Etiqueta: História Natural

  • ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    O título é retirado do romance A educação sentimental dos pássaros, de José Eduardo Agualusa.


    Como não podia deixar de ser, a reprodução do ornitorrinco é do mais taxonomicamente pecaminoso que imaginar se possa[1]. Foi muito importante que a notícia geral da sua descoberta e o fim do debate em torno do seu entendimento só datassem de finais do século XIX e início do século XX. É que, se datassem do século XVIII, não deixaria de ser possível que Lineu desistisse de toda a sua nomenclatura binária[2] e dos critérios que a norteiam[3].


    A História Natural da Revolução Científica não trazia minimamente incorporado o conceito de que todas as regras têm desvios, e de que alguns desses desvios podem de início parecer-nos absolutamente blasfemos. Foi preciso chegar ao final do século XVIII para começarem a aceitar-se extravagâncias que hoje nos parecem tão naturais como a partenogénese nas pulgas de água ou a regeneração de partes cortadas na hidra[4]. Ah. Ambas criaturinhas de água doce, note-se. Vem de lá um ornitorrinco, apanha-as, e chama-lhes um figo.

    Os ornitorrincos vivem em comunidades, embora durante a maior parte do ano os membros de uma mesma comunidade não liguem assim muito uns aos outros. Mas a reprodução, que é sazonal, modifica este comportamento: cada população separada tem uma época diferente para se reproduzir, e respeita-a com um rigor quase cronométrico. O que também nunca varia é um outro desvio à norma, este relacionado com o facto de a cópula se passar forçosamente dentro de água, muito embora o ornitorrinco ainda não tenha chegado a merecer a chaveta de Mamífero Marinho, que mais depressa chegará ao Ártico do que à Austrália[5]. É que, se fosse um verdadeiro Mamímero Marinho, daqueles bem antigos e devidamente merecedores desse nome, tal poderá vir a acontecer ao Urso Polar[6], copular dentro de água faria parte da sua natureza. Agora, sendo o bicho apenas semi-aquático…

    rien n’est simple

    et tout se complique[7].

    É que viver em terra mas copular na água é a grande característica distintiva das rãs, dos sapos, dos tritões, das salamandras – ou seja, dos Anfíbios. Foram os primeiros Vertebrados a sair com sucesso da Sopa Primitiva para conquistar a Terra Firme. Conseguiram mesmo explorar o seu novo ambiente em cima das suas novas quatro patas, uns ainda com cauda, outros já sem ela. Estes animais podem ter-se dado tão bem em terra que nunca mais voltaram à água.

    Excepto para a reprodução, porque os embriões precisam de estar suspensos à superfície de tanques e charcos, dentro das suas fiadas protectoras de geleia, para se tornarem larvas, e depois girinos, e depois sairem dali o mais depressa possível. Isto é de loucos, porque há vários anfíbios já tão afastados da água que morrem afogados quando voltam para de onde vieram para lá deixarem as suas posturas. O regresso anual à água, para eles, é o preço a pagar à evolução. Mas para os ornitorrincos, que são mamíferos e devem ter começado a explorar a Terra Firme muito depois de qualquer salamandra ou qualquer sapo, copular na água é apenas respeitar a sua lógica quotidiana. Passamos metade do dia na água, não passamos? E aqui há menos predadores, não há? Então vão dar uma curva. Nunca vos pedimos para nos entenderem.

    Talvez pudéssemos ficar por aqui.

    Mas há mais.

    E isto é mesmo caso raro e nunca visto, quase inaceitável, a bem dizer imperdoável entre os mamíferos.

    A fêmea do ornitorrinco não sabe o que é parir filhos. Muito pelo contrário. Estamos a falar de um mamífero em que a fêmeas…

    … é, as fêmeas põem ovos[8].

    E depois…

    Depois…

    “…A REALIDADE TENDE A PERDER CONSISTÊNCIA. EM TRÊS DIAS CRIA DELÍRIOS E MUSGO. AO FIM DE UM MÊS JÁ É PURA FANTASIA.[9]

    Estes ovos são nunca menos do que um e nunca mais do que três[10]. Muito haveria o Pitágoras de gostar desta sequência de números primos logo à nascença.

    Mas não, claro que não: como toda a gente sabe, não é o fenómeno anómalo de um animal muito parecido com um mamífero aquático pôr ovos que aproxima o ornitorrinco do urso polar. É verdade que o urso polar tem geralmente duas crias de três em três anos, mais raramente tem só uma, e, mais raramente ainda, tem três. E claro, é verdade que este dois-um-três em cada três anos seria também do agrado de Pitágoras, e fica misteriosamente perto da performance do ornitorrinco. Mas todas as semelhanças param aqui.

    Este parto silencioso nas neves do Ártico é muito longo, com a mãe deitada de lado na neve, cheia de paciência porque os bichos que lá vêm são enormes, pelo que demoram eternidades a sair. Depois de cá estarem fora, as crias mamam de quatro em quatro horas e a mãe senta-se de propósito para lhes facilitar a vida. Crescem depressa, mas têm muito que aprender. São chatinhas, chatinhas, chatinhas – mas a mãe, uma autêntica santa durante este período, nunca as perde de vista nem as deixa sozinhas. À excepção do número de crias, nada disto tem nada a ver com a reprodução fria e impessoal do ornitorrinco.

    Senão, vejamos.

    Para manter os seus ovos protegidos, o ornitorrinco desenvolve uma prega de pele entre os membros anteriores e a cauda, e é que aqui que os guarda, com um arzinho todo marsupial. Para melhor protecção do conjunto, a mãe abandona o menos possível o túnel com cerca de vinte metros de profundidade que escavou previamente dentro da lama das margens. As novas crias hão de vir a nascer cerca de duas semanas depois da cópula, mas são pouco maiores do que um feijão-manteiga e totalmente dependentes da guarda materna, pelo que continuam guardadas e protegidas dentro da tal prega de pele que imita mesmo muito bem a tal bolsa marsupial.

    Estes bebés demoram cerca de três a quatro meses até perderem os dentes[11], o que simboliza a sua entrada no estado juvenil de uma nova vida livre. Durante todo o período de crescimento, sabem muito bem que são mamíferos porque aquela prega de pele que parece uma bolsa marsupial a eles não os engana. Por conseguinte, atiram-se logo à tarefa de se alimentarem do leite da mãe. Mas, como se trata de um ornitorrinco e nesta criatura danada nenhuma manifestação da vida é normal, desta vez o leite não vem de nenhuns mamilos situados na extremidade de nenhumas mamas. É mais que escorre directamente da glândula mamária para os póros da pele do peito da fêmea, onde as crias o vão chupando sempre que não estão a dormir.

    Assim que estão crescidinhos que chegue, e que as placas trituradoras nos maxilares estão formadas, deixam de ser bebés, vão à sua vida, e eram capazes de nem reconhecer a mãe se passassem por ela no dia seguinte. E ela, entretanto, assim que já não precisa de amamentar ninguém, retrai logo a prega de pele da barriga para estar livre de nadar melhor e correr melhor.

