Etiqueta: Frederico Duarte Carvalho

  • No cantinho do Cristiano

    No cantinho do Cristiano


    Como adepto, decidi boicotar o Mundial do Catar; mas como jornalista decidi ver o jogo de Portugal contra o Gana no único sítio possível à face da Terra para uma reportagem: o “CR7 Corner”, na Baixa Pombalina. Esta é a crónica de um jogo histórico. 


    Sentados ao balcão, os sul-coreanos vibravam com os minutos finais da partida entre o seu país e o Uruguai. O ex-benfiquista Darwin Nuñez bem que se esforçava, mas não conseguia desfazer o 0-0, enquanto o treinador da selecção asiática, o nosso Paulo Bento, “com tranquilidade”, esbracejava para todos os lados.

    O árbitro termina a partida e os coreanos celebram o empate frente a uma das equipas candidata ao primeiro lugar do mesmo grupo onde está Portugal. Um ponto que poderá ser precioso para o resto dos jogos do grupo H. O tempo o dirá, quando tivermos de fazer contas no último jogo – que é sempre uma fortíssima probabilidade estatística do nosso fado –, que será contra a Coreia do Sul, após a nossa partida contra o Uruguai, na segunda-feira, dia 28.

    Antes disso, há que despachar o jogo contra o Gana, aquele que venho assistir no bar do Hotel Pestana CR7, o “CR7 Corner”, na Baixa Pombalina. É o único local onde estaria disposto a ver uma partida do Mundial do Catar. A partida histórica vai começar: é o primeiro jogo daquele que será – não é arriscado mencionar como facto – o último Mundial de Cristiano Ronaldo, mas o primeiro em que está desempregado. Em todo o caso, acho que nunca o iremos ver na fila de um centro de emprego.

    Para além dos já mencionados clientes sul-coreanos, o bar parece um mundo em miniatura: consigo identificar canadianos (que falam o inconfundível francês do Quebeque); há outros que dizem ser irlandeses e falam com turistas que afirmam viver nos Estados Unidos. Também se sentam portugueses à minha volta, com a camisola da selecção. Fazem-se prognósticos: “Acho que vai ficar 3-1”, diz um. “Acho que Ronaldo já tem clube e quando anunciar vai ser uma bomba”, acrescenta outro. Especula-se que seja o PSG, para jogar com o argentino Messi e o brasileiro Neymar. Logo se verá. Para já, aguarda-se pelo começo do jogo frente ao Gana.

    Existem 10 ecrãs espalhados pelo bar; seis deles estão no tecto, em círculo, de modo a garantir a visibilidade a partir de vários ângulos. É mesmo um bar para se ver futebol e, à falta de alternativa ao Estádio 974, onde a acção está a desenrolar-se em tempo real, não haveria outro local no Mundo para ver este espectáculo. Digo eu. E estamos lá. Acrescento.    

    Ronaldo aparece finalmente no ecrã e o bar anima-se. São pessoas que estão aqui a puxar por Portugal apenas pelo facto de, por acaso, ser este o país que deu ao Mundo este vulto. Os mesmos sul-coreanos sentados ao balcão, como que numa primeira fila, apontam a câmara do telemóvel para onde surge o herói dos tempos modernos. Tento olhar para um televisor que não esteja escondido pelas cabeças à minha frente, e alterno ainda entre as televisões do tecto. As equipas alinham-se no túnel de acesso ao relvado e Ronaldo é o único obrigado a cumprimentar as crianças que vão entrar em campo de mão dada com os restantes jogadores.

    Ele faz isso, vejo, com prazer. São as crianças que o procuram. Que o exigem. O capitão da equipa de Portugal vai para a frente da fila e as câmaras focam a sua cara. “Está concentrado”, dizem ao meu lado.

