Etiqueta: Guerra & Paz

  • Ser indiferente à cor da pele

    Ser indiferente à cor da pele

    Título

    O fim das políticas de raça

    Autores

    COLEMAN HUGHES (Tradução: Pedro M. Santos)

    Editora

    Guerra & Paz (Outubro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    O autor desta obra propõe algo que pode ser visto por muitos, designadamente de ideologia ‘woke‘, como revolucionário. Coleman Hughes propõe que se deve ser indiferente à cor da pele. 

    O que deveria ser óbvio para todos, infelizmente não é, apesar de estarmos em pleno século XXI: somos todos iguais, independentemente do tom que tem a pele de cada um. Discriminar com base na cor da pele é profundamente errada. É óbvio, mas ainda há quem defenda a divisão dos seres humanos com base neste critério. 

    E não, o autor não tem a pele de tom claro. O escritor, podcaster e colunista tem ascendência afro-americana e porto-riquenha e cresceu em Montclair, Nova Jersey, nos Estados Unidos. 

    Licenciado em Filosofia, Hughes falou perante o Congresso norte-americano, em 19 de Junho de 2019, numa audiência sobre reparações por causa da escravatura. Hughes mostrou ser contra aquela campanha, alertando que iria servir para apenas dividir ainda mais o país. Adiantou que a serem aprovadas reparações, todos os negros norte-americanos que são contra essa campanha iriam ser transformadas em vítimas sem o seu consentimento.

    Neste livro, Hughes propõe que se regresse aos ideais que inspiraram o movimento dos Direitos Civis americanos. Escreve que o afastamento desses ideais deu inicio a uma era de medo e ressentimento e políticas nefastas baseadas na raça. Para Hughes, as políticas ‘woke‘ supostamente anti-racismo criam uma falsa equidade. 

    O autor estruturou este livro em seis capítulos, sendo que começa com uma introdução em que responde à questão: ‘Porquê escrever sobre raça?’

    Na obra, Hughes debruça-se longamente sobre o conceito de neo-racismo, que tem como alvo a população branca, baseado no estereotipo de que todos os brancos são arrogantes, racistas e sem compaixão pela luta das pessoas não brancas. O autor ataca a autora Robin DiAngelo e outros que também defendem este tipo do chamado ‘racismo investido’. O autor também se debruça sobre as instituições neo-racistas de elite.

    No último capítulo, Hughes propõe soluções para ‘Resolver o problema do racismo na América’. Para o escritor, “o verdadeiro problema do racismo na América” é que “a nossa sociedade continua a não conseguir consagrar o daltonismo como seu ethos orientador”. E adianta que “é este fracasso contínuo que tem permitido que o racismo sancionado pelo Estado surja repetidamente sob novas e diferentes formas – mais recentemente através do movimento a que tenho chamado de neo-racismo”.

    “O caminho neo-racista conduz a um mundo sombrio em que brancos e minorias trocam eternamente os papéis, de opressores e oprimidos, de culpados e inocentes − um mundo sem qualquer concepção do bem comum, mas em que os indivíduos colocam os interesses do seu próprio grupo racial em primeiro lugar, independentemente dos custos para os outros”, escreve Hughes na página 166.  A alternativa, segundo Hughes, “é o sonho” que passa, designadamente, por “uma nação onde as pessoas vivem em segurança e gozam da liberdade de procurar a sua felicidade; uma nação sem cidadãos de segunda classe onde o espírito democrático prevalece e os políticos são responsabilizados perante as pessoas que servem; […]”.  

      

  • O que é ser maçom no mundo de hoje

    O que é ser maçom no mundo de hoje

    Título

    A palavra ao Grão-Mestre

    Autores

    ARMINDO AZEVEDO

    Editora

    Guerra & Paz (Agosto de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Os desafios da Maçonaria Regular contados por dentro. É a esta a proposta da obra do Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal (GLLP/GLRP), a maior obediência maçónica e a única no país que cumpre os critérios internacionais de regularidade.

    O livro reúne textos de Armindo Azevedo que foram publicados na comunicação social e alocuções que proferiu em assembleias maçónicas em longo dos últimos seis anos.

    Eleito, em 2018, Armindo Azevedo desempenhou as funções de Grão-Mestre durante dois mandatos. Actualmente, o economista e pós-graduado em Recursos Humanos, é o Embaixador da Confederação Maçônica Interamericana − CMI junto da Comunidade Maçónica Europeia. 

    O livro começa com um prefácio sobre ‘De onde vem e para onde vai a Maçonaria Regular’, seguindo-se uma Nota de Abertura sobre o facto do livro ter nascido do confinamento, que foi uma das medidas impostas pela estratégia de gestão radicai adoptada pelo Governo português na pandemia de covid-19.    

    De carácter mormente pedagógico e propagandista, porque serve como ‘panfleto’ sobre as actividades e ‘feitos’ da Maçonaria, este livro está organizado em 11 capítulos e inclui ainda uma ‘Introdução’ e ‘Notas Finais’.