    Ah-ah.

    Apanhei-vos.

    Não não, seus exploradores dos antípodas – eu não sou nenhum marsupial.

    Posso parecer um pássaro misturado com um réptil misturado com um mamífero, mas um marsupial é que eu não sou. Não me chamem nomes. O que há mais aqui na Austrália é marsupiais, e eu, ao contrário deles, não sou nenhuma criatura banal.

    Nem quero que ninguém me entenda.

    E que diremos nós a Sua Majestade?

    O bicho bizarro podia não querer saber dos sentimentos dos sábios ingleses e dos primeiros europeus a vê-lo com vida, mas as sociedades científicas britânicas sofreram bastante sem saber o que pensar da sua alegada descoberta.

    Os ornitorrincos foram descobertos pelos europeus no Ano da Graça de 1798, quando o segundo governador de New South Wales, John Hunter, organizou a a primeira expedição inglesa que fez o levantamento da fauna australiana. Perante aquela criatura por demais inacreditável, Hunter achou por bem enviar desenhos de dois ornitorrincos feitos pelos seus melhores desenhadores, juntamente com um exemplar embalsamado e uma pele perfeita, ambos produzidos pelos seus melhores taxidermistas de novas faunas e floras, para a Royal Society of Science do seu país.

     Como já acontecera em vários outros casos anteriores[12], os cientistas ingleses mais respeitados de toda a hierarquia da Filosofia Natural[13] Britânica acharam que aqueles exploradores desatinados só podiam estar a gozar com Sua Majestade. Foi um grupo inteiro dos zoólogos com mais mérito ter com os exploradores, para observar ornitorrincos in locco e decidir se existiam mesmo ou não. E foi assim, contra ventos e marés, que nasceu o mamífero com a família Ornithorhynchidae inteira por sua conta. Hoje em dia é muito famoso[14], muito utilizado em selos e moedas australianos, muito recorrente como mascote de equipas desportivas, e muito postado na internet em video atrás de video Ornithorhynchus anatinus.

    Anatinus vem do latim para Patos.

    Um bicho tão pouco banal merecia um latim bastante melhor, não era? Ainda por cima nos tempos que correm, em que a destruição crescente do seu habitat, sobretudo por causa das tormentas que nos traz o aquecimento global, está a começar a condenar-nos cada vez mais a uma extinção de que nunca se ouve falar.

    Esta questão das espécies interessantíssimas que sobrevivem com dificuldades cada vez maiores mas de cujo perigo de extermínio nunca se fala porque os seus habitats nem sequer estão à vista constitui hoje em dia um drama tão disseminado, e desgraçadamente tão pouco ensinado, que já tem nome próprio e tudo. Foi cunhado apenas agora, atestando bem, só por si, a desgraça que se estende sobre todo o Terceiro Milénio.

    O Ornitorrinco começa a ter sérias dificuldades de sobrevivência.

    É impressão minha[15] ou é exactamente o mesmo que se passa com o Urso Polar?

    “POIS PODE PENSAR-SE QUE EXISTA ALGO DE TAL MODO QUE NÃO POSSA PENSAR-SE QUE NÃO EXISTA.[16]

    Meninos.

    Conhecem a canção do Urso Polar?

    Não?

    Mas olhem, é muito fácil. É só assim,

    Se o Urso Polar

    Quisesse pular

    Caía na neve

    De patas para o ar[17].

    Sempre que vou a uma escola e começo a contar a parte do mamífero marinho aos meninos, e eles abrem-me uns olhos tão redondos que parecem mesmo os olhos de uma foca debaixo de água. E, ao princípio, nem sequer acreditam em mim.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    O Urso Polar está perfeitamente adaptado ao seu ambiente do Ártico. Vive das focas que caça em cima dos blocos de gelo, num salto todo feito de borracha que parece impossível num gigante com três metros de corpanzil musculado. Como esta proeza espatifa bastante gelo, depois tem que nadar para outro bloco, maior e mais resistente por forma a suportar-lhe bem o peso, para poder comer calmamente a presa, descansar, e a seguir ir caçar outra foca. E pronto, quem dá o que tem a mais não é obrigado. O Urso Polar é carnívoro, enorme, solitário, e voraz, claro que é um bicho que ninguém quer ver levantar-se de repente à sua frentre no meio de toda aquela neve que esteve até então a camuflá-lo, mas, e para todos os efeitos, trata-se de facto de um urso[18]. Em consequência, não deixa de ser também um animal pacato, com aquela rotina descontraída própria dos ursos. Portanto caça e descansa, passa a vida nisto, e está-se bem.

    Onde podemos medir bem o espectáculo da adaptação do Urso Polar à sua vida calma no Ártico é exactamente no detalhe onde os meninos quase que ficam assustados. Já se percebeu que, entre caçar focas em cima de blocos de gelo e descansar em cima de outros blocos de gelo ainda maiores, o Urso Polar pode de facto sair-nos ao caminho depois de nunca o termos visto no meio da neve. Mas, feitas bem as contas, acaba por passar mais tempo no mar do que em terra. E o conjunto das adaptações que foi desenvolvendo para melhorar a qualidade desta sua vida semi-aquática já é impressionante.

    “COM CERTEZA QUE O MESTRE QUER ENSINAR ALGO À MINHA ALMA, POIS É A ELA QUE SE DIRIGE A PALAVRA SEM VOZ.[19]

    Quantas vezes é que já se disse aqui que o Urso Polar está em vias de se tornar um mamífero marinho? Hm? E como é que pode alguém, por sábio e galardoado que seja, considerar-se no direito de enunciar profecias destas? Hm-hm. Calma na grande área. O regresso ao mar dos ursos polares não é, propriamente, uma profecia. É um fenómeno bem estudado, cheio de sinais que indicam isso mesmo e de preliminares que indicam que esta tendência existe. Vale a pena fazermos todo este caminho a andar. Não há muitos que sejam assim tão comoventes e bonitos.

    Toda a gente sabe como é que esta história começa.

    Um dia, os peixes, atrevidos, iniciaram a exploração da margem, deram origem aos anfíbios, e, depois deles, veio a vaga de fundo de colonização da terra firme pelos milhares de faces dos vertebrados[20]. Do mar saiu tudo o que existiu a seguir, e que se expandiu nuns leques enormes à procura dos mais acrobáticos de todos os recursos, até chegar a grande loucura do sangue quente, capaz de rir na cara dos humores do clima, e mais tarde até da geração interna, capaz de urdir filhos complexos ao abrigo das maldades do mundo. Quando os mamíferos inventaram a barriga da mãe, inventaram a glória de um triunfo indisputável.

    Isto foi há 150 milhões de anos, e tudo parecia correr pelo melhor.

