pediatras estavam cheios, não só de gente com muito dinheiro como de gente com menos dinheiro. Depois, com a implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o único sítio onde se encontra um pediatra é dentro de um hospital. E, portanto, isso também explica porque é que os serviços de urgência estão atafulhados. Se acharmos que todas as crianças, pelo menos naquele período mais vulnerável, nos primeiros dois anos de vida, precisam de ter um médico com competências específicas de pediatria, talvez haja margem para mais alguns pediatras. Quem achar que os pediatras devem ficar à espera que alguém os procure nos hospitais ou nas clínicas particulares, provavelmente teremos pediatras que cheguem. O nosso problema não é tanto como em algumas especialidades – que têm carência de especialistas – é mais a sua distribuição e é a maneira como o SNS os atrai. Quando acharam, há uns anos, que o SNS devia ser gerido como uma qualquer empresa, a nível de ofertas e atractivos, façam, mas paguem.

    five children sitting on bench front of trees

    Hoje é muito fácil arranjar uma consulta de pediatria no privado, mas no SNS deve ser muito mais complicado, não?

    Não tenho também uma resposta muito clara. Depende da forma como cada serviço se organiza, mas julgo que não é muito complicado. Em algumas áreas, provavelmente mais do que noutras, mas desde que haja referenciações adequadas é fácil, mas há áreas em que realmente a resposta ainda é abaixo do que seria desejável.

    Qualquer criança e jovem em Portugal tem hoje pediatra e médico de família?

    Depende das zonas do país. Como sabe, há uma parte da população ainda a descoberto dos médicos de família. Há áreas onde os serviços são mais estruturados e têm maior capacidade de resposta. Noutras, infelizmente, menos.

    Transcrição de Maria Afonso Peixoto


    A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.

  • O vírus sincicial respiratório causa ‘uma doença banal, muito banal’

    O vírus sincicial respiratório causa ‘uma doença banal, muito banal’

    Presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias fala sobre o “vírus do momento”: o vírus sincicial respiratório (VSR), que causa uma das mais frequentes infecções nas crianças de tenra idade. Apesar disso, ganhou nas últimas semanas um mediatismo nunca visto. Em entrevista ao PÁGINA UM, Amil Dias faz notar a coincidência no incremento da “visibilidade” do VSR com o desenvolvimento de vacinas pela indústria farmacêutica. Nesta conversa, a primeira parte de uma longa entrevista, Jorge Amil Dias alerta para os efeitos secundários dos confinamentos nas crianças, durante a pandemia, dando o exemplo das hepatites. E diz mesmo que não podemos ter a ideia que conseguiremos erradicar os vírus e viver sem doenças.


    Justifica-se o alarme social dos últimos dias sobre os internamentos de crianças por causa do vírus sincicial respiratório (VSR)?

    O VSR é uma das várias infeções que todos os anos ocorrem sobretudo nos meses frios, e que afecta principalmente a população mais jovem. Os lactentes e as crianças pequenas, habitualmente. Isto acontece todos os anos. Mas não se consegue ter um perfil rigoroso de cada um dos agentes individuais que causam essas infeções respiratórias. Temos os laboratórios sentinela – uma rede que comunica os seus dados –, mas não existem em todos os hospitais. Por isso, não é certo sequer que todas as crianças com infecções, seja o VSR o agente claramente identificado, e nem é seguro que os laboratórios reportem todos os resultados.

    Estamos a falar apenas de crianças internadas nos hospitais…

    Sim, mesmo nos hospitais. A identificação de agentes infecciosos – e não só nas infecções respiratórias, também nas diarreias, por exemplo –, habitualmente só se faz quando há um registo epidemiológico sistemático, o que também não é o caso, ou se a gravidade da doença impõe algumas decisões terapêuticas, se será vírico, se será bacteriano. Nessas situações, os dados laboratoriais ajudam a tomar decisões.

    Na base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do SNS, observa-se que, antes da pandemia, tínhamos picos mensais, sobretudo no Inverno, de cerca de 1.800 internamentos de crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. Consegue-se saber qual a prevalência do VSR?

