A Direcção-Geral da Saúde determinou que se alguém falecesse com um teste positivo ao SARS-CoV-2 levava automaticamente com o carimbo de “morte covid”. Os registos dos internados na primeira fase da pandemia, que o PÁGINA UM tem dissecado, mostram 250 casos suspeitos que podem ter sido apenas anormais reacções a procedimentos médicos, ou pura negligência médica. Um total de 88 pessoas morreram nestas circunstâncias. Como raramente houve autópsias, a morte morreu solteira.
Um erro na operação de intubação numa unidade de cuidados intensivos do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte contribuiu para a morte de um doente de 61 anos em Abril de 2020. Este evento trágico foi único, mas o PÁGINA UM detectou muitos mais casos suspeitos de erros e negligência médica que estarão a ser escondidos sob o carimbo da covid-19, uma vez que, por regra, não são feitas autópsias nos óbitos confirmados por esta doença.
Estas suspeitas advêm da consulta à base de dados do Ministério da Saúde sobre os internamentos de doentes-covid, a que o PÁGINA UM teve acesso, e detecta-se através da codificação feita segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI).
Aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), esta codificação não apresenta apenas as doenças e comorbilidades de cada doente no seu processo clínico; também identifica, por exemplo, complicações de actos médicos e cirúrgicos, acidentes, erros, negligência e reacções inesperadas.
Este tipo de situações recebe, por norma, os códigos Y62 a Y84 da CDI, consoante a sua tipologia. Não estão aqui incluídos, embora haja largas dezenas de casos, os acidentes em hospitais como quedas da cama ou em casas de banho em doentes-covid, alguns fatais.
Numa análise detalhada à base de dados dos internamentos nos primeiros 15 meses da pandemia, entre Março de 2020 e Maio de 2021, contabilizam-se 250 doentes-covid com registos de reacções adversas após procedimentos médicos. Em alguns casos estar-se-á perante eventuais erros ou negligência médica. De entre os pacientes afectados, 88 morreram, ou seja, 35% – um valor cerca de 12 pontos percentuais acima da taxa de mortalidade dos internados sem este tipo de registos.
Nem todos os desfechos fatais terão sido devidos apenas a reacções adversas dos doentes ou a erros médicos – até pela grande debilidade e elevada idade de muitas das vítimas –, mas todos acabaram classificados como mortes por covid-19. Muito provavelmente as famílias nem sequer souberam aquilo que se passou dentro das portas do hospital.
O caso do doente do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que agrega o Hospital de Santa Maria – é um exemplo paradigmático.
À entrada nos cuidados intensivos em 22 de Abril de 2020, a sua situação já era grave: diabético tipo II, vinha com insuficiência respiratória e síndrome de desconforto respiratório decorrente de covid-19 diagnosticada, mas os médicos terão tido dificuldade em o intubar (surgindo essa referência com o código T884 da CDI) e o tubo orotraqueal acabou por ser mal colocado (código Y653). O homem sofreu um choque não especificado (R579) e morreu no dia seguinte ao internamento.
A esmagadora maioria dos registos mostra-se, porém, com referências extremamente vagas sobre a origem exacta do erro, acidente ou reacção anormal, não sendo assim possível concluir se se está perante uma situação incontornável ou imprevista, ou se se tratou de erro médico.
Por exemplo, na base de dados surgem 44 casos classificados com o código Y848, que se refere a procedimentos médicos que causaram reacções adversas tardias mas não especificadas. Noutros casos especificam-se a causa, embora pouco concretizando, como são as 32 reacções contabilizadas no decurso de procedimentos radiológicos (Y842) e as 32 reacções devidas a cateteres urinários (código Y848).
Existem também registos de efeitos adversos que, de forma clara, nada tiveram a ver com a covid-19, porque se deveram sim a actos cirúrgicos decorrentes de outros problemas. São exemplo disso os 16 casos classificados com o código Y831 (implantes de dispositivos médicos) e os 13 casos com o código Y832 (bypass gástricos com anastomose). Problemas na área da gastroenterologia, aliás, mostraram-se relativamente frequentes.
A falta de informação sobre o verdadeiro contributo destes procedimentos médicos para as eventuais mortes dos pacientes acaba, contudo, por ocultar eventuais negligências, tanto mais que o “carimbo” da covid-19 levou a que se prescindisse, na esmagadora maioria dos casos, à realização de autópsia. Uma morte com covid-19 foi, para a Direcção-Geral da Saúde, sempre uma insuspeita morte exclusivamente causada pelo SARS-CoV-2.
Aliás, na base de dados surgem nove estranhos casos com o código Y66, que significa que houve falta de administração de cuidados médicos e cirúrgicos. Destes nove, oito acabaram por morrer, sendo que sete foram no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.
O Hospital de Coimbra é aquele que contabiliza maior número de mortes atribuídas à covid-19 de pessoas com registo de reacções adversas ou eventuais erros médicos. No total, nos primeiros 15 meses da pandemia, contam 24 mortes, mas pelo código da CDI conclui-se que foram problemas decorrentes de cirurgias cardíacas ou de gastroenterologia. Nos hospitais de Lisboa registaram-se 22 mortes deste género, das quais nove no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Todas classificadas como covid-19.
No segundo ano da pandemia, as farmacêuticas “insuflaram” quase 1,3 milhões de euros para os “pulmões” da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. A norte-americana Pfizer deu uma “ajuda” de cerca de 370 mil euros, quase tudo para uma campanha generalizada de promoção de uma vacina – a pneumocócica – que a Direcção-Geral da Saúde só recomenda para maiores de 65 anos e grupos de risco.
A Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu 320.000 euros da Pfizer, na segunda metade do ano passado, destinada a desenvolver uma campanha de promoção da vacinação contra a pneumonia pneumocócica em pleno processo de vacinação contra a covid-19 entre a população jovem. Este apoio financeiro é o maior jamais concedido a uma sociedade médica por parte da indústria farmacêutica para um só “evento”, de acordo com os dados da Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed, uma base de dados que compila este tipo de informação desde 2013.
A mensagem da campanha – “Sou maior e quero ser vacinado” – remete exclusivamente para a vacina contra a pneumonia pneumocócica, cuja vacina é comercializada em Portugal sobretudo pela Pfizer (sob a marca Prevenar) e, em menor quantidade, pela Merck (sob a marca Pneumovax). Porém, a sua leitura remetia de imediato para a vacinação contra a covid-19. A campanha decorreu até à segunda quinzena de Dezembro, recorrendo aos órgãos de comunicação social, a outdoors e ao online. Os canais televisivos e as rádios acabaram por beneficiar bastante com os spots publicitários.
Campanha decorreu entre Setembro e Dezembro do ano passado
Saliente-se que a Pfizer já assegurou em Portugal a venda de vacinas contra a covid-19 no valor de 88.909.898 euros, de acordo com o Portal Base, mas em virtude da redução da actividade gripal – que “abre portas” para infecções bacterianas, como a causada pelo Streptococcus pneumoniae –, as vendas da sua vacina pneumocócica têm-se reduzido, embora nunca tenham ultrapassado muito os cinco milhões de euros por ano.
Ou seja, o financiamento da Pfizer à SPP para o desenvolvimento da campanha de promoção da vacinação pneumocócica – que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas recomenda a maiores de 65 anos e a grupos de risco maiores de 18 anos –, surge algo desfocada face aos montantes envolvidos e à população-alvo (toda a população) que supostamente pretende alcançar.
A pneumonia pneumocócica foi a causa de morte de 4.700 pessoas em 2019, mas 96% dos óbitos ocorreu em maiores de 65 anos. Na população com menos de 35 anos – que representa 34,9% da população portuguesa – registaram-se 12 mortes (0,26% do total), seis das quais com menos de 15 anos.
Um outro aspecto incomum desta campanha da SPP – presidida por António Morais, pneumologista do Hospital de São João (Porto), e que tem Filipe Froes como coordenador do Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória – é o reforço da parceria comercial com a Pfizer.
Em Portugal, esta farmacêutica atribuiu verbas para marketing às sociedades médicas através de duas subsidiárias: a Pfizer Biofarmacêutica Sociedade Unipessoal e a Laboratórios Pfizer. Entre 2017 e 2019, ambas deram à SPP apenas uma média anual de 10.183 euros. No primeiro ano da pandemia (2020), esse valor subiu para apenas 12.000 euros. No ano passado (2021) disparou para 358.500 euros – ou seja, cerca de 30 vezes mais do que o habitual.