    Mas qualquer saudade ficara no fundo de algumas memórias, o apelo de um útero muito mais primevo, o útero antes do útero, doce mar, és tu que nos chamas: há cinquenta milhões de anos, um grupo de mamíferos semelhantes a cavalos enormes mergulhou nas ondas e nunca mais de lá voltou. Os seus descendentes deram origem às baleias e aos cachalotes, aos golfinhos e aos rorquais, as manadas oceânicas que ainda hoje galopam como nos prados, batendo a cauda para cima e para baixo, em vez de a agitarem para a esquerda e para a direita, como fazem os peixes. E vejam o esqueleto que está dentro desta barbatana: raquíticos, patéticos, lá estão ainda os dedos vestigiais de um pé atrofiado, a guardar a memória de um tempo vivido a céu aberto, entre pastagens e florestas.

    landscape photo of statue infront of brown building

    A viagem de regresso tinha começado.

    Milhões de anos mais tarde, outro grupo de mamíferos, talvez aparentado com as lontras, ou com os ursos, ousou por seu turno o mergulho profundo. Dele vieram a nascer as morsas, as focas, e as otárias, que ainda não chegaram ao grau de adaptação à vida submersa dos seus parentes pioneiros: todos os anos, se não for noutras alturas, têm que voltar a terra para se reproduzirem. As baleias até o parto já consumam debaixo de água. Os novatos, pelo contrário, ainda mantêm os membros posteriores. As otárias, que chegaram por último à grande aventura marinha, até mantêm ainda uns pavilhões auriculares muito redondinhos, que já foram apagados pelo tempo e pelo sal da cabeça lisa e luzidia das focas.

    A viagem de regresso começou, continuou, e ainda está em curso. O Urso Polar apresenta todos os sinais de ser o próximo mamífero marinho na calha. Já retira toda a sua subsistência da água, pelo que mantém com ela uma relação cada vez mais fiel. Muitos deles já nem chegam a pisar a terra firme, numa vida toda ela passada entre o mar e os blocos de gelo. A camada de gordura que tem por baixo da pelagem comprida e oleosa protege-o dos excessos árticos. As garras em forma de gancho ajudam-no a não escorregar. A sua capacidade de mergulho já se estende até aos dois minutos de imersão sem qualquer esforço. Uma membrana liga-lhes entre si os dedos dos pés, impulsionando o corpo na caçada e prenunciando a barbatana. Os olhos mantêm-se abertos debaixo de água com a maior naturalidade, protegidos por uma grande pálpebra membranosa. E as narinas já se fecham automaticamente no mergulho. A viagem de regresso está obviamente em curso.

    Isto dizíamos nós, numa grande comoção – antes de, no início dos anos 90, começarmos a dizer que ou se reduziam as emissões de Carbono ou viria aí um flagelo terrível chamado aquecimento global[21].

    Bem, seus meninos, mas vamos lá com calma. Antes de mais nada, vocês já sabem muito bem que estes bichos todos existem mesmo, não sabem?

    Por exemplo, sabem o que é uma fofoca?

    É muito fácil, então.

    Uma fo-foca é

    um mamífero ma-marinho.

    Adoro meninos.

    Mas que porcaria de mundo é que eles vão deixar àqueles meninos[22]?

    Não é um déja-vu. Não é um lugar-comum. É uma pista importantíssima no meio de um labirinto enorme. Se quiserem, é uma forma muito retorcida de avisar toda a gente[23]. O drama que vem a seguir já começou, e nunca se fala nele. E é precisamente esse drama que forma o grande elo de ligação entre o Urso Polar e o Ornitorrinco[24].

    O Ornitorrinco já é um mamífero aquático.

    O Urso Polar tem a fasquia ainda mais alta na escala dos prodígios.

    closeup photo of green dragonfly

    A transformação de um mamífero terrestre em mamífero marinho, como a que já está em curso com o Urso Polar, é como a dos outros mamíferos marinhos todos, das baleias às otárias. São fenómenos absolutamente espantosos, mas que só podem medir-se em centenas de milhares de anos. Decorrem de forma muito lenta,  muito gradual, sujeita a toda a espécie de acasos, e de outros tantos becos sem saída.

    Será que o Urso Polar vai conseguir transformar-se a tempo?

    Ultimamente os blocos de gelo estão a ficar cada vez mais finos por causa do aquecimento global, pelo que há cada vez menos focas disponíveis, e o Urso Polar anda pior alimentado. Ainda por cima, tem mais dificuldade em encontrar blocos de gelo  suficientemente espessos para suportarem o peso esgotante do maior urso de todos os ursos, de onde decorre que, embora seja um animal extremamente bem adaptado à vida na água, começa a ser algo frequente aparecer um urso afogado aqui e outro ali[25]. Acresce que, se a água do mar começar a ficar demasiado quente, e ainda por cima demasiado doce e alcalina por causa do derretimento do gelo, o urso dificilmente conseguirá viver dentro dela[26].

    E as fêmes grávidas, que precisam de acumular um excesso de duzentos quilos de gordura para sustentar o embrião? E quando a fêmea quase a dar à luz decide construir o seu ninho na camada de gelo que cobre o mar? O gelo costumava sustentar tudo isto sem qualquer problema. Agora o instinto subsiste, mas todo este sustento é cada vez mais problemático.

    Por tudo isto, e por favor, tomem boa nota de um pormenor muito importante:

    É verdade que, perante a situação actual dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares, estamos a olhar para dois bichos muito diferentes, que exploram habitats igualmente diferentes, mas que têm como traço de união estarem ambos já declaradamente em  processos de extinção. Ambos esses processos são derivados de mudanças cada vez mais acentuadas nos ecossistemas onde tanto um animal como o outro estavam habituados a viver.

    Como a de muitos outros animais que podem no entanto considerar-se absolutamente icónicos da criatividade do Planeta, quase nunca se fala da extinção de nenhum destes dois monumentos naturais. Regra geral, é um processo de extinção tão lento, a decorrer em animais tão especialmente difíceis de estudar em condições naturais, que é pouco falado e dá pouco nas vistas.

    Chama-se a isto uma extinção silenciosa.

    a close up of an animal skull on a black background

    E a verdade é que, além de sabermos isto, não sabemos muito mais. Mesmo com todos os dados que possuímos, não há ninguém que possa prever hoje, e de ciência segura, qual será o verdadeiro destino dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares.

    E quando é que eles se encontrarão com esse destino, se ainda alguém estiver vivo para fazer o registo.

    A história das extinções remete-nos com grande frequência para a nossa devida insignificância.

    A verdade é que a gente ainda nem sequer sabe por que é que, ainda antes dos dinossauros, aquela espécie cde caranguejos grandes e elegantes que deixaram fósseis em grande abundância nas rochas marinhas, e a quem os zoopaleontólogos deram o nome genérico de trilobites, sobreviveram sem uma beliscadura a um grande número de extinções em massa, e depois se extinguiram todas de uma vez, em todas as partes do mundo, sem deixar o mínimo rasto.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A reprodução é sempre um dos fenómenos mais marcantes que resultam da selecção natural. Deos Sive Natura, como diria o outro*, não deixa uma única experiência por fazer. Experimenta-se tudo e mais alguma coisa, na corrida sem fim à sobrevivência de cada espécie.

