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  • ‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

    ‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

    “Pelos mortos e pelos vivos, devemos dar testemunho.

    Elie Wiesel

    Era 12 de Julho de 1995. Ao meio-dia, Saliha Osmanović, de 41 anos, enfrentava o calor avassalador em frente à antiga fábrica de acumuladores em Potočari, onde ela e milhares de mulheres e crianças tinham procurado refúgio no posto avançado de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU).

    Na véspera, as forças sérvias invadiram a vizinha Srebrenica após um cerco prolongado. Embora a cidade tenha sido declarada uma Zona Segura pela ONU, os capacetes azuis não fizeram nenhum esforço para impedir o avanço sérvio.

    No genocídio que se seguiu entre 11 e 20 de julho, pelo menos 8.372 homens e rapazes bósnios foram mortos. Entre eles estavam o marido de Saliha, Ramo, e seus dois filhos: Edin e Nermin. À data do homicídio, tinham respectivamente 18 e 19 anos.

    Sarajevo. / Foto: Boštjan Videmšek

    Depois de alcançar a multidão de refugiados em Potočari, Saliha estava exausta, aterrorizada e atormentada pelo luto. Cinco dias antes, um ataque de artilharia das forças sérvias lideradas pelo general Ratko Mladić matou seu filho mais novo, Edin. Quatro dias depois de o ter enterrado, Saliha fugiu de Srebrenica, acompanhada do marido Ramo e do filho mais velho, Nermin.

    Ramo e Nermin optaram por se juntar aos milhares de homens bósnios adultos que, esperando o pior, partiram a pé em direção a Tuzla e à segurança proporcionada pelo exército da Bósnia-Herzegovina. Mais tarde, a sua viagem ficou conhecida como “a marcha da morte“.

    Em Potočari, Saliha juntou-se a milhares de mulheres, crianças e idosos desesperados e completamente desorientados. Embora aterrorizada, a multidão reunida contava com a proteção da ONU. Nem mesmo os mais pessimistas poderiam imaginar que as estruturas de comando da ONU e da política externa euro-americana concederiam ao general Ratko Mladić liberdade para cometer genocídio. Nenhum dedo foi levantado para impedir Mladić de coordenar a carnificina com Slobodan Milošević e Radovan Karadžić.

    A reacção dos capacetes azuis foi tão inexistente que Mladić conseguiu mesmo dirigir-se à multidão de refugiados em frente ao posto avançado da ONU. Dito de forma directa: o carniceiro foi autorizado a falar às suas vítimas.

    Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Foi assim que Saliha Osmanović se viu nas imediações do infame criminoso de guerra. Em 22 de Novembro de 2017, o Tribunal Penal Internacional de Haia condenou Mladić à prisão perpétua. No entanto, mesmo 30 anos depois daquele fatídico dia 12 de julho de 1995, Saliha ainda consegue recordar cada palavra do general e cada esgar no seu rosto marcado pelo suor.

    “Éramos milhares em Potočari”, contou. “Após a nossa fuga de Srebrenica, foi como se tivéssemos sido transportados para o inferno. A situação era indescritível. As pessoas gritavam, os sérvios invadiam casas e matavam pessoas a torto e a direito… E, então, Ratko Mladić dirigiu-se a nós para nos dizer na cara que tinha o poder de nos destruir e que o presidente bósnio Alija Izetbegović não nos queria. Foi terrível. Ainda esperávamos que as forças de manutenção da paz holandesas nos protegessem. Mas, na noite seguinte, retiraram-se e entregaram-nos aos sérvios.”

    Quando Srebrenica caiu, tudo o que Saliha podia desejar era não acordar no dia seguinte. Trinta anos depois, o seu sofrimento pouco diminuiu… tal como o seu desejo de morrer durante o sono.

    Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Na manhã seguinte, os agressores sérvios carregaram as mulheres e crianças em camiões e autocarros em direcção aos territórios controlados pelo exército bósnio. Enquanto isso, o exército sérvio e as unidades paramilitares continuavam a matar homens e meninos bósnios na floresta ao redor de Srebrenica. Em pouco tempo, toda a zona foi transformada num matadouro.

    Todos os diplomatas e observadores militares internacionais sabiam muito bem o que estava a acontecer no nordeste da Bósnia-Herzegovina. Pior ainda: tinham sido amplamente alertados para a calamidade que se aproximava. Os assassinos em massa, em fúria, sentiram pouca necessidade de esconder as suas intenções. Por isso, não é exagero dizer que a comunidade internacional assistiu ao genocídio como cúmplice passivo.

    Quando as mulheres e crianças chegaram ao território controlado pela Bósnia, nada sabiam sobre o destino dos seus entes queridos deixados para trás. Durante a sua estadia em Puračić, perto de Lukavac, as esposas, mães e irmãs só podiam adivinhar o que tinha acontecido aos homens.

    Alguns dias depois, uma gravação de TV foi mostrada aos sobreviventes. Foi do marido de Saliha, Ramo, que chamou os seus compatriotas – e especificamente o seu filho Nermin – para regressarem a Srebrenica. A gravação foi obviamente feita sob coacção. Sob a mira de uma arma, Ramo Osmanović garantia aos espectadores que Srebrenica era perfeitamente segura. Estava, na prática, a chamar o filho de volta para morrer.

    Nessa altura, Saliha já tinha deixado o campo temporário e encontrado alojamento com um genro. “Trouxe-me um jornal com uma foto do meu marido”, recorda Saliha. “Quando vi a foto, o meu primeiro pensamento foi: Ele está vivo!!”

    A última das suas esperanças morreu quando uma vizinha a convidou para um café, e ela ouviu a voz do marido na televisão da sala. “O meu Ramo estava a chamar o meu Nermin de volta…”, recorda, descrevendo o momento em que o seu medo se tornou absoluto. “Foi aí que tudo me ficou claro.”

    Foi um dos momentos mais dolorosos da vida infinitamente dolorosa de Saliha Osmanović. Depois, tentou forçar-se a esperar contra a esperança… E continuou a fazê-lo até que os restos mortais de Ramo e Nermin foram encontrados em valas comuns.

    Em 2008, Ramo foi localizado na vala comum Zeleni Jadar. Os restos mortais de Nermin foram encontrados em Snagovo.

    Um ano depois, Saliha ajudou a enterrá-los juntos no complexo de cemitérios memoriais em Potočari, criado para homenagear as vítimas do massacre. Em 2015, o centro de Sarajevo ergueu uma estátua feita pelo artista bósnio Mensud Kečo – uma estátua que retrata Ramo chamando seu filho para voltar a Srebrenica.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    Dezasseis anos depois do reenterro de Ramo e Nermin, procurei as suas sepulturas no cemitério de Potočari.

    Era um dia sombrio e nublado, pesado tanto para o corpo como para o espírito. As lápides brancas, marcando o local de descanso final de mais de 7000 vítimas do genocídio, permaneciam sem visitas. Funcionários do cemitério cortavam a relva. Alguns cães vadios de grande porte circulavam à volta do perímetro exterior do cemitério, não muito longe de onde agora vivem alguns dos perpetradores. Uma viatura da polícia da Republika Srpska (República Sérvia) estava estacionada em frente à entrada. Um grupo de turistas turcos apareceu e dirigiu-se aos túmulos mais recentes, mais acima no cemitério, apenas para começar a posar para as câmaras dos telemóveis.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    O encontro de Saliha com Ratko Mladić em Potočari valeu-lhe um convite do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia. Foi chamada a testemunhar contra o criminoso de guerra sérvio. Já tinha sido convocada antes para Haia, mas foi a primeira vez que conseguiu reunir forças para fazer a viagem.

    “Quiseram atribuir-me o estatuto de testemunha protegida. Recusei imediatamente. Não precisava de protecção. Já não tinha medo. Já tinha perdido tudo. A minha consciência estava limpa, por isso podia andar pelo mundo de cabeça erguida. Disse-lhes que só aceitava testemunhar se me deixassem enfrentar Mladić”, contou Saliha, três décadas após o crime mais hediondo em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

    “Veja”, — continuou ela: “Certa manhã acordei, fiz as minhas orações e preparei café… Só para me perguntar: Porque não ir ao tribunal de Haia e dizer a verdade?”

    A sua assessora jurídica avisou-a de que a defesa de Mladić no tribunal seria provavelmente extremamente convincente. O advogado do comandante sérvio chegou mesmo a garantir ao tribunal que o seu cliente tinha visitado Potočari para distribuir pão, água e chocolate aos sobreviventes. O monstro foi apresentado como nada menos que um trabalhador humanitário.

    “Mas todas as suas mentiras não conseguiram intimidar-me”, recordou Saliha. “Eu tinha uma missão, e apenas uma missão: dizer a verdade. Nada poderia ter-me impedido. Contei tudo ao tribunal.”

    O objetivo de Saliha Osmanović era enfrentar cara a cara o carniceiro de Srebrenica. Achou revoltante que o general sérvio insistisse em desviar o olhar. A sua presença deixou-o visivelmente incomodado, ao ponto de ele fazer caretas durante o seu testemunho. “Eu conseguia ver o quão arrogante ele ainda era…”, estremeceu. “Por isso, perguntei-lhe se conseguia comer e dormir – se a consciência lhe pesava, de alguma forma, por ter assassinado todas aquelas pessoas. Sabe, às vezes ainda me pergunto o que terá dito aos seus mais próximos depois de regressar de Srebrenica. Ter-se-á vangloriado da quantidade de pessoas que matou?”

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Antes da guerra, tínhamos uma vida feliz”, recordou Saliha. “O meu marido trabalhava em Belgrado, com viagens frequentes ao estrangeiro. Eu tinha o meu jardim, as minhas vacas e as minhas vitelas. As coisas corriam bem. Poder cuidar da minha família e da minha casa era tudo o que sempre quis. Mas tudo isso foi destruído… Só fiquei eu. É nisto que penso constantemente. Santo Deus, como é possível que eu ainda esteja viva enquanto os meus entes queridos desapareceram há 30 anos? Tudo o que cozinho, cozinho para eles – continuo a fazer os pratos de que mais gostavam. O cheiro faz-me lembrar a minha família. Mas eles já cá não estão.”

    Saliha Osmanović vive numa modesta casa na aldeia de Dobrak, mesmo acima do verde rio Drina, perto da fronteira com a Sérvia. Tem agora 71 anos. Em 2009, decidiu regressar a Dobrak, que foi reduzida a cinzas pelas forças bósnio-sérvias a 8 de maio de 1992. Fez tudo ao seu alcance para restaurar a antiga casa, parcialmente arrasada pelos agressores.

    Saliha foi uma das poucas mulheres de Srebrenica que optou por regressar ao local do crime e permanecer lá. Após o genocídio, Dobrak e as aldeias vizinhas foram colonizadas por sérvios. Entre eles contavam-se muitos que tinham participado directamente no assassínio em massa da população bósnia. Numerosos criminosos de guerra acabaram por ser recompensados com território.

    Há muito que as bandeiras sérvias se tornaram a ordem do dia nas imediações das valas comuns bósnias. Mas muitas das casas aqui permanecem vazias – mesmo muitas das que não foram danificadas pela guerra. Toda a região de Podrinje e grandes partes do leste da Bósnia foram esvaziadas demograficamente. O mesmo vale para Srebrenica, cujo centro é completamente tranquilo, mesmo durante os dias mais movimentados do ano.

    Hoje, Srebrenica é uma cidade de poucos pubs, todos vazios. É uma cidade sem emprego, onde ninguém quer viver. É, de facto, uma cidade morta. Apenas a sua estrutura desocupada tinha sido autorizada a perdurar. O seu nome pode ter entrado na consciência colectiva, pelo menos por um tempo… Mas esta distinção não solicitada custou à cidade de Srebrenica a sua essência, ou seja, a sua própria alma.

    O seu povo.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    Durante o auge do cerco sérvio, em 1993, quase 50.000 pessoas passavam de alguma forma por Srebrenica, vivendo em casas bastante apertadas. A maioria deles eram refugiados que procuraram abrigo na antiga cidade mineira depois de as suas próprias cidades e aldeias terem sido etnicamente limpas pelos sérvios.

    Durante o cerco, Saliha, o marido e os dois filhos partilharam uma casa com outros 60 refugiados. Ao longo dos três anos de bombardeamentos constantes, não havia electricidade nem água corrente. A casa só tinha uma única casa-de-banho.

    “Foi horrível”, Saliha estremeceu ao recordar. “Todos nós, das aldeias vizinhas, fugimos para Srebrenica, enquanto eles tomavam conta das colinas para nos levar ao esquecimento. Muitos dos meus companheiros de sofrimento morreram durante esses anos. Nunca devemos esquecê-los. Nós também estávamos com muita fome. Não tínhamos nada. Quando os capacetes azuis entraram em Srebrenica, pensámos que estávamos salvos. Por um momento, deixamo-nos sentir algo semelhante à alegria. Mas foi mesmo o princípio do fim. Quão lamentavelmente falsas eram as nossas esperanças!”

    As tropas holandesas de manutenção da paz da ONU abriram as portas para Ratko Mladić. / Foto: Boštjan Videmšek

    Mesmo 30 anos depois, Saliha Osmanović passa uma parte substancial de cada dia a ponderar a natureza de alguém que pode assassinar em massa antigos vizinhos e colegas de escola a sangue frio, apenas para atirar os cadáveres para um poço e – se necessário – reenterrá-los em outro lugar para escapar à justiça.

    Até agora, todas as suas reflexões renderam pouco que ela pudesse usar.

    “Não”. Ela balançou a cabeça perto do final da minha visita. “Eu ainda não entendo. E acho que nunca entenderei.”

    Fez uma breve pausa para reunir os pensamentos. Então continuou. O seu rosto pálido e enrugado parecendo um mapa topográfico da dor humana. “Mas o que aprendi é que não posso odiar. Eu nem saberia por onde começar. Não sei se isso é exactamente um privilégio… Mas o que aconteceu, aconteceu. O que algumas pessoas fizeram, elas fizeram. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso.”

    De alguma forma, Saliha foi capaz de adivinhar a minha próxima pergunta antes que ela fosse feita.

    “Sim”, ela assentiu. “Mesmo depois de tanto sofrimento, a vida ainda é possível. Claro que é possível. Mas é uma vida sem alegria nenhuma.”

    Saliha Osamnović a orar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    “A situação actual na minha aldeia e em toda a região de Podrinje é muito sombria. Eu acho que o que me tem salvo é que eu sempre tento manter uma abordagem activa. Passo muito tempo no jardim. As pessoas vêm visitar, e nós sentamo-nos à mesa – a mesma mesa onde eu costumava sentar-me com Ramo, Nermin e Edin. É tão difícil, filho…” Saliha confidenciou.

    E prosseguiu: “É difícil sobreviver. Estou sozinha. Acordo sozinha e vou para a cama sozinha. Os vizinhos – os sérvios – deixam-me em paz. Às vezes, trocamos algumas palavras. Quando está a chover ou a nevar ou quando o sol de Verão bate, os meus pensamentos voltam-se para o meu povo. Todos os que foram assassinados. Não estou na minha melhor forma. A minha casa está localizada muito longe de tudo – da loja, da padaria, da farmácia, do médico … Mas eu continuo a insistir. O que mais posso fazer? Não faz sentido deitar-me numa sepultura aberta ainda em vida.”

    Perguntei-lhe sobre quais eram os seus pensamentos e sentimentos 30 anos depois das atrocidades. Essas feridas podem curar-se um pouco?

    “Todos os dias sinto dor”, respondeu. “Todos os dias. A dor é a minha única companheira, é o centro de mim. Os aniversários são os piores. Eu sempre me vou abaixo quando chega o dia 6 de Julho, a data em que meu filho mais novo, Edin, foi morto por uma granada sérvia… Ou 11 de Julho, quando o genocídio começou e quando Ramo e Nermin desapareceram. Estou a sofrer no corpo e na alma. A dor é difícil de descrever. Grande parte tem a ver com o facto de, com o mundo inteiro a assistir, a comunidade internacional nada ter feito.”

    Saliha prefere evitar a maioria das comemorações e o dženaza (cerimónia fúnebre islâmica), o enterro anual das vítimas de genocídio identificadas desde o ano anterior. Ela acha essas provações muito desgastantes, especialmente quando acontecem no cemitério de Potočari. A cada mês de Julho, ela não consegue dormir ou comer durante dias a fio.

    “Então, todas essas coisas aconteceram”, repetiu. “Mataram-nos. Não há nada que possamos fazer para mudar isso, para trazer alguém de volta. Você sabe, uma vez que você perdeu seus filhos, bem…”

    Por um momento, as palavras abandonaram a mulher enlutada. “Não!” — disse ela. “Não, não gosto de ir a lado nenhum perto de Srebrenica. Se eu fizer isso, o meu nível de açúcar e a pressão arterial disparam para níveis muito perigosos. E tudo o que quero fazer é fugir.”

    Cerimónia em memória do massacre de Srebrenica, em Julho de 2007 / Foto: D.R.

    Se há uma coisa que esta corajosa bósnia se esforça por transmitir é que a história de Srebrenica precisa de ser contada e recontada. Saliha Osmanović sente que há um grande perigo de esquecer o genocídio, e o perigo aumenta com o passar de cada ano.

    Assim, tal como testemunhou em Haia, continuará a testemunhar todos os dias durante o resto dos seus dias. Ela vê isso como o propósito de sua sobrevivência.

    “Sabe o que é pior?” — questionou a certa altura. “Que o povo se foi. Tudo é diferente, tão escuro e vazio! Um grande número dos nossos mortos ainda nem sequer foi encontrado, que descansem em paz onde quer que estejam… Sabe, eu continuo a dizer a mim mesma: Se não houvesse mais guerra! Mas depois vejo o que está a acontecer em Gaza. O que é que as mães de lá podem dizer aos seus filhos quando os colocam na cama? É possível que, de alguma forma, não tenhamos aprendido nada?”

    Na página do Centro Memorial de Srebrenica na Internet encontra-se uma secção através da qual os que ainda procuram familiares desaparecidos podem pedir apoio. / Foto: Captura de imagem do site do Centro Memorial de Srebrenica

    Apesar de ter regressado a Srebrenica há décadas – aquele Verão assassino de 1995 foi a razão para dedicar grande parte da minha vida profissional à cobertura de vítimas de guerra – tive dificuldade em falar com Saliha. Mesmo durante a nossa primeira chamada telefónica, quando estávamos a organizar a minha visita às colinas acima de Srebrenica, fui atormentado por sentimentos de culpa. Parte disso tinha a ver com a noção de invadir o espaço pessoal sem ser convidado. No entanto, sentindo algo na minha voz, a minha anfitriã bósnia foi rápida em tranquilizar-me: “Você é sempre bem-vindo aqui, filho. A minha alma dói tanto que me faz bem falar sobre o que aconteceu. É o trabalho da minha vida. A minha missão. Falarei sobre o genocídio até ao meu último suspiro. Sabe, dói tanto ver a negação. Para mim, isso é quase impossível de suportar. O quê, todos nós aqui simplesmente nos matamos?!”