Filipe Froes coordena o Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória da SPP.
Além da campanha de promoção da vacinação em 2021, a Pfizer atribuiu também um inédito apoio à SPP de 35.000 euros para o 37º Congresso Nacional de Pneumologia, que se realizou em Novembro passado na cidade de Albufeira, e que registou até um surto de covid-19 que atingiu 15 médicos, conforme noticiou o Observador.
O valor atribuído pela Pfizer num só ano à SPP não encontra paralelo em nenhum outro ano nem com outra qualquer farmacêutica. Antes de 2021, o valor máximo conseguido por esta sociedade médica de uma só farmacêutica situava-se em 205.338 euros, atribuído em 2017 pela italiana A. Menarini.
O ano de 2021 foi, aliás, bastante favorável financeiramente para a SPP, que parece ter encontrado um filão monetário com o surgimento da pandemia da covid-19. Embora fosse já uma das sociedades médicas portuguesas mais beneficiadas pelas farmacêuticas – que ajustam as verbas de marketing em função da facturação –, o ano passado foi excepcional: 1.298.422 euros, de acordo com o levantamento exaustivo feito pelo PÁGINA UM, tendo assim ultrapassado pela primeira vez a fasquia de um milhão de euros. Em relação ao ano anterior (2020), o crescimento destas receitas foi de 65%.
A Pfizer foi, com grande destaque, a farmacêutica mais generosa para a SPP em 2021, mas mesmo assim ainda nem sequer atinge o pódio no período 2017-2021. A alemã Boehringer Ingelheim ocupa a primeira posição, tendo doado 524.668 euros nos últimos cinco anos. Por exemplo, para patrocínio do recente Congresso Nacional de Pneumologia foram 113.400 euros. Segue-se a helvética Novartis, que deu uma média de quase 91 mil euros por ano no último quinquénio, e um total de 454.572 euros no período. Fecha o pódio de “mecenas” da SPP a portuguesa BIAL com 446.181 euros ao longo dos últimos cinco anos.
Verbas concedidas pelas farmacêuticas e empresas de produtos médicos à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021 (Fonte: Infarmed)
No total, de entre 30 farmacêuticas e empresa de produtos médicos, a SPP recebeu 4.349.011 euros no período 2017-2021.
No âmbito da investigação que o PÁGINA UM está a desenvolver sobre o financiamento das sociedades médicas, a SPP não mostrou disponibilidade, mesmo com insistência, para responder a um conjunto de questões nem quis fornecer informação financeira sobre as suas relações comerciais com farmacêuticas.
O administrador da Global Media e director da TSF, Domingos de Andrade, continua a assinar contratos comerciais, mesmo depois de alegadamente ser questionado pela entidade disciplinadora dos jornalistas. Desta vez, o PÁGINA UM detectou um contrato comercial assinado em 30 de Dezembro passado que pagou uma emissão radiofónica em directo sobre o Douro Património Mundial conduzida pelo histórico jornalista Fernando Alves.
O jornalista e director da TSF Domingos de Andrade (CP 1723) já assinou pelo menos mais um contrato comercial como administrador da Global Media desde que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) anunciou que lhe abriu um “processo de questionamento” por incompatibilidades.
Em reacção às denúncias públicas do PÁGINA UM sobre a envolvência de jornalistas – alguns dos quais directores de órgãos de comunicação social de âmbito nacional – na planificação, assinatura e execução de contratos comerciais, a CCPJ esclareceu em 22 de Dezembro passado estar “a analisar as situações descritas sobre o Público, a Global Media e Domingos Andrade para avaliar os pontos que são da sua competência e quais os que, não sendo, justificam a participação à ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social]”.
Director da TSF assinou contrato comercial para a rádio que dirige, destacando jornalistas para a sua execução
Esta entidade reguladora da actividade dos jornalistas adiantava ainda ter iniciado “também processos de questionamento aos referidos responsáveis”, ou seja, a fase inicial de um processo com vista a eventual processo de cassação do título profissional de Domingos de Andrade.
Recorde-se que os jornalistas estão impedidos de exercer “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”. A preparação, assinatura e execução de contratos comerciais constitui, sem margem para dúvidas, funções de “planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.
O PÁGINA UM tinha então detectado vários contratos comerciais assinados com autarquias por Domingos de Andrade, que acumula funções de administrador da Global Media, de director-geral de conteúdos deste grupo e de director da TSF. Ou seja, ele não apenas é jornalista; também dirige e coordena redacções.
Pouco mais de uma semana após a promessa da CCPJ, Domingos de Andrade demonstrou, na prática, uma completa indiferença em relação às incompatibilidades dos jornalistas. Com efeito, a sua assinatura consta num contrato assinado em 30 de Dezembro último com a Comissão da Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte no valor de 19.990 euros. Ainda por cima, este contrato refere-se à prestação de serviços “de produção radiofónica” na TSF, a estação onde Domingos de Andrade é director desde Novembro de 2020.
O jornalista Fernando Alves moderou conversa paga pela CCDR-N, onde esteve a sua vice-presidente.
Na parte do contrato assinado por Domingos Andrade que consta do Portal BASE não se encontra discriminados os compromissos da TSF, mas refere-se que a verba a entregar por aquela entidade do Estado se destina à produção radiofónica das comemorações da Classificação dos 20 Anos Douro Património Mundial”.
A TSF efectivamente fez cobertura noticiosa sobre estas comemorações, com destaque para uma emissão especial no dia 14 de Dezembro a partir do Teatro Ribeiro Conceição, em Lamego, conduzido pelo conhecido jornalista Fernando Alves (CP 285), que assim se vê envolvido na execução de um contrato comercial. A emissão teve a participação de Célia Ramos, vice-presidente da CCDR-N, a entidade adjudicatária do contrato assinado pelo jornalista e director da TSF, Domingos de Andrade.
Recorde-se que a assinatura de contratos comerciais entre entidades do Estado e as maiores empresas de media têm aumentado consideravelmente. Por exemplo, a CCDR-N e a Secretaria de Estado da Ciência e Educação já assinaram, nos últimos meses, vários contratos por ajuste directo com a Global Media, a Impresa e o Público para operações de marketing, que acabam por ser feitas com a colaboração de jornalistas.
Os hospitais salvaram muitos doentes, mas também foram locais de surtos e muitas infecções por covid-19. O PÁGINA UM analisou a base de dados dos registos hospitalares nos 15 primeiros meses da pandemia e encontrou indícios da existência de, pelo menos, 4.140 infecções nosocomiais de covid-19, que resultaram em 1.326 mortes. O Hospital Pedro Hispano, onde trabalha o médico Gustavo Carona – que confessou em livro ter ido trabalhar com sintomas – foi um dos três piores do país entre Março de 2020 e Maio de 2021. E a Direcção-Geral da Saúde nada diz.
Ao longo dos primeiros 15 meses de pandemia, pelo menos 4.140 doentes-covid terão sido infectados pelo SARSC-CoV-2 nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde após a sua admissão por outras causas. Através da análise de uma base de dados do Ministério da Saúde com informação clínica sobre internamentos por covid-19, a investigação do PÁGINA UM mostra que os surtos desta doença em meio hospitalar (infecção nosocomial) foram bastante frequentes em algumas unidades de saúde. Em todo o país, entre Março de 2020 e Maio de 2021, quase 8% do total dos internados foram infectados nos hospitais. Não estarão aqui incluídos os infectados, sobretudo idosos em lares, que tenham estado em tratamento hospitalar e recebido alta ou aqueles em tratamento ambulatório.
Nos centros hospitalares com mais de 500 doentes-covid durante os primeiros 15 meses da pandemia, nove registaram mais de 10% de internados-covid com “versão” nosocomial: Centro Hospitalar do Oeste (13,1%), Hospital Beatriz Ângelo (12,8%), Unidade de Saúde Local de Matosinhos, que agrega o Hospital Pedro Hispano (12,5%), Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim/Vila do Conde (12,4%), Centro Hospitalar Universitário de São João (11,9%), Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (11,7%), Hospital Garcia de Orta (11,5%), Centro Hospitalar Universitário do Porto (11,3%) e Hospital de Cascais (10,3%).
Note-se, porém, que em termos de gravidade relativa, a pior situação registou-se no IPO de Lisboa, que teve um surto relevante conhecido em Novembro do ano passado, mas que já não foi inédito: entre Março de 2020 e Maio de 2021, de entre os 64 doentes-covid, metade (32) foram infectados naquela unidade hospitalar.