    *A Autora refere-se aqui ao filósofo seiscentista Baruch Spinoza, um dos primeiros grandes deistas da nossa civilização: a sua fórmula DEUS OU A NATUREZA lançou a ideia de que não era necessário dar um nome e um culto específicos à divindade, uma vez que a sua existência ficava claramente demonstrada nos trabalhos da Natureza. A mesma fórmula acabou por levar à expulsão de Spinoza da comunidade judaica de Amsterdão e à sua posterior errância apátrida pelo mundo.

    [2] Género espécie: no nosso caso, somos o Homo sapiens. Foi o naturalista sueco Carl Lineu que dedicou toda a sua longa vida, durante o século XVIII, a criar este sistema de classificar o mundo vivo conforme as suas características mais raras, e (no caso do último factor de definição, a espécie) a sua incapacidade de terem filhos se tentarem cruzar-se com outra espécie, ou, pelo menos, de terem filhos férteis (do cruzamento entre o burro e o cavalo nasce a mula; mas a mula é estéril). Depois de muito debate, estudo, experimentação, e reflexão, Lineu conseguiu por fim criar a chamada NOMENCLATURA BINÁRIA, que ainda utilizamos hoje. No entanto, muitos animais e plantas que, como o Ornitorrinco, desafiam completamente a simplicidade linear do conhecimento conforme Lineu o criou, só foram descobertos bastante mais tarde e precisaram de ser imensamente discutidos até fazerem sentido em termos de nomenclatura binária. Imagine-se Lineu a braços com o Ornitorrinco. Este grande cientista era também um grande vaidoso. Só isso nos salvaria de o ouvirmos deitar por terra o seu próprio sistema de organização do mundo vivo.

    [4] Esta da regeneração das partes cobertas, descoberta pelo suíço André Trembley em plena Revolução Científica do século XVII, dá uma história tão boa como a do voto no castor para Rei dos Animais. Se algum dia lá chegarmos, eu conto.

    [5] Ou seja: como havemos de ver mais à frente, vai acontecer ao URSO POLAR muito antes de chegar ao ORNITORRINCO.

    [6] ATENÇÃO. URSO POLAR, outra vez. Será esta a última referência?

    [7] Parafraseando o cartoonista francês Sempé: “Nada é simples e tudo se complica.”

    [8] Característica geral dos Monotrématos.

    [9] José Eduardo Agualusa. in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS.

    [10] Não é erro, não.

    [11] É, é. Isto aqui vale tudo. Mesmo.

    [12] O Dodó da Ilha Maurícia, descoberto no século XV por uma expedição portuguesa e depois desenhado e descrito à saciedade por marinheiros e especialistas holandesas, é um bom exemplo de criaturas inacreditáveis destas. Para uma descrição detalhada do seu destino, e do que se passou com vários outros animais exóticos quando observados pela primeira vez pelos europeus, consultar DODOLOGIA: UM VOO PLANADO SOBRE A MODERNIDADE, de Clara Pinto-Correia.

    Tem uma grande admiração por si própria, esta gaja.

    Também tem uma colecção impressionante de péssimos subtítulos nos seus livros de investigação. Isso é indiscutível.

    [13] Durante milénios foi este o nome oficial da Biologia, uma disciplina que só aparece no século XX tal  como a conhecemos agora.

    [14] Passe a redundância, claro. É por demais evidente que outra coisa não seria de esperar.

    [15] O pronome possessivo refere-se, aqui, à autora destas charadas, e não propriamente ao ornitorrinco, que CPC fez a gracinha de pôr a falar na primeira pessoa durante toda a parte anterior do texto.

    [16] Venerável Beda, PROSLOGION, Século VIII.

    [17] Quadrinha de Mádrio Castrim, memorizada a partir de um dos meus livros infantis preferidos. Eu própria criei a música, para poder cantá-la com os meus filhos durante as viagens de carro.

                    PS – Viagens de carro, estão a ver? As Mães cantam com os filhos, felizes da vida. E os pais deles vão sempre de trombas. Voz doce, feminina: “Ó amor, mas que cara é essa?” – Voz furibunda, masculina: “É A MINHA!

    [18] Claro que eu não digo isto aos meninos. Digo aos meus alunos universitários, quando introduzo o Urso Polar nas minhas analogias para a insustentabilidade da chamada SOBREVIVÊNCIA DO MAIS APTO como força motriz da selecção natural.

    [19] Jorge Luis Borges, in HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

    [20] Simplificação grosseira. Houve inúmeras tentativas de colonização da terra firme muito anteriores à existência dos Vertebrados. Devido à ausência de componentes duras, estas espécies são extremamente difíceis de estudar. Sabemos, no entanto, que existiram sucessivas vagas de invasão da terra firme, mais ou menos demoradas, mas nunca bem-sucedidas a termo.

    [21] E qual é o urso polar que sobrevive a um ártico morno, com um oceano cheio de água doce dos glaciares derretidos, sem blocos de gelo para caçar e digerir as suas focas, e tudo o mais que consta do seu estado pré-marinho?

    [22] Nada como um bom lugar-comum para acalmar o alvoroço das escolas e das universidades. Esta é legitimamente minha.

    [23] Se não fosse para ser retorcida, também não era para ser em forma de charada.

    [24] Além de todos os elos de ligação menos assombrosos, de que fomos falando aos longo desta charada.

    [25] Não são tão poucos como isso, e cada ano são mais.


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

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    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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  • É certo porque é impossível

    É certo porque é impossível

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Proponho-vos aqui toda uma série[1] que será um exercício de raciocínio livre, já que, até aterrar sem aviso nesta rubrica do PÁGINA UM, ainda não constou antes de nenhum romance, de nenhum livro de texto, nem de nenhum artigo científico. Mas vamos lá, que a ideia vale por si. Ainda ninguém pensou que há diversas semelhanças entre um ornitorrinco e um urso polar?

    Entre um monotrémato oleoso com pés de pato e um caniforme desgrenhado de patas plantígradas?

    Hm.


    Toda a gente tem, pelo menos, a noção de que os ornitorrincos representam uma grande quantidade de bichos diferentes amalgamados num só. Mas como é no mínimo improvável que toda a gente saiba tudo no respeitante a esta amálgama, tenham santa paciência, mas vamos começar pela rememoração das principais características que eles partilham com vários outros grupos animais, todos muito distanciados entre si.

    Antes de mais nada, a cor e a cauda do ornitorrinco são iguaizinhas à do castor[2]. Pensaríamos de início que esta ligação seria de grande importância, porque a cauda do ornitorrinco é extremamente importante para ele: é a sua única reserva de gordura, e quem diz gordura diz protecção e energia.

    Mas não.