    Mulher bósnia segura foto de familiar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Disse-me, mais tarde: “Antes de acontecer, não conseguíamos imaginar tamanho terror. O meu Ramo trabalhava em Belgrado. Era um engenheiro cujo trabalho também o levou à Tunísia e à Líbia. No início de maio de 1992, cerca de um mês após o início da guerra na Bósnia, regressou a casa. Ele foi capaz de chegar a Dobrak com seu próprio carro, sem dificuldades reais. Havia muito trabalho a ser feito na quinta. Ele disse-se: ‘Saliha, meu amor… Eu posso sentir que algo está a formar-se. “Ele tinha uma sensação muito má sobre tudo isso. E então começou.”

    Quando a aldeia foi atingida pelas primeiras granadas sérvias, enquanto tiros eram disparados do outro lado do rio Drina, a família Osmanović foi forçada a fugir. “Caso contrário, ter-nos-iam matado a todos”, recorda Saliha. “Tivemos que deixar tudo para trás. Nós, de alguma forma, empurrámos até Srebrenica. O que se seguiu foram três anos de derramamento de sangue constante e sofrimento sem fim. E então veio Julho de 1995. Fizeram o que fizeram. Não sei, filho. Eu nunca vou entender.”

    Eu nunca vou entender. Esta é, de longe, a sua declaração mais frequente.

    Na preservação da memória do massacre, o Centro Memorial de Srebrenica tem um arquivo com fotos. Na imagem, uma pessoa segura uma foto de um dos locais onde foi encontrada uma vala comum com os restos mortais de vítimas do massacre. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Cada vez que Saliha Osmanović descrevia a tragédia de Srebrenica, parecia que a estava a descrever pela primeira vez. A cada relato, ela desabava em lágrimas. Era como se o seu relógio pessoal tivesse parado naquele Verão sufocante há 30 anos.

    Tudo o que veio em seu rastro foi apenas uma extensão do horror final.

    O resultado nunca mudará.

    Mais de 6.000 participantes embarcaram no passado dia 8 de Julho numa viagem de mais de 100 quilómetros – Marcha da Paz -, como parte da memória do 30º aniversário do genocídio dos bósnios em Srebrenica e arredores. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Ao longo da minha visita, passei muito tempo a questionar-me como era possível sobreviver a tais atrocidades e agarrar-me à própria humanidade. Como é possível que Saliha, que perdeu o pai aos dois anos e cresceu na pobreza, não sentisse ódio, nem sede de vingança?

    O que, se alguma coisa, a manteve? Como é que ela conseguiu enfrentar o amanhecer de cada novo dia? A morte estava frequentemente na sua mente?

    “A dor e a tristeza é algo com que tive de aprender a viver”, respondeu. “Estou longe de ser a única. E não é como se eu pudesse simplesmente desistir e desaparecer. No entanto, tenho de admitir que, cada vez que me deito para descansar, ainda espero não acordar. Fui ao hospital em Tuzla duas vezes. Estive muito doente… Mas, de alguma forma, ainda não consegui morrer.”

    Acreditava que era o seu jardim que a mantinha em funcionamento. “Oh, eu simplesmente amo os meus tomates, cebolas, cenouras, batatas e alho …”

    Saliha Osmanović parece ter feito uma paz precária com o facto de ter sido a voz de milhares de seres humanos assassinados. “Sei que sou a voz do Ramo, do Edin e do Nermin”, explicou. “A voz de Srebrenica. O que significa que não tenho o direito de me calar. O livro da minha vida está sempre aberto. O que aconteceu com sempre permanece dentro de mim. Serei sempre uma mãe cujos filhos foram abatidos e cujo marido foi levado. Srebrenica continua a arranhar-me no meu âmago. Eu só posso descansar com a ajuda de comprimidos para dormir. Especialmente agora, quando a situação na Bósnia está mais uma vez em ebulição de tensão”.

    A sua linha de pensamento foi rápida a mudar do passado para o presente. Na Bósnia, a distância entre agora e então nunca é muito grande.

    Os negacionistas do genocídio e outros tipos de chauvinistas estão cada vez mais audíveis. Em 2021, a Bósnia tornou crime punível negar o que aconteceu em Srebrenica. No entanto, as autoridades da República Srpska estão agora a negá-lo todos os dias – impunemente e com o total apoio de Belgrado e Moscovo.

    Os monstros estão cada vez mais fortes. Local, regional e globalmente.

    Mirela Osmanovi, representante do Centro Memorial de Srebrenica e membro da família das vítimas do genocídio, discursou, no dia 8 de Julho, perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas numa sessão para marcar o 30º aniversário do genocídio de Srebrenica. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    “Raramente vejo televisão. Mas quando o faço, e quando Milorad Dodik aparece, sou imediatamente transportada para aquela terrível atmosfera odiosa dos anos 90”, disse Saliha Osmanović à medida que a nossa despedida se aproximava.

    “E a situação do outro lado do rio Drina é a mesma”, elaborou. “Depois de todos estes anos, não sei como é que isto poderia ter acontecido. Não aprendemos nada? Alguns meses atrás, tive um grande susto. Tive a terrível sensação de que algo estava prestes a acontecer novamente. Que os tiros estavam prestes a ser disparados. Eu fiz uma única mala de viagem. Ainda não a desfiz. Ainda está à espera no corredor, por precaução.”

  • Vidas arrancadas

    Vidas arrancadas

    A guerra na Ucrânia parece não ter fim à vista. As condições ao longo da frente oriental são abismais. A cada dia que passa, fazem lembrar cada vez mais os horrores da Primeira Guerra Mundial. A máquina imperial russa lavra tudo o que está no seu caminho.

     A Ucrânia, eterna prisioneira da geografia, luta para continuar a resistir. Para a Ucrânia, trata-se de uma luta pela sobrevivência. Para a Rússia, não é nada disso. O conflito ucraniano parece ter-se tornado mais uma guerra eterna que alimenta a indústria da morte, em rápida expansão.

    Dado que a guerra só pode ser descrita de forma credível pelos seus sobreviventes, falei com alguns soldados feridos nos hospitais militares ucranianos.

    Cemitério militar em Uzhhorod. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Eu e dois outros combatentes fomos numa missão de reconhecimento do campo de batalha em Donetsk. De repente, ouvimos o som de drones e procurámos refúgio num edifício em ruínas nas proximidades. Mas os três drones russos conseguiram detectar-nos”, relatou Andry Romanyak, de 55 anos, natural de Lviv.

    Recordou que dois deles lançaram bombas sobre o local onde se encontravam e o terceiro embateu contra o edifício, fazendo explodir a sua carga. “A última coisa de que me lembro antes de desmaiar foi de uma cadeia de explosões absolutamente angustiantes. Quando acordei, o meu primeiro impulso foi procurar os meus dois companheiros. Encontrei-os esquartejados a poucos metros do sítio onde estava”.

    “Eu sangrava dos pés e da parte inferior das pernas. Os estilhaços também me tinham atingido as costas. Tudo o que eu queria era sobreviver e voltar para a minha família, por isso consegui arrastar-me para fora dos escombros”, contou-me Romanyak, deitado no quarto do hospital da cidade de Uzhhorod.

    Pai de dois filhos e avô de dois netos, Romanyak foi ferido a 13 de Novembro de 2024. Tinha sido mobilizado seis meses antes. Tal como a toda a sua equipa, o serviço de mobilização tinha vindo buscá-lo ao estaleiro onde trabalhava como encarregado.

    Dois anos antes, tinha sido declarado apto a 60% para o serviço militar. O que, pelo menos em teoria, significava que tinha sido declarado inapto para o serviço na linha da frente.

    No entanto, dada a crescente falta de pessoal causada pela forte pressão russa, especialmente na parte oriental da Ucrânia, Romanyak foi mobilizado e imediatamente transformado em condutor de veículos blindados da linha da frente.

    Andry Romanyak (Foto: Boštjan Videmšek)

    O seu ferimento ocorreu após quatro meses de combates incessantes; quatro meses a fugir incessantemente à morte.

    “Estava um frio terrível”, diz Romanyak, recordando a sua luta frenética para se colocar em segurança após o  ataque do drone. “Felizmente, eu tinha juízo suficiente para saber a direcção de onde tínhamos vindo. Decidi regressar à minha unidade. Esperava que me encontrassem”.

    Todo o equipamento de comunicação tinha sido destruído no ataque e era claro para Romanyak que a evacuação era impossível. “Eu sabia, de facto, que eles não podiam salvar-me. Por isso, peguei numa arma e comecei a rastejar em direção ao sol. Só conseguia pensar na minha família”.

    Romanyak só conseguia mover-se de uma forma lenta e agonizante. A hipotermia crescente tornou-o alheio aos seus ferimentos. De vez em quando ouvia soldados russos a falarem. Ele está convencido de que em várias ocasiões chegou a estar a menos de dez metros deles. Quando se escondeu nos arbustos, uma patrulha russa inteira passou por ele.

    Durante a sua fuga não dormiu nem um minuto.

    Enquanto rastejava tentava encontrar lonas militares para se cobrir e descansar, já que, por todo o lado, o barulho da artilharia pesada aumentava a urgência da sua situação era insuportável.

    “Estava aterrorizado, mas que alternativa tinha”, referiu Romanyak com uma expressão mortalmente séria no seu rosto branco quase fluorescente.

    “Rastejei por entre um mar de soldados russos”, lembrou, explicando que esta parte do campo de batalha era altamente caótica. “Libertávamos alguns metros de território, e depois os russos recuperavam-no; recuperavam tudo. Estávamos sempre a andar para trás e para a frente”.

    Após três dias de uma miséria indescritível, Romanyak viu finalmente um grupo de soldados ucranianos. “Gritei “Slava Ukraini” e esperei não me ter enganado”.

    “Felizmente, eram de facto ucranianos. Limparam-me as feridas, puseram-me ligaduras e levaram-me para o hospital de campanha mais próximo. Ao contrário dos meus dois camaradas que morreram no ataque, eu tive uma sorte incrível”, lembrou.

    Devido aos seus ferimentos, os médicos do hospital militar decidiram amputar todos os dedos de ambos os pés. Quando falei com ele, Andry Romanyak ainda estava feliz por ter sobrevivido… Mas também temia não voltar a andar, o que o tornaria incapaz de cuidar da sua família.

    O seu prognóstico era, no entanto, bom.

    Assim que me despedi dele, foi-lhe marcada a sua primeira hora de exercícios de reabilitação.

    “O meu plano é simples”, confidenciou. “Quero voltar a pôr-me de pé e esquecer o que me aconteceu. Espero que isso me ajude a começar a dormir melhor”.

     “As condições lá são terríveis”

    Juriy Pakanich, cirurgião militar de 55 anos, pegou no seu telemóvel para me mostrar fotografias das complexas intervenções cirúrgicas e das feridas inimaginavelmente horríveis com que se deparou durante os seus mais de dois anos de serviço nos hospitais militares espalhados pelos campos de batalha ucranianos.

    Cemitério militar em Uzhhorod. (Foto: Boštjan Videmšek)

    As imagens eram tão abomináveis que tive de me esforçar muito para não desviar os olhos.

    “Habituamo-nos a isto”, explica Pakanich. “Caso contrário, não conseguimos fazer o nosso trabalho”.

    Enquanto cirurgião civil, o seu principal objetivo era salvar vidas, como cirurgião militar, a sua  tarefa é remendar as pessoas para que possam regressar aos combates.

    “Em determinadas alturas, tivemos tantas baixas que o nosso trabalho aqui assumiu aspectos quase industriais”, disse. “Uma vez tive de operar durante 12 horas sem pausa. Quando terminei, saí da sala de operações, apenas para constatar que a fila lá fora era maior do que quando comecei. Por isso, não tive outra hipótese senão voltar à sala de operações”.

    Durante os dois anos na frente, Pakanich operou vários milhares de soldados. A natureza da sua actividade obriga-o a decidir quem mais precisa de cirurgia – o que, na linha da frente, muitas vezes significa decidir quem vive e quem morre.

    Nas piores alturas, chegavam a ser trazidos diariamente 250 feridos para os hospitais militares onde o Dr. Pakanich trabalhava.

    Só deixou a linha da frente quando adoeceu com um grave surto de hepatite B. Uma parte dos seus pulmões teve de ser removida devido à infecção.

    Passou várias semanas num hospital e apesar de ter recuperado parcialmente, o seu estado de saúde impediu-o de regressar à frente de combate. O Dr. Pakanich ainda não se tinha conformado com esse facto.

    “Regressei à cirurgia civil”, explicou, “mas os meus pensamentos estão sempre com os nossos soldados na frente. Quero muito ajudá-los. As condições lá são horríveis”.

    Explicou que a Rússia continua a enviar novos soldados para a guerra e eles têm cada vez mais armas, enquanto o exército ucraniano está a resistir o melhor que pode.

    “Não conseguiríamos resistir sem a ajuda dos Estados Unidos e da Europa. O problema é que não recebemos nem de perto nem de longe a ajuda suficiente, mas simplesmente não nos podemos render e assim desonrar aqueles que já caíram pela nossa liberdade”, disse.

    O Dr. Pakanich é capitão no exército ucraniano e pai de três filhos. “Sou um homem muito diferente agora, do que era quando a guerra começou”, disse.

    “Todos nós aqui mudámos. Pessoalmente, tudo o que posso sonhar é com paz, descanso e boa saúde”.

    “Parecia não haver maneira de parar a hemorragia”

    Antes de se voluntariar para o exército, Ruslan Telegaj, de 35 anos, natural de Sarni, no noroeste da Ucrânia, trabalhava como guarda prisional.

    Praticamente sem descanso, lutou em todos os principais campos de batalha da guerra ucraniana: Kharkiv, Kherson, Zaporíjia… bem como nos campos de morte da interminável linha de frente do Donbass, que faziam lembrar os horrores da Primeira Guerra Mundial.

    Ruslan Telegaj (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Estávamos numa missão de reconhecimento na fronteira entre Dnipropetrovsk e Donetsk. Seis de nós tinham-se amontoado num pequeno camião militar e quando ouvi o som de um drone, não tive tempo de reagir. Houve uma explosão selvagem e ficou tudo branco”, recordou Ruslan do seu quarto de hospital mobilado de forma ascética.

    Ao relatar os acontecimentos daquele fatídico dia 5 de Agosto de 2024, o seu tom podia ser descrito como ligeiramente dissociado.

    “Logo após a primeira explosão, tentei pôr-me de pé e avisar os meus companheiros para se abrigarem”, continuou, explicando que  a primeira vaga de drones ‘kamikaze‘ é normalmente seguida por uma segunda. “É uma táctica russa clássica”.

    “Tentei levantar-me, mas caí de novo no chão. A minha perna direita tinha sido rebentada e  três dos meus companheiros estavam mortos”.

    Ruslan arrastou-se  em busca de abrigo que encontrou na vala mais próxima. E, como esperado, a segunda onda abateu-se.

    “A minha hemorragia intensa alertou-me para o facto de também ter uma ferida enorme nas costas. Não tinha forças para me ajudar a mim próprio, quanto mais aos meus companheiros. Parecia não haver maneira de parar a hemorragia e a minha visão estava a girar, mas eu mantive-me consciente durante todo o tempo. Também estava com muita sede, por isso comecei a pedir ajuda”.

    Como as equipas de salvamento são elas próprias frequentemente alvo de ataques russos, a ajuda demorou cerca de uma hora a chegar aos sobreviventes. Ruslan desmaiou na ambulância, mas os médicos do hospital de campanha conseguiram estabilizar o seu estado. No hospital militar de Dnipro, a sua perna direita foi amputada abaixo do joelho.

    Não há fim à vista para a guerra (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Estou a melhorar a cada dia que passa”, afirmou. “Também estou a começar a adaptar-me à minha nova situação. Com a ajuda de próteses, posso agora andar. E tudo o que consigo pensar é como estou prestes a regressar a casa depois de três longos anos”.

    Ao proferir estas palavras, Ruslan emocionou-se visivelmente. Como alguém que se descreve como tendo sido “criado nas ruas”, a sua mulher e o seu filho de três anos são sagrados para ele.

    No entanto, ainda não lhe é permitido juntar-se a eles – não por causa do seu estado de saúde, mas devido ao facto de, tal como centenas de centenas de outros doentes, ainda estar preso num limbo burocrático que o leva à eventualidade de ter alta do serviço.

    Passa os dias no hospital a fazer flexões intermináveis.

    “Não quero voltar para a frente de batalha. Já perdi muito. Quero viver como um ser humano normal. Quero estar com a minha família e ajudar a Ucrânia de outra forma. Se puder andar, aceito qualquer trabalho disponível”, disse com firmeza Ruslan Telegaj acerca das suas prioridades actuais.

    “O que nós, soldados, passamos não se vê na televisão”

    “23 de abril de 2024. Três de nós estávamos a fazer reconhecimento para a brigada mecanizada 116 quando ouvimos o som de um drone. Tentámos dispersar, mas mesmo assim fomos atingidos em cheio. A explosão deu-se perto de mim e fui projetado para o ar”, contou Andry Tarasov, da província de Mykolaiv, descrevendo telegraficamente o dia em que perdeu a perna direita.

    Andry Tarasov (Foto: Boštjan Videmšek)

    Quase perdeu a vida também. A unidade de resgate não conseguiu chegar ao local porque havia fortes combates por todo o lado. Andry, que tinha perdido uma quantidade crítica de sangue, foi colocado numa maca por um par de camaradas e levado para um local seguro, através de três quilómetros de fogo inimigo constante.

    Muitos dos soldados feridos chegam aos hospitais em muito mau estado. As enormes quantidades de antibióticos que lhes são administradas durante as primeiras fases do tratamento no terreno contribuíram para o desenvolvimento generalizado da resistência aos antibióticos, disse-me Oleg Holub, diretor do hospital municipal de Uzhhorod.

    Por esta razão, frequentemente as feridas dos soldados curam-se de forma muito mais lenta.  E, em muitos casos, toda a recuperação é posta em causa.

    “A guerra é assim”, diz Andry, com um ar sombrio, o olhar apontado para o chão. “Muito daquilo por que nós, soldados, passamos, não se vê na televisão”.

    A sua opinião sobre a guerra é certamente uma opinião qualificada. Andry lutou nos piores campos de batalha da frente oriental. É um veterano de teatros de batalha como Avdiivka, Kupiansk e vários outros. Já em 2017 – durante a chamada guerra tranquila com a Rússia – lutou pela infantaria da Marinha ucraniana contra formações paramilitares pró-russas em Mariupol.

    Ao todo, já passou nove meses em vários hospitais. No hospital militar de Lviv, foi-lhe colocada uma prótese à qual se está a habituar lentamente. Está desejoso de continuar no exército.