    Não, claramente não. Seria preciso que as 1.800 crianças tivessem sido submetidas a testes de diagnóstico, e que os laboratórios pesquisassem especificamente esse vírus. Quando se pede um exame bacteriológico, ou um exame virológico, não se pede um exame em abstracto. Se eu mandar fazer um exame numa situação de diarreia aguda para um laboratório, eu tenho de indicar quais os agentes que devem ser pesquisados. E, portanto, os laboratórios pesquisam por três, ou quatro, ou cinco agentes mais relevantes, que podem estar a causar doença naquele contexto. É necessário que a pesquisa seja activa para os vários agentes, e isso nem sempre é feito.

    Portanto, somente num quadro clínico já mais grave ou persistente, ou que se agrave, é que se vai fazer esse tipo de pesquisa, certo?

    Sim, e nos laboratórios ou nos serviços com recursos para o fazer. Porque nem todos os laboratórios o conseguem.

    E todos os hospitais conseguem a identificação do VSR?

    Podem não ter. Quer dizer, a tecnologia vai estando cada vez mais acessível, mas não existe de forma sistemática em todos os hospitais, e não é feita de maneira sistemática em todas as crianças admitidas.

    Ou seja, não se consegue dizer se a prevalência do VSR é de 10%, de 20% ou de 30% dos internamentos em pediatria?

    Não, e os laboratórios mais bem equipados e mais motivados para fazer essa pesquisa encontram-se nos serviços para onde as crianças vão sendo transferidas, conforme a gravidade das situações. Por isso, a amostragem nos laboratórios dos hospitais centrais sofre sempre de um enviesamento, é a ponta do icebergue, porque também têm doentes mais graves transferidos dos outros hospitais, enquanto estes mantêm os doentes da sua zona de residência com um quadro mais ligeiro.

    Tem conhecimento de se estarem a realizar agora mais análises para detecção do VSR do que antes, e por isso há um maior número de casos?

    É provável. Não tenho uma resposta informada sobre isso, mas provavelmente sim. A tecnologia de detecção vai estando cada vez mais acessível. Antes, há cinco ou seis anos, as técnicas de PCR eram difíceis de executar em alguns laboratórios, mas hoje há kits e uma simplificação de métodos que permite que esteja mais acessível a mais laboratórios.

    Em todo o caso, mesmo com enviesamento, pode dizer-se que o VSR causa uma doença banal, ou é uma doença rara que nos deve preocupar?

    Claramente, é uma doença banal, muito banal. Como todas as viroses de Inverno, é muito contagiosa; frequentemente contagiosa antes de ser sintomática, o que quer dizer que quando a criancinha tem febre, já contagiou os outros meninos todos do infantário. E, portanto, quando fica em casa, não é para não contagiar os outros, porque os outros já foram todos contagiados.

    E também tem uma baixíssima letalidade, certo?

    Tem. Mas há grupos de risco, e por isso existe um programa organizado para administrar a essas crianças, nomeadamente prematuros ou com cardiopatias congénitas, uma profilaxia com um medicamento especial [anticorpos monoclonais] para reduzir o risco de infecção. Nesses grupos de risco, a infecção pode ter um carácter mais agressivo e, eventualmente, até fatal. Esse programa para a VSR já existe há anos para esse grupo de risco específico. Não existe ainda, neste momento, uma imunização ou prevenção universal, mas também convém colocarmos as coisas no devido contexto. O ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.

    Em todo o caso, durante o período da pandemia, o número de internamentos por doenças do aparelho respiratório em crianças desceu significativamente…

    Claro, se as crianças ficaram em casa e não conviviam com as outras…

    E também ao nível da mortalidade. De acordo com dados oficiais, desde Março de 2020 até Setembro de 2022, morreram 17 crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. No período homólogo anterior, antes da pandemia, morreram 42 crianças. Portanto, a superprotecção ao SARS-CoV-2 fez diminuir também o risco de outras doenças do aparelho respiratório..

    Certamente que sim, tendo havido menos exposição…

    Então, aparentemente, todos estes confinamentos salvaram algumas vidas. Acha então que esse é o modelo que devia ser sempre usado agora e para todo o sempre? Ou seja, impomos o risco zero.