O melhor desempenho nas grandes unidades de saúde observou-se no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, com apenas 2,4% dos doentes-covid com a “versão” nosocomial. Igual desempenho tiveram o Hospital da Figueira da Foz e a Unidade Local de Saúde do Nordeste. Por sua vez, o Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira teve apenas cinco doentes-covid nosocomial em 480 internados. Note-se, contudo, que nem todos os hospitais terão feito registos correctos de infecções nosocomiais causadas pelo SARS-CoV-2, como parece ser o caso das unidades de saúde da Madeira, que não apontam qualquer caso em 527 internados durante o período em análise (ver texto em baixo).
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra registou um dos melhores desempenho no controlo da covid-19 nosocomial.
Face à maior prevalência de comorbilidades e ao estado mais vulnerável dos pacientes já internados, com a média de idades mais elevada do que na comunidade, a taxa de mortalidade dos doentes-covid-19 em “versão” nosocomial foi de quase um terço (32%): dos 4.140 internados, 1.326 morreram. Os doentes-covid que foram infectados na comunidade tiveram no mesmo período, uma taxa de mortalidade hospitalar de cerca de 22%, ou seja, menos 10 pontos percentuais. Saliente-se, contudo, que o desfecho fatal, em qualquer caso, pode não ter sido devido às complicações decorrentes da infecção pelo SARS-CoV-2, decorrendo sobretudo dos discutíveis critérios seguidos pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).
Em todo o caso, encontram-se registos de 27 doentes com covid-19 já estavam admitidos no hospitais – alguns há muitos meses ou mais de um ano – quando o SARS-CoV-2 foi identificado em Portugal no início de Março de 2020. Destes, 11 acabaram mesmo por morrer.
Podem ser várias as causas para os distintos graus de infecções nosocomiais de covid-19 nas diversas unidades de saúde em Portugal, mas quase todas radicam no maior ou menor cumprimento das regras de prevenção activa e passiva em meios hospitalar.
Número de casos de covi-19 nosocomial em hospitais, centros hospitalares (CH e CHU) e em unidades locais de saúde (ULS) entre Março de 2020 e Maio de 2021 (excluindo unidades com menos de 20 casos)
Apesar de, em teoria, as normas da DGS obrigarem a isolamento profiláctico dos profissionais das unidades em caso de contactos de alto risco – que é elevado nos chamados “covidários” ou sempre que ocorrem descuidos –, tal raramente sucedeu em muitos casos, se não houvesse sintomas. O objectivo terá sido o de evitar a falta de recursos humanos.
Porém, o reverso da medalha foi a multiplicação de surtos causados sobretudo por profissionais de saúde que atingiram potencialmente doentes fragilizados por outras doenças.
Um dos casos mais evidentes desses descuidos de alguns profissionais de saúde soube-se publicamente através de um relato, sob a forma de livro, de um mediático médico do Hospital Pedro Hispano.
No seu livro “Diário de um médico no combate à pandemia”, o anestesiologista Gustavo Carona chegou a afirmar que “no meu hospital, ou pelo menos no meu serviço, a política foi só nos testarmos se tivéssemos sintomas. Nós tivemos um milhão de vezes em contacto próximo com doentes covid, e, por vezes, havia uma falha aqui ou outra ali”.
Relatando no livro o caso pessoal de uma “falha”, este médico – que exerce sobretudo funções de medicina intensiva – escreve mesmo que “os isolamentos profilácticos eram um luxo ao qual nós não nos podíamos dar, só nos testávamos se tivéssemos sintomas”, acrescentando que, após um contacto de alto risco (com um doente confirmado e sintomático), “segui a minha vida à espera de ter ou não sintomas e afastei-me da minha mãe.”
No seu relato supostamente verídico, o médico – que tem manifestado a defesa intransigente de todas as medidas estatais relevantes – admite ter acordado em data incerta de Janeiro do ano passado com sintomas compatíveis com covid-19, mas foi trabalhar nesse dia, e somente soube no final do turno, por teste, que estava infectado.
Gustavo Carona, médico no Hospital Pedro Hispano (ULS de Matosinhos)
Paula Carvalho, assessora de imprensa do Hospital Pedro Hispano – cuja administração se recusou a dar informações detalhadas e mais precisas sobre infecções nosocomiais naquela unidade de saúde no período em que o médico Gustavo Carona esteve a trabalhar infectado, com e sem sintomas , diz que “questões como a da testagem [transcritas no livro] podem ser facilmente explicadas e compreendidas, no contexto das normas e orientações da altura.”
A DGS, por sua vez, mantém o silêncio absoluto sobre todas as questões e pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM. Em 10 de Dezembro foi-lhe enviado um pedido expresso, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, para se obterem dados oficiais e reconhecidos sobre “surtos de covid-19 em unidades de saúde, eventualmente discriminadas por unidade e mês”, bem como o “número de infecções (casos positivos)” e o “número total de óbitos”.
A directora-geral da Saúde Graça Freitas nunca respondeu, e seguiu, entretanto, uma (habitual) queixa para a Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos.
O PÁGINA UM vai continuar, em todo o caso, a divulgar informação verídica e fundamental para esclarecer todos os meandros da gestão da pandemia.
Metodologia para detecção de covid-19 nosocomial
Nem sempre a referência à existência de covid-19 nosocomial consta expressamente na síntese dos boletins clínicos – convenientemente anonimizados, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística.
Nesta base de dados, os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento seguem os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As doenças e outros problemas, para cada doente, estão ordenados cronologicamente, sabendo-se apenas que o diagnóstico principal de admissão tem o número 0 e corresponde à data de internamento.
Os restantes registos constituem o complemento dos problemas que levaram aos internamentos, e também da evolução clínica, geralmente os agravamentos ou outras evidências relevantes. Ora, se a covid-19 – que tem o código U071 da CDI – surge nos primeiros lugares da ordenação, depreende-se que seja a causa directa do internamento (e é mesmo se tem o número 0) ou que o teste foi positivo no momento da admissão.
Assim sendo, o PÁGINA UM considerou que se estaria sempre perante uma infecção nosocomial se a covid-19 (U071) estivesse na posição 6 ou superior. Note-se que a mediana da posição do diagnóstico da covid-19 (U071) dos 4.140 internados que se assumiu terem sido infectados em meio hospitalar é de 10, sendo que em 351 doentes a covid-19 aparece na posição 20 ou superior na ordem de diagnóstico.
Sem gripe e com a covid-19 a mostrar menor letalidade, o Inverno de 2021-2022 está muito menos mortífero do que em períodos anteriores ao surgimento do SARS-CoV-2. O excesso de mortalidade ao longo da pandemia e o tempo mais ameno podem ser uma explicação, mas mostra-se evidente uma falta de adesão entre a realidade e a sua percepção pública e política.
O período invernal em curso, iniciado no dia 21 de Dezembro do ano passado, está a ser um dos menos mortíferos da última década, sobretudo se se considerar o processo de envelhecimento populacional. Esta situação contrasta com um ambiente de pânico na sociedade portuguesa no decurso de um forte aumento do número de testes positivos com covid-19.
Segundo a Direcção-Geral da Saúde, estão actualmente infectados quase 265 mil portugueses, quando em igual período do ano passado rondava os 110 mil, ou seja, um aumento de cerca de 140%. Contudo, ao nível de óbitos atribuídos à covid-19, a situação é agora oposta: a média móvel da última semana é de 19 – com tendência estável –, enquanto há um ano atingia já os 104, e então com uma forte tendência de subida. No Inverno passado, de acordo com dados oficiais, chegou-se perto dos 300 óbitos por dia (média móvel) no pico da mortalidade por covid-19.
A actual diminuição dos desfechos fatais directamente associados à pandemia acompanha também uma redução na mortalidade por todas as causas. De acordo com o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que agrega todas as causas de desfechos fatais –, o actual Inverno (com 21 dias, até 10 de Janeiro) regista já 7.444 mortes, uma média de 354 por dia, o que é o quinto valor mais baixo da última década e o segundo nos últimos seis anos. Se se considerar que a população idosa com mais de 85 anos – onde se concentra uma parte considerável das mortes por todas as causas (cerca de 40% do total) – teve um crescimento de 44% entre 2011 e 2020 (passando de 237 mil para mais de 333 mil –, a situação deste período invernal manifesta-se francamente favorável do ponto de vista de Saúde Pública.