    Uzhoorod (Foto: Boštjan Videmšek)

    Depois de ter alta do hospital de Uzhhorod, gostaria de se tornar instrutor. Já tinha recebido ofertas das forças especiais e gostaria muito de transmitir os seus conhecimentos aos soldados mais jovens, que estão a entrar na frente cada vez menos preparados.

    No entanto, a situação com o exército agressor é inversa, uma vez que o lado russo é constantemente reforçado com tropas bem treinadas e quantidades de armamento praticamente ilimitadas.

    “Hoje estou zangado. Amanhã estou em paz. Depois, volto a ficar zangado. O meu humor é regido por fortes oscilações. Só sei que não seria capaz de viver sem trabalhar. Neste momento, a minha saúde é o mais importante, mas os meus pensamentos estão sempre com os meus colegas soldados na frente de batalha”, disse.

    Conta que antes da guerra, trabalhava no estaleiro de Chornomorsk, onde limpava os reservatórios dos navios. “Era um trabalho muito duro”.

    “Toda a minha vida trabalhei muito”, contou o homem com um rosto cinzento-escuro e profundamente cansado.

    Quando lhe perguntei se sofria de stress pós-traumático, Andry Tarasov apenas conseguiu esboçar um sorriso cínico.

    “Putin está a agir como um canibal”

    O Dr. Yuriy Fatula, chefe do departamento de cirurgia do hospital municipal de Uzhhorod, informou-me que três em cada 10 soldados feridos que tratavam no hospital sofriam de stress pós-traumático.

    De acordo com o Dr. Fatula, o hospital opera em média 10 soldados por dia, a maioria das quais são amputações. “Esta é uma guerra horrível. Faz-me lembrar a Primeira Guerra Mundial: uma longa frente fixa, trincheiras, artilharia pesada, baixas impensáveis. Vladimir Putin está a agir como um canibal”, afirmou o cirurgião, enquanto caminhávamos pelo cemitério militar de Uzhhorod, onde 150 rapazes e homens da cidade, perto da fronteira com a Eslováquia, estão enterrados.

    Dr. Yuriy Fatula (Foto: Boštjan Videmšek)

    Debaixo de um tímido sol de inverno, dois jovens cavavam buracos pouco profundos no meio de um tumulto de bandeiras ucranianas e coroas comemorativas. Os caixões de madeira já estavam preparados. Três ou quatro soldados são enterrados aqui todas as semanas – aqui e em todo o país, em todas as aldeias ucranianas.

    Pouco mais de um quilómetro separa o cemitério de Uzhhorod das fronteiras externas da União Europeia. Os europeus fariam bem em lembrar-se de que toda esta carnificina está a acontecer literalmente a um tiro de distância.

    “Sabe, o número real de baixas é significativamente mais elevado do que o citado pelo presidente Zelensky em Dezembro. Mencionou 45.000 – que, na verdade, é o número de soldados mortos directamente no campo de batalha. Mas o mesmo número de soldados terá morrido nos hospitais, durante o transporte, no cativeiro russo ou mais tarde em casa”, referiu o Dr. Fatula.

    O médico assumiu com orgulho as suas funções de chefe da cirurgia do hospital de Uzhhorod. Considera os seus esforços como um pequeno contributo para a liberdade ucraniana – embora essa liberdade pareça cada vez mais distante.

    “As pessoas estão tão cansadas”, disse-me enquanto nos conduzida de regresso ao hospital. “A guerra arrancou-as das suas vidas. É tão difícil para nós sentirmos qualquer tipo de felicidade ou alegria. Toda a gente aqui conhecia alguém que foi morto. Todas as famílias foram afectadas”. “É uma coisa horrível quando já não se pode planear o futuro – nem sequer o futuro dos nossos netos. A guerra faz com que o próprio tempo corra de forma diferente. Todos nós aqui estamos a envelhecer a um ritmo sem precedentes”, afirmou o Dr. Fatula.

    Lembrou que quando a guerra começou, “ficámos todos chocados”, realçando que cada vítima era uma tragédia colossal. “Mas ao fim de três anos, a guerra tornou-se o nosso estado por defeito. O nosso novo normal, se quisermos”. “Habituámo-nos às perdas constantes”, disse. “Mas continuamos a sofrer a toda a hora. E estou mesmo a falar a sério; a toda a hora.”

  • ‘A única maneira de sairmos daqui é pela força’

    ‘A única maneira de sairmos daqui é pela força’

    Em Abril de 2023, Ida Asp recebeu uma carta da Inspeção de Mineração de Estocolmo, informando que a  empresa Bergslagen Metals AS recebeu uma “licença exclusiva” para iniciar pesquisas de mineração na ‘área número 2’ de Viken, no município de Berg.

    A área designada estende-se por quase todos os arredores da casa de campo de Asp, construída no século XVIII e que foi renovada recentemente, bem como por toda a sua propriedade na vila de Oviken, onde os xistos de alúmen localizados logo abaixo da superfície do solo são ricos em metais e minerais.

    Asp trabalha na função pública, onde supervisiona a entrada de fundos europeus na Suécia. Como vice-presidente do conselho municipal de Berg, também é activa na política local. Asp e o marido receberam uma proposta de compra da sua casa e do terreno circundante “a um preço de mercado”. A Lei Mineral Sueca, que foi escrita no século XIX, afirma que qualquer pessoa pode solicitar uma licença de mineração em qualquer lugar sob a superfície, precisando apenas escolher um metal ou mineral com uma sólida possibilidade de ser encontrado no local designado. Isto pode potencialmente significar que os proprietários de terras suecos nem sequer são os proprietários das suas próprias caves.

    Grande parte da costa do Lago Storsjön pode ficar exposta à mineração intensiva.
    / Foto: Boštjan Videmšek

    Várias centenas de habitantes da idílica região de Jamtland receberam o mesmo tipo de carta – entre eles proprietários de terras, agricultores, silvicultores, proprietários de retiros de fim de semana. No momento da minha chegada, a região tinha sido abençoada com um degelo maravilhoso. No entanto, muitos dos moradores estavam a ser consumidos pela ansiedade. Alguns até temiam ser realocados em massa para um “novo Oviken” construído às pressas em outro lugar… Muito parecido com o que sucedeu aos habitantes da histórica cidade mineira de Kiruna.

    De acordo com os  dados do Serviço Geológico sueco, a Suécia – especialmente as suas planícies centrais – detém a maior reserva de minério de urânio do mundo. O país também é rico em vários outros metais e minerais como potássio, cobre, níquel e vanádio.

    Há muito tempo que as empresas de mineração globais estão cientes dos potenciais ganhos inesperados no país. Em Maio de 2018, o parlamento sueco aprovou uma emenda à legislação ambiental, que instituiu uma proibição nacional da mineração e pesquisa de minério de urânio. A moratória entrou em vigor a 1 de Agosto de 2018.

    Ida Asp, uma das líderes dos protestos contra a mineração de urânio na região de Jamtland. / Foto: Boštjan Videmšek

    Uma pesquisa encomendada pelo Ministério do Clima e Empresas, em Fevereiro do ano passado, determinou uma mudança de regras e definiu os termos para a extracção de urânio. O relatório sobre a discussão pública do referido inquérito tem de estar concluído até 20 de Março deste ano. O levantamento da moratória será então discutido no Parlamento sueco. As alterações legislativas têm de ser adoptadas até 1 de Janeiro de 2026, o mais tardar.

    De acordo com várias fontes, há poucas dúvidas de que as autoridades suecas irão descartar a moratória até ao final do ano. No início do levantamento, o Ministério do Clima e Empresas afirmou que o objetivo era “remover uma proibição que não é necessária”. Acrescentou ainda que a extracção de urânio deve ser regulada pelos mesmos regulamentos ambientais que dizem respeito aos outros metais e minerais.

    Ainda antes da publicação das conclusões do inquérito, o secretário de Estado do Ministro do Clima e do Ambiente, Daniel Westlén, previa que a moratória seria levantada. “A proibição da mineração de urânio será removida”, anunciou Westlén no Outono passado. “Será possível extrair urânio na Suécia. Não há razão para uma proibição”.

    Lago Storsjön / Foto: Boštjan Videmšek

    “Para que a União Europeia se torne o primeiro continente neutro em termos climáticos, é necessário garantir o acesso a metais e minerais sustentáveis”, declarou, no Verão passado, Romina Pourmokhtari, Ministra do Clima e do Ambiente.

    A chegada das empresas mineiras

    A inevitabilidade do fim da moratória foi recebida com grande entusiasmo pelos proponentes locais de um renascimento nuclear… Tal como a intenção das autoridades de construir dois novos reactores nucleares até 2035 e 10 até 2045, ao mesmo tempo que visa descarbonizar totalmente a electricidade da Suécia em nome da transição verde.

    Nos próximos 30 anos, prevê-se que a actual procura bastante elevada de electricidade na Suécia duplique para cerca de 300 TW/h … Principalmente devido à descarbonização da colossal indústria siderúrgica sueca.                                                         

    Até agora, a Suécia precisava de cerca de 1.500 toneladas de urânio por ano para manter seus seis reactores nucleares a funcionar. Nas próximas décadas, estima-se que esse número aumente para entre 3.000 e 4.000 toneladas. De acordo com dados da Associação Nuclear Mundial (ANM), o mundo consome 67.000 toneladas de urânio por ano, enquanto o uso anual da União Europeia é de 12.500 toneladas.

    Lago Storsjön / Foto: Boštjan Videmšek

    Segundo a ANM, estão actualmente a ser construídos 65 reatores nucleares em 16 países, enquanto outros 90 reactores estão em fase de planeamento. A China está, mais uma vez, a liderar… Contudo, também vale a pena mencionar que, nas últimas duas décadas, mais de uma centena de centrais nucleares foram encerradas em todo o mundo.

    A ANM prevê um aumento de 33% no uso de urânio na próxima década, correlacionando-se com um crescimento estimado de 27% nas capacidades dos reactores nucleares. Os peritos acreditam que novas tecnologias, como os “reactores rápidos”, poderiam aumentar consideravelmente a eficiência da utilização de combustível nuclear. Em teoria, isso deveria significar que o planeta detém urânio suficiente para quase 2000 anos. Outro factor a acrescentar é a opção de reciclagem do combustível nuclear – considerado que o processo ainda é actualmente demasiado dispendioso.

    A Suécia é, naturalmente, membro da organização Euratom, que fornece urânio aos seus membros, ao mesmo tempo que tem em conta um certo grau de diversificação da cadeia de abastecimento. Há vários anos que a Suécia importa a totalidade do seu aprovisionamento de combustível nuclear. Actualmente, o país não dispõe de meios para o enriquecimento de urânio, embora isso também esteja previsto mudar.

    Os dados mais recentes disponíveis da Euratom referem-se a 2022, ou seja, antes de uma série de perturbações geopolíticas importantes e dos seus impactos nas cadeias globais de abastecimento de urânio.

    Oviken, o centro dos futuros projectos de mineração de urânio. / Foto: Boštjan Videmšek

    De acordo com esses dados, a União Europeia importou a maior parte do seu urânio do Cazaquistão (26,2%), Níger (25,38%), Canadá (21,99%) e Rússia (16,89%). Na sequência da agressão russa à Ucrânia e do golpe militar no Níger em Julho de 2023, quando a junta local expulsou os franceses e entregou o controlo das minas de urânio à Rússia, muita coisa mudou no mercado global de urânio.

    Diversas empresas internacionais de mineração já demonstraram um grande interesse na extracção de urânio sueco. A mais proactiva até agora tem sido a empresa canadiana District Metals , à qual foram recentemente concedidos os direitos de investigação e extracção de urânio relativos a toda a região de Viken quando a moratória for levantada.

    Outra empresa digna de menção é a australiana Aura Energy, destinada a extrair minério de urânio ao longo do rio Häggån, onde potássio, zinco, molibdénio e vanádio também serão extraídos. Em 2019,  a Aura Energy processou o governo sueco por danos por causa da moratória.

    Oviken / Foto: Boštjan Videmšek

    “O objectivo declarado do governo sueco está bem alinhado com a capacidade de extrair urânio doméstico, reduzindo a dependência externa e fortalecendo o fornecimento de energia nacional e europeu”, afirmou Andrew Grove, que até recentemente actuou como diretor-geral da empresa. E acrescentou: “evidentemente, é essencial que o urânio seja extraído de uma forma que não ameace o ambiente local nem o abastecimento de água, e estou certo de que conseguiremos demonstrá-lo no âmbito do processo de licenciamento sueco”.

    Em nome da transição verde

    Não, inferno não! Não vou permitir que escavem debaixo da minha casa!” Ida Asp declarou, sentada à enorme mesa de madeira na sua encantadora residência escandinava, onde pretende viver uma vida de autossuficiência. Ao lado de sua casa vermelha, há um canil com 10 cães husky siberianos. Várias ovelhas balem atrás de uma vedação, acompanhadas por um cavalo islandês. Um par de cães e uma série de gatos comandam a casa.

    “Assim que recebi a carta, comecei a fazer chamadas. As pessoas ficaram furiosas. A primeira vez que organizei uma reunião, uma centena de pessoas apareceu. Mesmo muitos daqueles que realmente não se incomodam com o meio ambiente estavam a opor-se veementemente ao projeto de mineração. Quase toda a comunidade local se manifestou contra,” disse Asp, descrevendo os estágios iniciais da revolta local.

    Um dia antes da minha chegada, Ida Asp comemorou seu aniversário. De antemão, ela havia instruído os seus amigos e parentes de que os presentes mais desejados seriam livros de sobrevivência. “Sabe, livros sobre como fazer doce de morango em caso de catástrofe nuclear, ha-ha!”, disse. “Estou a preparar-me para o futuro. Já não compro a maioria das ilusões prevalecentes. Nós estragamos tudo. A humanidade não é capaz de uma reviravolta suficientemente forte. Só nos são oferecidas soluções de ‘mais-mais-mais’ , quando claramente a única resposta é ‘menos-menos’.”

    Asp relatou que, a partir do momento em que as cartas começaram a chegar, uma nuvem tóxica de ansiedade desceu sobre toda a comunidade local. De repente, era impossível planear o futuro.

    Ida Asp. / Foto: Boštjan Videmšek

    Logo após a chegada das primeiras cartas, o líder da empresa australiana Aura Energy fez uma visita a Oviken. Foi marcada uma reunião com a comunidade local, com a presença de mais de 300 pessoas.

    “O seu diretor-geral estava completamente despreparado!, recordou Asp, com traços de indignação ainda fumegantes no seu tom. “Muitas das nossas perguntas básicas simplesmente encontraram um espaço em branco! Mesmo as pessoas que vieram à reunião na esperança de que os projetos de mineração pudessem trazer algum bem para a região ficaram com a impressão de que algo obscuro estava a acontecer. E foi por isso que também eles se voltaram contra as autoridades de Estocolmo e as empresas mineiras estrangeiras. Todos nós estávamos com a impressão de que estávamos prestes a ser enganados. É preciso entender que o chamado preço de mercado da nossa terra é ridiculamente baixo. O meu marido e eu calculámos que a venda só iria gerar metade do nosso investimento no restauro da casa. O que, mais uma vez, é ridículo! É inédito! Então, não importa o que aconteça, estamos prontos para ficar. A única maneira de sairmos daqui é pela força.”

    Asp também sublinhou que as tendências recentes na política sueca a fizeram considerar retirar-se completamente da vida política. Especialmente porque as autoridades de Estocolmo estão atualmente a preparar um veto às decisões das comunidades locais… O que Ida Asp vê como um ataque ao que só recentemente costumava ser a sede mundial da democracia e das políticas ambientais progressistas.

    “Se isto pode acontecer na Suécia, então só se pode imaginar o que se está a passar no resto do mundo”, afirmou.

    Asp candidatou-se, recentemente, ao cargo de diretora de uma escola primária local.

    O número dos que protestavam contra o projecto de mineração aumentou rapidamente. A sua causa foi muito reforçada quando a Naturskyddsforeningen, a organização não-governamental da Sociedade Sueca para a Conservação da Natureza, se juntou à luta, trazendo o apoio dos seus 200.000 membros.

    Foto: Boštjan Videmšek

    “Soubemos imediatamente que algo estava muito errado. Tivemos de reagir”, disseram-me Katja Kristoffersson, directora de comunicação da filial local da Naturskyddsforeningen em Östersund.

    “Conseguimos obter um pedido apresentado por uma das empresas estrangeiras para ter a autorização para extrair urânio por estas partes”, explicou. “Então, sabemos o que está errado, sabemos onde estão os problemas. Acreditamos que ainda podemos parar o projecto, que realmente tem pouca ou nenhuma conexão com a transição verde. Trata-se de uma forma grosseira de induzir o público em erro no interesse de empresas estrangeiras”.

    Kristoffersson foi atraída para a causa conservacionista através de seu amor por fotografar alimentos biológicos. Trabalha em turnos diários de quatro horas na Naturskyddsforeningen. A outra metade do seu tempo de trabalho é gasta a moldar cerâmica.

    “Temos muitas ideias de como reagir”, disse-me… “Estamos a preparar um relatório com base na posição do próprio governo em 2020, quando as autoridades afirmaram claramente que essa forma de mineração era inaceitável. O cerne da nossa campanha é a ameaça que a mineração traria ao meio ambiente. Sobretudo à água. Os projectos de mineração que estão planeados estão localizados nas imediações do lago Storsjön, o quinto maior lago da Suécia, que fornece água para 60.000 pessoas. Também estão em risco as florestas e as terras agrícolas excepcionalmente férteis – somos 85% autossuficientes quando se trata de alimentos aqui. Mas tememos que tudo esteja prestes a ser envenenado – a água, as florestas, o solo, a nossa comida, tudo! Em muitos lugares onde o urânio era extraído de xistos, como seria aqui, foi precisamente isso que aconteceu”.

    Um dos que se juntou à batalha para acabar com a mineração de urânio na região de Jamtland foi o Dr. Urban Tirén. O antigo director do departamento de pediatria do hospital de Östersund, que agora trabalha como consultor sénior, também recebeu uma das cartas infames.

    Foto: Boštjan Videmšek

    “A minha motivação para parar o projeto é simples”, disse Tirén. “Como médico, quando as crianças adoecem com cancro ou outras doenças graves, faço sempre tudo o que está ao meu alcance para as ajudar. Nunca vou desistir. E a mineração no xisto de alúmen é como o cancro. Apenas se espalha causando grandes danos. A mineração em xisto de alúmen não foi comprovadamente segura para o meio ambiente em nenhum lugar do mundo.”

    Como entusiasta da natureza, gosta de passar o máximo de tempo possível ao ar livre, de preferência na companhia dos netos. Como entusiasta de fotografia, Tirén está intimamente familiarizado com as florestas, prados, lagos e rios locais. E receia que os projectos mineiros pendentes possam prejudicar irremediavelmente a fauna local, as águas do lago Storsjön e a produção agrícola na região de Jamtland, no centro da Suécia, com o seu solo muito fértil.