    No capítulo sobre ‘As eleições de 2018 e o ciclo de abertura à sociedade’ são recordados os “dois momentos negativamente marcantes” do mandato de Armindo Azevedo: a pandemia; e a aprovação na Assembleia da República “da Lei regimental de declaração de pertença a associações ditas discretas, que visava claramente a Maçonaria”.  “Vieram-me à memória as perseguições perpetradas pelos ditadores Hitler, Mussolini, Franco e Salazar, e a famigerada Lei Cabral, de 1935, que levou Fernando Pessoa, não sendo maçom, a tomar a defesa da Maçonaria”, escreveu o ex-Grão-Mestre. Adiantou: “A aprovação desta Lei em pleno século XXI foi para mim interpretada como um sinal claro de que, passados 50 anos do 25 de Abril, ainda não aprendemos a viver plenamente em democracia”.

    Seja para os curiosos da Maçonaria ou para os anti-maçons, esta obra serve para fomentar a literacia sobre o mundo da Maçonaria em Portugal, em particular na maior obediência regular, desde que se entenda que se está perante um livro cujo autor foi Grão-Mestre, sendo um olhar de dentro. Tendo consciência desse facto, é uma obra valiosa para um maior conhecimento e compreensão de um universo que não está ao alcance de todos.   

      

  • O tradutor, criador ou traidor?

    O tradutor, criador ou traidor?

    Título

    Miséria e esplendor da tradução

    Autor

    JOSÉ ORTEGA Y GASSET (tradução: Pedro Ventura)

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Janeiro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Pelo menos até ao século XVIII, a tarefa da tradução foi altamente elogiada, porque se considerava que se o escritor tinha completa liberdade criativa, o tradutor sofria as amarras do escrito (impostas pelo escritor), exigindo-se que fizesse mais do que substituir as palavras de um para outro idioma. E isso era mais do que um trabalho. Era, e é, efectivamente, uma arte maior.

    Miséria e esplendor da tradução, obra seminal do espanhol José Ortega y Gasset, originalmente publicada em 1937 num diário de Buenos Aires, enquanto ainda estava exilado na França, mergulha na complexidade e nuances do acto de traduzir, mas não vai, longe disso, pela parte técnica, mas sim filosófica e até humanista. É obra para todos os amantes das línguas e da linguagem. E lê-se de um fôlego.

    Contrariando a visão da tradução como uma mera tarefa mecânica, Ortega y Gasset defende, como esplendor, a interpretação e recriação do texto original, mas que se pode transformar – ou traduzir – numa traição (traduttore, traditor) ao escrito original, se na nova língua não forem consideradas as particularidades culturais, históricas e contextuais envolvidas.

    Um dos conceitos-chave discutidos por Ortega y Gasset é o da capacidade fundamental de todas as línguas serem capazes de serem (bem) transpostas noutro idioma, negando a visão tradicional de que algumas línguas são intraduzíveis ou que a tradução inevitavelmente resulta em perda de significado. E isso porque, embora as línguas possam diferir no seu vocabulário e estrutura, comungam uma essência permite a compreensão mútua entre diferentes culturas.

    Contudo, para que tal seja feito com sucesso, Ortega y Gasset explora no seu texto a relação entre tradução e criatividade, envolvendo escolhas estilísticas e interpretativas, de modo a ser transmitido ao destinatário da obra traduzida  algo que seja compreendido face à suas sensibilidades e aspectos culturais.

    Em todo o caso, a ‘radical tradutibilidade’ nem sempre é uma realidade prática, sobretudo quando se trata de expressões idiomática, trocadilhos e conceitos culturais específicos. Ortega y Gasset fornece exemplos curiosos: “Face à nossa paupérrima classificação dos nomes em masculinos, femininos e neutros, os povos africanos que falam as línguas bantas apresentam outra riquíssima: uma destas, há vinte e quatro signos classificadores – quer dizer, frente aos nossos três géneros, nada menos que duas dúzias. As coisas que se movem, por exemplo, são diferenciadas das inertes, o vegetal do animal, etc. Onde uma língua mal estabelece distinções, outra exibe uma exuberante diferenciação. Em jeje há trinta e três palavras para expressar outras tantas formas diferentes do andar humano, do ‘ir’. Em árabe, existem cinco mil setecentos e catorze nomes para o camelo” (pg. 46-47).

    Por esse motivo, mais do que um ser invisível e transparente – que, na maior parte das obras surge, se tanto, na ficha técnica –, Ortega y Gasset defende a figura do tradutor como um intérprete e criador, que deve ser destacado na obra.

    Por isso, de uma forma muito apropriada, e coerente, a Guerra e Paz – que é a primeira editora portuguesa a publicar o ensaio de Ortega y Gasset em Portugal – identifica Pedro Ventura como tradutor (e introdutor) logo na capa.