Com efeito, face à menor letalidade da covid-19 nesta fase pandémica, à contínua ausência de actividade dos vírus influenza (causador das gripes) e à menor prevalência de outras infecções respiratórias, o período invernal em curso apresenta mortalidade total por todas as causas 6% inferior à média. Esta redução será maior se indexada à taxa de mortalidade no grupo etário dos mais idosos, porque são agora muitos mais.
Saliente-se, contudo, que a mortalidade nos Invernos ao longo dos anos regista sempre valores muito extremados. Antes como agora, o período invernal é muito mortífero ou pouco letal em função directa da “agressividade” da gripe, das infecções respiratórias, da meteorologia, bem como da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde.
Mortalidade média diária por todas as causas entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022 (Fonte: SICO).
Por exemplo, no Inverno passado – com surtos de covid-19 acompanhados de um período de frio extremo –, a mortalidade total entre 21 de Dezembro de 2020 e 10 de Janeiro de 2021 situou-se nos 466 óbitos por dia, mais 112 do que em período homólogo do actual Inverno. Recorde-se que, em Janeiro do ano passado, a situação ainda piorou nos dois últimos terços do mês, com diversos dias de mortalidade acima de 700. Por agora, no mês de Janeiro em curso, apenas no dia 1 se ultrapassou os 400 óbitos, o que se deve considerar uma situação excepcionalmente favorável.
Com efeito, seguindo os dados do SICO, a mortalidade total do presente Inverno está em níveis muito próximos de anos de fraca actividade gripal, como os Invernos de 2019-2020 ou 2015-2016. Neste último caso, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) considerou que “a actividade gripal foi de baixa intensidade” e que “não se observaram excessos de mortalidade semanais durante o Outono e Inverno”. No período em análise (21 de Dezembro de 2015 até 10 de Janeiro de 2016) apenas morreram, em média, 322 pessoas por dia.
Se se comparar o presente Inverno com outros anteriores à pandemia, a situação mostra-se também muito mais favorável em relação sobretudo aos anos de 2016-2017 – que registou uma mortalidade média diária de 455 óbitos – e de 2017-2018 – com mortalidade diária de 395 óbitos.
Variação absoluta da mortalidade total entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022, tendo como referência o período de menor actividade gripal (2012-2013) (Fonte: SICO).
A época gripal nestes dois períodos foi particularmente agreste. Segundo o INSA, na época de 2016-2017 (que compreende o período entre meados de Outubro e Maio seguinte) estima-se que a gripe, por via directa e indirecta, causou a morte de 4.472 pessoas, enquanto na de 2017-2018 foi de 3.700.
Comparando o período invernal desde 2009-2010 – tendo como referência o ano de menor actividade gripal (2012-2013), e portanto de menor mortalidade –, o actual Inverno apresenta um excesso de 738 óbitos, mas não se tem aqui em conta que no final de 2012 viviam cerca de 244 mil pessoas com mais de 85 anos e agora vivem mais de 333 mil.
Mesmo assim, esse acréscimo é substancialmente inferior ao Inverno passado (2020-2021), que registou 3.089 óbitos em excesso em relação ao ano de referência, ou seja, mais 147 óbitos em cada dia. E também muito mais baixo do que os números registados nos Invernos pré-pandemia de 2014-2015, 2016-2017, 2017-2018 e 2018-2019.
Porém, estas evidências estatísticas – dir-se-iam científicas – não estão espelhadas no presente ambiente de quase estado de sítio, onde imperam ainda fortes medidas de lockdown económico e de discriminação social.
José Rodrigues dos Santos (RTP) e José Alberto Carvalho (TVI) estão sem título profissional exigido para exercer actividade jornalística. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista está há cinco dias para “apurar os factos” que demorariam menos de cinco minutos a esclarecer nos registos daquela entidade.
Os apresentadores dos telejornais da RTP e da TVI, respectivamente José Rodrigues dos Santos e José Alberto Carvalho, estão a exercer funções sem carteira profissional válida, que é uma “condição indispensável ao exercício da profissão de jornalista” – uma situação análoga à carta de condução para a condução de automóveis. O Estatuto do Jornalista refere taxativamente, no seu artigo 4º, que “nenhuma empresa com actividade no domínio da comunicação social pode admitir ou manter ao seu serviço, como jornalista profissional, indivíduo que não se mostre habilitado (…), salvo se tiver requerido o título de habilitação e se encontrar a aguardar decisão”.
O pivot da RTP disse ao PÁGINA UM que “desconhecia a situação”, acrescentando que “certamente [será] um lapso”. José Alberto Carvalho, pivot do Jornal das 8 da TVI, não respondeu ao pedido de esclarecimento.
José Rodrigues dos Santos na abertura do Telejornal do passado dia 30 de Dezembro.
Alegado lapso ou não, a inexistência de uma carteira válida por estes dois conhecidos profissionais é uma evidência que o PÁGINA UM – no âmbito do dossier de investigação sobre os media – detectou na semana passada, e que confirmou através da consulta da base de dados da Comissão de Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Este órgão regulador, com poderes de disciplina sobre estes profissionais –, é também responsável por detectar incompatibilidades no exercício da actividade jornalística, bem como por emitir e revalidar os títulos profissionais.
Jornalistas como José Rodrigues dos Santos e José Alberto Carvalho – por exercerem há mais de 10 anos seguidos ou 15 interpolados – podem ter carteira sempre que assim entenderem, desde que não desenvolvam tarefas incompatíveis como acções de marketing e relações-públicas, serviço militar ou em forças de segurança, ou ainda funções em órgãos de soberania e cargos políticos, incluindo em autarquias. Em todo o caso, necessitam sempre de solicitar a renovação do título profissional de dois em dois anos.
José Alberto Carvalho, pivot da TVI, não esclareceu o seu título inválido de jornalista.
Apesar de um primeiro pedido de esclarecimento sobre a inexistência de carteira válida dos dois conhecidos pivots televisivos, feito no passado dia 5, a CCPJ mantém-se em silêncio. Ainda hoje, reiterado o pedido, o PÁGINA UM foi informado pelos serviços do secretariado da CCPJ que “a resposta ao solicitado [será dada] assim que [se] apurar os factos relativos às situações expostas”. A mensagem enviada à presidente da CCPJ, Leonete Botelho, para o seu e-mail do Público – onde sempre manteve funções de grande repórter da secção de Política enquanto exercia poderes disciplinadores dos jornalistas –, não obteve qualquer resposta.
Saliente-se que a CCPJ tem um sistema informático, de actualização automática, dos registos dos jornalistas, que permite, de forma rápida – imediata, dir-se-ia –, confirmar o histórico de cada um, incluindo datas de todos os actos (pedidos de emissão, revalidação ou suspensão temporária), e respectiva validação. Em caso de a carteira estar inválida ou suspensa, o sistema contém o documento que justifica a situação.
Este episódio soma-se a um vasto conjunto de casos denunciados pelo PÁGINA UM ao longo das últimas semanas, que tem merecida da CCPJ reacções titubeantes. Recorde-se que o PÁGINA UM detectou já diversos casos de evidentes incompatibilidades de um conjunto vasto de jornalistas, incluindo alguns com cargos de liderança ou administração em órgãos de comunicação social, nomeadamente Domingos de Andrade (director da TSF), Afonso Camões (director de conteúdos da Global Media e colunista do Jornal de Notícias), Manuel Carvalho (director do Público) – que, aliás, não usa o obrigatório nome profissional (Manuel Carlos Carvalho) que consta do registo da base de dados da CCPJ – e Mafalda Anjos (directora da Visão e comentadora da CNN Portugal). Em alguns casos, por assinarem contratos comerciais; noutros, por ajudarem, como jornalistas, à sua execução, situações consideradas incompatíveis por determinação legal e ética.
Captura de ecrã da base de dados da CCPJ, executada hoje às 19h30, que mostra omissão de carteira válida de José Rodrigues dos Santos
Existem ainda outras situações de clara promiscuidade, como as dos sócios da empresa de conteúdos Mad Brain, que são jornalistas com carteira de profissional, mas que fazem tanto artigos noticiosos como conteúdos comerciais.
A questão das relações perigosas entre jornalistas e empresas é um dos aspectos quentes das eleições dos novos representantes dos jornalistas na CCPJ, que se realiza na próxima semana, entre os dias 17 e 19.
A lista A – de continuidade, mas sem Leonete Botelho, que não se recandidata – assegura que tem lutado, no mandato que agora termina, “contra os conteúdos patrocinados feitos ilegalmente por jornalistas”, acrescentando que “passou a analisar com muito mais rigor todas as formas de publicidade disfarçadas de jornalismo, muitas delas a coberto de um autoproclamado jornalismo de lifestyle.”