    Na sua opinião, uma única licença de mineração poderia desencadear um efeito dominó. Toda a região poderia ser transformada num local de escavação generalizado. A quietude do Inverno seria substituída por poeira e ruído, e a qualidade de vida semelhante à ‘Northern Exposure‘, aqui, desapareceria para sempre.

    “Na minha juventude, passei muito tempo a trabalhar como médico em África – na República Centro-Africana, por exemplo. E lembro-me muito bem da extensão da devastação que as empresas mineiras deixaram no seu rastro”, continuou Urban Tirén.

    Dr. Urban Tirén, pediatra. / Foto: Boštjan Videmšek

    Tirén teme que o enfraquecimento da legislação ambiental possa, em última análise, transformar a Suécia numa espécie de Amazónia escandinava. A população local vê os projectos de mineração como a continuação da colonização interna. Na Suécia, esse processo atingiu seu auge no século XIX e na primeira metade do século XX, com a mineração a desempenhar um papel altamente proeminente.

    Turbulência geopolítica

    Os recentes acontecimentos na Suécia têm de ser entendidos no contexto dos recentes acontecimentos em Bruxelas. Em Dezembro de 2023, o Parlamento Europeu aprovou a Lei Europeia das Matérias-Primas Críticas, dedicada a garantir um fornecimento seguro e sustentável desses materiais. Em Agosto passado, a Suécia assinou um enorme acordo nuclear com os Estados Unidos – a chamada parceria estratégica que obriga ao desenvolvimento conjunto de “pequenos reactores modulares” e visa melhorar as actuais práticas de gestão dos resíduos nucleares.

    De acordo com as nossas fontes, as exigências dos reactores nucleares americanos poderiam muito bem ser uma grande força motriz por detrás dos projectos mineiros na Suécia. No passado, os Estados Unidos tornaram-se fortemente dependentes da Rússia para urânio enriquecido. As sanções mudaram isso, pelo menos em parte.

    Segundo  dados da Agência Internacional de Energia (AIE), a procura global anual por metais e minerais críticos deve aumentar em 7,5 milhões de toneladas até 2040, saltando para um total de 28 milhões de toneladas. Em caso de atingir emissões neutras, a AIE estima a procura em 43 milhões de toneladas.

    Ao longo da última década, a União Europeia importou da China a maior parte dos seus metais e minerais críticos. O país detém um grande controlo sobre as cadeias de abastecimento globais – especialmente quando se trata de lítio, o componente-chave da bateria de iões de lítio. A UE colocou-se, assim, numa posição marcadamente subordinada, pondo assim em risco, pelo menos indiretamente, alguns dos seus ambiciosos objectivos de sustentabilidade.

    Um interesse crescente pela mineração de tudo o que existe sob o sol também foi demonstrado na Gronelândia, onde o gelo derretido esconde enormes quantidades de riquezas naturais, incluindo urânio. Na situação actual, a extração de urânio não é permitida na Gronelândia. Mas nada ainda é definitivo. As autoridades locais têm cada vez mais dificuldade em afastar pretendentes cada vez mais agressivos. Com a China de um lado e os Estados Unidos do outro, a frente ártica está agora firmemente implantada.

    ‘Northern Exposure’ / Foto: Boštjan Videmšek

    Até 2018, a participação maioritária na Rossing, a maior mina de urânio da Namíbia, era detida pela empresa australiana Rio Tinto. Agora, 69% dela pertence à empresa estatal chinesa China National Uranium Corporation. Curiosamente, 15% da mina é propriedade do Irão – e tem sido desde 1976.

    De acordo com  dados da Associação Nuclear Mundial, a Rússia tem à sua disposição 39 das capacidades mundiais para o enriquecimento de urânio (principalmente através da empresa Rosatom no Ural).

    “A Rosatom é um actor-chave no negócio de combustível nuclear e vende bens e serviços para a Europa e os Estados Unidos”, segundo James Action, do Carnegie Energy Institute. “Ironicamente, o processo de desmame dos combustíveis fósseis russos deixou a Europa particularmente dependente das exportações nucleares russas”.

    Rosatomácea é também um factor importante na agressão russa à Ucrânia. Um ex-director da empresa, Sergey Kyrienko, foi um dos que planeou a operação especial, enquanto a Rosatomácea continua a servir como um grande fornecedor do exército russo.

    Nos últimos três anos, o negócio do urânio voltou a prosperar. Os preços do urânio nas bolsas mundiais duplicaram. Para citar apenas um exemplo: o valor de uma mina de urânio localizada na Bacia de Athabasca, no Canadá, foi estimado em 4 mil milhões de dólares, apesar do facto de que só entrará em operação em 2028, quando o Canadá poderá ultrapassar o Cazaquistão como o principal fornecedor de urânio do mundo.

    Ajustados pela inflação, os preços do urânio atingiram o seu nível mais alto durante a Guerra Fria. Após o seu fim, quando uma parte do arsenal de armas nucleares foi desmantelada, os mercados globais foram atingidos por uma profusão de urânio enriquecido. Isso reduziu muito o preço, às vezes em até 90%.

    Área onde será feita a mineração no futuro. / Foto: Boštjan Videmšek

    Um facto importante, mas muitas vezes negligenciado, é que, após o colapso da União Soviética, os Estados Unidos começaram a importar grandes quantidades de urânio enriquecido da Rússia e de várias outras ex-repúblicas soviéticas. Isto foi possível através do ‘Programa Megatons para Megawatts’, adoptado em 1993. As antigas ogivas nucleares russas foram, assim, utilizadas para alimentar os reactores nucleares dos EUA, pelo menos, até 2013. E 500 toneladas de urânio enriquecido foram transferidas no âmbito do programa, 500 toneladas que costumavam compor 20.000 ogivas. Até 2009, os Estados Unidos pagaram à Rússia cerca de nove mil milhões de dólares pelo referido urânio.

    A empresa de mineração canadiana District Metals entrou na Suécia em 2020, durante a primeira onda da pandemia. Até 2022, o mercado mundial de urânio permaneceu bastante estático. No início, a empresa não investiu muito. Na maior parte dos casos, contentou-se em simplesmente perder tempo.

    Na sequência da agressão russa à Ucrânia, a situação geopolítica e económica alterou-se. Dada a dependência europeia do gás russo e a consequente corrida por alternativas, a energia nuclear estava prestes a experimentar um renascimento.

    A District Metals começou a explorar novas opções para a mineração na Escandinávia. “Quando vimos a situação na Suécia, começámos a procurar áreas onde o minério de urânio pudesse ser encontrado”, relatou o presidente-executivo da empresa, Garreth Ainsworth, geólogo e um dos operadores mais reconhecidos do sector.

    Área onde irá ser feita a mineração no futuro. / Foto: Boštjan Videmšek
    Garret Ainsworth, CEO da Distric Metals. / Foto: District Metals

    Entre outros projectos, a District Metals solicitou uma licença de exploração e mineração na área de Viken, onde a prospecção inicial mostrou que estavam disponíveis grandes quantidades de urânio.

    “A autorização foi barata, por conta da moratória. Pagámos 10.000 dólares por uma ‘licença mineral’, ganhando 68% dos depósitos Viken. Mais tarde, também comprámos os 32% restantes”, explicou Ainsworth. E está firmemente convencido de que o Governo sueco levantará a moratória sobre a extracção de urânio até ao final do corrente ano.

    “Estamos certamente preparados para o levantamento da moratória”, declarou. “Quando isso acontecer, é certo que as coisas correrão bem, tendo em conta o legislador sueco. O processo é bastante rápido. Na Suécia, pode obter uma autorização em seis semanas. No Canadá, o mesmo processo leva pelo menos dois anos.”

    A inevitabilidade do fim da moratória torna-se ainda mais clara quando se tem em conta um relatório publicado em Dezembro do ano passado pelo Ministério do Clima e das Empresas sueco. O relatório recomendava o fim da moratória até ao final do ano. As empresas globais de mineração, como a District Metals, estão a preparar-se intensamente.

    “O relatório representa um quadro legislativo para o levantamento do tema. Não se trata apenas de extrair o urânio, mas também de processá-lo e enriquecê-lo”, explicou Garreth Ainsworth. Ao longo de nossa conversa, o CEO da District Metals elogiou muito a tradição e a infraestrutura de mineração da Suécia.

    “A Suécia é um dos principais Estados mineiros da Europa”, disse, entusiasmado. “E não só em relação ao urânio, mas também ao minério de ferro, cobre, zinco, chumbo, prata, ouro… É um prazer trabalhar aqui. Os suecos gostam de investir em projectos no seu próprio país.”

    Ainsworth previu que, após o levantamento da moratória, a Suécia irá rapidamente construir cadeias de abastecimento – desde a mineração ao processamento e enriquecimento até à produção de combustíveis nucleares… Todo o caminho até ao utilizador final, ou seja, os reactores nucleares do mundo. Na sua visão, os resíduos também seriam reciclados de forma cada vez mais eficiente.

    “Em tempos instáveis, isso é crucial. Está caótico lá fora. Tenho a certeza de que está ciente de que o Níger, por exemplo, que abasteceu o mercado europeu com 25% de seu minério de urânio, agora é controlado pelos russos. O CEO da Kazatompromcompany do Cazaquistão declarou publicamente que agora é muito mais difícil para enviar urânio para o Ocidente, dada toda a pressão da China e da Rússia”, acrescentou Ainsworth.

    Uma decisão estritamente política

    “Esta não é uma transição verde, é cinzenta. Estão a tentar convencer-nos de que parte do meio ambiente precisa ser sacrificada para salvar o meio ambiente. Mas as soluções que estão a oferecer são falsas e perigosas. Parecem sempre encontrar novas desculpas para explorar os recursos naturais. Alguns até querem começar a fazê-lo no espaço, e tudo em nome da transição verde”, atirou o activista da Greenpeace Carl Schlyter, que representou o Partido Verde sueco no Parlamento Europeu, entre 2004 e 2014.

    Perguntei se existe a possibilidade de as empresas não atingirem seus objetivos. A sua primeira resposta foi uma careta.

    “Não se trata apenas da moratória”, explicou. “Logo após o Natal – quando todos já estavam de férias – o nosso governo propôs a eliminação do direito de veto das comunidades locais. Os referidos direitos poderiam certamente frustrar os seus planos. Mas isso não significa que o governo terá sucesso. Muitos dos autarcas opõem-se ao levantamento da moratória, uma vez que se apercebem dos danos que podem ser causados ao ambiente”.

    Carl Schlyter, da Greenpeace na Suécia. / Foto: Greenpeace

    Schlyter acredita que as razões por detrás do fim da moratória são estritamente políticas. “Na Suécia, a questão nuclear é uma questão de prestígio político. É preciso perceber que, durante a última campanha eleitoral, os partidos do governo enfatizaram fortemente o reforço das capacidades nucleares do nosso país”.

    Em 2022, as condições nos mercados de energia eram muito diferentes do que são hoje. Soluções rápidas estavam na ordem do dia. “Quando a Rússia atacou a Ucrânia, os preços do gás terrestre dispararam”, lembrou Schlyter. “E o preço da electricidade também disparou, principalmente devido ao alto preço do gás. Na Suécia, estávamos habituados a preços de electricidade excepcionalmente baixos – o segundo mais baixo de toda a União Europeia. E obtivemo-lo principalmente a partir de fontes renováveis e nucleares, apesar de termos encerrado vários reactores nucleares. Mas quando as coisas mudaram, a nossa indústria dependente de energia não carbónica sofreu um choque. Pelo menos durante um curto período de tempo, foi desprovida da sua competitividade”.

    A expansão das capacidades nucleares da Suécia foi a principal promessa de campanha e uma das primeiras promessas feitas pelo novo governo de direita… Uma postura que Schlyter vê como um estudo de caso no dogmatismo à prova de factos.

    “Venderam-nos a ideia de que a crise energética será resolvida com a construção de 10 novos reactores nucleares. Mas isso é totalmente absurdo”. O representante sueco da Greenpeace foi claro. “Na Europa Ocidental, a construção de um desses reatores demora, em média, 19 anos e custa cerca de 20 mil milhões de dólares. Ao mesmo tempo, é preciso perceber que os preços da electricidade baixaram nos últimos dois anos. O que significa que 2024 não viu um único mês em que o preço foi superior ao preço máximo garantido que está em vigor há 40 anos! No entanto, o governo ainda pretende destinar 35 mil milhões de euros em subvenções para a construção dos reactores, bem como 55 mil milhões de empréstimos baratos. Não se trata de economia, trata-se de pura política. As próximas eleições terão lugar em 2026, e a coligação no poder quer desesperadamente começar a construir algo antes disso para se poder gabar de cumprir as suas promessas”.

    Schlyter está quase divertido com o governo neoliberal estar a adoptar uma abordagem de ditadura comunista para a construção de novos reactores nucleares.

    Área onde será feita a mineração no futuro. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Em todo o mundo, o negócio do urânio é controlado por Estados e governos”, explicou. “Actualmente, existe apenas uma empresa privada que se dedica ao enriquecimento de urânio. Situa-se nos EUA e não está muito bem. Os governos do mundo ditam os preços e controlam o mercado. Mesmo os franceses estão agora a enriquecer menos urânio – a sua procura não é assim tão elevada. Até agora, tem havido muito pouco investimento. O nosso governo afirma que os recentes desenvolvimentos geopolíticos estão a aumentar a procura de urânio e que a tendência só irá aumentar no futuro. Ao mesmo tempo, as estimativas oficiais do custo dos novos reactores são demasiado baixas para metade. O governo também prometeu que não faremos negócios com a Rússia. Mas, mais cedo ou mais tarde, haverá paz com a Rússia, certo? E então os nossos novos e brilhantes reactores poderiam facilmente ir à falência, uma vez que estariam a produzir quantidades totalmente supérfluas de combustível de urânio”.

    De acordo com Schlyter, o projecto proposto foi mal pensado desde o início. “Temos zero instalações de enriquecimento de urânio. Não temos fábricas de processamento de minério. Podemos abrir uma centena de novas minas de urânio, mas pouca coisa mudará – a Suécia continuará a ser incapaz de produzir o seu próprio combustível nuclear”.

    A sua principal preocupação prende-se com a forma como quantidades cada vez maiores de fundos públicos são afectadas à energia nuclear, enquanto as fontes renováveis são subnutridas. Pouco antes do Ano Novo, por exemplo, as autoridades suecas suspenderam a construção de 13 novas turbinas eólicas no Mar Báltico.

    “No que diz respeito às energias renováveis, costumávamos ser um dos países mais bem-sucedidos do mundo”, lamentou Schlyter. “Mas quando o governo se empenhou na opção nuclear, criou-se um certo vazio – que pode durar os próximos 20 anos”.

    Foto: Boštjan Videmšek

    Carl Schylter acredita que a história da mineração – tanto na Suécia como em outros lugares – mostra claramente a inevitabilidade da poluição da água potável.

    “Na Suécia, onde há urânio, geralmente também há água de alta qualidade”, alertou. “A legislação europeia proíbe a redução da qualidade da água. Este poderia ser o elemento protector. Em tempos de crise climática, a água é um recurso natural fundamental”.

    Como muitos dos habitantes de Oviken, o activista da Greenpeace vê os planos de mineração pendentes como uma forma de colonialismo: “Não é a primeira vez na História que a Suécia pretende colonizar as terras dos seus povos indígenas. Uma parte da elite dominante acredita que a resistência das comunidades locais pode ser quebrada com uma abordagem colonial. Mas as comunidades locais estão longe de estar desamparadas. As pessoas aqui estão conectadas. Trabalham em conjunto. Também têm os seus próprios deputados. O colonialismo é mais facilmente combatido através de uma comunidade local empoderada”.

    Uma nova forma de colonialismo

    Åsa Gustafsson é proprietária de uma quinta perto de Oviken, uma herdade com 65 vacas e vitelos. Ela é a quarta geração de sua família a trabalhar os cerca de 150 hectares de solo excepcionalmente fértil. A sua propriedade está localizada ao lado do lago Storsjön, que fornece água para Östersund, o famoso ‘resort‘ de desportos de Inverno. A fazenda de Gustafsson é totalmente dependente da água do lago.

    Åsa Gustafsson, proprietária de uma quinta. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Os primeiros representantes das empresas mineiras começaram a vir para cá com maquinaria de perfuração já há trinta anos”, contou o agricultor sueco. “Mesmo assim, procuravam urânio – entre outras coisas. Fizeram muitas perfurações, incluindo algumas no nosso terreno. Mas depois ficámos em paz até Abril de 2023, quando recebemos a carta”.

    Estando junto de um dos estábulos arrumados, a voz de Gustafsson teve que lidar com uma cacofonia de ‘múús’. “O que mais me assusta é a situação da água”, disse. “Todos os locais de mineração estão localizados um pouco acima do lago, então a poluição estará descendo. E todos os rios, ribeiros e águas subterrâneas fluem para esse lago, bem como sobre as terras agrícolas locais. Mais cedo ou mais tarde, algum tipo de contaminação está garantido. Não recebemos garantias nem das empresas mineiras nem do Estado. Então, certamente não vou assinar nada. Vou ficar aqui”.

    A transição verde foi usurpada e privatizada pelo ‘lobby‘ nuclear, para que as riquezas locais pudessem ser entregues à corporação internacional de mineração. É esta a opinião de Bertil Sivertsson, que dirige a associação de agricultores local. É também membro dos democratas-cristãos – um partido da coligação governamental que parece ser a favor do levantamento da moratória a nível nacional e que se lhe opõe a nível local.

    Bertil Sivertsson, líder de agricultores locais. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Em Estocolmo, parecem acreditar que ninguém vive em Jamtland”, disse”, disse Sivertsson. “Aparentemente, não existimos. É assim que é apresentado às corporações estrangeiras de mineração. Mas a realidade é que a nossa é uma zona com uma história e tradição excepcionalmente ricas… Embora tudo isso possa acabar em breve. Se conseguirem lançar a primeira mina, a caixa de Pandora estará aberta e um efeito dominó será inevitável”.

    “Isso mesmo”, exclamou Åsa Gustafsson. “O que temos aqui é um conflito crescente entre a produção de alimentos e metais e minerais raros… Ou, se preferir, uma guerra entre sobrevivência e lucro. Estamos atualmente a salvar o planeta destruindo-o. A agricultura respeitadora do ambiente e dos animais deve fazer parte da transição verde, e não algo que deva ser casualmente posto de lado por causa dela. Todos sabemos que, aqui, ninguém quer ouvir. Mas vamos continuar a gritar, mesmo assim. Vamos mostrar-lhes que existimos! Espero que os nossos protestos possam realmente fazer uma mudança. Todos os agricultores aqui estão do mesmo lado. Embora deva dizer que a ameaça sempre presente de poluição ou deslocalização torna terrivelmente difícil fazer planos mínimos para o futuro”.