    O hino faz-se ouvir e os portugueses presentes acompanham os jogadores numa cantoria tímida. Os estrangeiros respeitam o momento. Nota-se a emoção na expressão do número 7 enquanto entoa “A Portuguesa”. O jogo começa de forma calma e os primeiros aplausos fazem-se escutar no bar quando, ao minuto 9, Ronaldo consegue ficar de frente para o guarda-redes do Gana. Não concretiza.

    São “19 minutos de paciência”, diz o narrador. O jogo permanece empatado. Será que vai ser assim até ao fim? Um resultado idêntico aos dos outros adversários do grupo. Ronaldo irá fazer a diferença? Já não finta como antigamente, já não faz grande jogadas em campo. Mas aos 30 minutos parece que vai responder a quem ainda tem dúvidas, só que o golo que marca é anulado, por falta sobre o adversário. Discute-se se foi mesmo assim, mas o árbitro norte-americano não teve dúvidas.

    Golo anulado, mas que tem o condão de acordar o ambiente no “CR7 Corner”. As vozes elevam-se e o jogo, finalmente, está a ficar mais competitivo. Dez minutos depois, Ronaldo está no caminho da bola na pequena área, onde ia a passo. Não chega. Noutros tempos, a bola acabaria dentro da baliza sem que as leis da física conseguissem explicar.

    Quem chega é o intervalo, e tudo empatado. E há uma pessoa com uma camisola de Ronaldo. E há estrangeiros com cachecóis de Portugal. As bebidas e a comida seguem para as mesas. Os 15 minutos passam, rápidos, recomeça a partida. Olhos focados no homem do bar, ou melhor, do que lhe dá o nome. 

    Aos 53 minutos, no mesmo momento em que um remate do Gana coloca em perigo a baliza de Portugal, ouvem-se gritos. São maioritariamente femininos. “Há quem esteja a ver futebol de outra forma”, comentam os portugueses. Os gritos repetem-se sem que haja qualquer jogada que os justifiquem e percebe-se que, os anteriores, foram uma coincidência. O jogo continua sem empolgar e a única expectativa é mesmo continuar à espera do que poderá ou não acontecer se CR7 tocar na bola de forma, enfim, eficaz.

    Fernando Santos, o homem que manda nisto tudo – vulgo seleccionador – faz entrar o defesa William e sou obrigado a ouvir: “Temos dois trincos a jogar. Não percebo nada disto!”

    Quando me preparava para aceitar o empate como o menos mau dos resultados – dando caminho à tradição nacional que, no passado, já nos rendeu um Europeu na França – ouço uns aplausos tímidos quando árbitro assinala penálti sobre Ronaldo.

    Faço então como muitos presentes no bar: aponto o meu telemóvel aos ecrãs em modo de filme na expectativa de registar o “momento” do jogador desempregado mais famoso do Mundo, e que se prepara para ser o primeiro jogador masculino a marcar golos em cinco Mundiais. Aguarda-se. Com ansiedade. Apela-se ao golo. Incentiva-se o atleta como se nos ouvisse. Como se estivéssemos no estádio. Ronaldo parte para a bola aos ziguezagues… o guarda-redes estica-se… para o lado da bola… e… golo! A potência do remate não deu hipóteses.

    Festa no bar da Baixa Pombalina ao minuto 65 da partida. “That was amazing”, diz a estrangeira atrás de mim depois da dança da vitória.

    (Numa repetição do momento da celebração, vista da perspectiva do banco da selecção nacional, o “mister” Fernando Santos não comemora o golo. É a emoção gerida de forma diferente, pois sabe que o jogo ainda não acabou. E tinha razão).

    Aos 71 minutos, o guarda-redes Diogo Costa faz com que pareça fácil a tarefa de defender, mas dois minutos volvidos, passando como manteiga entre centrais, a bola ficou ao alcance do homólogo de Ronaldo. O capitão ganês, André Ayew juntou o seu nome a feitos dignos de registos estatísticos. Siga o primeiro golo de uma equipa africana neste Mundial. Tinha mesmo de ser contra Portugal?

    low angle photography of brown concrete building

    Sente-se que o ambiente ficou mais empolgado. O jogo está aberto. O Gana acredita e mostra – passe o óbvio jogo de palavras, que se deveria evitar – bem mais ganas do que Portugal.