Além disso, esta lista defende que “não podem existir escolhas editoriais impostas através de contratos comerciais às direções dos órgãos de comunicação social, nem destas aos jornalistas, camufladas de ‘prémios monetários’, ou complementos salariais por prestações que não são jornalísticas.”
Captura de ecrã da base de dados da CCPJ, executada hoje às 19h31, que mostra omissão de carteira válida de José Alberto Carvalho
Porém, até agora, os membros desta lista que integram o actual elenco da CCPJ apenas anunciaram “processos de questionamento” a dois jornalistas da Global Media e ao director do Público, mas prometendo secretismo na divulgação destes actos.
A lista concorrente, formada exclusivamente por profissionais da Cofina, “propõe-se lutar, por via disciplinar, contra todas as formas de violação dos deveres genericamente previstos no Estatuto do Jornalista”, denunciando, desde já, a “invasão galopante de narrativas comerciais, acobertadas por uma cosmética de géneros jornalísticos, em espaços puramente editoriais”. Para esta lista , liderada por Tânia Laranjo, grande repórter do Correio da Manhã, esta prática “corrói o jornalismo e está a ser assegurada, cada vez mais, por jornalistas com carteira profissional.”
Saliente-se, contudo, que a investigação do PÁGINA UM – ainda não concluída – também já detectou o envolvimento de pelo menos um director de uma das publicações da Cofina, e de vários jornalistas, na execução de contratos comerciais, mas que na aparência surgem como eventos públicos com cobertura noticiosa.
O registo de doentes-covid pelo Ministério da Saúde inclui largas centenas de internamentos por quedas, trambolhões, escorregadelas e contusões por objectos. Estes doentes entraram na base de dados da covid-19 porque testaram positivo na admissão hospitalar. O PÁGINA UM teve acesso a informação clínica dos doentes-covid até Maio do ano passado, e contabilizou mais de 1.200 casos de hospitalizações nestas circunstâncias. Destas pessoas, 266 morreram, muitas num prazo muito curto. Mas todas foram contadas pelo Governo como vítimas da pandemia. Veja, no final do artigo, os casos mais bizarros.
Em finais de Janeiro do ano passado, um homem de 60 anos caiu de uma janela no dia em que foi internado num hospital do Grande Porto – que o PÁGINA UM conhece mas não divulga para preservação da identidade num evento trágico. Era um doente terminal, com cancro do pâncreas e neoplasias secundárias no fígado. Tinha também covid-19 com manifestação de hipoxemia. A queda da janela, provavelmente suicídio, causou-lhe morte imediata. Porém, entrou nas estatísticas oficiais dos óbitos-covid da Direcção-Geral da Saúde.
Este foi um caso raro num episódio de desespero, mas a base de dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS) possui, na verdade, centenas e centenas de internados contabilizados como doentes-covid que foram hospitalizados por causas nada relacionadas com a pandemia, como sejam quedas no soalho, de camas, de varandas ou janelas, devido a escorregadelas ou tropeções ou colisões contra objectos.
Em muitos casos, os danos físicos foram muitíssimo graves, incluindo traumatismos cranianos, membros partidos ou afectação de outros órgãos. No total, até Maio de 2021, terão ocorrido pelo menos 266 óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas cujo internamento foi subsequente a quedas e acidentes similares.
Numa parte dos casos, a morte surgiu no próprio dia ou nos dias seguintes face à gravidade dos traumatismos. Porém, entraram na contabilidade dos casos e mortes por covid-19 porque, na admissão no hospital, tiveram teste positivo ao SARS-CoV-2.
Numa análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados do SNS, contabilizam-se pelo menos 1.207 casos de internamento até Maio de 2021 em que, subjacente à hospitalização inicial, estiveram quedas, em alguns casos especificadas (soalho, varanda, cadeira, cadeira de rodas ou cama).
Em diversas situações, os traumatismos da queda podem ter sido subsequentes a um outro evento (como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral), mas na esmagadora maioria das situações tratou-se de quedas acidentais. Não consta, nem nos registos, nem em artigos científicos com peer review, que o SARS-CoV-2 possa ser responsável ou co-responsável por qualquer queda, trambolhão ou escorregadela.
Nesta base de dados do SNS – convenientemente anonimizada, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística – estão incluídos todos os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento, seguindo os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os registos das doenças, maleitas e lesões (directas e sequelas) de cada doente surgem ordenadas cronologicamente (a partir do 0, embora sem referência à data de cada). Deste modo, sempre que as quedas (com o código iniciado pela letra W na CDI) constam nas primeiras linhas do registo individual, e geralmente antes do diagnóstico covid-19 (com o código U071 da CDI), mostra-se evidente que foram os traumatismos per si os responsáveis pelo internamento.
De acordo com a informação analisada pelo PÁGINA UM, 86% das pessoas do grupo dos internados por traumatismos resultantes de quedas e contusões contra obstáculos – que não inclui acidentes rodoviários ou com maquinaria – tinham mais de 65 anos. Em termos absolutos, até Maio de 2021, a base de dados do SNS registou 178 internamentos por traumatismos desta natureza – e depois com teste positivo à covid-19 – de pessoas com 90 ou mais anos, e ainda de 502 com idades entre os 80 e 89 anos. A média foi de quase 78 anos, e mais de metade dos hospitalizados nestas circunstâncias tinha idade superior a 81 anos.
O idoso mais velho hospitalizado nestas condições foi uma senhora de 103 anos, bastante debilitada (já com caquexia) e com deficiência renal, que caiu da cama em Novembro de 2020, com perda de consciência. Internada no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, acabou por morrer ao quinto dia. Foi considerada mais uma morte por covid-19.
No entanto, também houve crianças, adolescentes e jovens adultos internados por quedas que surgem como doentes-covid. O mais jovem foi um bebé de dois anos do sexo masculino. Esteve internado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte apenas dois dias em Setembro de 2020, em observação, por ter perdido a consciência após a queda. Foi assim metido nas contas oficiais dos internados por covid-19 porque registou positivo no teste de admissão no hospital. Surgem mais cinco menores de idade em similar circunstância, com internamentos muito curtos (quase sempre apenas um dia), ou seja, a covid-19 não os afectou.
A gravidade de algumas destas quedas e outras contusões, sobretudo dos mais idosos, mostra-se notória quer na taxa de mortalidade quer nos efeitos das quedas (traumatismos). De entre os 178 traumatizados (e depois com covid-19) com 90 ou mais anos, 65 morreram. Destes, 14 em menos de uma semana. Em todas as idades, 62 faleceram no período de uma semana, sendo que cinco morreram no próprio dia do internamento e 15 no dia imediatamente posterior.
Observando o efeito directo de muitas das quedas – ou seja, os traumatismos resultantes –fica-se com a verdadeira percepção da sua gravidade, e da irrelevância da covid-19 no desfecho fatal.
De entre os internados após estes acidentes que morreram nos primeiros dias de internamento, contam-se traumatismos crânio-encefálicos, hemorragias subdurais, fracturas da base do crânio, compressão do encéfalo, edemas cerebrais, etc.. Isto apenas se se considerar a cabeça. Se se incluírem também as fracturas e danos nos membros superiores e inferiores, ou fracturas ou contusões em outras partes do corpo, ainda mais em pessoas fragilizadas, então pode-se deduzir que a covid-19 – embora bastante letal em idosos – arcou com muitas mais culpas do que aquelas que, efectivamente, teve.
Além destes cerca de 1.200 casos, o PÁGINA UM detectou na base de dados do SNS mais 719 doentes-covid que registaram quedas, mas a esmagadora maioria terá já ocorrido em meio hospitalar, tendo em consideração a ordem do registo clínico individual. Em alguns casos, essas quedas – muitas das quais da cama – podem ter contribuído para um desfecho fatal, mas apenas uma investigação clínica, ou judicial, daria uma resposta. Algo que o PÁGINA UM, neste aspecto concreto, não consegue fazer.
Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas no próprio dia da morte após quedas e outros acidentes similares
Homem, 91 anos Data de internamento: 28/11/2020 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hematoma subdural e lesão focal. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 87 anos Data de internamento: 15/01/2021 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano de doente diabético. Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Mulher, 84 anos Data de internamento: 27/01/2021 Causa do internamento: queda de doente acamado com doença de Alzheimer. Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Setúbal
Mulher, 65 anos Data de internamento: 24/11/2020 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico hemorrágico. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)
Homem, 60 anos Data de internamento: 27/01/2021 Causa de internamento: queda de janela do hospital (suicídio?) de doente terminal com tumor de pâncreas e fígado, apresentando covid-19. Unidade de saúde: conhecida, mas não revelada
Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas após quedas e outros acidentes similares e que morreram no dia seguinte
Mulher, 99 anos Data de internamento: 17/06/2020 Causa de internamento: queda de cadeira de rodas resultando laceração periocular e coma subsequente. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte
Homem, 97 anos Data de internamento: 01/11/2020 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa
Mulher, 97 anos Data de internamento: 23/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa
Mulher, 89 anos Data de internamento: 05/02/2021 Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e hemiplegia afectando o lado esquerdo do doente. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Mulher, 87 anos Data de internamento: 29/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano e perda de consciência de doente crónico renal, que vivia em lar de idosos Unidade de saúde: Centro Hospitalar Barreiro-Montijo
Homem, 87 anos Data de internamento: 03/04/2020 Causa de internamento: queda de doente em lar de idosos com cancro da bexiga, diabetes. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 86 anos Data de internamento: 30/12/2020 Causa do internamento: queda resultando em fractura do fémur esquerdo de doente com demência e estenose da válvula aórtica, que vivia em lar de idosos. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental
Mulher, 85 anos Data de internamento: 12/12/2020 Causa de internamento: queda resultando numa contusão não especificada da cabeça. Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
Homem, 85 anos Data de internamento: 18/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano em doente com grave desidratação. Unidade de saúde: Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano
Homem, 84 anos Data de internamento: 28/10/2020 Causa de internamento: queda resultando em fractura do fémur direito de doente com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), cancro do pulmão e dependência de oxigénio suplementar. Unidade de saúde: Centro Hospitalar do Oeste
Mulher, 78 anos Data de internamento: 17/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e coma de doente com diabetes e antigo enfarte do miocárdio. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 77 anos Data de internamento: 06/01/2021 Causa do internamento: queda envolvendo doente com rabdomiólise e hipopotassemia. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Mulher, 75 anos Data de internamento: 25/01/2021 Causa de internamento: queda resultando em fractura do colo do fémur de uma doente com obesidade mórbida e insuficiência cardíaca que sofreu ataque cardíaco. Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Homem, 70 anos Data de internamento: 16/11/2020 Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural, compressão do encéfalo, edema cerebral e coma em doente com diabetes e estenose aórtica. Unidade de saúde: Hospital de Braga
Homem, 67 anos Data de internamento: 17/01/2021 Causa de internamento: queda resultando fractura da base do crânio e em hemorragia epidural, e ainda fractura das costelas. Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Para o Serviço Nacional de Saúde tudo conta para aumentar os números de internados por covid-19 em jovens. O PÁGINA UM, através de uma base de dados oficial a que teve acesso, revela como fracturas, apendicites, diabetes, cancros, infecções diversas, problemas congénitos, envenenamentos por inalação de monóxido de carbono, ideação suicida, complicações pós-parto em adolescentes e até torções de testículos são apanhados pelas “malhas” das autoridades de Saúde para classificar jovens como doentes-covid. Basta que tenham tido teste positivo na admissão ao hospital ou durante o internamento.
Uma parte significativa dos menores de idade contabilizada na base de dados do Ministério da Saúde relativa aos doentes-covid esteve internada por causas não relacionadas com o SARS-CoV-2. De acordo com os registos hospitalares dos primeiros 15 meses da pandemia, de entre os 810 menores hospitalizados nas unidades do Serviço Nacional de Saúde entre Março de 2020 e Maio de 2021, cerca de 42% (342 bebés, crianças e adolescentes) foram contabilizados apenas porque, por regra, testaram positivo na unidade de saúde onde se deslocaram para receber tratamento a outros problemas, imediatamente no momento da admissão ou durante a hospitalização. Ou seja, a covid-19 foi detectada após a patologia ou afecção que justificou o internamento.
Estes números não incluem os recém-nascidos – pelo menos 38 – que surgem contabilizados como doentes-covid por terem sido infectados pelas respectivas mães, sem daí ter advindo problemas de saúde relevantes.
Tendo em consideração que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) mantém uma opacidade absoluta sobre dados fundamentais relacionados com o impacte da covid-19 nos menores de idade – recusando mesmo conceder acesso à base de dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) –, o PÁGINA UM decidiu começar a divulgar dados confidenciais a que teve acesso. E a análise detalhada aos registos clínicos, anonimizados, permite denunciar, desde já, que a gravidade da pandemia, sendo evidente nos idosos, está a ser empolada pela DGS e Governo em relação à população mais jovem, com o objectivo de pressionar e incentivar os pais a vacinarem os seus filhos.
Com efeito, de acordo com a base de dados consultada pelo PÁGINA UM, até Maio de 2021 foram registados apenas 468 internamentos de menores cuja hospitalização se deveu directamente à covid-19, o que representava uma taxa de internamento de cerca de 0,4% dos casos positivos nesta faixa etária. Se se considerar a população total dos menores de idade (1,7 milhões, segundo as estimativas do INE), esse rácio de internamentos (em 15 meses) foi de 0,027%. Mesmo que se contabilizem os 810 menores internados com teste positivo, então esse rácio sobe para 0,048%.
As causas de internamento dos 342 menores de idade que acabaram nas “malhas” do registo do SNS da pandemia – apenas por terem tido um teste positivo aquando da sua admissão hospitalar – são as mais diversas. Na verdade, reflectem as situações do quotidiano anteriores à pandemia, com toda uma panóplia de doenças e outras afecções pediátricas.
Na base de dados do SNS constam, como sendo doentes-covid, 44 menores com apendicites como justificação para internamento. Na admissão, como tiveram caso positivo à covid-19, ficaram nos registos. Houve ainda 22 hospitalizações deste género por pielonefrite aguda. Nos registos individuais, convenientemente anonimizados, observados pelo PÁGINA UM, contam-se 17 bebés com menos de dois anos internados por causa desta infecção do sistema urinário.
Casos de anemia falciforme foram uma dezena (todos na região de Lisboa e Coimbra), destacando-se também a hospitalização para tratamento médico de 11 menores com diabetes tipo I, outros tantos com diagnóstico de sepsis, nove com meningites e cinco com inflamações dos nódulos linfáticos (linfadenites do pescoço e da cabeça). Foram ainda internados quatro jovens, entre os 7 e os 14 anos, com síndrome inflamatória multissistémica – a única doença, entre estes 342 casos, que pode estar associada a uma complicação por covid-19.
Recorde-se que, até agora, morreram três menores de idade: dois bebés com menos de um ano e uma criança de quatro anos, todos com gravíssimas comorbilidades. Na faixa dos 10 aos 19 anos, de acordo com o intervalo de idade usados pela DGS, estão mais três óbitos, mas já de maiores de 18 anos e com graves comorbilidades. A mais recente morte neste grupo ocorreu em 14 de Dezembro passado: o de uma jovem de Braga que sofria de síndrome de Dravet. Relembre-se que a DGS, desrespeitando a confidencialidade de dados clínicos, divulgou que a jovem de Braga não estava vacinada.
A lista de patologias que justificam internamentos directos, mas que são depois transformados em hospitalizações por covid-19, é quase interminável. De entre as patologias detectadas pelo PÁGINA UM, estão cancros em quatro menores, entre os quais uma criança de três anos hospitalizada devido a um tumor cerebral no Hospital de São João.
E depois há uma gama de problemas que sempre preocuparam os pais antes da pandemia: 28 internamentos por fracturas diversas, quase sempre acidentais; cinco casos de intoxicação por inalação de monóxido de carbono; seis envenenamentos (entre os quais um bebé de um ano com derivado de canábis e outro com ansiolíticos); um caso de alcoolismo (um jovem de 17 anos); quatro por ideação suicida; dois por anorexia nervosa (duas adolescentes de 16 e 17 anos); um caso de transtorno ansioso; dois casos de hospitalização por torção dos testículos; um por laceração do tendão de Aquiles do pé esquerdo (um jovem de 14 anos em Lisboa); e um internamento por laceração do sobrolho (uma criança quatro anos em Coimbra).
Ainda se destacam, em particular, uma dezena de casos de adolescentes consideradas doentes-covid que foram parar ao hospital por razões mais relevantes: complicações pós-parto, que atingiram cinco jovens de 17 anos, quatro de 16 anos e uma de 15 anos.