    Falso alarme.

    Por muito importante que seja a cauda de castor na vida de um ornitorrinco, e por absolutamente imprescindível que seja a ligação à água doce na vida de ambos os bichos, não há absolutamente mais nada que os aproxime. Mesmo a forma como o castor vive na água doce, formando grandes famílias e construindo diques que lhe dão imenso trabalho a montar e a manter, isto não se assemelha em nada à forma ensimesmada e preguiçosa característica da vida do ornitorrinco. Como toda a gente sabe, a América do Norte e a Austrália não correspondem a posturas filosóficas similares.

    Ornitorrinco (em imagem gerada por inteligência artificial).

    Seguidamente, e tal como o Urso Polar[3], estas criaturas estão de tal forma bem adaptadas à vida na água[4] que acabaram por ser classificadas como semi-aquáticas[5]. À semelhança de qualquer urso, quando se encontram em cativeiro mostram que podem perfeitamente ter um regime alimentar basicamente omnívoro. No entanto, as características particulares do seu habitat condicionaram-lhe desde há muito as preferências gastronómicas.

    E então aqui vai uma boa história de selecção convergente[6].

    Porque é que o Urso Polar, podendo ser omnívoro, se tornou carnívoro?

    Ora, não gozem com o povo normal.

    O Urso Polar é carnívoro porque, como é evidente, no Ártico há sempre focas, mas não existem plantas durante a enorme maioria do ano. Talvez o seu sistema digestivo se tivesse adaptado aos conteúdos dos caixotes de lixo das pessoas, como aconteceu com o de tantos outros ursos, especialmente nos que vivem perto dos parques naturais. Mas, para que tudo isto acontecesse, era preciso que vivessem mais pessoas nas condições extremas em que vive o Urso Polar. Estive duas vezes no Alasca, cruzei muitas estradas de terra completamente desertas, atravessaram-se-me três vezes uns ursos vagarosos à frente do carro, mas eram sempre ursos castanhos. Mesmo que um Urso Polar partilhe por breves instantes algum território com alguns Inouits, os povos do Ártico não têm  minimamente o hábito de considerar que seja o que for é lixo, pelo que procuram reciclar tudo e não deitar nada fora[7]. E o habitat do Urso Polar não desce tão baixo que atinja as regiões onde a tundra se enche de mirtilos no pino do Verão[8]. Se comesse alguns gostava de certeza – mas de certeza  que que nenhum Urso Polar fica alimentado só com umas boas razias nos mirtilos deliciosos da tundra.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Então e o Ornitorrinco?

    Se já tem milhões de anos de existência em o registo fóssil nos diz que cobriu quase toda a Terra habitável, se é o mais antigo de todos os mamíferos dos nossos dias, não poderia ter recorrido a essa primazia para tirar proveito de todos os tipos de dietas antes de existirem sequer novos rivais? E se, ainda por cima, quando observado em cativeiro demonstra que pode mesmo ser omnívoro, porque é que decidiu dar ideias ao Urso Polar e ser carnívoro?

    Ah, pois é.

    A adivinha que se segue agora é que já não é para qualquer um.

    Antes de mais nada, qual é a dieta deste carnívoro, e de onde é que ela vem?

    O ornitorrinco revolve o fundo das águas onde mora à procura de camarões, ameijoas, peixinhos, larvas, vermes, cobras, ou outras delícias fáceis de engolir, juntamente com pedrinhas, lama, ou ainda raízes e caules aquáticos[9]. Não tem dentes, mas tem placas trituradoras nos maxilares, e é com elas que faz a primeira mistura de tudo isto, para depois a guardar  de reserva nas bolsas das bochechas[10]. Quando essas bolsas estão cheias, vem até à superfície, tritura tudo até fazer uma papa, e só nessa altura é que a engole. Depois vai logo para o fundo buscar mais comida.

    Porquê?

    Porque os monotrématos não têm estômago.

    Segue-se o grande sobressalto que seria de esperar.

    Mas…mas…

    Mas como não têm estômago?

    E, se não têm,

    porque é que não têm?

    polar bear standing in front of three walrus on water

    Olha que gaita, porque sim. Porque a evolução existe, a selecção natural também, e este grupo deu-se bem com o seu regime[11].  Para satisfazerem as exigências resultantes do sistema lunático em que se especializaram, os ornitorrincos passam doze horas por dia dentro de água à procura de alimentos.[12]. São óptimos nadadores, e estão altamente especializados nesse sentido. Numa performance que volta a recordar-nos o Urso Polar, conseguem mergulhar durante dois minutos blindando os olhos, os ouvidos, e as narinas.

    Ai é?

    Ah pois é.

    Não desistam ainda, camaradas e amigos. A série continua. Dentro de mais um mês, talvez venhamos a saber como é que os ornitorrincos conseguem encontram o seu alimento debaixo de água  com todos os órgãos dos sentidos blindados. E talvez este conhecimento os aproxime ainda mais dos ursos polares.

    Algumas charadas progridem muito devagar.

    Mas progridem.

    E a sua lentidão permite-nos ir pensando.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    N.B. O título é retirado de Tertuliano, padre do século II, nas primeiras fases do Cristianismo.


    [1] Ficamo-nos por “série” porque o contéudo não estica para “telenovela”. Nem ninguém leria nada do que se segue depois de semelhante introdução. Espero eu, não sei. Vivemos tempos difíceis.

    [2] Sabiam que, no século XVIII, quando já se conhecia praticamente toda a fauna do mundo e a Europa do Iluminismo foi a votos para escolher o Rei dos Animais, várias vozes se levantaram em defesa do CASTOR? Ah pois foi. Mas essa é toda uma outra história, que, por este andar, terá que ficar para bastante mais tarde.

    [3] Ah-ah! Mais um regresso do URSO POLAR. Alguém quer apostar qual será o último? Façam concursos, façam. Quando derem pelo que aconteceu, acabaram de celebrar os vossos respeitáveis setenta anos e de contrair matrimónio com uma espécie qualquer de semideus que vos entrou à noite a voar pela janela. Será que este semideus é o Espírito Santo? Bem, isso ele nunca confirma nem desmente.

    [4] Embora, no caso do Ornitorrinco, não se encontre qualquer evidência de que começaram por ser mamíferos absolutamente terrestres, como por exemplo os ursos. Daí a necessidade de uma classificação à parte também só para eles: não são terrestres nem aquáticos, são semi-aquáticos.

    [5] Et voilà. Ou seja, “ora aí está”, mas a Autora não quer exta pequena exclamação traduzida do francês. Insiste em exibir-se culta até ao fim. NT.

    [6] Duas espécias muito diferentes adquiriram características semelhantes ao longo do tempo devido às suas adaptações progressivas ao ambiente onde vivem.