  • Pandemia: Stanford reuniu peritos de excelência que estiveram do outro lado da ‘Narrativa’

    Pandemia: Stanford reuniu peritos de excelência que estiveram do outro lado da ‘Narrativa’

    A ‘nata’ dos peritos que defenderam uma estratégia racional e ponderada de resposta à covid-19 esteve reunida numa conferência na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Trata-se de especialistas de topo que, durante a pandemia, ficaram do outro lado da ‘narrativa’ seguida pela generalidade dos governos e que significou a imposição de medidas radicais, como as que foram implementadas em Portugal, com resultados desastrosos ao nível da mortalidade e da economia. John Ioannidis, o epidemiologista mais conceituado do mundo, foi um dos marcou presença no evento, tal como Anders Tegnell, responsável pelas políticas covid-19 na Suécia, e Jay Bhattacharya e Sunetra Gupta, co-autores da Declaração de Great Barrington, que defendeu uma estratégia proporcional e moderada de resposta à pandemia. Tegnell falou sobre a forma como geriu a pandemia na Suécia e a importância de, em crises, haver um “diálogo inteligente com a população”. Disse ainda que muitos países seguiram as medidas extremas adoptadas pela China por acharem que seria a “solução mais fácil” a usar por pouco tempo, o que “nunca foi verdade”. Mas a apresentação de Ioannidis também se destacou no evento.


    Ao contrário do que transpareceu nos media mainstream, durante a pandemia de covid-19 não houve unanimidade nem consenso na comunidade científica relativamente à melhor estratégia para se lidar com a crise sanitária. Houve uma acentuada divergência de opiniões, com vários peritos de excelência, e até Prémios Nobel, a defender que as autoridades deveriam implementar medidas proporcionais e moderadas para lidar com o vírus, as quais tinham ainda outros benefícios: não prejudicavam os mais pobres e vulneráveis e respeitavam os direitos humanos e civis.

    Vários dos especialistas de topo de nível global que defenderam políticas racionais e moderadas, baseadas na evidência, estiveram reunidos no dia 4 de Outubro numa conferência na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos com o título ‘Políticas da Pandemia: Planear o Futuro, Avaliar o Passado‘ (‘Pandemic Policy: Planning the Future, Assessing the Past’).

    Entre esses peritos estão nomes como John Ioannidis, o epidemiologista mais conceituado a nível mundial, médico e professor em Stanford, e Anders Tegnell, reputado epidemiologista que liderou a resposta da Suécia à covid-19 com resultados muito mais favoráveis do que países como Portugal, que impôs medidas extremas e que violaram a Constituição da República, bem como direitos humanos e civis. Estiveram também presentes peritos como os professores de Stanford e Oxford, Jay Bhattacharya e Sunetra Gupta, co-autores da Declaração de Great Barrington, que conta com quase um milhão de assinaturas, incluindo de especialistas em saúde pública, e que defendeu uma gestão da pandemia ponderada e mais focada nos grupos de risco.

    Anders Tegnell, reputado epidemiologista sueco, liderou a resposta da Suécia à pandemia de covid-19 com um grande sucesso. O país, ao contrário de outros, como Portugal, regista os melhores níveis de excesso de mortalidade. A Suécia recusou aplicar, em geral, confinamentos e o uso generalizado de máscara facial. Foto: D.R.

    O evento, composto por quatro painéis de debate, procurou analisar se as universidades acolheram o debate aberto e livre sobre as possíveis respostas à pandemia. Na abertura do evento, Bhattacharya defendeu que “em pandemias, o público depende de os especialistas partilharem a sua visão de forma aberta e sem medo ou favor e falarem o que pensam abertamente sobre as suas avaliações, em termos científicos e de políticas”.

    Tegnell foi um dos convidados que integrou o primeiro painel sobre o tema “Decisões baseadas na evidência numa pandemia“. Ali, foram debatidas medidas como confinamento forçado da população, fecho de escolas prolongado, distanciamento social, obrigatoriedade do uso de máscara facial e imposição de vacinas. Trata-se de medidas sem precedentes, tanto na sua “extensão como no seu impacto global”.

    Tegnell destacou a importância de, numa pandemia, se adoptarem, logo no início, medidas que sejam possíveis de manter, porque se trata de um tipo de crise que vai levar tempo a resolver e não haverá uma solução logo no imediato. “É necessário, logo no início, pensar em medidas que vai ser possível manter. E fechar as pessoas não é algo que se possa conseguir manter”, disse no painel. “Mas tentar ter um diálogo inteligente com a população sobre como podemos manter distância, como podemos reunir com menos pessoas do que o habitual, isso consegue-se fazer”, salientou.

    O epidemiologista defendeu que deve haver boa comunicação e transparência para haver confiança. Disse que “tem de se ser muito claro com as pessoas sobre o que se está a tentar alcançar e não como se vai alcançar, porque todos são diferentes e algumas pessoas precisam ir para o trabalho” e deslocar-se, mas podem decidir como fazê-lo de forma a minimizar contactos. “Penso que conseguimos isso, que as pessoas percebessem o que estávamos a tentar alcançar: queremos ter menos contactos”. Tegnell defendeu que, nesse contexto, as autoridades não precisam de parar com medidas que começaram porque as medidas se mantêm ao longo da pandemia. Destacou que uma crise como a da covid-19 é um caminho a percorrer para um objectivo e convém manter as medidas ao longo do tempo em vez de andar de medida em medida. “É ter um diálogo inteligente com a população, compreender as suas necessidades comparando com as nossas necessidades para abrandar o contágio”, disse.

    Estocolmo, Suécia, 2020 (Foto: PAV)

    O epidemiologista comentou que “o exemplo da China [que aplicou medidas extremas, fechando a população] levou muitas pessoas a pensar que era a solução mais fácil e sempre queremos uma solução mais fácil, mesmo em problemas complexos e, por isso, é que muitos países seguiram o exemplo [da China]”. Contudo, “houve também uma ideia bastante estranha na pandemia de que se pode parar isto e não levará muito tempo, e que se pode aplicar medidas muito duras porque só se tem de viver com elas durante um período de tempo curto, mas claro que isto nunca foi verdade”.

    Destacou que se provou “ser muito mais difícil parar com uma medida que já se implementou” porque para se manter a confiança da população, não se pode estar a mudar de medidas constantemente. “Era muito difícil dizer hoje que ‘isto é uma doença mortífera e têm de ficar em casa e fazer nada e umas semanas depois dizer que está tudo OK”, disse.

    “Descobrimos também que, na nossa sociedade, a confiança é incrivelmente importante” e que “é mais fácil dizer que vivemos num mundo onde a confiança se está a deteriorar, o que penso ser terrível porque vai ter efeitos na saúde pública mas não só”. Tegnell elogiou o evento e a iniciativa da conferência e considerou que “há uma boa possibilidade, com este tipo de encontros, de ter diálogos abertos e reconstruir a confiança, não apenas confiança na academia e na população, como a confiança entre a academia e os funcionários públicos e os políticos, porque penso que, em certa medida, isso estava em falta, por isso é que em muitos lugares os políticos tomaram conta de tudo”.

    Deixou ainda um alerta: “temos de compreender que uma pandemia não é um problema de comunicação de doença, não é um problema de saúde, é um problema da sociedade. Então, temos mesmo de envolver toda a sociedade”. Por outro lado, destacou a importância de, numa pandemia, se proteger os mais pobres. “Mesmo numa sociedade com um nível de igualdade razoável, como a Suécia, podíamos ver que isto estava a prejudicar as pessoas com um estatuto socio-económico mais baixo e muito mais do que o resto da população, por isso temos de ser capazes de os proteger muito melhor antes que surja uma próxima pandemia”, avisou.

    Defendeu ainda que, no futuro, terão de se usar melhor os dados existentes. “Não sou um académico, sou um funcionário público, mas penso que não usámos realmente muito bem os dados que estavam disponíveis e precisamos usar melhor os dados”, disse.

    Anders Tegnell (à direita) participou no primeiro painel que debateu o tema “Decisões baseadas na evidência numa pandemia”. Foto: Rod Searcey/Department of Health Policy, Stanford University

    O segundo painel debateu o tema “Desinformação, censura e liberdade académica“, onde foi levantada a questão: “será que limitar a liberdade de expressão durante uma crise sanitária protege o público ao reduzir desinformação prejudicial ou será que põe em risco o silenciamento de dissidentes válidos e promovendo uma visão única e aprovada?”

    O terceiro painel debruçou-se sobre o tema “Gestão da pandemia de uma perspectiva global“, colocando na mesa de debate a pergunta: “como é que os interesses dos mais pobres podem ser melhor representados em decisões adoptadas por países ocidentais numa próxima pandemia?”

    Por fim, o quarto painel discutiu “As origens da covid-19 e a regulação da Virologia“. Isto num contexto de investigações que trouxeram à luz do dia que os Estados Unidos contribuíram com financiamento público para pesquisas perigosas envolvendo modificação de coronavírus no laboratório em Wuhan, na China, de onde se suspeita que poderá ter saído o SARS-CoV-2. O painel propunha que, “se a pandemia começou a partir de um comércio de vida selvagem inadequadamente regulamentado ou zoonoses, reformas para reduzir a probabilidade de contato humano com espécies selvagens são vitais”. Contudo, “se a pandemia começou devido a experiências laboratoriais perigosas e protocolos inadequados para evitar fugas, então uma regulamentação mais rigorosa desse tipo de experimentação é necessária”.

    O epidemiologista mais conceituado do mundo, John Ioannidis (à esquerda) e o co-autor da Declaração de Great Barrington Jay Battacharya (à direita), foram dois dos especialistas de topo a nível mundial que marcaram presença na conferência da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Ambos são professores em Stanford. Foto: Rod Searcey/Department of Health Policy, Stanford University

    O evento foi encerrado com uma apresentação de John Ioannidis, que mencionou a crise de excesso de mortalidade que afectou diversos países, incluindo Portugal, desde 2020. O reputado epidemiologista destacou, pouco depois do início da sua palestra, que recusou e não pediu financiamento para o seu trabalho de investigação sobre a covid-19. “Recebi um prémio honorário de 100.000 dólares, mas pedi que o dinheiro fosse destinado a duas organizações filantrópicas para crianças carenciadas, pois pessoalmente sinto que decepcionámos as crianças. Decepcionámos os pobres, as crianças pobres, o nosso futuro e a melhor parte do que é o ser humano”, afirmou.

    Depois, concordou com uma das conclusões dos trabalhos de que a pandemia “foi um desastre para alguns países, mas quase não houve excesso de mortes em outros e, para a grande maioria dos países do mundo, não temos uma ideia exacta do que aconteceu porque nem sequer temos bons sistemas de registo de óbitos para contar sequer quantas pessoas morrem, muito menos do que é que elas morrem”.

    Destacou que, “basicamente, em 34 países com dados de melhor qualidade sobre registo de óbitos, vimos que metade (17) não teve mortes em excesso comparadas aos anos imediatamente anteriores à pandemia, enquanto a outra metade enfrentou realmente um desastre” [Portugal está na metade com os piores dados]. Neste cenário, “os piores foram os Estados Unidos e a Bulgária”. Frisou que, “entre aqueles com menos de 65 anos, os Estados Unidos tiveram números muito piores do que qualquer outro país”. Quanto aos “melhores, foram a Suécia e a Nova Zelândia”, que são “dois países que tiveram abordagens muito diferentes sobre a forma de lidar com a crise”. Aproveitou para elogiar o estratega da resposta sueca: “fico feliz em ter Anders Tegnell connosco hoje. É a primeira vez que nos encontramos pessoalmente, e ele é, sem dúvida, uma lenda”, afirmou.

    Foto: Rod Searcey/Department of Health Policy, Stanford University

    Ioannidis apontou que, na sua opinião, o denominador comum “é que a covid-19 foi um desastre em países com alta desigualdade e em crise antes da pandemia”. Ou seja, “países sem recursos, com pobreza, onde uma grande parcela da população era marginalizada, sofreram mais”. “Esses países já estavam em crise e, infelizmente, continuarão em crise após a pandemia, o que me preocupa para o futuro”, afirmou.

    O especialista, que é médico, formado em Medicina Interna e Doenças Infecciosas, disse que os médicos “são os heróis desconhecidos que enfrentaram uma crise dupla” na covid-19.

    Observou que “a covid-19 mobilizou massivamente cientistas, académicos, especialistas em políticas e muito mais; influenciadores, redes sociais, jornalistas, políticos, decisores políticos, as grandes tecnológicas [Big Tech]”. Para Ioannidis, “ouvimos muitas dessas partes interessadas que interferiram no processo da Ciência”.

    Sobre os trabalhos de investigação publicados na pandemia, lamentou a sua fraca qualidade. Segundo Ioannidis, quase dois milhões de cientistas publicaram cerca de 720 mil artigos científicos, resultando em mais de 10 milhões de citações no Scopus. Na sua maioria, os artigos mais citados em 2020 e 2021 eram sobre covid-19. “Sabemos que na literatura científica, o artigo médio é horrível, mas os artigos sobre covid-19 foram mais horríveis do que horríveis e digo isso com total respeito por todo o trabalho incrível que aconteceu durante a pandemia”.

    Pensando no futuro, defendeu uma “Ciência útil”, para resolver problemas reais existentes. Defendeu também maior acesso a dados e informação por parte da comunidade científica. E defendeu que deve haver uma maior transparência, a divulgação de todo o tipo de declaração de interesses de cientistas e investigadores, quem os financia e até as suas posições políticas e outros conflitos de interesse.

    John Ioannidis. Foto: Rod Searcey/Department of Health Policy, Stanford University

    Em Portugal, existe o exemplo de Filipe Froes, um dos mais requisitados ‘especialistas’ pela imprensa e que nunca é apresentado como um consultor que presta serviços a farmacêuticas, designadamente participando em eventos para os quais é pago. Nunca são assim dadas a conhecer ao público as suas ligações e potenciais conflitos de interesse sempre que promove fármacos ou influencia políticas de saúde pública com impacto forte na vida da população.

    Na conclusão da sua apresentação, Ioannidis disse que “temos de pensar positivamente sobre o futuro”. “Não quero pensar que o nosso futuro será uma espiral de morte de decisões erradas”. Sinalizou que isso aconteceria “se permitíssemos o autoritarismo, e infelizmente há autoritarismo à nossa volta; se permitirmos desigualdades, e infelizmente há desigualdades à nossa volta; se permitimos que as pessoas que são marginalizadas sejam mais marginalizadas, e infelizmente isso está a acontecer enquanto falamos, pode não ser tão óbvio nesta sala, mas está a acontecer lá fora, na nossa comunidade; se permitirmos que os pobres se tornem mais pobres; se permitimos que os oprimidos se tornem mais oprimidos; se permitimos que o silêncio se torne mais silencioso; se permitimos que a humanidade desapareça”.

    Pode ver AQUI o vídeo da apresentação de John Ioannidis. Se preferir, pode ler AQUI a transcrição (com tradução para português) do discurso completo que John Ioannidis proferiu na conferência.

    Pode assistir AQUI aos vídeos da conferência.


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  • Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização

    Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização


    Em 16 de Setembro, o Ministério da Saúde palestiniano publicou um documento de 649 páginas com uma lista de todas as mortes causadas pela punição colectiva israelita de Gaza pelo massacre do Hamas em 7 de Outubro.

    A lista inclui mais de 34 mil das 41 mil vítimas de Gaza. As restantes vítimas ainda não foram identificadas. A lista não inclui as 10 mil pessoas (no mínimo) presas sob os escombros nem todas as vítimas indirectas da agressão israelita. O prazo abrangido pelo documento estende-se até 31 de Agosto. Desde então, pelo menos mais mil habitantes de Gaza foram mortos.

    Ao lado dos nomes das vítimas também estão listados o sexo, número de documento pessoal e idade. Nas primeiras 14 páginas do documento, o número na faixa ‘Idade’ é 0 Zero. São 14 páginas com o nome de crianças mortas antes de completarem o seu primeiro aniversário.

    Foto: D.R.

    No passado dia 9 de Setembro, outro ano escolar deveria ter começado em Gaza. Depois de um ano de horror indescritível, cerca de 640 mil crianças deveriam estar voltando às salas de aula. Cerca de 45 mil teriam ingressado no primeiro ciclo.

    É claro que isso não aconteceu.

    Enquanto 700 equipas das Nações Unidas (ONU) vacinavam em massa as crianças palestinianas contra a poliomielite, cujo ressurgimento em Gaza marca uma forma de eclipse social, as bombas e mísseis israelitas continuavam a chover. No dia em que as aulas deveriam ter começado, o exército israelita invadiu a escola do campo de refugiados de Nuseirat, que funcionava no âmbito do programa Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para a Palestina (UNRWA). Doze mil pessoas que tinham sido expulsas das suas casas encontraram refúgio lá. Vinte e cinco foram mortas no ataque; seis eram funcionários da ONU. Em pouco menos de um ano, 250 trabalhadores humanitários e 170 jornalistas foram assassinados no enclave palestiniano – mais do que em qualquer guerra até agora.

    Este ataque ao que deveria ter sido uma zona segura custou a uma mãe palestiniana todos os seus seis filhos.

    Cerca de 40% das vítimas do massacre israelita em Gaza eram crianças. Outras 20.000 crianças ficaram órfãs ou separadas dos pais. Um ano de destruição indescritível que certamente se estenderá pelas gerações vindouras.

    Foto: D.R.

    Neste momento, nenhum lugar em Gaza é seguro. De acordo com dados da ONU, 93% dos habitantes foram deslocados internamente – a maioria deles várias vezes, alguns deles até 10 vezes. Mais de 80% de Gaza foi devastada. O enclave palestiniano foi praticamente demolido, portanto, tornou-se inabitável durante anos.

    Mais de um milhão de pessoas – um pouco menos de metade da população de uma das áreas mais densamente povoadas do mundo – está a tentar sobreviver nas condições brutais no campo de Al Mawasi, na costa do Mediterrâneo. A maioria deles fugiu para lá depois que o exército israelita lançou uma ofensiva terrestre em Rafah, onde 1,3 milhão de pessoas procuraram refúgio após os primeiros meses da invasão de Israel.

    Em Al Mawasi, os refugiados exaustos, doentes e profundamente traumatizados quase não têm água, alimentos e medicamentos à sua disposição. As condições nos outros abrigos temporários entre as ruínas pós-apocalípticas são praticamente as mesmas. Apenas alguns hospitais em Gaza conseguiram continuar a funcionar. Inúmeras instalações médicas foram saqueadas; centenas de trabalhadores médicos assassinados. Durante semanas a fio, as forças israelitas sitiaram vários hospitais, incluindo o maior deles – Al Shifa.

    A situação dos residentes de Gaza agravou-se ainda mais em Maio, durante a ofensiva terrestre em Rafah, quando o exército israelita assumiu o controlo do lado palestiniano da passagem da fronteira egípcia – e pouco depois também do chamado Corredor de Filadélfia.