    Não, porque tudo isto tem um preço nas crianças. O preço do confinamento foi terem morrido algumas crianças por hepatites fulminantes e outras a necessitarem de transplantes. E, eventualmente, um aumento de alergias. Enfim, tudo isto é um emaranhado tão complexo de relações e correlações – o sistema imunitário, a genética e o ambiente – que, quando manipulamos um dos factores, não sabemos muito bem para que lado é que a coisa vai desequilibrar. É um bocado como quem joga o Mikado. Por isso é que convém, neste caso especificamente do VSR, ter esta noção sensata. O VSR existe há imenso tempo, anda por cá e todos os anos afecta e infecta crianças. Este ano, não me parece que a situação seja particularmente diferente, porque o que aconteceu foi um pico mais precoce de ocorrência de infecções. Tem havido, em vários hospitais e serviços, internamentos de crianças com VSR.

    Mas tornou-se este ano mais mediático…

    Este ano, o interesse particular por esta situação, e por este agente específico, tem a ver com a indústria farmacêutica, que se mexeu, e que desenvolveu novas drogas. E, portanto, as coisas começam a ser mais visíveis, porque há quem queira dar-lhes visibilidade.

    Sim, pelo menos a Pfizer, a GlaxoSmithKline e a Sanofi têm, ou estão a desenvolver, vacinas… Tínhamos uma doença apenas com um tratamento preventivo por anticorpos monoclonais, e de repente, abre-se um leque de possibilidades de vacinação, provavelmente também em massa. Acha que estas coisas estão relacionadas?

    [risos] Cada um de nós terá a sua opinião sobre esse assunto, não é? Se o vírus não apareceu só agora; se ocorre como já ocorria nos outros anos; e se a realidade epidemiológica exacta não era bem conhecida, e agora é mais conhecida, porque o assunto está mais na crista da onda; e se a indústria se interessou e desenvolveu produtos que visam especificamente essa doença; enfim, é como diz o outro: se tem cornos, dá leite, e diz mú; não sei que bicho é que será, mas a gente imagina.

    five children sitting on bench front of trees

    Qual deve ser o comportamento ou a postura das autoridades de saúde relativamente a esta situação, tendo em conta que teremos essas vacinas disponíveis? Vacinar quase 100 mil crianças em Portugal por ano, tendo em conta que são as que nascem durante esse período?

    Há várias vertentes na resposta a essa questão. Obviamente que todos gostaríamos de evitar que todas as crianças adoecessem. E, particularmente, doenças infecciosas, se tivermos maneira de evitar. Todavia, se nós déssemos este ano a vacina contra o VSR a todas as crianças que nascem, as crianças não iam deixar de ter infecções respiratórias. Porque o vírus não vai desaparecer. Aquilo que aconteceria era aparecerem no próximo ano mais infecções por adenovírus, ou por vários outros agentes. A natureza vai-se ajustando, e se falta uns, aparecem outros. Portanto, é sempre correr atrás de uma quimera. Então, primeiro: não é possível impedir que as crianças tenham infecções respiratórias. Segundo: devemos implementar um programa de vacinação contra a infecção por VSR, uma vez que estas infecções ocorrem muitas vezes em bebés muito pequenos, que ainda não receberam sequer imunizações? Repare que as imunizações muito precoces são pouco eficazes, porque as crianças têm anticorpos durante os primeiros seis meses de vida de origem materna. Podia ser interessante, e não sei se a indústria irá fazê-lo, termos uma vacina para as grávidas, de forma a que os bebés nos primeiros meses de vida estivessem mais protegidos. Mas, mesmo que isso venha a existir, é natural que as autoridades de saúde façam uma análise, como qualquer empresa faz, de ver quanto é que se gasta e o que é que se ganha com isso. O dinheiro não é inesgotável. Se fôssemos gastar – e isto é um número completamente ao acaso, sem qualquer correspondência com a realidade – 5 milhões de euros, ou 10 ou 20, ou o que seja, na prevenção dessa infecção, é preciso ver o que é que se ganha com isso, porque esse dinheiro faltará para alguma outra coisa importante.