    [7] Refiro-me aos que continuam a viver naquele que é desde há milhares de anos o seu habitat natural, e onde, de facto, tudo serve para alguma coisa. Esqueçamos, por favor, todos aqueles que vieram instalare-se nas cidades, onde vivem maioritariamente de orçamentos governamentais. É uma tristeza ver uma esquimó obesa, de fato de treino cor-de-rosa e ténis pretos com luzres que acendem nas solas, o cabelo pintado de verde já com as raízes à mostra e com uma permanente que também já começou a perder o vigor, a deitar para o lixo a sua terceira lata de Coors enquanto acende um cigarro e fala ininterruptamente com um grupo de gente tão feio de ver como ela. Claro que é feio, mas enfim. A vida não é nenhum conto de fadas.

    [8] Ou antes, está agora a começar a descer por escassez de comido mais a Norte – e a consequência imediata destas explorações desesperadas é que há cada vez mais ursos polares sumariamente abatidos a tiro.

    [9] É aquilo a que se chama um bottom-dweller, ou seja, um explorador do fundo. As nossas tainhas, por exemplo, fazem exactamente a mesma coisa. E querem lá saber se estão a revolver o fundo mesmo ao lado de um esgoto. Fritam-se, temperam-se com algum sal e muito vinagre, e quando chegam à mesa estão absolutamente deliciosas.

    [10] Aqui podemos, também, considerar que o ornitorrinco tem qualquer coisa de hamster.

    [11] Tudo bem, claro – quando ainda não existiam outros grupos, era um regime tão bom como qualquer outro.

    [12] Parte deste tempo passado na água deve-se ao facto de, muito embora sejam omnívoros, precisarem de ingerir todos os dias metade do seu peso em carbohidratos para manterem a energia e a capa subcutânea de gordura que os mantêm vivos e activos. Outra parte é porque precisam de procurar todos os dias alimento que chegue para ingerir todo esse peso alimentar. E, finalmente, uma última parte destas doze horas é preguiça: a água doce não tem tão pouca gravidade como a água salgada, mas sempre tem bastante menos gravidade que a terra firme.


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  • A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

    A (renovada) luz que vos baptize: ‘corrigenda’

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU[1]


    Caros leitores, é frequente as grandes estreias acabarem por funcionar como ensaios-gerais. Pensávamos que estava tudo perfeitamente afinado, mas depois foi isto, foi aquilo, foi o raio que o parta – tudo bem, passa-se à frente e faz-se melhor na vez seguinte. Há quinze dias, na estreia da nossa nova rubrica de História Natural “A LUZ QUE VOS BAPTIZE[2],” acumularam-se diversos problemas mas o último foi o pior e era assaz impensável – desapareceram as duas últimas páginas, deixando a frase completamente sem sentido, o parágrafo francamente desiquilibrado, e a peça muito coxa[3]. Ainda por cima, eram os dois parágrafos que concluíam a história de como herdámos a ciência dos dias de hoje.

    No ensaio-geral passado, falávamos da angústia que o Homo sapiens sentiu há duzentos mil anos quando se diferenciou das outras oito espécies do género Homo ao desenvolver no cérebro um lobo frontal pensante[4], e, como tal, ficar a braços com centenas de perguntas que não tinham resposta – como, por exemplo, “quem é que vai à noite acender todas aquelas fogueiras no céu?[5]”.

    blue and white starry night

    As primeiras respostas para as estrelas, para a dança do sol com a lua e da lua com as marés e tudo isto pelos vistos com o sangue menstrual, para a diferença entre a água e a terra e entre o ar e o fogo, para o rodar das estações e para a penúria que alterna com a abundância – para tudo o que se perguntou nas primeiras palavras da linguagem articulada, a primeira resposta esteve na mitologia.

    O problema é que ninguém trava guerras por mitos.

    A mitologia tornou-se muitíssimo mais compreensível, e portanto muitíssimo mais acessível ao consuno de massas, quando se transformou em religião.

    E, agora sim, a última parte, aquela que ficou de fora…

    Há por fim uma terceira transição que se baseia no saber mais complexo[6] acumulado ao longo do caminho. Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, desta vez, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal.

    Quer isto dizer que nasceu, por fim, a ciência moderna?

    Não foi, certamente, aquela ciência moderna que se imaginaria num primeiro instinto.

    A gravitação universal é o exemplo perfeito deste fenómeno.

    person doing gravity lean on the shore

    Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira Física do Universo como a face visível de Deus.

    Nature and Nature’s laws

    Lay hid in the night

    God said: LET NEWTON BE!

    And all was light,”[7]

    escreveu Alexander Pope como epitáfio para o amigo. E o amigo de Pope, quando falou pela primeira vez da Gravidade no glorioso PRINCIPIA[8], referiu-se bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[9].

    Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, e este esforço incluiu o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantropa científica Madame de Châtelet.  Esta senhora teve também para a nossa cultura o benefício de ser tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de campo que a sua musa mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca,” mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante relativa à história do pensamento científico[10]. Todo este entusiasmo, todo este uníssono, vieram depois a inspirar vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitação Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou de Matemática[11]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

    a chalkboard with some writing on it

    E é assim, depois de centenas de anos de estudos e explorações, que, a partir da mitologia, e depois da religião, começa, por fim, a nascer a ciência.

    Eu disse uníssono?

    Como toda a gente sabe, uníssono é fenómeno que a História desconhece.

    Este regresso radioso de Deus ao coração mais moderno da Ciência foi, logo no século XVIII, motivo de irritação profunda para grandes matemáticos como Huygens e Leibnitz, mortificados por verem os seus pares voltarem a mergulhar nas cantigas de boa métrica e melhor rima em que o príncipe e a princesa se casam, têm muitos filhos, e são felizes para sempre. E todas estas tolices, ainda por cima, depois de se seguir à voz de Descartes um século inteiro de esforços incessantes de fazer uso da física e da matemática para proporcionar à população europeia o uso puro e liso da razão.

    Se há bipolaridade perfeita no pensamento europeu é a que tem a geometria de Descartes de um lado do espectro,[12] e os milagres divinos de Newton do outro lado. Estas duas atitudes estão num raio de oposição sobre o verdadeiro significado do arco-íris que não precisa de mais de cinquenta anos para se extremar por completo. E a conclusão não podia ser outra. Já bastante entrado nos anos, Descartes acaba por não ter patronos que continuem a financiar a sua geometria onde os homens só precisam do seu próprio pensamento para poderem existir. Sendo assim, não está em condições de recusar o convite da Rainha Cristina para se juntar à sua corte de sábios exilados no frio da Suécia, a mesma que, entre muitos outros nomes brilhantes, vira há pouco tempo passar o Padre António Vieira. Cristina andava fascinada com a localização da epífise, o ponto onde a alma se prende ao corpo, que Descartes, na sequência de investigações anatómicas aturadas, considerara localizar-se entre os dois hemisférios do cérebro, mais precisamente na glândula pineal[13]. Teria sido um belo tema de conversa se não fosse dar-se o caso de a rainha ter grandes insónias e querer falar com o seu grande sábio a altas horas da noite. Não sei se estão bem a ver. Suécia. Um castelo. Tudo em pedra e pés direitos altíssimos. Neve e gelo por todo o lado. O pobre sábio, idoso e estremunhado. Foi assim. Descartes morreu de pneumonia na corte da Rainha Cristina. Ninguém sabe onde é que a alma se prende ao corpo. A seguir morre Newton. Os ingleses vêm para a rua ver passar o seu caixão, num Funeral de Estado todo ele feito de pompa e circunstância. Ou, francamente – de que é que julgam que o povo gosta?

    black mountain bike

    A mente humana não suporta os caminhos exigentes.” vituperou Leibnitz numa das suas cartas a Huygens. “Bastou um século de racionalidade, e o homem já está de novo em busca de explicações para os fenómenos naturais todas elas baseadas em contos de fadas.