    Isto provocou a paralisação quase total da ajuda humanitária, cujo afluxo já tinha sido severamente dificultado pelos bloqueios israelitas. É agora claro que Israel optou por recrutar a fome em massa como mais uma arma no seu arsenal. Neste momento, mais de 70% da população de Gaza está a passar fome, totalmente dependente da ajuda externa que quase nunca chega. Isto é especialmente verdadeiro no caso do isolamento a norte de Gaza, que foi transformado num gueto faminto onde as forças israelitas atacaram comboios humanitários em diversas ocasiões.

    Já há dois meses, a reputada revista médica britânica The Lancet estimou o número total de vítimas directas e indirectas da agressão israelita em 186.000. Ou 8% de toda a população de Gaza.

    Guerras Eternas

    Pode-se perguntar: como pode ser tudo isso?

    As estruturas internacionais não estão a funcionar. As Nações Unidas foram há muito reduzidas a um fóssil vivo que presidiu a um número cada vez maior de genocídios (Ruanda, Srebrenica, Darfur, Gaza, …). O domínio geral dos membros permanentes do Conselho de Segurança, em combinação com os seus direitos de veto, representam o obstáculo final a qualquer tipo de intervenção competente. Especialmente agora, em tempos de perturbação bipolar global, cujas guerras frias estão agora a fundir-se numa guerra bastante quente.

    As decisões do Tribunal Penal Internacional (ICC) e do Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia perderam há muito tempo quase toda a relevância. O mesmo se aplica ao direito humanitário internacional, às principais convenções internacionais e ao próprio conceito de direitos humanos, que agora parecem meros ecos de uma época passada que talvez nunca tenha realmente existido. Os tempos tornam-se mais distópicos a cada hora – e mais divididos, racistas e estratificados. Todos os contratos sociais há muito existentes estão a desmoronar-se diante dos nossos olhos. É praticamente o mesmo em todo o mundo, e certamente no Ocidente agora quase impossivelmente narcisista.

    Esta é parte da razão pela qual vivemos numa época de guerra eterna.

    Nem uma única guerra iniciada depois do 11 de Setembro de 2001 terminou realmente. No Afeganistão, em Agosto de 2021 assistiu-se ao regresso dos Taliban ao poder, após 20 anos de ocupação norte-americana. Sim, muitos dos combates podem ter acalmado, mas a guerra contra a população afegã está longe de terminar. A invasão do Iraque pela “coligação” em Março de 2003 – seguida de uma ocupação e de uma guerra civil selvagem – enviou ondas de choque por toda a região. Os ecos da guerra no Iraque tiveram um impacto terrível na guerra sem fim na Síria e nos horrores em curso no Iémen, que a chamada comunidade internacional há muito varria para debaixo do tapete.

    A guerra que eclodiu no Sudão, em Abril passado é uma das guerras mais horríveis do nosso tempo. Segundo dados da ONU, também provocou a maior crise humanitária da história… E não há fim à vista. Tal como aconteceu com os conflitos na Líbia e na República Democrática do Congo. Este último conflito dura desde 1997. Os seus primeiros seis anos custaram seis milhões de vidas.

    E depois há a guerra na Ucrânia, que traz todas as características de mais uma guerra eterna. Ao lado dos massacres diários em Gaza, é o melhor testemunho da total irresponsabilidade da comunidade internacional, que é cada vez mais liderada por psicopatas e até por assassinos em massa.                         

    a yellow car is parked on the side of the road
    Foto: D.R.

    Poucos dias depois das atrocidades do Hamas no sul de Israel, o secretário-geral da ONU, António Guterres, comentou que os ataques do Hamas “não aconteceram no vácuo“. Foi a descrição mais branda possível de 75 anos de racismo sistematizado, roubo de terras, deslocalizações forçadas, apartheid, humilhação colectiva e violência perpetrada por Israel.

    A manhã de 7 de Outubro trouxe a constatação de que o status quo se foi para sempre. E que uma resposta selvagem de Israel era inevitável. Também era certo que a comunidade internacional não conseguiria encontrar uma resposta. Parafraseando o secretário-geral: o que aconteceu depois dos ataques do Hamas também não aconteceu no vácuo.

    Tudo o que foi dito acima foi perfeitamente compreendido pelos líderes do Hamas, que optaram por ceder à sua própria impotência política e ao estado completamente depravado da política interna palestiniana para levar a sua própria nação à beira da ruína total. Após a sua tomada violenta do poder no Verão de 2007, o Hamas governou o enclave palestiniano com mão de ferro. E também, de mãos dadas com os seus co-progenitores, a elite política israelita.

    Foi a receita perfeita para um desastre total e implacável.            

    Foto: D.R.

    Durante o ano de massacres em massa em Gaza, as autoridades israelitas de extrema-direita lideradas pelo eterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não conseguiram alcançar um único dos seus objectivos oficiais. Cerca de 100 reféns israelitas ainda permanecem em Gaza, embora não esteja claro quantos ainda estão vivos e quantos foram mortos pelos seus captores ou pelas bombas e mísseis israelitas.

    Esta é a principal razão por trás dos protestos em massa que ocorrem nas ruas de Tel Aviv e de outras cidades israelitas todos os fins de semana. Em 14 de Setembro, por exemplo, mais de um milhão de israelitas protestaram e exigiram a libertação imediata dos reféns. Não pela força militar, que já se revelou insuficiente, mas através da negociação de um cessar-fogo com o Hamas.

    Depois de um ano de selvageria desenfreada, o exército israelita não conseguiu derrotar o Hamas, nem no sentido militar nem no sentido político. Apesar de ter sofrido enormes baixas, a posição do Hamas na região foi significativamente reforçada. Acima de tudo, nas ruas do mundo árabe, onde ainda existe um mínimo de solidariedade para com os palestinianos… Ao contrário das elites políticas árabes corruptas, que ficaram suficientemente felizes em trair Gaza pelo que parece ser uma última vez.

    Tendo em conta o facto de o Hamas ser indiscutivelmente uma organização terrorista e de as autoridades palestinianas (AP) serem meros subcontratantes da ocupação israelita, os palestinianos não têm ninguém que os represente.

    Israel como uma ameaça a si mesmo

    Apesar de toda a carnificina, Israel ainda está inundada com enormes quantidades de armas.

    Segundo os últimos dados da Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a grande maioria das armas importadas por Israel entre 2019 e 2023 veio dos Estados Unidos (65,6%); 29,7% vieram da Alemanha, 4,7% de Itália. Há dois meses, Washington autorizou uma venda adicional de armas a Israel no valor de 20 mil milhões de dólares.

    De acordo com dados do SIPRI, as vendas combinadas de armas europeias a Israel no ano passado totalizaram 326,5 milhões de euros – 10 vezes mais do que em 2022. Por outro lado, o Ministério da Defesa de Israel admite livremente que Israel exportou 13 mil milhões de dólares em armas em 2023. O seu acordo de armas mais lucrativo foi com a Alemanha, que pagou a Israel 3,5 mil milhões de dólares pelas suas armas. Interceptador de mísseis antibalísticos Arrow 3 sistema.

    No Médio Oriente, tal como em qualquer outro lugar, enriquecer com a guerra é normalmente uma via de dois sentidos.

    Foto: D.R.

    Um ano de violência em Gaza e cada vez mais ao longo da Cisjordânia ocupada também enfraqueceu significativamente o próprio Israel. As suas perspectivas de segurança, sociais, económicas e políticas diminuíram enormemente. Muitos investimentos internacionais foram retirados. Em todos os 76 anos da sua história, Israel nunca esteve tão dividido internamente e insultado globalmente.

    Vale a pena afirmar que Netanyahu e os seus parceiros de coligação de extrema-direita, messiânicos e semelhantes aos Taliban começaram a conduzir o Estado judeu para o seu actual caminho totalitário ainda antes de 7 de Outubro. A sede de poder do primeiro-ministro de Israel nunca foi tão evidente quando tentou aprovar uma forma judicial que colocaria o Supremo Tribunal – o tradicionalmente mais independente e progressista entre as instituições israelitas – inteiramente sob o seu controlo.

    Atenção: a motivação de Netanyahu era mais pessoal do que política. Ainda há um julgamento em andamento sobre suas supostas práticas corruptas.

    Ao longo dos últimos anos, os extremistas governantes liderados por Netanyahu levaram a cabo uma espécie de revolução (anti)cultural em Israel. No entanto, apesar disso, e do facto de as autoridades israelitas terem sido totalmente culpadas pelo fiasco de segurança de 7 de Outubro, o controlo do poder do primeiro-ministro parece mais firme do que era há um ano. Não importa que nenhum dos seus principais objectivos políticos declarados tenha sido alcançado. E não importa que, ao espalhar o conflito ao Líbano, à Síria, ao Irão e ao Iémen, o primeiro-ministro expôs o Estado judeu a um grave risco existencial.

    Em 13 de Setembro, o jornal israelita Maariv publicou uma sondagem segundo a qual Netanyahu e o seu partido ainda ganhariam o maior número de assentos no parlamento. A mesma sondagem também evidenciou que a popularidade pessoal do primeiro-ministro aumentou desde o início da guerra. O público israelita parece considerá-lo o homem mais adequado para o cargo.

    Foto: D.R.

    Mais uma vez: como pode estar a acontecer tudo isto?

    Toda a oposição política genuína no país foi extinta. O que resta é liderado por oportunistas desavergonhados como Beni Gantz, que a Casa Branca há muito escolheu como sucessor de Netanyahu.

    O que hoje em dia passa por oposição é, portanto, cúmplice da orgia contínua de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Palavras semelhantes poderiam ser usadas para descrever uma grande parte dos actuais manifestantes antigovernamentais. O terrível sofrimento dos palestinianos não é algo com que se sintam obrigados a preocupar-se, dado que os seus protestos são sobretudo alimentados por preocupações etnocêntricas.

    Em abril passado, o historiador Amos Goldberg, professor associado da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou um artigo muito significativo na revista israelita Sicha Mekommit.  Intitulado, ‘Sim, isso é genocídio‘, o artigo classificava em alto e bom som as acções israelitas em Gaza como genocídio – e depois justificava meticulosamente a afirmação.

    É claro que tal posição exige enorme coragem no Israel de hoje. Os riscos estão longe de ser negligenciáveis.

    Prevalece na sociedade israelita uma atmosfera radical de desumanização dos palestinianos de um nível tal de que não me consigo lembrar nos meus 58 anos de vida aqui.” Goldberg declarou recentemente numa entrevista.

    Goldberg também relatou que a princípio hesitou muito em usar a palavra genocídio e tentou fazer tudo o que pôde para se convencer do contrário. “Ninguém quer ver-se como parte de uma sociedade genocida. Mas havia uma intenção explícita, um padrão sistemático e um resultado genocida – então, cheguei à conclusão de que é exatamente assim que o genocídio se parece”, diz Goldberg.

    Uma vez que você chega a essa conclusão, você não pode ficar em silêncio“, disse o historiador israelita de forma clara.

    Portanto, cabe aos corajosos historiadores locais continuarem dizendo a verdade. Mas quem fornecerá os dados para futuros bravos historiadores? Os jornalistas estrangeiros continuam impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas nacionais estão a ser mortos propositadamente pelo exército israelita.


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  • “Culpado de fazer jornalismo”: Conselho da Europa diz que Assange foi um preso político

    “Culpado de fazer jornalismo”: Conselho da Europa diz que Assange foi um preso político

    A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa considerou que Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi um preso político no Reino Unido. Após uma audiência a Assange, esta semana, a instituição apelou aos Estados Unidos para que alterem a Lei de Espionagem e pediu ao país para que não a volte a usar contra jornalistas. A audiência, que teve lugar em Estrasburgo, marcou a primeira declaração pública de viva voz por parte do jornalista australiano. Na sua declaração numa sessão plenária do Conselho da Europa, Assange declarou que apenas está em liberdade porque aceitou dar-se como “culpado de fazer jornalismo”.


    A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europeu (APCE) considerou que Julian Assange, jornalista e fundador da WikiLeaks, foi um preso político quando esteve detido no Reino Unido, na sequência de uma acusação dos Estados Unidos.

    A instituição condenou o encarceramento de Assange e pediu aos Estados Unidos para alterarem a Lei de Espionagem de 2017 e também apelou que não a mesma não seja de novo usada contra jornalistas.

    O jornalista e fundador da WikiLeaks esteve ontem presente numa sessão plenária do Conselho Europeu, junto com a sua mulher, Stella Assange, e o editor-chefe da WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson. Na sua declaração proferida perante a audiência, Julian Assange afirmou: “estou livre hoje, após anos de encarceramento, porque porque me declarei culpado de fazer jornalismo”.

    Stella e Julian Assange na sessão plenária da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Foto: D.R./Wikileaks

    O Conselho da Europa, com sede em Estrasburgo, França, foi criado em 1949 e é uma instituição que actua na defesa dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito no continente europeu. A Assembleia reúne membros de 46 nações que integram o Conselho Europeu e já antes tinha condenado a detenção de Assange e tinha alertado para o grave precedente que a sua prisão criou.

    A APCE aprovou uma resolução sobre “A detenção e condenação de Julian Assange e os seus efeitos arrepiantes nos direitos humanos” com 88 votos a favor, 13 contra e 20 abstenções.

    Na resolução, a Assembleia Parlamentar mostrou uma profunda preocupação em relação “ao tratamento duro e desproporcional” que Assange enfrentou e considerou que criou “um efeito perigoso e arrepiante” que ameaça a protecção de jornalistas e denunciantes em todo o Mundo.

    Julian Assange à saída do tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte (território dos Estados Unidos), já como um homem livre. (Fonte: D.R.)

    Assange foi finalmente libertado, no passado mês de Junho, depois de ter aceitado um acordo com a Justiça norte-americana. Para sair em liberdade, o jornalista declarou ser culpado do crime de conspiração para fazer espionagem por publicar provas de crimes de guerra e abusos de direitos humanos por parte dos Estados Unidos e irregularidades cometidas pelos Estados Unidos em todo o Mundo.

    Foi o fim de 14 anos de perseguição, que incluíram o encarceramento de Assange em condições duras numa prisão de alta segurança no Reino Unido. Assange regressou entretanto ao seu país Natal, a Austrália, onde reside actualmente com a mulher e os dois filhos do casal.

    Numa entrevista ao PÁGINA UM, em Março deste ano, Stella Assange afirmou que já tinha alertado que o caso do seu marido era apenas um dos sinais alarmantes da crescente tendência de se querer eliminar a liberdade de imprensa e censurar.

    De resto, na Europa tem vindo a ser implementada legislação, como a nova directiva para os media e a directiva sobre serviços digitais, que tem merecido críticas por abrir a porta ao amordaçar de jornalistas e agrilhoar da liberdade de expressão. [Sobre este temas pode ler mais AQUI AQUI].

    Além disso, recentemente a Comissão Europeia tentou que fosse aprovada legislação para eliminar a privacidade e a encriptação de mensagens, ferramentas essenciais para o jornalismo e protecção de denunciantes.

    Nota: Pode ler AQUI o testemunho completo de Julian Assange perante a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa.


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  • Sinais de corrupção atingem um terço dos gastos públicos do Reino Unido durante a pandemia

    Sinais de corrupção atingem um terço dos gastos públicos do Reino Unido durante a pandemia

    Uma organização anti-corrupção, a Transparency International UK, detectou 135 contratos públicos adjudicados durante a pandemia de covid-19 que levantam fortes suspeitas de terem envolvido práticas corrupção. No total, estes contratos envolveram um montante de 18,2 mil milhões de euros, cerca de um terço de toda a despesa pública efectuada na pandemia pelo país. Agora, aquela organização apela às autoridades britânicas para investigarem os contratos suspeitos. Não foi só no Reino Unido que a gestão da pandemia escancarou a porta para a corrupção. Em Portugal, houve o chamado ‘cartel dos testes’, envolvendo os maiores laboratórios do país, mas também floresceu a falta de transparência, como no caso dos contratos das vacinas assinados pela Direcção-Geral da Saúde, que permanecem envoltos em opacidade. Um processo de intimação do PÁGINA UM, apresentado em Dezembro de 2022, ainda não tem desfecho previsto, devido a sucessivas procrastinações e mentiras do Ministério da Saúde.


    A Transparency International UK, uma organização britânica anti-corrupção, analisou 5.000 contratos públicos adjudicados no Reino Unido durante a pandemia da covid-19 em busca de sinais de potencial corrupção. A análise aos contratos públicos detectou a existência de problemas significativos em contratos no valor de 15,3 mil milhões de libras (ou 18,2 mil milhões de euros), o que corresponde a um terço dos gastos globais. Segundo a análise da mesma organização, foram identificados 135 contratos com sinais de alto risco de poderem envolver práticas de corrupção.

    Testes, material de protecção médica e máscaras geraram estão entre os bens que originaram contratos nebulosos no Reino Unido. Um total de 28 contratos, no valor de 4,1 mil milhões de libras (4,9 mil milhões de euros), foram adjudicados a empresas com conhecidas ligações políticas. Outros 51 contratos, no montante de 4,0 mil milhões de libras (4,75 mil milhões de euros), foram adjudicados através de uma via VIP para empresas recomendadas por membros do parlamento e pares, uma prática que o Supremo Tribunal considerou ser ilegal.

    Para a Transparency International UK, a suspensão das regras normais de prevenção da corrupção no Reino Unido, careceu de fundamentação, na maior parte dos casos, tendo a medida acabado por trazer prejuízo aos contribuintes. Segundo aquela organização, quase dois terços dos contratos de valores mais elevados para fornecer bens como máscaras e equipamento de protecção médica durante a pandemia, num total de 30,7 mil milhões de libras (36,5 mil milhões de euros), foram adjudicados por ajuste directo.

    Um grupo de oito contratos, num valor global de 500 milhões de libras (593,8 milhões de euros) foram entregues a empresas que não tinham mais de 100 dias de existência, que é um dos sinais de alarme na prevenção da corrupção.

    A Transparency International UK, uma organização que tem tido um papel forte e activo na investigação à gestão da pandemia naquela país, apelou às autoridades para que investiguem os contratos identificados como apresentando um risco muito elevado de corrupção.

    Em Portugal, foi notícia, recentemente, a aplicação de coimas ao chamado ‘cartel dos testes‘ que envolveu os grandes laboratórios de análises clínicas do país. Mas, além da corrupção, a gestão da pandemia trouxe falta de transparência em diversos contratos públicos. O PÁGINA UM, por exemplo, aguarda ainda o desfecho da intimação colocada no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Direccção-Geral da Saúde para o acesso aos contratos da compra das vacinas para a covid-19, bem como da correspondência com as farmacêuticas e as guias de remessa. A acção foi colocada em 31 de Dezembro de 2021, ou seja, há quase 21 meses.