  • As civilizações empilhadas num mar

    As civilizações empilhadas num mar

    Título

    Atlas histórico do Mediterrâneo

    Autor

    FLORIAN LOUIS (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Guerra & Paz (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Em cada novo número, a Guerra & Paz merece todos os elogios pela colecção que começa a compor, por contribuir, digamos assim, para se recuperar o amor perdido ao livro físico perante a avalanche tecnológica assente no digital.

    aqui tivemos a oportunidade de abordar, no caso sobre a água, esta coleccção Atlas, que já conta agora com 12 temas, criteriosamente escolhidos e sabiamente escritos, abordando quer períodos históricos (Primeira Guerra Mundial, Holocausto e Guerra Fria, por agora, presume-se), quer países ou impérios (Antigo Egipto, Império Romano, Estados Unidos), quer regiões (África, Médio Oriente), quer temáticas “globalistas” (Água, Escrita e Fronteiras).

    Claramente, o objectivo destas obras não é apresentar um tratado sobre estes assuntos, até pela sua vastidão, e porque, por regra, não passam das 200 páginas. O interesse desta colecção é, exactamente, o oposto: depurar a vastidão para apresentar o essencial, aguçando o apetite para se poder buscar mais. E aí, no final, é apresentada uma extensa lista de referências bibliográficas, sobretudo de índole académica.

    Porém, aquilo que mais se destaca nos livros desta colecção, e este Atlas histórico do Mediterrâneo não constitui excepção, é o detalhe da cartografia que acompanha os curtos mas informativos textos que se vão sucedendo ao longo das páginas. 

    Mas independentemente desta parte mais “lúdica” do livro, este Atlas histórico do Mediterrâneo tem também o condão de relembrar o magistral trabalho histórico de Fernando Braudel, que durante décadas estudou o Mediterrâneo, não como um simples mar banhando o sul da Europa, o Norte de África e uma pequena parte ocidental da Ásia, mas sim um mar “no meio de terras” (mediterraneus, com “várias civilizações empilhadas umas em cima das outras”.

    E são essa “pilhas” de História que nos são presenteadas, desde o berço da Civilização na Mesopotâmia (embora Eufrates e Tigre desaguem no Golfo Pérsico), passando pelo Egipto e pelos Fenícios, até aos nossos dias.

    Distribuído por cinco grandes capítulos temáticos ou por períodos históricos (até à queda do Império Romano; desde a expansão islâmica na Europa até à dominância dos territórios marítimos pelos povos europeus; desde a expansão otomana às guerras e pilhagens de corso dos séculos XVI, XVII e ainda XVIII; os processos independentistas e de unificação de importantes países como a Grécia e a Itália; e, por fim, os tempos mais recentes da História, isto é, o século XX), este livro confirma-nos como o Mediterrâneo assistiu, quer pelas armas quer pelo comércio, às glórias e às derrotas de muitos povos, à ascensão e queda de outros tantos, dando naquilo que hoje conhecemos na complexidade do Sul da Europa, Norte de África e mesmo Médio Oriente.

    E permite-nos concluir que, enfim, e na verdade, estamos, aqui, em Portugal, com mais raízes mediterrânicas do que propriamente europeias, mesmo se nos localizamos um pouco na extremidade desta vasta região, e, por ser tão ambicionada, tivemos, para crescer, de olhar ainda mais além, para o grandioso Atlântico, cujo Atlas esperamos que também venha um dia a ser publicado pela Guerra & Paz.

  • Socialismo: essa ideologia útil… mas só em sociedades tribais

    Socialismo: essa ideologia útil… mas só em sociedades tribais

    Título

    Arrogância fatal: os erros do socialismo

    Autor

    Friedrich A. Hayek (tradução: João Carlos Barradas)

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Novembro de 2022)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Friedrich Hayek (1899-1992) foi um dos maiores economistas do século XX, laureado com um prémio Nobel em 1974; fez parte da corrente de pensamento económico que se designou por Escola Austríaca, promotora do mercado livre e da liberdade individual.

    A ele deve-se em parte o reconhecimento de que o liberalismo não nasceu no norte da Europa, mas sim na Península Ibérica, em particular na Universidade de Salamanca, Espanha, mas também nas universidades portuguesas de Coimbra e Évora.

    Hayek foi o supervisor do doutoramento de Marjorie Grice-Hutchinson, autora do livro “A Escola de Salamanca”, que nos deu a conhecer os principais contributos para a ciência económica de vários escolásticos espanhóis, como Juan de Mariana, Saravia de la Calle, Domingo de Soto, Tomas de Mercado, Martín de Azpilcueta Navarro (Reitor da Universidade de Coimbra) e Luis de Molina (professor na Universidade de Évora durante muitos anos).

    Foram estes autores que introduziram a Teoria da Utilidade Marginal, a Teoria Quantitativa da Moeda, a explicação para o fenómeno dos juros – para a Igreja e outras religiões monoteístas parecia imoral produzir dinheiro de dinheiro –, a legitimidade do regicídio no caso de desvalorização da moeda (inflação) pelo monarca – proposto por Juan de Mariana –, e, principalmente, a teoria dos Direitos Naturais (direito à vida, direito à propriedade privada…), fundamental à liberdade individual.

    Durante a União Dinástica dos dois reinos da Península, a família Habsburgo governava não só Portugal e Espanha, mas também a Flandres e a Áustria, ou seja, era dona da Europa no século XVI.