Mesmo em muitos internamentos em que a covid-19 surge no topo hierárquico dos diagnósticos no boletim clínico de internamento, mostra-se discutível se esta doença foi, efectivamente, a causa directa de hospitalização. Por uma razão simples: um grande número são recém-nascidos – ou seja, em concreto, nem sequer foram “admitidos” na unidade de saúde –, ou então menores de um ano. A base de dados do SNS contabiliza, porém, não deixou “escapar” 168 bebés dentro deste grupo etário, grande parte dos quais “apanharam” covid-19 das mães.
Quase na totalidade destes casos, a covid-19 não teve qualquer relevância na situação clínica, mesmo quando houve necessidade de internamento em cuidados intensivos (UCI). Com efeito, nos menores de um ano, apenas cinco estiveram em UCI, mas devido à condição de prematuro ou por afecções congénitas. Foi o caso de um bebé internado durante três meses e uma semana, incluindo em UCI, no Hospital Garcia da Orta, porque nasceu com 27 semanas. Mesmo com covid-19 sobreviveu.
Houve também dois recém-nascidos que estiveram em UCI no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental: um em observação por três dias; e outro em situação mais grave, por sofrer de síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), e que acabou por ter alta apenas ao fim de um mês e meio. Também dois casos de prematuros em UCI estiveram internados no Hospital do Espírito Santo de Évora. Ambos tiveram uma hospitalização de quatro dias, em observação. Curiosamente, um desses bebés nasceu na véspera de Natal de 2020.
O caso clínico mais grave passou pelo Hospital Dona Estefânia: um prematuro de 24 semanas – que também surge nos registos de doentes-covid – esteve internado seis meses por nascer com 24 semanas e gravíssimas malformações congénitas cardíacas e neurológicas. Aliás, sobreviveu à covid-19 “nas calmas” face à gravidade inicial do seu estado clínico. Na verdade, até a apanhou no hospital, já que nasceu em Janeiro de 2020 – antes da “chegada” do SARS-CoV-2 a Portugal – e só viu pela primeira vez na vida a luz fora do hospital em Julho desse ano.
A partir do primeiro ano de vida, a taxa de internamento hospitalar por covid-19 mostrou-se ainda mais diminuta, mesmo quando esta doença foi a causa directa de hospitalização. De acordo com a base da dados consultada pelo PÁGINA UM, entre os 1 e os 2 anos de idade, apenas se contabilizaram, no período em análise, 41 internamentos em que a covid-19 foi considerada a responsável directa pela hospitalização, independentemente das comorbilidades pré-existentes. Somente um destes bebés esteve em UCI.
No extenso grupo etário dos 2 aos 17 anos – que agrupam mais de 1,5 milhões de jovens – contam-se somente 259 internamentos “directos” por covid-19, dos quais 18 necessitaram de internamento em UCI, mas nem todos entubados. Nenhum destes jovens e crianças morreu.
Dois jornalistas com carteira profissional têm estado livremente a criar conteúdos comerciais e artigos noticiosos em simultâneo para jornais e para empresas privadas. O ataque dos hackers à Impresa incomodou indirectamente a investigação do PÁGINA UM sobre a Mad Brain, a empresa contratada para produzir a Energiser, a revista corporativa da Galp, mas cujos partners colaboram assiduamente com o Expresso, Eco, Diário de Notícias, Dinheiro Vivo e Forbes. Mais um episódio sobre a promiscuidade no jornalismo.
A revista Energiser, propriedade da Galp e alojada nos servidores da Impresa, está a ser produzida por jornalistas colaboradores do Expresso e de outros órgãos de comunicação social. Uma investigação que o PÁGINA UM estava a desenvolver sobre esta publicação corporativa – antes dos hackers do denominado Lapsus$ Group terem bloqueado os servidores da empresa detentora do Expresso e da SIC –, apurou já que os textos e outros conteúdos estavam a ser escritos pelos jornalistas Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) e Fátima Ferrão (CP 6197), através de uma empresa de conteúdos comerciais, a Mad Brain.
A publicação online corporativa da Galp – dedicada à inovação e aos desafios do sector energético – começou a ser produzida há três anos em parceria com a Divisão de Novas Soluções de Media da Impresa Publishing. Antes de ser “desligada” pelo ciberataque no dia 2 deste mês, poder-se-iam ler ali textos sobre as novas tendências de mobilidade, cidades inteligentes, sustentabilidade e transição energética. Eram claramente conteúdos comerciais, não assinados, mas a “solução” da Galp e da Impresa terá passado por contratar os jornalistas-empresários da Mad Brain, que já colaboravam e continuam a colaborar com aquele semanário fundado por Pinto Balsemão.
Site da Energiser, da Galp, bloqueado pelos hackers do Lapsus$ Group, é produzido e divulgado pela Mad Brain, tendo como partners dois jornalistas com carteira profissional.
No entanto, na revista em papel, os autores dos textos são identificados. Por exemplo, na revista número 2, em edição bilingue, Fátima Ferrão escreveu sete artigos, ou seja, cerca de metade dos textos assinados.
A Mad Brain – criada em 2017 para a organização de eventos, animação turística e serviços de comunicação e produção de conteúdos – tem sido particularmente activa tanto na escrita de textos comerciais como jornalísticos para o Expresso, Diário de Notícias, Dinheiro Vivo, Eco e Forbes.
A empresa nem sequer esconde estas ligações incompatíveis entre jornalistas e empresas privadas fora da esfera da comunicação social, anunciando-as nas redes sociais.
Recorde-se, entre os deveres dos jornalistas, previstos no seu Estatuto (Lei nº 1/99), está a recusa em exercer “funções ou tarefas susceptíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”. Além disto, os jornalistas estão ainda impedidos de participar em acções de marketing ou de relações públicas.
Na página do Facebook da empresa de conteúdos de Ferrão e Almeida Fernandes, muitas vezes os textos produzidos são apresentados como tendo “cunho #MadBrain” com links que remetem para, por exemplo, as páginas do Diário de Notícias. É o caso da série de perfis do “Projecto Mulheres Promova”, onde serão destacadas 20 líderes femininas de empresas concretas, e que constitui uma “parceria que junta o DN à CIP/CGD/Fidelidade/Luz Saúde/Ranstad”, conforme é referido numa primeira notícia publicada em 27 de Outubro do ano passado. Francisco de Almeida Fernandes já assinou 11 perfis de mulheres. O primeiro foi, curiosamente, ou talvez não, dedicado a Sofia Contente, legal manager da Randstad, que elogiou o apoio que aquela empresa de recursos humanos “dá aos colaboradores, nomeadamente o programa de incentivo e apoio à natalidade”. Também já foram publicados perfis de mulheres que trabalham na Sanofi, Sonae MC, CIP e, obviamente, Galp.
Mad Brain co-produz eventos comerciais para jornais da Global Media, e os seus partners publicam também aí notícias como jornalistas.
Outro exemplo também recente com a participação da Mad Brain, e do seu partner Francisco de Almeida Fernandes, foi a cobertura do primeiro nascimento português de 2022, cuja notícia destaca a existência “de uma parceria entre o Diário de Notícias e o Continente, que premeia o primeiro bebé a nascer no distrito de Lisboa em 2022”. Os pais receberam um cheque-prenda de 250 euros. Por regra, o Diário de Notícias classifica como “parcerias” as relações com empresas e autarquias que estão consubstanciadas em contratos que envolvem muitas dezenas de milhar de euros.
A Mad Brain, através de Francisco de Almeida Fernandes, também esteve, por exemplo, particularmente activa na cobertura da iniciativa “Movimento faz pelo planeta by Electrão”, patrocionada por uma associação de gestão de resíduos eléctricos e electrónicos. Foi mais uma das habituais “parcerias” da Global Media, neste caso usando o Dinheiro Vivo.
Na sua actividade empresarial, a Mad Brain chegou mesmo a anunciar publicamente estar a “garantir cobertura mediática para vários dos seus clientes”, como foi o caso da WebSummit em 2020. Neste caso, o jornalista-empresário Francisco de Almeida Fernandes fez quatro reportagens para o Diário de Notícias, das quais três destacavam apenas responsáveis da Huawei. Aliás, a tecnológica chinesa, através da prosa da Mad Brain, é presença assídua nas páginas nas publicações da Global Media.