    O Ministério da Saúde tem tentado aproveitar o secretismo dos acordos prévios assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas para convencer a juíza deste exasperante e longo processo, Telma Nogueira, a considerar os tribunais administrativos portugueses incompetentes para analisar o pedido. A suceder significaria que qualquer acto administrativo que decorresse de Bruxelas podia estar vedado aos cidadãos portugueses se houvesse qualquer cláusula secreta determinada por ‘eurocratas’ não-eleitos, independentemente da sua cidadania.

    person in blue jacket holding white textile

    Depois de o Tribunal Geral da União Europeia ter considerado abusivas as cláusulas de confidencialidade, a juíza Telma Nogueira instou o Ministério da Saúde, antes de concluir a sentença, a fornecer-lhe os contratos assinados pelo Estado português, bem como a correspondência. E deu um prazo de 15 dias. Esta semana, no limite deste prazo, a directora-geral da Saúde, Rita Sá Machado, pediu uma prorrogação de de mais 40 dias. A juíza concordou, o que, em princípio, fará com que um processo de intimação, considerado urgente, vá demorar, na primeira instância, aproximadamente dois anos.

    Além deste negócio da compra das vacinas, merece também destaque em Portugal uma aquisição sem contrato no valor de 20 milhões de euros do antiviral Paxlovid, da farmacêutica Pfizer, usando uma norma legal já revogada. De entre os casos obscuros de aquisição de testes e diversos materiais de protecção individual, estão situações qm que as empresas não detinham sequer qualificações nem histórico no sector.

    Houve também entidades públicas que esconderam compras por ajuste directo e sem documentos de suporte conhecidos, aproveitando um regime especial de contratação pública que dispensava a redução a escrito. O caso mais gritante detectado ao longho dos anos pelo PÁGINA UM passou-se no Hospital de Braga, presidido por João Porfírio Oliveira, que escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros relacionados com a pandemia por mais de dois anos. Em muitos nem se sabe o que se comprou. O PÁGINA UM ainda aguarda que o Tribunal de Contas se pronuncie sobre esta matéria.


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  • Ártico: quando o degelo e a geopolítica entram em choque

    Ártico: quando o degelo e a geopolítica entram em choque

    Nos últimos dois meses, o arquipélago norueguês de Svalbard derreteu cinco vezes mais rápido do que o normal. Nesta reportagem, o jornalista Boštjan Videmšek detalha a transformação por que está a passar toda a região, não só devido aos efeitos do degelo, mas também aos impactos das tensões entre o Ocidente e a Rússia, que colocaram a zona na linha da frente de um xadrez geopolítico.


    O convés superior do navio de exploração MS Polar Girl, com 60 anos de idade, mas maravilhosamente preservado, oferecia uma vista fantástica dos glaciares azuis e brancos. Estávamos a navegar para Barentsburgo, uma cidade mineira de propriedade da empresa estatal russa Arktikugol Trust … O que significava que estávamos a caminho para um novo campo de batalha geopolítico importante e em direção à linha de frente de nosso clima em mudança.

    Nos últimos dois meses, o arquipélago norueguês de Svalbard derreteu cinco vezes mais rápido do que o normal, de acordo com as últimas imagens de satélite da NASA.

    É bastante aterrorizador como se pode observar a massa gelada a descer lentamente para o oceano. Durante a minha visita, o degelo foi ainda mais acelerado pelo facto de que o sol do meio-dia tinha adquirido uma presença quase mediterrânea. Pelo segundo dia consecutivo, as leituras do termómetro ultrapassaram os 20 graus Celsius.

    Barentsburgo, localizada no Alto Ártico, começa a acostumar-se à quebra de recordes de temperatura. “Poderia ser descrita como Alterações Climáticas ao Vivo (Climate Change Live)”, disse um guia chamado Masha, com uma expressão de reprovação, no convés superior da MS Polar Girl.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Vindo de Omsk, nos Urais, Masha chegou a Barentsburgo em 2021. O seu domínio das línguas inglesa e norueguesa, obtido através dos seus estudos em Moscovo, obrigou alguns “caçadores de cabeças” a oferecerem-lhe um emprego em Svalbard.

    “Agarrei a oportunidade”, Masha explicou. “Em parte, porque isso significava que eu poderia ajudar financeiramente a sustentar os meus pais. O primeiro ano em Barentsburgo foi ótimo! Fui completamente afastado de qualquer tipo de política. Estávamos simplesmente a viver as nossas vidas. Senti-me muito mais livre … Mas depois tudo começou a mudar.”

    Masha fez uma breve pausa no seu relato para apontar um amontoado de morsas a absorver o sol. “É por isso que amo tanto Svalbard!” exclamou.

    Masha deixou Barentsburgo há dois anos – pouco depois do início da invasão russa da Ucrânia, que teve um efeito gravemente negativo na vida quotidiana da cidade mineira do Ártico. Antes da guerra, Barentsburgo abrigava cerca de 700 habitantes. Hoje em dia, não restam mais de 400.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    “O turismo viu um declínio acentuado”, contou Masha durante a nossa viagem a Barentsburgo. “Muitas pessoas decidiram sair. Eu fui uma delas.”

    Ela decidiu ir para Longyearbyen, cidade mineira norueguesa e o maior assentamento em Svalbard. Encontrou imediatamente um emprego no navio em que navegávamos a caminho para o reduto russo em Svalbard.

    Agora, Masha vive e trabalha no barco. “Cresci a amar este modo de vida. Como guia, posso fazer quatro vezes o que fiz em Barentsburgo. E gosto muito de trabalhar com pessoas. Excepto, claro, aqueles que me julgam pela minha nacionalidade, culpando-me por tudo o que está a acontecer só por causa da minha nacionalidade! Mas sabe, tornei-me muito seletiva quanto a permitir que essas pessoas ditem o meu humor.”

    Barentsburgo. (Foto: Boštjan Videmšek)

    A jovem russa passa metade do ano a trabalhar no navio e a outra metade a viajar pelo mundo. Ela gosta especialmente da Ásia, onde na maioria das vezes não precisa de visto.

    “Olhe!”, gritou pouco antes de o navio entrar no porto de Barentsburgo. A poucos passos de distância, dois grupos de baleias brancas beluga brincavam sob o brilho do sol.

    Tudo o que podíamos fazer era ficar em silêncio.

    Um reduto russo em Svalbard

    Ao chegar ao porto, fomos recebidos por uma estrela desenhada na face de uma colina, ao lado de um slogan que dizia “Миру-мир!‘ (‘Paz para o Mundo!“)

    Equipas de trabalhadores preparavam carregamentos de carvão negro para o transporte. Uma densa fumaça branca subia da chaminé de uma central térmica azul. Camiões pesados russos continuaram a fazer as rondas ao longo da estrada de cascalho fortemente revestida de cinzas negras. A antiga sede da empresa estatal russa de mineração ostentava as bandeiras russa e soviética.

    Parecia que estávamos prestes a entrar em um museu ao ar livre.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Barentsburgo foi baptizada em homenagem ao explorador holandês do Ártico Willem Barentzs. No dia 7 de Março deste ano, a cidade comemorou 100 anos de existência. A partir de 1932, tem sido propriedade da então empresa de mineração soviética, e agora controlada pelo Estado russo, Arktikugol Trust.

    De acordo com o Tratado de Svalbard de 1920, o arquipélago ártico está sob jurisdição e soberania norueguesa. No entanto, todos os países signatários (46) podem exercer livremente actividades económicas. No auge da onda de mineração, cerca de 4000 pessoas das ex-repúblicas soviéticas viviam em Svalbard. Agora, restam apenas cerca de 400, a maioria russos.

    Enquanto subia os íngremes degraus de madeira que levavam ao porto, vistas deslumbrantes de glaciares ao meu redor contrastavam nitidamente com imagens de outra época.

    Em cada passo, podia ver bandeiras russas e soviéticas a ondular na brisa. Em frente a um complexo de apartamentos de muitos tons típico das cidades satélites comunistas, uma alta estátua de bronze de Lenine resistiu em toda a sua serenidade benéfica. O slogan do homem “Comunismo – o nosso objetivo!” foi inscrito em letras enormes no prédio de apartamentos atrás da estátua.

    Vestígios de um passado soviético “glorioso” são omnipresentes nesta cidade, onde a maior parte da acção ocorre no subsolo profundo – até 1000 metros abaixo da superfície do mar, onde está localizada a galeria mais distante da mina.

    Apesar da falta de rentabilidade, a mina opera 24 horas por dia, todos os dias.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    As coisas são estranhamente semelhantes na outra cidade mineira russa na região, a há muito abandonada Pyramiden.

    Em 21 de junho, uma enorme bandeira soviética apareceu na montanha acima da cidade. Antes disso, as autoridades locais russas ergueram uma cruz ortodoxa considerável nos arredores da cidade. “A nossa tradição foi renovada e assim vai continuar viva”, declarou a direção da Arktikugol. No estilo de um soldado de infantaria soviético a libertar uma fortaleza nazi, a bandeira soviética no topo da montanha vizinha foi plantada pelo CEO da Arktikugol, Ildar Neverov.

    O provocador hasteamento de bandeiras parece ter sido transformado num desporto amado pelo Ártico russo. Durante o desfile da vitória do ano passado, em 9 de Maio, Arktikugol chegou a hastear a bandeira da autoproclamada República Popular de Donetsk. A bandeira foi pendurada em Pyramiden. Durante o desfile deste ano, a rua principal de Barentsburgo foi tomada por uma procissão de trenós de neve replectos de pessoas vestidas com uniformes do exército russo e a agitar bandeiras russas.

    Perto do lendário  pub Red Bear, notei alguns veículos militares noruegueses BV206 com bandeiras russas.

    No entanto, o papel principal da grande proliferação de símbolos russos e soviéticos em Barentsburgo e Pyramiden não é a preservação da história. Longe disso: a ubiquidade dos símbolos nacionais e ideológicos é uma questão da atual geopolitik real russa.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Dadas as consequências das alterações climáticas – que, em Svalbard, podem ser observadas a olho nu – a relevância geopolítica do Arquipélago Ártico é agora maior do que mesmo durante a Guerra Fria. Especialmente, depois do rápido desaparecimento do gelo marinho ter começado a abrir novas rotas marítimas, ligando a região do Pacífico Extremo Oriente ao Oceano Atlântico.

    O papel geopolítico e de segurança do Ártico também se acentuou devido às graves tensões entre a Rússia e o mundo ocidental. Essas relações estão atualmente piores do que nunca, disseram-me entrevistado após entrevistado.

    Na sequência da agressão russa à Ucrânia e da adopção de sanções ocidentais, as relações diplomáticas historicamente bastante sólidas entre a Rússia e a Noruega também sofreram um golpe. A Frota do Norte da Rússia está ancorada na península de Kola, a oeste de Svalbard, onde um grande número de ogivas nucleares também estão estacionadas. Ao mesmo tempo, a NATO está a exercer uma pressão crescente sobre a Noruega para reforçar a sua presença militar no Ártico. Há um ano, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo chegou mesmo a recategorizar a Noruega de país “hostil” para “muito hostil”.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Em 2019, Vladimir Putin criou um “comité Svalbard” especial. Em discursos anteriores, o líder russo salientou frequentemente a importância estratégica do Ártico e as suas benesses naturais para o crescimento económico da Rússia. Para que não nos esqueçamos: em 2007, a Rússia optou por hastear a sua bandeira no Polo Norte – um gesto simbolicamente profundamente agressivo.

    Sobre Svalbard, também se mostrou haver apetites crescentes por parte de alguns dos outros países signatários do Tratado de Svalbard de 1920. Por exemplo, a China, que agora deseja abertamente renomear-se como “um país ártico”. Em Julho, o governo norueguês suspendeu a venda do último grande pedaço de propriedade privada em Svalbard (Søre Fagerfjord) a um comprador chinês desconhecido. O governo norueguês pretende agora comprar a propriedade por cerca de 350 milhões de euros.

    Na opinião da China, o bloqueio da venda representou uma violação do tratado de Svalbard, especialmente da disposição que concede direitos iguais em relação às actividades económicas no arquipélago para cada um dos países signatários.

    De acordo com praticamente todas as pessoas com quem falei sobre Svalbard, todos estes desenvolvimentos só podem e devem ser interpretados no contexto geopolítico mais amplo.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    A Rússia não reforçou a sua presença em Svalbard apenas para hastear bandeiras. Pretende também abrir um novo centro de exploração científica na cidade abandonada de Pyramiden. Moscovo já convidou oficialmente a China, a Índia e a África do Sul a participar – bem como o Irão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

    Uma das instituições que colaboram para a criação do novo centro científico russo é o Instituto Biológico Marinho de Murmansk.

    “Em 2022, a cooperação com países hostis parou, embora antes disso estivesse a desenvolver activamente. Agora que o vector se virou para o Oriente, estamos a desenvolver a cooperação com os nossos colegas chineses”, disse, há algumas semanas, Denis Moissev, adjunto do diretor do Instituto Murmansk, ao jornal russo Komsomolskaya Pravda.

    A Rússia anunciou os seus planos para a abertura do centro científico logo após a Noruega ter declarado que o  Centro Universitário UNIS, sediado em Longyearbyen, era a única instituição de ensino superior autorizada no arquipélago.

    Sem surpresa, a Noruega vê a introdução do novo centro científico como uma mudança territorial. “Queremos reforçar o controlo nacional e reforçar a presença norueguesa no arquipélago”, revelou recentemente a ministra da Justiça da Noruega, Emilie Enger Mehl.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Aquando da minha visita, Barentsburgo parecia uma cidade tranquila e quase vazia. Apenas algumas pessoas podiam ser vistas a passear pela rua principal, a maioria delas turistas. E os blocos de apartamentos também não estavam exactamente repletos de vida.

    “Aldeia de Potemkin! (que simboliza uma imagem de fachada)’ foi a minha primeira associação espontânea.

    A pequena e bela capela ortodoxa de madeira construída para homenagear os mineiros mortos num acidente de avião em 1996 também parecia deserta. Apenas o já mencionado pub Red Bear ainda evidenciava sinais de antiga glória.

    Quatro anos e meio de paralisação contínua – primeiro induzida pelo coronavírus, depois devido à guerra – cobraram um alto preço à cidade mineira russa, onde a qualidade de vida costumava superar a da norueguesa Longyearbyen, localizada do outro lado do fiorde.

    Não resta muito carvão abaixo de Barentsburgo. E o pouco que resta é cada vez mais caro e difícil de extrair. Os mineiros, trabalhando ininterruptamente em quatro turnos, precisam de uma hora para chegar à galeria mais distante.

    A cidade foi mantida à tona através de injecções financeiras substanciais do Estado russo. As autoridades russas compreendem, naturalmente, que Barentsburgo não pode continuar a ser uma cidade mineira por muito mais tempo. É por isso que a empresa estatal Arktikugol decidiu empreender uma grande mudança na direção do turismo. Mas a pandemia eclodiu, seguida de guerra e sanções.

    Barentsburgo está agora a considerar seriamente a construção de uma fábrica de processamento de peixe. É imperativo que a Rússia mantenha uma presença em Svalbard, custe o que custar.

    Relações cortadas

    A antropóloga Dina Brode Roger é uma estudante contínua do Ártico. Regressa a Svalbard desde 2016. Em média, passa 6 meses por ano no arquipélago ártico. Antes disso, explorou a Gronelândia, o Alasca e a Islândia.

    Nos últimos oito anos, ela observou uma tremenda mudança em Svalbard. Especialmente relacionadas com as alterações climáticas, cujas consequências não são provavelmente mais óbvias do que aqui. No entanto, as consequências sociais e económicas do aumento das tensões geopolíticas também tiveram um enorme impacto.

    Dina Brode Roger. (Foto: Boštjan Videmšek)

    Brode Roger partilhou que desde 24 de fevereiro de 2022 – data que marca o início da agressão russa na Ucrânia – nunca visitou Barentsburgo. “Foi uma decisão pessoal.” Ela recusou-se a cooperar no projeto de propaganda que acreditava que o regime russo estava a conduzir na pequena cidade mineira.

    Antes disso, costumava fazer visitas regulares a Barentsburgo e Pyramiden.

    “Costumava haver bons contactos entre o lado norueguês e o lado russo”, disse-me Dina Brode Roger em Longyearbyen. “Especialmente através dos intercâmbios culturais e desportivos. Foi o mesmo no auge da Guerra Fria. Nessa altura, a Noruega envidou muitos esforços para que a situação em Svalbard se mantivesse o mais estável possível. E a União Soviética também evitou conflitos. Houve muita cooperação e assistência mútua. Veja, as pessoas precisavam umas das outras naquela época, quando os mineiros viviam e trabalhavam de ambos os lados. E agora… Bem, agora as coisas são muito diferentes. Especialmente por conta da invasão russa da Ucrânia. E por conta de como as coisas estão a ir na Rússia.”

    Brode Roger fez uma breve pausa e continuou: “Muitas pessoas vieram de Barentsburgo para Longyearbyen nos últimos dois anos. Estou a falar de ucranianos e russos que tiveram de sair. A sua experiência ajudou a moldar as opiniões dos moradores de Longyearbyen sobre o que estava a acontecer em Barentsburgo. E também sobre a guerra na Ucrânia. As actuais autoridades de Barentsburgo estão muito mais próximas de Moscovo do que nunca. Simplesmente fazem o que lhes é dito. A administração russa não está interessada em comunicar com a Europa. O isolamento parece estar na ordem do dia. Foi diferente durante a Guerra Fria. Muita coisa mudou. O mundo é um lugar muito diferente agora.”

    Outra pessoa que se sentiu obrigada a deixar Barentsburgo após a invasão russa da Ucrânia foi Timofei Rogozhin, ex-chefe do ramo de turismo da Arktikugol.

    Rogozhin disse, recentemente, ao  jornal Barentsburg Observer que todos os funcionários receberam ordens para parar de publicar as suas opiniões sobre a guerra ou corriam o risco de serem demitidos. “O ano passado transformou uma aldeia moderna civilizada, com uma sociedade aberta e amigável, numa espécie de pântano cinzento, fechado e agressivo”, acrescentou Rogozhin, depois de se mudar para o norte da Noruega.

    Longyearbyen. (Foto: Boštjan Videmšek)

    Apesar de tudo, alguns dos moradores de Longyearbyen estão determinados a manter relações. Especialmente durante o inverno, quando a viagem entre as duas cidades mineiras é possível com a ajuda de trenós de neve. Ao contrário das oficiais, as relações privadas ainda não tinham sido proibidas.

    “A Rússia é extremamente hábil em reconhecer os pontos fracos de diferentes países, especialmente os vizinhos”, disse Dina Brode Roger. “Os russos sabem muito bem que botões apertar. Estão sempre a ‘verificar a temperatura’, à procura de vulnerabilidades. A Noruega está a colocar uma grande ênfase na sua presença no Ártico. O projeto de mineração em alto mar é muito importante para o nosso governo. E a Rússia sabe disso muito bem, pelo que continua a enviar sinais claros através das suas acções políticas em Barentsburgo. Estão principalmente a enviar provocações na linha de: ‘Nós também podemos fazer isso!’ A instalação da enorme cruz ortodoxa, o desfile militar… Querem claramente que respondamos a estas provocações e sabem fazer muito com muito pouco dinheiro investido!”