    Goste-se ou não se goste de ver as coisas postas assim, no entanto, é exactamente de longas desgarradas sobre um ou outro milagre maravilhoso, quiçá apresentado nesse tom piegas que a mim me agrada tanto, que falaremos daqui para a frente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mario Vargas Lhosa, in THE STORY TELLER. Parafraseando a estupefacção dos índios amazónicos que caminham sem cessar pela margem do rio, fugindo da ganância ignorante dos colonos brancos.

    [2] Este verso é tão bonito, tão bonito, que há décadas que quero usá-lo como título de qualquer coisa. Aqui, onde se contam as histórias da vida e de como essas histórias viram a luz do dia num esforço de muitos séculos, não podia ser mais adequado. Em cada uma destas crónicas, é verdadeiramente a luz da vida que vos baptiza. Hm? Tomem e embrulhem. “E mandem para o Biafra,” como se acrescentava quando eu era pequenina. Para onde será que se manda hoje?

    [3]Peça coxa”: forma de dizer “esta merda que tu escreveste não se entende” utilizada pelas chefias em 1980, quando eu comecei a estagiar no saudoso semanário O JORNAL.

    [4] Exactamente ao mesmo tempo, endireitou-se como ninguém antes dele na postura bípede erecta. Deve ter sido um daqueles momentos de quase colapso por too much information.

    [5] Reparem, esta pergunta implica que aquele pessoal já conhecia o fogo, e mais – sabia fazê-lo. O Homo sapiens limpou da face da Terra todos os outros Homo, todos os austrolopitecos, todos os pitecantropos, isso é verdade. Mas já cá chegou com algumas tarefas fundamentais facilitadas.

    [6] Ou mais empírico, conforme os saberes. E não desmerecendo.

    [7] “A Natureza e as suas leis

    Estavam escondidos na noite

    Deus disse: “Que exista Newton!”

    E fez-se a luz.”

    [8] De nome completo PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA, ou seja, PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL.

    [9] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

    [10] No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, registe-se que foi nos jardins de LES DELICES que se fizeram várias traduções do NEWTON PARA SENHORAS e várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE. Convém, também, não nos esqucermos de que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

    [11] Os chamados “Comentadores de Newton”.

    [12] Do espectro, topam? Newton descobre que quando a luz branca incide num prisma de vidro na presença da luz se desdobra do outro lado do prisma nas sete cores do arco-íris; e é deste milagre que nasce a Óptica. Toma lá fresquinho, Descartes. Grande trocadilho. Pareço mesmo um homem.

    [13] Pois, cogito ergo sum e tal, evitam-se os milagres e o próprio Deus como hipóteses explicativas, mas não exageremos. É indiscutível que a alma existe. Ah, está-se bem.


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  • A luz que vos baptize

    A luz que vos baptize

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU


    Graças a Deus, no meio do ruído de fundo de toda esta confusão e do cruzamento descoordenado de todos estes polegares, de vez em quando ainda conseguimos encontrar alguém que, mesmo que inicialmente não consiga recordar bem porquê, sinta um sobressalto quando ouve mencionar o ano 79 d.C.

    Não é caso para menos.

    O ano 79 da nossa era é um ano carregado a negro na  memória colectiva da civilização ocidental. Foi quando, nos dias tranquilos do início do Outono, a erupção do Monte Vesúvio congelou para sempre debaixo da cinza, em menos de um minuto, todo o esplendor e o requinte das cidades romanas de Pompeia e Herculano, onde viviam cerca de vinte mil pessoas.

    brown concrete statue under blue sky during daytime

    Foi um dos cataclismos vulcânicos mais violentos de que temos conhecimento na Europa. A nuvem de gazes superaquecidos que saiu da chaminé do Vesúvio elevou-se no ar até uma altitude de 33 quilómetros, projectando a toda a volta rocha derretida, pedra-pomes, e cinza a ferver, a um débito de 1.5 toneladas por segundo – o que deverá ter correspondido a cem vezes mais do que a energia térmica dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.

    Enquanto toda esta catástrofe monumental acontecia, ia um barco a passar ao largo com um viajante muito especial a bordo.

    O homem que havia de condicionar o nosso pensamento em relação ao mundo real e mágico que nos rodeia chamava-se Plínio, e era o autor do famoso HISTÓRIA NATURAL. O seu livro, a todos os títulos inesquecível, era um enorme manual de Biologia composto antes da Biologia ter nome, o compêndio de descrição do mundo vivo pelo qual toda a gente jurava. Os parágrafos começados por “Muitos autores garantem, segundo Plínio…” abundaram na literatura europeia até ao fim do século XVII, encaixando-se com bastante facilidade nos novos paradigmas da Revolução Científica. Incansável, extuante de energia, Plínio estava ali em mais uma viagem de exploração. Viu o Vesúvio explodir na costa, e ordenou imediatamente ao comandante que se aproximasse. Queria ir estudar os fenómenos vulcânicos mais de perto. Imaginem, a explosão do Vesúvio na mente do século I DC.

    Plínio morreu nesse dia, envenenado pelos gases tóxicos do vulcão.

    brown village arch during daytime

    É verdade que o seu HISTÓRIA NATURAL nos oferecia uma Biologia cheia de uns milagres e uns prodígios que já não cabem nesta que conhecemos hoje[1]. A título de exemplo, já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito; e a prova disso é que já nenhum marido amarra com toda a força um cordel à volta do testículo esquerdo antes de copular com a esposa, para ter a certeza de que a insemina com a seiva do testículo direito, e que, portanto, vai ter um rapaz[2]. Já ninguém acredita que o sangue menstrual consegue, “só com a sua presença,” operar sortilégios tais como embaciar os espelhos, enlouquecer os cães, fazer murchar as plantas verdes, azedar as sopas, enferrujar o cobre, tirar a força ao ferro, e assim por diante. Mas muitos autores medievais e renascentistas limitaram-se a evocar Plínio para darem mais credibilidade às suas teses – o que, por sua vez, mostra bem o respeito enorme que a sombra do autor da primeira HISTÓRIA NATURAL projectava sobre a mente europeia. E ressalve-se, também a título de exemplo, que Plínio foi dos primeiros a descrever, e com bastante minúcia, a técnica dos egípcios para incubar os ovos de pinto durante três semanas debaixo de estrume de cavalo – e esta técnica, que parece também ela tirada de uma qualquer fábula exótica, foi usada, pelo menos, até ao século XX[3].

