Etiqueta: Ideias de Ler

  • A cunha como instituição

    A cunha como instituição

    Título

    Salazar confidencial

    Autor

    MARCO ALVES

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Os documentos históricos têm uma enorme virtude para os investigadores, em comparação com a actualidade (objecto dos jornalistas): enquanto na actualidade, o poder tende a esconder e a manipular, depois da sua ‘queda’, tudo aquilo que se fixou no crivo obscurantista e manipulatório, e se não foi destruído, passa a ser matéria útil para caracterizar o passado. À posteriori, é certo.

    Por isto, fazer História, aparentando ser mais fácil porque baseado em documentos, nem assim revela(rá) toda a verdade. Por exemplo, daqui a uns anos podemos continuar sem saber se o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa fez ou não a ‘ponte’ – leia-se, cunha – entre o seu filho, o doutor Nuno, e o Ministério da Saúde para se usar um medicamento de dois milhões de euros em gémeas luso-brasileiras. Ora porque se destruíram provas que confirmariam para a posteridade quer porque se manipularam provas para desmentir a realidade.

    O mesmo se aplicará, por exemplo, à pandemia da covid-19, que curiosamente foi um tema muito abordado por Marco Alves, autor deste Salazar confidencial. Enquanto como investigador andava ele na Torre do Tombo a ler os calhamaços que a queda do Estado Novo lhe (nos) deixou, zurzia em simultâneo, como jornalista, naqueles que procuravam obter informação, questionar o Poder e propor medidas racionais de gestão da Saúde Pública. 

    Esqueceu Marco Alves, neste período, que apesar de serem tarefas muito distintas, tanto jornalistas como historiadores ‘amassam’ a mesma farinha – os factos –, apenas em períodos diferentes, mas onde ‘cohabitam’ duas características essenciais: a curiosidade e a desconfiança, que os obrigaria a conferir supostos factos, questionando a sua veracidade. Aliás, a História tem mostrado que os ‘factos’ na actualidade podem ser bem diferentes dos ‘factos’ na realidade, por causa da influência do Poder.

    Mas esqueçamos as ‘obras’ do jornalista Marco Alves, repórter da revista Sábado, que, disparatando, disparava a palavra ‘chalupa’ a qualquer um que questionasse a ‘narrativa oficial’, como o cão de Pavlov salivava a cada pedaço de carne, e dediquemo-nos ao seu objecto de interesse histórico, que deu neste livro: as cunhas no Estado Novo, tendo como óbvia figura central António de Oliveira Salazar. E podemos já adiantar que se saiu ele muitíssimo melhor como historiador do Estado Novo do que como jornalista da pandemia, o que convenhamos não seria difícil perante a fraca figura que nos ofereceu entre artigos e comentários nas redes sociais durante os dois primeiros anos da crise sanitária em 2021 e 2022. A História o julgará; não propriamente a ele, mas ao jornalismo.

    Passemos à frente.

    A figura de Salazar, como ditador é, convenhamos apetecível para qualquer historiador por várias razões, mas nem tanto por ter estado no poder tanto tempo: 36 anos. Se formos por aí, houve portugueses no poder com maior duração e com um domínio ainda mais absoluto: os reis D. João I (48 anos), D. Afonso Henriques (46 anos), D. Dinis (43 anos), D. João V (43 anos), Afonso V (42 anos) e D. Maria I (39 anos, embora grande parte dos quais sob regência do filho D. João VI). Mas naquelas épocas não se escrevia tanto, não se expunha tanto, e destruía-se muito mais. 

    Por isso, Salazar é um ‘objecto’ histórico apetecível sobretudo por ser um governante que, além de ser ditador ‘contemporâneo’, “recebia, aliás, correspondência sobre todos os assuntos, o que só era possível numa sociedade fortemente reverencial, hierarquizada e pequena, onde o presidente do Conselho ocupava o lugar cimeiro, incontestado, temido e ao mesmo tempo próximo e paternal”, como bem salienta Marco Alves (pg. 59).

    Ora, é exactamente por isso – por haver extensíssima correspondência, nunca destruída – que Marco Silva, tal como outros jornalistas e investigadores, possuem hoje matéria-prima riquíssima para contar detalhes mais ou menos picarescos sobre uma das principais ‘instituições’ lusitanas, que está longe de ser um exclusivo do salazarismo (antes fosse): a cunha, que inclui favorecimentos e outras ajudas por quem está no centro do poder, e que é tanto mais intenso quanto mais afastado nos encontramos da democracia (plena).

    Usando assim o ‘espólio’ de 2.466 processos individuais, onde se destacavam cartas, relatórios, currículos e fotografias, Marco Alves relata profusamente casos singulares que, se cometidos hoje (e revelados) dariam pena de prisão, onde se salientam episódios de peculato de uso, de pequenas ofertas (que poderiam ser agora classificadas de corrupção), de casos de infidelidade, de ‘jobs for the boys’, de favorecimentos, de veneração para obtenção de favores, etc., etc., etc..