As relações da Mad Brain, que apresenta publicamente o Diário de Notícias como “um dos [seus] clientes”, estende-se também à co-organização de eventos de carácter comercial. A cobertura noticiosa é depois executada, geralmente, por Francisco de Almeida Fernandes, que por vezes também serve de moderador. Foi ele que, em Junho passado, moderou um webinar – e depois escreveu dois artigos no Diário de Notícias – intitulado “Covid-19: é tempo de olhar em frente”, apresentado como sendo “promovido pelo DN/TSF com apoio da AbbVie”. Ou seja, pago pela AbbVie.
No final de 2020, a Mad Brain anunciou estar a cobrir evento tecnológico para os seus clientes. O DN publicou quatro artigos, três dos quais dando destaque à Huawei.
Apesar destas actividades de grande promiscuidade, tanto Francisco de Almeida Fernandes como Fátima Ferrão publicam, assinando como jornalistas, artigos noticiosos genéricos nas publicações da Global Media, no Eco e também no Expresso.
No caso do semanário sediado em Paço de Arcos, tanto Francisco de Almeida Fernandes como Fátima Ferrão têm ali vários textos publicados, tanto sob a forma de conteúdos comerciais (sobretudo na secção “Projectos Expresso”) como sob a forma de artigos no jornal impresso ou no site, entretanto bloqueado. Fátima Ferrão foi a jornalista que fez a cobertura para o caderno de Economia do Expresso da polémica parceria entre a Impresa e a Secretaria-Geral da Educação para promover, através de um contrato comercial de 19.500 euros, o Programa Operacional Capital Humano. Antes do ataque dos hackers, o PÁGINA UM tinha registado diversos artigos que comprovam a colaboração de ambos os jornalistas com o jornal da Impresa enquanto produziam a revista corporativa da Galp.
O PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimentos à Galp, ao director do Expresso, João Vieira Pereira, à directora do Diário de Notícias, Rosália Amorim, e aos jornalistas Francisco de Almeida Fernandes e Fátima Ferrão. Apenas os dois partners da Mad Brain reagiram, por mensagem, solicitando que fosse enviado e-mail para a empresa. Ainda não responderam.
A troco de 60.000 euros, a Visão apresentou um menu de notícias, entrevistas e espaço para artigos de opinião aos responsáveis do Grupo Águas de Portugal. Cerca de três semanas após a decisão deste ajuste directo com esta empresa pública, a directora da Visão já estava a fazer uma entrevista à presidente da Águas do Tejo Atlântico. Mafalda Anjos diz, porém, que essa entrevista nada tem a ver com o contrato, mas não explica quem vai escrever os artigos e fazer as entrevistas previstas nos contratos. Por lei, os jornalistas não podem.
A directora da Visão, Mafalda Anjos, fez recentemente uma entrevista a uma administradora de uma subsidiária do Grupo Águas de Portugal (AdP) para cumprir um dos compromissos previstos num contrato comercial, no valor de 60.000 euros, entre aquela empresa pública e uma empresa de publicidade do antigo jornalista Luís Delgado, dono da Trust in News e detentor desta revista semanal.
O contrato ficou decidido em 30 de Setembro pela Águas de Portugal, através de ajuste directo, mas acabou assinado apenas em 23 do mês seguinte. Quatro dias antes, já Mafalda Anjos entrevistava Alexandra Serra, presidente da Águas do Tejo Atlântico – uma subsidiária da Águas de Portugal, que trata os esgotos da região de Lisboa – aparentemente para cumprir, desde logo, uma parte da execução do contrato.
Este caso da Visão é mais um dos detectados pela investigação do PÁGINA UM aos novos modelos de financiamento da imprensa portuguesa, que envolvem agora, em muitos casos, contratos comerciais com a participação activa de jornalistas e que subvertem a independência editorial exigida por lei.
Mafalda Anjos entrevistou para o podcast uma administradora de uma subsidiária do Grupo Águas de Portugal, mas garante que esta conversa não integrava um contrato já decidido com esta empresa pública.
Neste episódio que, aparentemente, terá levado Mafalda Anjos a realizar uma entrevista que nem sequer livremente decidiu, está em causa um contrato para “concepção, produção e divulgação de conteúdos de comunicação associados aos Prémios Verdes Visão”, assinado entre a TIN Publicidade e Eventos – que tem um capital social de 100 euros – e a AdP – que possui um capital social de 434,5 milhões. Além de pacíficos compromissos publicitários e de naming, no contrato ficou estabelecido que a revista Visão se obrigaria a produzir diversos conteúdos e artigos noticiosos combinados ou em parceria com aquela empresa pública.
Em concreto, de acordo com o contrato, a TIN – em nome da Visão – prometia à empresa pública um menu de conteúdos editoriais, que são, na verdade, puramente comerciais.
Na cláusula 4 do contrato, a empresa de Luís Delgado concordou em “redigir em parceria com a AdP SGPS um artigo sobre os compromissos do Grupo Águas de Portugal em matérias de sustentabilidade”, a ser publicado “na versão impressa da revista (…) em data a acordar entre as partes”; a realizar entrevistas a dois representantes designados por aquela empresa pública, publicando-as na versão impressa e na rubrica “Conversa Verde ”; e ainda a publicar, no seu site, “dez artigos de opinião redigidos pela AdP SGPS”, dos quais quatro a serem também republicados na revista com uma periodicidade trimestral.
A participação de Mafalda Anjos nesta entrevista não deixa, porém, de ser inusitada – por não ser habitual observar a responsável editorial máxima a fazer este tipo de entrevistas – , mas também ser reveladora de um novo estilo de jornalismo.
Por um lado, a entrevista foi integrada num podcast habitual da Visão Verde – um site específico de ambiente desta revista –, já com 36 episódios, onde nunca antes a directora da Visão aparecera como entrevistadora.
Por outro lado, a entrevista, sobretudo versando o tratamento de esgotos na zona de Lisboa, pautou-se por um estilo demasiado informal, com diversas interrupções de Mafalda Anjos para dar opiniões pessoais. Por exemplo, quando quis explicar como aprendeu algo sobre o destino das águas residuais urbanas. A partir do minuto 25, a directora desta revista explica que “um dia fui estudar essa matéria porque a minha filha (..) me perguntava: ó mãe, mas para onde é que vai esta água? (…) e eu verifiquei que não sabia dar uma resposta muito concreta sobre o tema. E então fui estudar, e até há um livro muito interessante produzido sobre isto”. E, por fim, para reparar, houve uma derradeira e sapiente pergunta da directora da Visão: “Isso é muito importante, é uma área importantíssima: o que é que não se pode meter na sanita ou pelo cano das nossas casas?”
A directora da Visão, Mafalda Anjos, garantiu ao PÁGINA UM que a sua entrevista “foi uma conversa puramente editorial, motivada pelo Dia [Mundial] do Saneamento, e pelo facto de a AdP ter uma nova CEO que acabou de entrar em funções”, acrescentando que a conversa se desenrolou de “forma didática e explicativa”. Explicando que a sua participação se deveu à impossibilidade do coordenador da Visão Verde, por estar “com Covid, facto que é público”, Mafalda Anjos salienta que o contrato entre a TIN e o Grupo AdP visa “a atribuição dos Prémios Verdes 2022”, e que estabelece “uma série de acções de divulgação dos mesmos, onde – cumprindo todas as regras deontológicas –, todos os conteúdos serão claramente identificados como uma parceria.”
Em conclusão, a directora da Visão referiu ainda ao PÁGINA UM que as “entrevistas [previstas] ainda não aconteceram, serão feitas no âmbito destes prémios e estarão identificadas com logo dos prémios e da parceria, como aliás estipula o contrato.”
Na verdade, como pode ser verificável pela leitura da cláusula 4ª do contrato, entre as alíneas h) e p), nada ali está explícito nem implícito de que os conteúdos venham a ser “identificados como uma parceria” nem com outra qualquer menção que mostrem ser comerciais. Por outro lado, Mafalda Anjos parece ignorar até as funções da sua entrevistada: Alexandra Serra não é “uma nova CEO que acabou de entrar em funções” na AdP. O presidente da AdP é, na verdade, José Carlos Remédios Furtado, que ocupa este cargo desde Maio de 2020. A sua entrevistada é sim a presidente do conselho de administração da Águas do Tejo Atlântico, uma das 23 subsidiárias da ADP, estando ao nível, por exemplo, da EPAL.
Mafalda Anjos também não esclarece quem, independentemente de existir menção ou não a conteúdos pagos, fará os artigos noticiosos e mesmo as entrevistas. O Estatuto dos Jornalistas impede, nestas circunstâncias, que sejam realizadas por jornalistas.