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    Deve fazer-se uma análise de custo-benefício…

    E para isso é que os epidemiologistas e responsáveis pela saúde pública têm sempre de fazer as análises entre o que se ganha e o que deixa de se fazer em alternativa. E essa análise de custo-benefício que tem de ser feita para reduzir o risco. Deixe-me dar-lhe um exemplo: há anos, surgiu uma vacina contra a hepatite A. E aquilo que se verificou é que realmente a hepatite A diminuiu imenso; enfim, nuns países mais do que noutros. Mas fazendo uma análise depois mais minuciosa da evolução da hepatite A, o que se verificou é que aquela diminuição brutal não terá decorrido só da vacinação, mas de melhorias nos saneamentos e na higiene das casas e das cidades. Ora, ao melhorar os saneamentos, não só se melhorou a hepatite A, como uma data de outras situações. Portanto, tem sempre de se fazer uma análise sensata. É muito fácil desatar a berrar a dizer: “vamos agora vacinar as criancinhas todas contra o VSR”; e depois, daqui a um ano: “vamos vacinar as criancinhas todas contra o adenovírus”; e daqui a dois anos, é contra outra coisa qualquer… a biologia e a vida são um bocado mais complexas do que agarrar num único factor e achar que aquilo é que muda a História da Humanidade.

    Então acha que aquele anúncio pelo médico Filipe Froes de que corremos o risco de sofrer uma pandemia tripla com covid-19, gripe e VSR, tem justificação de recearmos uma situação dessas?

    Este ano provavelmente vamos ter uma maior incidência de infecções, que não ocorreram há dois anos ou o ano passado. Houve um grupo populacional, particularmente de crianças, que não desenvolveram naturalmente imunidade contra esses agentes, sim. É provável que, se não apanharam nos últimos dois anos, apanhem este ano. E, portanto, que haja uma coexistência de vários agentes que as criancinhas de três anos se calhar teriam apanhado no ano passado; e este ano apanham e talvez apanhem mais do que um. Não sou epidemiologista, não tenho dados específicos, mas faz sentido que, tendo havido uma economia de infecções pelo isolamento em que as pessoas estiveram, este ano possa haver algum excesso. E agora, o que vamos fazer? Andar todos de máscara? Lá vamos discutir outra vez se as crianças não ficam com perturbações de desenvolvimento, porque não conseguem ver a cara das pessoas… Salta-se da frigideira para a fogueira, não é?

    Ou seja, veria com preocupação se à conta do VSR, agora se impusesse novamente máscaras nas escolas ou nos infantários?

    Como lhe disse, a História da Humanidade desenvolveu-se ao longo de milhões de anos, e nós fomos ajustando-nos ao ambiente onde vivemos. E quando desequilibramos bruscamente esta interrelação com o ambiente, criamos riscos. Deixamos de ter os bois e as galinhas a viver por baixo da nossa casa; mas um dos preços que se paga por isso é que há muito mais alergias. Não só por isso, enfim, por vários outros factores. Mas, isto para dizer que há alguns riscos e custos a assumir. Não podemos correr o risco de pensar que qualquer dia pegamos numa ementa e perguntamos às pessoas que doenças é que querem ter. E pronto, dizemos-lhes como hão-de viver…

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    Aliás, como vê este tipo de política de saúde que é mais puxada pelo mediatismo em detrimento das prioridades reais? Ou seja, antes era o SARS-CoV-2, agora surge o VSR…

    É um problema grave. Inegavelmente, em algumas circunstâncias, o mediatismo dos assuntos tem algum efeito. Todos se lembram que, há uns anos, havia uma enorme discussão sobre o tratamento da hepatite C, que era uma coisa caríssima e não podia ser. Até que um tipo foi para a Assembleia da República e deu dois berros ao ministro, e disse-lhe: “não me deixe morrer”. Pronto, a partir daí negociaram condições aceitáveis para iniciar o tratamento com enorme eficácia. Portanto, há momentos e situações em que as autoridades não respondem com a eficácia e a ginástica adequadas, e é preciso que a pressão da opinião pública influencie um pouco as coisas. Mas é desejável que sejam as autoridades competentes que antecipem os problemas e façam os estudos devidos, e expliquem de maneira clara como é que as coisas podem ser.

    Mas há limites…

    Sim. Eu podia dizer que só podem circular na rua automóveis de topo de gama que tivessem todos os sistemas de segurança possíveis. É evidente que isto iria diminuir imenso os acidentes e a gravidade, mas não está ao nosso alcance fazê-lo. Portanto, temos de gerir entre o desejável e o possível.

    Transcrição de Maria Afonso Peixoto


    Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.