    Não foi um acaso o aparecimento de uma corrente de pensamento libertária no império Austro-húngaro durante o final do século XIX, onde nasceu a revolução marginalista, com os economistas Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser. Esta teoria deitou por terra a teoria do valor-trabalho defendida por Adam Smith, que mais tarde foi utilizada por Karl Marx para defender a “exploração do trabalhador”.

    Friedrich Hayek é um discípulo de outro economista austríaco, Ludwig von Mises – um judeu que fugiu ao nazismo e foi viver para os EUA, passando por Lisboa -, e é erradamente associado à Escola de Chicago, cujo grande bastião foi Milton Friedman, criador da cobrança tributária através da retenção na fonte e um acérrimo defensor dos Bancos Centrais, a quem ele atribuía o papel de estabilizador da despesa em caso de recessão económica, através de estímulos monetários, algo totalmente contrário ao proposto pela Escola Austríaca.

    Foi a Escola Austríaca a responsável por explicar os ciclos de expansão-recessão do capitalismo – apontados por muitos como uma falha do mercado -, atribuindo-os à expansão do crédito através da emissão de dinheiro – prática de reservas fraccionadas –, que origina distorções nas taxas de juros e gera sinais erróneos aos agentes económicos. Hayek aprofundou e detalhou a teoria dos ciclos económicos iniciada por Mises.

    Neste Arrogância fatal: os erros do socialismo, Hayek diz-nos que os sistemas éticos não resultam da razão, mas são o resultado de um processo histórico. Para ele, a razão, suportada em certas suposições da natureza humana e em dados empíricos, é incapaz de conceber um sistema ético.

    Ele até nos dá um exemplo: a razão de um dado indivíduo é incapaz de conceber uma língua, esta resulta da interacção humana em comunidade ao longo de gerações.

    Assim, o nosso sistema ético foi passado de geração em geração e aprendido por imitação. O seu progresso e desenvolvimento foram alcançados por um mecanismo de evolução social: as culturas que adoptaram os “bons” sistemas éticos sobreviveram e floresceram, enquanto aquelas com “maus” sistemas éticos fracassaram ou tiveram de adoptar sistemas éticos que evitassem o seu desaparecimento. Esse processo de tentativa e erro produziu a ética ocidental, um sistema altamente bem-sucedido, atendendo à sua supremacia tecnológica, científica e económica ao longo de vários séculos.

    Segundo Hayek, a ética ocidental surgiu a partir das civilizações mediterrânicas, onde pela primeira vez na história da humanidade apareceu o conceito de propriedade exclusiva – um termo utilizado por Hayek para referir-se à propriedade privada; ao contrário, por exemplo, das sociedades asiáticas, onde tal conceito era praticamente inexistente (notários, registo, contrato…).

    Hayek explica-nos que há uma dialética ética e não materialista, como defendia Karl Marx, na sociedade ocidental. Ele diz-nos que as tribos primitivas, no alvorecer da história, para se defenderem e sobreviverem tinham de adoptar uma ética colectivista – solidariedade, altruísmo, etc.

    Com o decorrer do tempo, técnicas agrícolas foram desenvolvidas, permitindo o surgimento das primeiras cidades. Estas transformações deram origem a dois desenvolvimentos que tornaram a ética dos “pequenos grupos” – ética colectivista – insustentável: o comércio e o crescimento populacional.

    O comércio colocava os membros de comunidades fechadas em permanente contacto com desconhecidos que geralmente não partilhavam os mesmos objectivos, propósitos e crenças do grupo.

    O crescimento populacional, estimulado pela prosperidade económica, e não o contrário, tornou o pequeno grupo num grande grupo, resultando em membros do mesmo grupo frequentemente estranhos uns aos outros e frequentemente perseguindo objectivos e propósitos distintos.  

    A ética de “pequenos grupos” deixou de ser aplicável a comunidades diversificadas e cosmopolitas; grupos que não se adaptavam ficavam isolados e economicamente estagnados. Através do processo evolutivo social, a ética de “pequenos grupos” foi gradualmente substituída pelo que Hayek designa por “Ordem Espontânea”.

    Esta Ordem Espontânea abandonou os propósitos colectivos a favor de regras abstratas e geralmente aplicáveis que facilitavam os diversos fins individuais. Essa ética servia como um mecanismo impessoal para a coordenação de acções e planos individuais, enquanto a ética dos “pequenos grupos” dependia de um líder tribal, que dirigia o grupo para um objetivo comum.

    A “ordem espontânea” substituiu assim a ética dos “pequenos grupos” como sistema dominante; no entanto, a ética de “pequenos grupos” continuou a existir: famílias, amizades e pequenos negócios continuaram a segui-la.

    O altruísmo, o amor, a solidariedade, a camaradagem e um propósito comum – tão necessários para a realização dos indivíduos – são apenas possíveis dentro de um pequeno grupo. Desta forma, Hayek conclui pela dialética ética das sociedades contemporâneas: (i) a ética da “Ordem Espontânea” diz aos indivíduos e aos grupos como agir dentro de uma ordem mais ampla, enquanto a ética do “pequeno grupo” instrui os indivíduos a comportarem-se dentro dos limites das várias associações voluntárias a que aderiram.