    Ao longo das páginas, os casos são muitos, talvez demasiados – e se o objectivo principal era mostrar um Salazar ao estilo de um frei Tomás (‘bem prega frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz’), Marco Alves mais do que nos convence; comprova. Desde logo na introdução, quando refere que cerca de seis mil pessoas escreveram ao governante desde que entrou em funções públicas, como ministro das Finanças em 1928, até à queda da cadeira em 1968.

    O livro de Marco Alves, como documento – e elogia-se o seu trabalho de investigação, bem protegido nas ‘catacumbas’ da Torre do Tombo durante os dois primeiros anos da pandemia – está mais próximo de um estilo de História, até pelos detalhes das transcrições das cartas e pelos pormenores cronológicos, com datas e horas precisas.

    Pessoalmente, talvez preferisse – e porventura teria ele mais leitores – que Marco Alves tivesse optado por uma selecção de casos exemplares, e os usasse como crónicas. Há ali uma boa trintena de casos apetecíveis que, em cada um, daria até para outros tantos romances. E haverá, como já houve muitos sobre uma personagem histórica muito similar a Salazar: o marquês de Pombal.

    Em suma, Marco Alves deveria dedicar-se mais à investigação histórica, e menos a assuntos de Ciência (que mostrou nunca saber dominar), até porque sobre assuntos do passado (ou seja, em temas não actuais) ele até demonstra capacidade de isenção, de rigor e de honestidade. Neste Salazar confidencial não se vislumbra, como deve sempre fazer um historiador (e um jornalista), qualquer tipo de ‘ideologite’, e por isso esta obra consegue apresentar-nos a figura de Salazar como era perante o povo e como este (infelizmente, diremos agora) então o via: “seu dono e senhor, como uma figura tutelar, acima dos outros, que tanto podia ser um pai, um chefe, um mestre, ou o próprio Deus”.

  • Manual de luta contra a desinformação

    Manual de luta contra a desinformação

    Título

    Como fazer frente a um ditador

    Autora

    MARIA RESSA (tradução: Carla Ribeiro)

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Maria Angelita Ressa é uma jornalista filipino-americana, nascida em Manila, em 1963, e que foi viver, a partir dos 10 anos, com a família para os Estados Unidos, depois de declarada a lei marcial nas Filipinas.

    Frequentou a Universidade de Princeton, onde se licenciou em inglês com um certificado em teatro e dança. Depois de se formar, em 1986, regressou às Filipinas com uma bolsa Fulbright para estudar em Manila, onde iniciou a sua carreira de jornalista.

    Em 2012, Maria Ressa fundou e lançou o sítio web Rappler, que rapidamente cresceu, tornando-se uma das maiores fontes de notícias das Filipinas. Esta empresa de comunicação social digital de jornalismo de investigação ficou internacionalmente conhecida por descrever, minuciosamente, o modo como as redes sociais se tornaram numa arma usada pelo poder dominante, bem como por expor o modus operandi corrupto do Governo abraçado por Duterte e seu sucessor , igualmente corrupto, Ferdinand Marcos Jr., filho do ex-presidente com o mesmo nome – conhecido por ter fugido de helicóptero, depois de ter feito o maior desfalque, alguma vez conhecido, a um Estado-Nação.

    Os seus “esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, uma pré-condição para a democracia e a paz duradoura”, foram reconhecidos ao mais alto nível, tendo-lhe sido atribuído o Prémio Nobel da Paz, em 2021, em conjunto com o jornalista russo, Dmitry Muratov.

    A obra agora publicada pela Ideias de Ler, intitulada Como fazer frente a um ditador: A luta pelo nosso futuro , é um relato dos anos de luta pela liberdade de imprensa, num país onde o uso da violência física, digital e até judicial está ao serviço de Governos ditatoriais e cada vez mais autoritários. 

    Com prefácio da reconhecida Amal Clooney, advogada dos direitos humanos e co-fundadora da Fundação Clooney, o livro está dividido em três partes. Num discurso na primeira pessoa, Maria Ressa narra o seu percurso de vida, desde a escola primária, expondo os seus princípios e códigos de conduta e de honra, iniciando com a sua regra de ouro. Aquele que lhe permitiu, desde sempre, discernir o que seria correto ou errado em qualquer situação na sua vida. 

    A missão do jornalismo está, igualmente, explicada, sendo, aliás, o motor para a criação de um site de notícias distinto de muitos outros, o Rappler, no sentido em que são os jornalistas (de investigação) que decidem o que noticiar e não os patrocinadores ou os governantes.

    A segunda parte é sobre o modo como o poder político usa as redes sociais para a desinformação, por intermédio de contas falsas e sobre a criação, divulgação e ocultação de notícias falsas e, consequentemente, para a destruição das democracias – a “infodemia”. como designa um jornalista.

    O poder político é o de Duterte que, logo após assumir a carga, controlou e gerou desequilíbrios nos três ramos da governação. O colapso aconteceu por meio de “um sistema de clientelismo, lealdade cega” e aquilo a que a autora denomina de “três C’s: corromper, coagir e cooptar. Se alguém recusasse o que o governo desejava ou oferecia (…) era atacado” (p. 184). Paralelamente, Maria Ressa desenvolve uma explicação detalhada sobre o funcionamento dos algoritmos e de como o Facebook tem contribuído para a manifestação do fascismo e desmoronamento das democracias.  