    E, evidentemente, não há nada capaz de impedir o mundo vivo de estar literalmente pejado de maravilhas que não podiam ser mais reais, mais verdadeiras, mais cientificamente demonstradas – e, por isso mesmo, mais incrivelmente maravilhosas.

    Nesta minha apresentação do prazer que me é tão próprio que acabou por tornar-se parte integrante de mim, o prazer de falar aos outros das coisas da Natureza, deixem-me começar por protestar que não sou, de maneira nenhuma, o único autor ocidental sensível ao charme e ao conforto dos lugares-comuns. Com a sua tranquilização instantânea e gratificante de vestuário já usado ou calçado muitas vezes[4], os lugares-comuns podem ser úteis no fio condutor de certas histórias. E é exactamente por isso que aqui estão, a pôr em perspectiva tudo o que vem a seguir.

    As coisas passaram-se assim, por ordem de entrada em cena.

    Ao desenvolver o lobo frontal do cérebro, uma arma mortífera ausente em todos os outros seres vivos, o homem vê-se obrigado a pensar. O pensamento é a invenção mais perversa de toda a Evolução. Só porque os seus neurónios se multiplicam e se ligam de uma forma especial e desconhecida, o pobre primata gabro, sem presas nem garras, começa a precisar de triunfar sobre a sua angústia perante todo o vazio cognitivo que o  rodeia e o intimida. Século após século, mamute após mamute, mistério após mistério, esse vazio vai-se limpando como quando um nevoeiro denso se vai tornando cada vez mais fino. São destes primeiros esforços que nascem as histórias capazes de explicar o que são as fogueiras que aparecem no céu durante a noite, de onde vem aquele disco tão brilhante, que, de repente, vai subindo pelo ar e modificando todas as cores e odores no seu trânsito diário de um lado ao outro do horizonte, que dança estranha é aquela que esse disco maior faz com o outro que vem em sentido oposto e ao mudar de forma também muda as marés, e mais, e muito mais.

    É assim que o primeiro esboço de pensamento vai deslizando para fora de todas as ignorâncias urgentes, e, em consequência, é assim que começa a delinear-se  um mínimo de mapa primitivo que nos permite pôr tudo o que dantes não tinha nome em perspectiva, estruturando pela primeira vez, num deslumbramento feliz, todo o que conhecimento que herdámos dos primeiros sábios. E é assim que, no decurso desse primeiro preenchimento progressivo do vazio, acaba por nascer aquilo a que hoje chamamos mitologia.

    Essa mitologia, no entanto, é-nos legada em sagas e épicos que são por natureza construídos em estrutura de hipérbole interminável, além de padecerem de um excesso metafórico com uma leitura que fica de todo em todo fora do alcance do comum dos mortais. Por isso mesmo, a linguagem seguinte que a nossa espécie constrói para ler o mundo destina-se a libertar-nos dos oráculos. Trata-se, agora, de tornar as primeiras sagas e os primeiros épicos acessíveis a todos os humanos, desde que sejam crentes ou se vão deixando iniciar iniciar enquanto tal. E é por isso mesmo que, com a passagem do tempo, essa mitologia inicial  começa a oferecer-nos uma semelhança do mundo  que se conta em muito menos palavras, e que já conseguimos dominar muito melhor.

    human anatomy model

    Este novo domínio é estruturado lentamente em torno das alegorias construídas para explicar tudo o que nos barra a passagem com a sua faceta inexplicável. Quanto mais entendemos o que nos rodeia, mais se vai transitando, em todo o mundo, e numa panóplia riquíssima de dares e tomares, para aquilo a que agora chamamos religião.

    E, agora sim, de posse desta nova forma de crença, já não há fenómeno natural que não possa ser entendido pelos iluminados[5] e explicado sem  esforço à turbamulta das multidões.

    No final do percurso, há, ainda, uma terceira transição que se baseia em todo o nosso saber mais complexo que se foi acumulando ao longo do caminho. O vazio que encheu os primeiros homens de curiosidade e de temor vai-se preenchendo de uma forma cada vez mais clara, mais útil, mais eficaz para a sobrevivência humana – e tudo isto se regista numa sequência cada vez mais rápida e mais rica em dilemas impossíveis de sonhar sequer poucos séculos antes.

    Em relação às outras duas, esta terceira  mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, pela primeira vez na nossa semelhança do mundo, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e  também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal. Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira física universal como a face visível de Deus.

    grayscale photo of person holding silver necklace

    Nature and Nature’s laws

    Lay hid in the night

    God said: LET NEWTON BE!

    And all was light,”[6]

    escreveu Alexander Pope como epitáfio para o seu amigo, que, quando falou pela primeira vez da Gravidade no seu PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA[7], geralmente referido apenas como PRINCIPIA, se referiu bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[8]. Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, incluindo o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantrópica científica Madame de Châtelet[9], que depois inspirou vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitaçãoo Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou Matemática[10]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sei lá, mas assim de cabeça. Já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito. Já ninguém acredita que o sangue menstrual

    [2] Bem, era só um “conselho aos casais.” Mas os médicos repetiram-no até ao dealbar do século XVIII.

    [3] Tomem lá fresquinho. É uma pena não sabermos se os egípcios das paragens mais remotas ainda incubam os ovos dos seus pintos desta maneira. Provavelmente sim. Houve muita coisa bonita que deixámos de saber devido à estupidez da nossa arrogância “moderna”. Infelizmente, muitas vezes esta arrogância é considerada “científica”. Bem, pelos meus pecados, e pela parte que me cabe, eu juro que não.

    [4] Estou a parafrasear qualquer coisa já escrita antes pelo Agualusa, embora o original dele fosse bastante mais poético do que o meu.

    [5] Mas note-se, estes iluminados já não são oráculos. Na modéstia enorme que lhes cabe, como a modéstia que cabe ao Papa, são apenas oficiantes. Pedimos-lhes apenas, que sejam bons, leais, justos e rectos. Não lhes pedimos que vejam coisas nem que oiçam vozes. Essas pessoas são hoje consideradas esquizofrénicas, e os bons esquizofrénicos já nem sequer existem. A medicação funciona.

    [6] “A Natureza e as suas leis

    Estavam escondidos na noite

    Deus disse: “Que exista Newton!”

    E fez-se a luz.”

    [7] OS PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL. Editado originalmente em 1687

    [8] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.

    [9] E tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de de campo que a senhora mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome deveras apropriado de  LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca”, mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante. No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, do NEWTON PARA SENHORAS a várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE, convém não nos esquecermos que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, que Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do  fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”

    [10] Os chamados “Comentadores de Newton”.


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    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.