    Hayek também nos diz que os indivíduos apresentam uma capacidade limitada de viver simultaneamente dentro de duas ordens de valores. A linha divisória entre as duas estruturas deixa os indivíduos confusos em relação às suas obrigações.

    Por exemplo, alguém teria a obrigação de ajudar um amigo ou um membro da família em apuros financeiros? E um estranho a pedir na rua? Ou um homem de negócios conhecido, próximo da falência, que actua como concorrente no mercado? Hayek diz-nos que apesar da tensão entre estas duas estruturas de valores, o equilíbrio deve ser mantido.

    A Ordem Espontânea permite que os indivíduos trabalhem para outros que desconhecem e que também comprem a pessoas que igualmente desconhecem – quem conhece a pessoa numa linha de montagem que construiu o nosso carro?

    A ética dos “pequenos grupos” permite estreitar os laços e a camaradagem indispensáveis ao fortalecimento e bem-estar dos indivíduos.

    Hayek explica-nos que as pessoas ligadas às ciências naturais – não são os únicos, os políticos e os que advogam o socialismo também –, que valorizam a razão e o positivismo, regra geral, são incapazes de compreender a Ordem Espontânea, pois esta frequentemente gera resultados contrários ao que a sua razão dita como “lógico” ou “racional” – a distribuição “justa” da riqueza, a “justiça social”, um estímulo de 10% resulta num crescimento de 20%.

    Segundo Hayek, isto resulta em primeiro lugar da incompreensão do que é a economia: o estudo da acção humana na selecção dos meios para satisfazer determinados fins.

    Por exemplo, se assisto a um programa de televisão, tenho de tomar opções acerca do meu tempo: vou continuar a vê-lo?; ou vou caminhar?; ou vou escrever uma carta? O nosso tempo, os recursos que existem na natureza e a nossa força laboral são recursos escassos; a todo o momento, temos de tomar decisões sobre como os utilizar para satisfazer os nossos fins: lazer, alimentação, alojamento, etc.

    De acordo com os meios ao seu dispor, os seres humanos ordenam os fins – do mais importante para o menos importante – e tomam decisões com base nessa ordenação. Por exemplo, se um dado agricultor dispõe de cinco cavalos – que os considera iguais em aptidões e características – irá colocar o primeiro na necessidade mais importante (lavrar) e o último na quinta mais urgente (carregar sacos).

    Se ele necessitasse de sacrificar um cavalo dos cinco que possui, iria dispensar a actividade de carregar sacos, a utilização marginal. Por essa razão, quando um bem não é escasso tem pouco valor na mente humana, atendendo que tenho de sacrificar uma necessidade de pouca importância.

    Quando uma dada pessoa realiza uma troca no mercado, significa que o bem ou serviço que recebe em troca tem mais valor do que aquele que está a sacrificar. A troca ocorre em resultado de diferentes valorações na cabeça de comprador e vendedor, só há troca se a mesma é benéfica para ambos. O rácio de troca, por exemplo, 1 cavalo por duas vacas, de uma eventual transacção entre dois agricultores permite aquilo que se designa por formação de preços de mercado. Quanto maior o número de intervenientes e as quantidades intercambiadas maior a liquidez e a profundidade.

    A utilidade de cada animal para um dado agricultor não é mensurável, não é quantificável, nem tão pouco é comparável a utilidade de um dado cavalo para os dois agricultores. Por essa razão, as ciências exactas não podem ser aplicadas à economia. Por outro lado, cada ser humano tem uma dada ordenação de valores, com estas a sofrerem constantes alterações a todo o momento, seja por circunstâncias (se está calor, tenho sede, logo mais propenso a pagar por uma garrafa de água), pela idade (na velhice, tenho outras prioridades) ou valores da comunidade (modas, tendências…).

    Desta forma, transformar a ciência económica em modelos matemáticos, como acontece hoje com os modelos macroeconómicos, segundo Hayek, é um completo disparate. Na ex-URSS, os planeadores centrais tinham de se basear nos preços dos mercados ocidentais para formularem um plano de produção. Como podiam saber quantos carros amarelos produzir? Quantos parafusos produzir, e de que tamanho? Apenas os preços, expressos numa unidade de conta (a moeda), permitem a tomada de decisões de uma ordem complexa.

    Os preços são sinais que permitem aos diferentes agentes tomarem decisões. Os preços, segundo Hayek, permitem a coordenação de sociedades altamente complexas e prósperas, em que várias pessoas se especializam em determinadas linhas de produção, com base nas oportunidades que os preços assinalam. Quanto maior a população, e não o contrário, maiores são as possibilidades de especialização e as respectivas oportunidades que resultam da Ordem Espontânea.

    Essa capacidade de interpretar assimetrias de preços (na Europa, por exemplo, as especiarias eram altamente valorizadas no século XV) e de retirar proveito, como fazem os comerciantes, comprando barato e vendendo caro, sempre originou, segundo Hayek, o desdém dos intelectuais ao longo da história.