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Um dos que ainda tenta manter pelo menos relações indiretas com seus colegas russos é Torgeir Mork, o principal meteorologista do aeroporto de Longyearbyen nos últimos 20 anos.

    Mork lamenta o facto de todos os contactos com cientistas russos baseados no Ártico terem sido cortados após a guerra. “Todas as manhãs, ainda envio as minhas leituras e previsões para Barentsburgo – assim como sempre fiz”, disse-me. “Nunca recebo uma resposta da estação meteorológica lá.”

    O meteorologista de longa data está convencido de que, para obter compreensão sobre as mudanças assustadoras que varrem a região do Ártico, a cooperação internacional deve ser primordial.

    “Antes da guerra, costumávamos nos visitar. Jogávamos xadrez e futebol. Divertimo-nos muito juntos. Só posso esperar que esta guerra miserável acabe o mais depressa possível… E essa história não está prestes a acabar”, relatou Mork no seu posto, ao lado da pista de aterragem de Longyearbyen.

    Torgeir Mork. (Foto: Boštjan Videmšek)

    A visão de uma escritora

    A escritora russa Dina Gusein-Zade, de 36 anos, chegou a Barentsburgo após o fim dos confinamentos do coronavírus, quando praticamente todo o Ártico ainda estava isolado do resto do mundo. Ela chegou a Svalbard logo após a Rússia ter lançado a sua ofensiva contra a Ucrânia.

    Vinda de Moscovo, Gusein-Zade foi atraída para o Ártico a fim de encontrar paz, abrigo e inspiração artística. O seu domínio de línguas estrangeiras valeu-lhe um emprego como guia turística e decidiu encarar o trabalho como uma excelente oportunidade para explorar o Ártico.

    “Tanto como escritora como como ser humano, sigo os meus próprios desejos e expectativas, não as expectativas dos outros,” afirmou Gusein-Zade. “A maior parte do que escrevo é escritora para mim, não para qualquer outra pessoa. Acho que poderia dizer que escrever é a minha forma de terapia. As condições para esse tipo de coisa são ótimas aqui, com toda a paz e tranquilidade e o afastamento geral. Ao mesmo tempo, posso misturar-me com algumas pessoas muito interessantes sempre que quiser. Toda a gente que aqui vem tem uma história interessante para contar.”

    A jovem escritora russa está actualmente a escrever o seu segundo livro.

    “Não posso ficar no mesmo lugar por muito tempo”, prosseguiu ela. “Passei vários anos a viajar à boleia por todo o mundo. Assim que a temporada turística começa aqui, eu voltei para a estrada. Gosto da Ásia, da África, do Cáucaso… Acho que sou basicamente uma nómada!”

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Dina Gusein Zade pode ser uma nómada, mas também acredita firmemente na conectividade.

    “Os seres humanos não devem ser separados à força!” afirmou, protestando contra o estado atual das coisas. “Todos nós que vivemos no Ártico devemos cooperar. Precisamos uns dos outros. Especialmente os cientistas. A política é outra história – ou melhor, outra dimensão, cheia de zonas cinzentas. Só posso esperar que os tempos difíceis acabem logo.”

    Apressou-se a acrescentar: “Nem todos são iguais. Não é justo que as pessoas comuns tenham de pagar o preço das decisões políticas desta forma. É injusto sermos tratados como criminosos e inimigos apenas com base na nossa nacionalidade. Nenhum país e nenhuma nação são intrinsecamente maus!”

    A jovem escritora-viajante russa fez uma pausa para procurar no horizonte as suas próximas palavras.

    “Demorei muito tempo a lidar com a minha humanidade”, contou ela. “Aceitar as minhas limitações. E o facto de que tenho pouco ou nenhum controlo sobre as coisas más que podem ser impostas às pessoas a partir de cima. Posso sofrer, mas isso não vai ajudar em nada a causa da paz. Especialmente quando é o seu próprio país que está a fazer algo de mau. Por isso, estou a concentrar-me no meu papel dentro da minha família e do meu círculo de amigos, e também no meu trabalho de escrita. Esta tornou-se a minha linha da frente.”

    Cemitério. (Foto: Boštjan Videmšek)

    Juntamente com o marido, um programador informático com quem se casou recentemente em Barentsburgo, Gusein-Zade está actualmente a planear mudar-se para a Turquia. A Rússia já perdeu um grande número dos seus melhores jovens. O mesmo se pode dizer de Barentsburgo, onde as terríveis consequências das sanções internacionais podem ser testemunhadas a cada passo.

    As lojas estão meio vazias. Os preços dos alimentos são excepcionalmente elevados. De vez em quando, as mercadorias destinadas a Barentsburgo ficam retidas no porto de Longyearbyen durante bastante tempo. Todos confirmam que a vida se tornou muito difícil. As rotas de abastecimento foram interrompidas. Os voos da Rússia para Svalbard foram interrompidos desde o primeiro confinamento do coronavírus. Por causa da guerra, simplesmente nunca foram repostos.

    Tudo isto teve um enorme impacto no turismo local. “Enormes navios de cruzeiro costumavam visitar o porto de Barentsburgo. Agora, só temos um ocasional navio turístico mais pequeno”, relatou Dina Gusein-Zade com uma certa tristeza. Praticamente não há turistas da Rússia. Aqueles que conseguem vir, apesar de tudo, geralmente já têm vistos e estão a viver fora da Rússia. Barentsburgo recebe principalmente turistas da Europa, América e Ásia. O navio da minha agência deve navegar até Longyearbyen para ir buscá-los. É a única opção disponível.”

    Como é que as sanções afectaram as relações pessoais em Barentsburgo, perguntei à escritora russa.

    Svalbard. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Ah, as sanções e todas as tensões crescentes tiveram um impacto enorme!” respondeu. “Muita gente partiu. Mas aqueles de nós que permanecem parecem estar bem. Gostamos de nos ajudar, de dar a mão ao próximo. Esta é uma das vantagens de viver numa pequena comunidade. Mas as sanções já tinham causado danos terríveis. O seu efeito tem sido o fortalecimento dos conflitos já existentes dentro da comunidade. As pessoas aqui estão zangadas. As sanções revelaram-se mais prejudiciais para os economicamente mais vulneráveis e para aqueles que desejavam manter-se em contacto. Agora, pode realmente observar-se as pessoas a endurecerem em tempo real. E também há muito medo vindo de ambos os lados. O problema é que este tipo de medo leva ao ódio. Não creio, no entanto, que isolar-se seja a solução. O isolamento muitas vezes significa catástrofe. Especialmente aqui, onde já estamos mais ou menos isolados do mundo. Temos de nos manter ligados – é o único caminho para a paz. À coexistência!”

    Gusein-Zade fez uma última pausa. “Sabe, eu costumava acreditar que o Ártico estava vazio. Mas não está. Há muita vida aqui. E também é vasto e aberto. Isso é uma fonte de inspiração para mim.”

    Atrito geopolítico no Extremo Norte

    O Ártico pode, de facto, ser aberto, mas apenas no sentido espacial. A fricção geopolítica tornou-se recentemente numa enorme influência na vida dos habitantes. Especialmente em Barentsburgo, onde as autoridades locais – servindo a proposta do Kremlin – transformaram a cidade num parque temático de propaganda ao estilo soviético.

    As relações entre Barentsburgo e Longyearbyen começaram a deteriorar-se já em 2014, quando a Rússia anexou a península da Crimeia e enviou as suas unidades paramilitares para as regiões de Donetsk e Lugansk, na Ucrânia. As tensões aumentaram acentuadamente após 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia.

    No entanto, apesar das sanções e da interrupção da cooperação institucional entre a Rússia e a Noruega, ainda há comunicação entre o governador de Svalbard e o CEO da Arktikugol em Barentsburgo. O governador de Svalbard, Lars Fause, também visita o seu homólogo russo – o cônsul-geral em Barentsburgo – duas vezes por mês.

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    “As grandes mudanças em Barentsburgo e dentro da comunidade russa em Svalbard começaram em 2021”, explicou Kari Aga Myklebost, professora de história da Universidade do Ártico da Noruega em Tromsø. “Foi então que o novo cônsul russo em Barentsburgo e o novo CEO da Arktikugol começaram a assumir poderes cada vez maiores. Arktikugol foi transformada num veículo para promover os objectivos da política externa russa. Poderosos políticos russos estiveram envolvidos, entre eles vários membros da Duma. O novo CEO e o cônsul-geral foram rápidos em ligar seus próprios funcionários. Especialmente quando tentaram expressar o seu apoio ao já falecido Alexei Navalny. O chefe do departamento de turismo da Arktikugol foi aconselhado a sair devido à sua oposição às novas políticas que estão a ser implementadas em Barentsburgo. Saiu, como vários outros funcionários. Desde então, a influência de Moscovo só se intensificou. Após a agressão à Ucrânia, a liberdade de expressão sofreu um novo golpe. Os acontecimentos em Barentsburgo são um reflexo da repressão que actualmente se verifica em toda a Rússia.”

    Aga Myklebost é considerado o maior especialista da Noruega em russo e no Ártico. “O novo regime começou imediatamente a insistir nos direitos dos trabalhadores russos no Ártico e em Svalbard. E também sobre os direitos históricos e a protecção da população russa”, afirmou, descrevendo a gradual ‘putinização’ da tradicionalmente moderada Barentsburgo.

    Kari Aga Myklebost. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Mensagens muito semelhantes começaram a ser emitidas a partir dos altos níveis da política russa,” prosseguiu. “É uma tática bem conhecida. O Kremlin continua a repetir que o Ocidente procura um conflito com a Rússia. O mesmo tipo de linguagem era usada antes da invasão da Ucrânia. A Rússia vê este tipo de manobra de propaganda como extremamente barata, simples e eficaz.”

    De acordo com o professor norueguês, a endoutrinação cada vez maior de Barentsburgo não significa necessariamente que as autoridades russas estejam prestes a agir de acordo com sua retórica. A maior parte da propaganda pode muito bem ser dirigida ao público russo. Afinal, foi sufocando todas as vozes dissidentes que o apoio à agressão à Ucrânia ganhou apoio interno.

    “Os motivos russos em Svalbard não mudaram,” advertiu Aga Myklebost. “Querem manter o controlo do mar de Barents, que está agora a ser aberto ao comércio internacional devido ao degelo. É por isso que a Rússia continua a tentar contestar o tratado de Svalbard e a soberania da Noruega sobre o arquipélago. Querem impedir que Svalbard – e esta parte do Ártico – seja controlada pela NATO. Veja, se houver um conflito sério entre a Rússia e a NATO, a Rússia será forçada a fechar as vias navegáveis ao redor de Svalbard que levam diretamente à Rússia e à península de Kola, onde uma grande quantidade de capacidade nuclear russa está armazenada. Creio que é por isso que a Rússia não quer uma nova escalada das hostilidades com o Ocidente. Representaria simplesmente um risco excessivo.”

    Esta é a razão pela qual Kari Aga Myklebost acredita que as recentes provocações russas não foram de natureza militar. “É sobretudo ideologia. A Rússia está a gritar – mas principalmente apenas simbolicamente! Creio que estão muito mais interessados na resposta do público interno do que na resposta do Ocidente. Toda a propaganda é realizada exclusivamente na língua russa. Embora também seja verdade que a Rússia gostaria de provocar os decisores políticos noruegueses a fornecer um álibi para o fim do tratado de Svalbard.”

    Um enorme golpe para a ciência

    “Esperemos que as actuais más relações entre os principais protagonistas no Ártico não sejam o novo normal. O futuro da exploração do Ártico está em jogo, dado que cerca de metade da costa do Ártico está localizada na Rússia”, disse Kim Holmen, ex-diretor do Instituto Polar Norueguês e agora seu conselheiro especial.

    “Para aprofundar a nossa compreensão do Norte, precisamos de dados – precisamos de colaboração entre especialistas, independentemente da sua nacionalidade”, prosseguiu Holmen. “Isso seria do melhor interesse da humanidade. Mas, tal como as coisas estão, a colaboração é impossível.”

    Kim Holmén. (Foto: D.R.)

    O homem barbudo, considerado a principal autoridade na exploração do Ártico, acredita que a actual interrupção do fluxo de informações pode ser atribuída exclusivamente à invasão russa da Ucrânia. “Antes disso, o Instituto Polar tinha uma excelente relação de colaboração com cientistas russos. Mas agora a Noruega já não permite contactos entre instituições. As sanções também impedem transacções financeiras, o que representa um enorme obstáculo adicional.”

    Holmen disse-me que tinha vários amigos entre cientistas russos, mas conferenciar com eles já não era possível. “Há demasiados obstáculos. Começámos a compensar a nossa nova falta de dados com a utilização de satélites… Mas, no fim de contas, é necessário conhecimento humano para compreendermos como o Ártico realmente funciona. Precisamos de relatórios diretamente no terreno. O que se passa com o permafrost (solo congelado)? O que está a acontecer aos peixes? Aos oceanos? Aos glaciares? Os satélites não podem realmente fornecer esse tipo de dados.”

    De acordo com Holmen, uma consequência é que, nos últimos dois anos e meio, a nossa compreensão do que está a acontecer no Ártico começou a deteriorar-se. Dada a ferocidade das alterações climáticas, esta é uma péssima notícia. “O resultado é que teremos cada vez mais dificuldade em prever o futuro próximo. As relações cortadas terão certamente efeitos negativos de longo alcance. A ciência sofreu um duro golpe.”

    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Era final da tarde quando o MS Polar Girl deixou o porto de Barentsburgo. Ao longe, pude observar o brilho dos glaciares, alertando-me para um mundo em desaparecimento.

    Perguntei a Masha se ao partir sentia que estava a sair de casa.

    “Não”, respondeu ela. “A minha casa é este navio!”


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  • Médio Oriente: o destino de milhões decidido pelos mais baixos impulsos humanos

    Médio Oriente: o destino de milhões decidido pelos mais baixos impulsos humanos


    Enquanto políticos, analistas e jornalistas, em estilo desportivo, contam as horas até uma possível grande escalada – uma grande guerra – no Médio Oriente, e enquanto Israel, apesar das indicações de que poderá em breve encontrar-se na maior crise (de segurança) de toda a sua história, continua a cometer assassínios em massa e demolições na Faixa de Gaza, temos de questionar se há algum actor na comunidade internacional, em geral, que esteja a tentar travar o possível curso fatal de eventos. Ou questionar se serão as decisões tomadas pelos líderes apenas um reflexo da natureza humana central e de um estado de espírito completamente despudorado e irreversivelmente desumanizado.

    Depois de o líder político do Hamas, Ismail Haniya, ter sido morto na semana passada em Teerão, onde assistia à tomada de posse do novo presidente do Irão, Masoud Pezeshkian, as autoridades iranianas, lideradas pelo Líder Supremo Ayatollah Ali Khamenei, anunciaram uma vingança feroz. Um ataque a um convidado do Irão em território iraniano foi um passo que foi longe demais para o gosto das autoridades iranianas – um passo israelita que foi longe demais. Dado que o exército israelita também matou o número um operacional do movimento xiita libanês Hezbollah, Fuad Shukr, em Beirute, poucas horas antes da liquidação da Haniya, prevaleceu imediatamente a narrativa de que uma grande guerra regional com efeitos globais seria praticamente inevitável.

    Todos os passos subsequentes – por todas as partes envolvidas – foram passos para a guerra. Algumas tentativas diplomáticas – lideradas pela dissonância cognitiva e moral dos Estados Unidos, que aumentaram consideravelmente a sua presença militar na região, e pela União Europeia, completamente impotente, que aparentemente desconhece a grande ameaça de guerra à sua porta – revelaram-se patéticas. A sensação de que outra grande guerra já é aceite como um  facto irreversível soa como uma profecia autorrealizável da boca dos principais actores regionais e globais. Uma história pré-contada.

    O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Nasser Kanani, fez recentemente uma declaração que deverá ficar nos anais da dissonância cognitiva e moral. “O Irão não quer uma escalada na região, mas Israel precisa ser punido pelo assassinato de Ismail Haniya na capital iraniana e evitar mais instabilidade na região.” Sim, é compreensível que o Irão queira vingança. Mas por que razão – da mesma forma, sabendo absoluta e antecipadamente as consequências da sua acção para a sua própria população civil, a liderança do Hamas fez ao atacar o Sul de Israel em 7 de outubro do ano passado – o Irão, com ataques retaliatórios contra Israel, directamente ou através dos seus representantes regionais, faria alguma coisa que certamente afectaria mais a população civil iraniana?

    Tem o regime iraniano conhecimento de que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, tem tentado arrastar o Irão para uma grande guerra há muitos anos – e a um ritmo acentuadamente crescente nos últimos meses – e está pronto a fazê-lo (o mesmo se aplica à propagação dos confrontos com o Hezbollah, à brutalização do apartheid na Cisjordânia ocupada,  o bombardeamento do Iémen, os crimes de guerra em série em Gaza, os ataques a alvos iranianos na Síria e o conflito interno israelita em curso) para ameaçar existencialmente até o seu próprio Estado judeu?

    Os tambores de guerra já ressoam no Irão. A propaganda está em plena forma. Mas o país não é como é por acaso. E os militares também não. Por que – uma vez, para variar – não se fazer o que um homem (líder, país…) é forçado a fazer pela sua natureza?

    brown camel

    O destino de centenas de milhares, o destino de milhões é decidido pelos mais baixos impulsos humanos. As convenções internacionais, o direito internacional humanitário e as principais instituições internacionais, lideradas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, são apenas ecos de ilusões ouvidas há muito tempo. O que nunca foi mais nem menos do que uma ilusão. Talvez… um fantasma.

    Outro motivo para preocupações fortes de que uma grande guerra é inevitável foi a visita “não anunciada” do ex-ministro da Defesa russo e agora o número um do Conselho de Segurança Nacional, Sergei Shoigu, a Teerão: Shoigu e o seu superior são quase os últimos a querer a paz. O último que estaria pronto para pisar no travão. Muito pelo contrário.

    Uma situação muito semelhante – igual – é o apoio inabalável dos Estados Unidos a Israel e a Netanyahu, que há duas semanas no Congresso previu muito claramente o desenvolvimento de acontecimentos que controla remotamente com o seu maquiavelismo e assassínios em massa. Até agora, apenas em Gaza, onde o número de mortos da punição coletiva de Israel aos palestinos está inexoravelmente a aproximar-se de 40.000. Este número não inclui pelo menos 10.000 pessoas desaparecidas e presas entre as ruínas dos terrenos em chamas do enclave palestiniano.

    Boštjan Videmšek é jornalista


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