    Na terceira parte, a jornalista narra todo o processo de difamação contra si e contra o Rappler e os esforços de toda a equipa para se manter firme e sobreviver “à morte por mil cortes”, num contexto de novos e mutantes ecossistemas de informação. 
    Ao mesmo tempo, relata-se o crescente empobrecimento de um país alimentado pela desinformação. 

    Uma das pessoas com quem Maria Ressa trabalhou é a investigadora Shoshana Zuboff, cuja obra sobre o capitalismo de vigilância é um recurso teórico que ajuda a compreender o caso prático das Filipinas. 

    Ainda que não seja sobre a “A era do capitalismo da vigilância” que aqui se trata, esta obra, além de referenciada e usada por Maria Ressa, é indispensável para compreender todo o processo de transmissão de dados a que todos os que usam a Internet estão sujeitos, embora se saiba que o Facebook e o Google estão na primeira linha de transmissão e controle de dados, bem como na disseminação da desinformação.

  • Em terra de cegos, quem tem um olho é príncipe

    Em terra de cegos, quem tem um olho é príncipe

    Título

    O príncipe

    Autor

    NICOLAU MAQUIAVEL

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Será mau o lobo, e bom o cordeiro? A moral judaico-cristã dir-nos-ia que sim, mas Nicolau Maquiavel certamente discordaria. Há mais de cinco séculos, o filósofo, diplomata e político nascido em Florença escreveu O príncipe, agora um clássico que dispensa apresentações, agora reeditado pela Ideias de Ler. Considerada uma das mais importantes e pioneiras obras da filosofia moderna e da ciência política, O príncipe é, em suma, um manual de instruções para líderes políticos sobre como atingir e manter o poder.

    Sendo largamente inspirado no implacável duque César Bórgia, filho ilegítimo do Papa Alexandre VI, este tratado político proscreveu todas as normas morais vigentes na época, o que originou o sobejamente conhecido, e pejorativo, termo “maquiavélico” – que se tornou um sinónimo de matreiro, diabólico, velhaco.

    No entanto, citando um provérbio português, quem diz a verdade não merece castigo; e há uma certa injustiça em acusar Maquiavel de “maquiavelismo”. Aquilo que o filósofo italiano fez não foi mais do que uma descrição nua e crua das dinâmicas de poder que a sua posição lhe permitiu observar de perto. Assim, a moral só ficou de fora de O príncipe, porque também fica, amiúde, nas relações humanas e sobretudo naquelas que envolvem poder e domínio. Além disso, convenhamos, a obra não pretende ser romântica, mas realista. Por isso, é uma análise despudorada da condição humana que choca as mentes puritanas, por desafiar a moral católica como pretenso barómetro dos hábitos e bons costumes.

    Também é importante entender-se o contexto histórico da época em que Maquiavel escreveu a obra, designadamente a instabilidade e a fragmentação política e governativa que assolava a península italiana renascentista, e que a tornava palco de constantes e disruptivas lutas pelo poder.

    Um estratega perspicaz, Maquiavel explica como deve o príncipe incumbente administrar os vários tipos de principados. Argumenta que o reinante deve fugir tanto do desprezo como do ódio, bem como dos bajuladores. Explica ainda como deve o líder tratar os seus aliados e súbditos, e preconiza que mais vale ser temido do que amado – mas nunca odiado. Defende que deve estar-se sempre preparado para usar a força e para fazer a guerra, aproveitando os tempos de paz, não para baixar a guarda, mas para exercitar-se ainda mais.

    A obra terá sido uma referência para vários líderes e governantes nestes últimos séculos, incluindo Napoleão Bonaparte, Henrique VIII, Luís XIV, Estaline e Hitler – o que abona a favor da eficiência dos pressupostos defendidos. Hoje, também continua a constar da bibliografia de políticos e dos seus conselheiros.

    De facto, mesmo após mais de cinco séculos da sua publicação, O príncipe continua relevante e os seus argumentos actuais, o que mostra que a natureza do Homem e do poder tem um carácter fortemente imutável; mesmo que as técnicas utilizadas se sofistiquem. Afinal, quem não identifica, por exemplo, esta exortação no cenário político contemporâneo?:

    “Deve, além disso, nas convenientes alturas do ano, ter os povos ocupados com festas e espetáculos; e, porque toda a cidade está dividida em corporações ou em classes, deve ter em conta estes coletivos, reunir-se com eles algumas vezes, dar de si exemplos de humanidade e munificência, detendo, no entanto, sempre firme a majestade da sua dignidade, pois isso jamais deve faltar em alguma coisa.”

    Moralmente reprovável ou não, a leitura deste clássico é imprescindível para todos. Quem quer aprender a ser maquiavélico, deve ler O príncipe. Quem não se quer deixar levar por um, também.