    Um indivíduo que nada produz, consegue tornar-se rico explorando assimetrias de preços, graças a informação privilegiada e ao conhecimento do “terreno”, que apenas ele logra interpretar. Para não falar da actividade bancária, ainda mais enigmática e mais vilipendiada, dado que é incompreensível não só para os intelectuais como para a maioria da população.

    Segundo os socialistas, a remuneração da Ordem Espontânea é sempre “injusta”, dado que penaliza os indivíduos que se esforçam, que realizam as tarefas árduas de produção; para eles, a intervenção é sempre necessária para criar algo que seja “racional” e “justo”, segundo o seu ponto de vista, por forma a corrigir as “injustiças” da Ordem Espontânea.

    Outro erro dos “racionalistas”, segundo Hayek, é o carácter primitivo da natureza humana, em particular o animismo. Um dos exemplos mencionados por Hayek é o contrato social de Jean-Jacques Rousseau, como se a Sociedade tivesse alma, fosse capaz de assinar o tal acordo. Esse é outro dos erros de Karl Marx, ao atribuir uma alma ou consciência a uma dada “classe”: os burgueses, os operários.

    Esse animismo é responsável pela importância que a palavra “Social” tem hoje na nossa sociedade: a “justiça social”, a “segurança social”. É como se uma maioria tivesse personalidade própria, quando na verdade apenas existem indivíduos distintos, com fins e valorizações completamente diferentes. Se um indivíduo pertence a um sindicato não significa que valorize exactamente os mesmos fins dos demais, na verdade considera apenas que essa associação ser-lhe-á benéfica para atingir os seus fins – melhor salário, por exemplo.

    Desta forma, Hayek explica-nos que o socialismo apenas funciona em sociedades tribais ou de reduzida dimensão, em que um líder consegue coordenar os esforços de um pequeno grupo para um fim comum. Numa sociedade complexa e próspera, apenas a ética da “Ordem Espontânea” funciona, apesar de muitas vezes ser contrária aos instintos humanos (confiscar para criar “justiça” distributiva ou “alojamento para todos”) e daqueles que pregam o socialismo.

  • Um livro para saciar a sede de saber

    Um livro para saciar a sede de saber

    Título

    Atlas mundial da água

    Autor

    DAVID BLANCHON (tradução: Maria Ana Matta)

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois da pandemia, tem sido a questão energética a estar, actualmente, na ordem do dia. Não apenas pelo mediatismo (para além do drama humano) da invasão russa à Ucrânia e das consequências no fornecimento de gás à Europa, como também pela “emergência” das alterações climáticas, independentemente de se concordar ou não com as causas – e também atendíveis as hipocrisias dos políticos e das grandes empresas quanto às responsabilidades para a sua minimização.

    Porém, não há nenhum outro “elemento” mais relevante para a vida humana, e mais perene como pomo de discórdia, do que a água. Ao longo dos milénios da civilização humana, a água desempenhou um papel fundamental, não apenas na fixação das populações, como no desenvolvimento de actividades económicas. Era água – ou a falta dela – que obrigava primitivas comunidades humanas a serem nómadas; foi o controlo sobre os recursos hídricos que permitiu que nos tornássemos sedentários. É certo que foi a agricultura, mas sem água não há agricultura.

    Por maior que seja capacidade tecnológica humana, apenas de uma forma limitada se consegue alterar o “curso natural” das disponibilidades hídricas da chamada “água doce” – ou, mais concretamente, da água potável. A sua distribuição irregular do ponto de vista espacial e temporal é, infelizmente, uma questão incontornável; os efeitos daquilo que os vizinhos (a montante) fazem ou deixam de fazer é crucial.

    Não poucas vezes, por isso mesmo, tem sido a água a estar na origem de imensos conflitos, alguns bélicos, outros mais discretos (diplomáticos), outros mais locais, mas não menos sangrentos. Muito mais até do que os recursos energéticos.

    Ora, a obra Atlas mundial da água, da autoria do francês David Blanchon, geógrafo e professor da Universidade de Paris Nanterre, mostra de uma forma extremamente didáctica como esse bem renovável mas irregular se distribui pelo Mundo, revelando em simultâneo os seus benefícios e problemas, as suas ameaças e potencialidades, além dos desafios que se se colocam às sociedades para uma desejável gestão futura sustentável.

    Este livro – que surge integrado numa colecção da editora Guerra & Paz sob o título comum Atlas Mundial (tendo sido já publicadas obras similares sobre África, Império Romano, Médio Oriente, Estados Unidos da América, Holocausto, Antigo Egipto, Guerra Fria e, recentemente, Mediterrâneo) – não tem pretensões académicas (pelo menos aprofundadas) nem de substituir muita informação mais detalhada que se pode “adquirir” em sites especializados em recursos hídricos.

    No entanto, a forma cuidada e rigorosa como se encontra estruturado (e relativamente actualizado) este Atlas mundial da água é uma mais-valia para aguçar o apetite, ou saciar a sede de saber, de qualquer principiante ou mesmo um estudante na área do ambiente. 

    Além disso, o aprumo gráfico dos esquemas e mapas que acompanham os vários assuntos “devolvem” também o prazer de fazer a aprendizagem através de um livro – o que é fantástico nos tempos que correm, onde os jovens (que me parecem ser os principais destinatários) aparentam só querer aprender através dos smartphones.

    Na verdade, tenho pena de ter feito a minha aprendizagem básica sobre recursos hídricos, na minha formação académica inicial, há mais de três décadas, sem ter um livro assim…

  • Riso para entreter a academia

    Riso para entreter a academia

    Título

    História do riso

    Autor

    Abílio Almeida

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Outubro de 2022)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Há livros que, antes de serem lidos, são muito desejados, tal a expectativa que determinado título ou temática suscita junto dos leitores. Foi o caso desta História do Riso, título demasiado abrangente para o resumo que dela se aproveita, escrito por Abílio Almeida (n. 1991), doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho e investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.

    Composto por duas partes, em que na primeira, intitulada “O Riso no Pensamento: O conflito dos rostos do poder”, o autor pretendeu “entender a origem do conflito de perspectivas acerca do riso”, bem como a sua evolução até aos dias de hoje. Na Parte II, com o título “O Riso na Sociedade: Uma análise de fora para dentro”, o autor incidiu o foco “essencialmente nas muitas causas externas capazes de afectar as diferentes significações do riso”.

    Para Margaret Mead (1901-1978), o riso era a expressão emocional mais distintiva do homem, aquilo que caracteriza e distingue o ser humano. Contudo, para Platão (428-348 a. C.), o riso pertencia “ao mundo dos ignorantes, dos que se alimentam apenas dos sentidos e que, de forma ignorante, riem da realidade.” No seu entender, “o sábio, o filósofo, aquele que jamais encontra motivo para rir, não olha com bons olhos para aqueles que riem, pois esses são não só ignorantes, mas também perigosos”. De acordo com Platão, o riso “pertence, por isso, àqueles que, por não serem capazes de entender a realidade, riem dela, e que, por não a entenderem, estão dispostos a acabar com ela.”

    Através de vários exemplos, o autor tenta demonstrar como a interpretação do riso, “algo tão amplo e complexo quanto distinto e contraditório”, foi variando, “não só de época para época como de autor para autor.”

    De entre os pais da Igreja, o mais ferrenho adversário do riso foi João Crisóstomo (347-407), arcebispo de Constantinopla, argumentando que, de acordo com as escrituras, Jesus Cristo nunca riu. Esta ideia criada por João Crisóstomo levou a que as pessoas acreditassem que Cristo nunca manifestara o seu riso, como também nenhum dos apóstolos ou santos alguma vez o fizera.

    Não obstante, na Bíblia, o primeiro a rir é Abraão, com 99 anos, ao saber que sua mulher, Sara, com 90 anos, iria dar à luz um filho seu. Perante a novidade, Abraão pôs-se a rir. Curiosamente, esse inesperado filho chamar-se-á Isaac, nome que em hebraico significa “riso”.

    Este livro é o resultado da tese doutoral de Abílio Almeida e assim chega aos escaparates. Infelizmente, é disso mesmo que o livro padece, quedando-se a presente edição espartilhada por coloquialismos académicos, a desfiar conceitos e argumentos, com citações extensas, umas em inglês, outras em alemão — como se os leitores comuns fossem poliglotas —, preocupando-se em demasia com a forma e as normas de referenciação, mas olvidando o ritmo do texto e, principalmente, da leitura, que deveria ser fluída como um sorriso. Algo que a temática em apreço, seguramente, mereceria.

    Em bom rigor, esta História do Riso, em termos de conteúdo científico, certamente cumpre com honra a sua função de entreter a academia; todavia, devido à forma académica como se apresenta, pouco entusiasma o humilde leitor.

  • Um cartão de visita à leitura

    Um cartão de visita à leitura

    Título

    Guia para 5o personagens da ficção portuguesa

    Autor

    BRUNO VIEIRA AMARAL

    Editora (Edição) 

    Guerra & Paz (Setembro de 2022) 

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Entre 2013, ano da edição original deste Guia para as 50 personagens da ficção portuguesa, e o presente ano, o da sua reedição, Bruno Vieira Amaral transformou-se num dos mais respeitados escritores portugueses, com uma estreia auspiciosa que não tem esmorecido.

    O seu romance de estreia, As pequenas coisas, publicado então nesse ano de 2013, lançou-o logo para o estatuto de escritor “amadurecido”, arrebatando logo o Prémio Fernando Namora e o Prémio PEN Clube Narrativa, e dois anos mais tarde, o Prémio José Saramago, então para autores com menos de 35 anos – Bruno Vieira Amaral nasceu em 1978.

    Quatro anos mais tarde, o seu segundo romance Hoje estarás comigo no paraíso, recolheu o segundo lugar no Prémio Oceanos (Brasil) e foi finalista do Prémio Correntes d’Escritas, seguindo-se dois livros de contos e a biografia do escritor José Cardoso Pires (1926-1998), Integrado marginal, publicado no ano passado.

    Mas Bruno Vieira Amaral não nasceu literariamente em 2013. Nesse ano, trabalhava como assessor de comunicação da editora Quetzal e como crítico literário, sobretudo da revista Ler. E leria, leria muito, por certo.

    Na verdade, só quem for um leitor compulsivo se mostra capaz da ousadia de seleccionar meia centena de personagem de romances (e um conto, Léah, de José Rodrigues Miguéis), percorrendo todo o espectro literário português desde o século XIX até à actualidade, incluindo todos os movimentos artísticos, géneros e sensibilidades.

    Seguindo, como modelo assumido, o Livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarida Guerrero, e o Dicionário dos lugares imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, esta obra de Bruno Vieira Amaral é despretensiosa.

    E é despretensiosa no sentido de não ambicionar ser um ensaio nem sequer uma crítica literária, antes sim é uma “mostra”, um convite, através de personagens, à leituras de obras de ficção que, se não já lidas pelos leitores de maior “consumo literário”, pelo menos estarão com quase todos eles familiarizados, pelos títulos e autores.

    Assim, não surpreende que Bruno Vieira Amaral não apresente grandes surpresas na escolha de personagens (e romances e autores), sobretudo quando abrange o século XIX e a primeira metade do século XX. Revela apenas os “clássicos”, que constituem o cânone, e nada mais.

    O século XIX surge representado por nove obras / personagens, mas apenas de cinco escritores: Eça de Queirós (O primo Basílio; O crime do Padre Amaro; Os Maias; A relíquia), Camilo Castelo Branco (Amor de perdição; A queda dum anjo), Júlio Dinis (A morgadinha dos canaviais; Uma família inglesa); Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero) e Almeida Garrett (Viagens na minha terra).

    A primeira metade do século XX – que, apesar da crescente alfabetização da população, e concomitantemente da oferta de livros, foi de certa pobreza literária – encontra-se ainda menos representada. No primeiro quartel, Bruno Vieira Amaral escolheu somente Lúcio Vaz, de As confissões de Lúcio, de Mário Sá Carneiro, publicado em 1914, e António Malhadinhas, de O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, de 1922. Depois, só duas obras do neorrealismo, quase óbvias: Gaibéus (1939), de Alves Redol; e Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes.

    Mau tempo no canal (1949), de Vitorino Nemésio, é a antecâmara de um período literário que aparentemente agradou bastante a Bruno Vieira do Amaral, porquanto na década de 50 encontramos as personagens principais de Uma abelha na chuva (1953), de Carlos Oliveira; A sibila (1954), de Agustina Bessa Luís; de Seara de vento (1958), de Manuel da Fonseca; de Léah, (1958), de José Rodrigues Miguéis; de Bastardos do sol (1959), de Urbano Tavares Rodrigues, e de Aparição (1959), de Virgílio Ferreira.

    Mais romances, portanto, do que aqueles que surgem desde a década de 60 até ao fim do Estado Novo. Neste período, Bruno Vieira Amaral apenas nos mostra quatro personagens de obras de Marcello Mathias, Fernando Namora, Natália Correia e José Cardoso Pires.

    No período democrático, e pela proximidade geracional, não faltam, até ao final do século XX, personagens de obras dos escritores mais emblemáticos deste período, como José Saramago (com Baltasar e Blimunda, em Memorial do convento; e um dos heterónimos de Fernando Pessoa, em O ano da morte de Ricardo Reis), Jorge de Sena, Fernando Assis Pacheco, Dinis Machado, David Mourão Ferreira, Fernando Dacosta, António Alçada Baptista, José Cardoso Pires (que repete a sua presença, desta vez com Alexandra Alpha, de 1987), João Aguiar, Baptista Bastos, Lídia Jorge, João de Melo, Mário Zambujal e Clara Pinto Correia, apenas surgindo aqui dois (então) jovens escritores: José Riço Direitinho (com Breviário das más inclinações, publicado em 1994, aos 29 anos) e Manuel Jorge Marmelo (com Portugués, guapo y matador, em 1997, ao 26 anos).

    Embora a obra de Bruno Vieira Amaral distribua os personagens e as obras que eles enchem de forma aparentemente ao correr da pena – ou seja, sem ter uma linha cronológica nem alfabética –, as obras de autores do presente século são justificadamente escassas. Estão aqui assim personagens de romances de Miguel Sousa Tavares (Equador), Mário de Carvalho (A sala magenta), Hélia Correia (Lillias Fraser), J. Rentes de Carvalho (A amante holandesa), Miguel Real (A ministra) e Francisco José Viegas (Um crime capital).

    Haverá, por certo quem possa identificar falhas ou injustiças, ou aqui e ali julgar ser exagerado a inclusão de uma ou outra personagem nesta colectânea ou antologia, mas, como se disse, esta obra de Bruno Vieira Amaral é despretensiosa – e, acrescentar-se-ia, de grande honestidade e até generosidade, constituindo-se sobretudo como um cartão de visita à leitura.