    Teme-se o pior… Afinal, numa visão pessimista, este pode ser o antepenúltimo jogo de Ronaldo num Mundial. O verdadeiro adepto português é aquele que duvida sempre. Aquele que é pessimista. Aquele que sofre. Mas tem de sofrer de forma profissional, preparar mentalmente convenientes desculpas para se convencer depois que era só um jogo.

    Todos os clientes do bar, ainda assim, esperam o próximo golo. Que seja do CR7. Mas são os pés de João Félix que nos fazem felizes – eis mais um jogo de palavras perfeitamente evitável…

    E fazendo uso de toda uma cultura e gíria futebolística, dou por mim a pensar que o “ketchup” saltou no minuto 80 com o terceiro golo português, marcado pelo recém-entrado Rafael Leão – e desculpem pelo novo jogo de palavras: que entrada de leão!

    Com isto, o ambiente fica menos tenso. As conversas no bar tornam-se soltas. Muito mais. Afinal, parece que vamos vencer. Assim não vai dar para o empate. E há muito que não entrávamos num Campeonato do Mundo com uma vitória.

    (Ui! E quele jogo contra a Alemanha, em 2014 no Brasil, que vi no Parque Eduardo VII? 4-0, não foi?)

    Entretanto, Ronaldo ameaça marcar, de novo, mas os aplausos para o melhor do Mundo acabavam por se ouvir outra vez ao minuto 87, quando é, enfim, substituído.

    O jogo, porém, não acabou para o Gana: 3-2. Mau! Mau! A tensão em campo aumenta. No bar também. Há amarelos divididos pelo árbitro norte-americano para Danilo para o ganês Iñaki Williams.

    A placa com o tempo extra aponta o 9; nove minutos suplementares. Como está, é coisa suficiente para o Gana empatar e, quem sabe – já se viu de tudo no mundo futebol – para ganhar. Lá vem o pessimismo. Nota-se o nervosismo na selecção; Bruno Fernandes leva amarelo. Não há soluções; e bar suspenso. O som da festa já não se ouve. As conversas são feitas em tom mais suave. Receoso.

    Depois, o silêncio, nos últimos quatro minutos. As imagens de Ronaldo no banco mostram a imagem da apreensão. O cronómetro no canto superior esquerdo dos ecrãs, tic-tac, tic-tac, a correr devagar, devagarinho… Dois minutos em falta e uma bola batida por um ganês passa por cima da rede da baliza lusa.  

    CR7 está de pé a dar indicações para o campo. Lembra-me outros tempos. No “CR7 Corner”, há uma comunhão, mas de medo. Susto! Gritos! Diogo Costa escapa por um triz de se associar ao golo mais ridículo do Mundial, e logo na primeira jornada, ao rolar docemente a bola no relvado sem se aperceber do sorrateiro adversário atrás de si. Um clássico para se eternizar no YouTube. Salva-se ele, Diogo Costa, da perpétua chacota, porque o seu anjo-da-guarda faz o ganês escorregar ao roubar a bola, e perde-se o remate fatal.

    Para alívio de corações palpitantes, o árbitro dá a partida como terminada. Alívio, finalmente.

    Mas só até segunda-feira. Até ao jogo contra a equipa do Uruguai, de má memória, que nos eliminou no Mundial da Rússia. Se não resolvermos logo aí a passagem à fase seguinte, temo que os coreanos, aqui na primeira fila, já não estarão a vibrar tanto pelo nosso Ronaldo.

    Entretanto, saio para ver como corre o resto do mundo. Na Baixa Pombalina.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Brasil, preso entre o passado e o futuro… e, já agora, Portugal também

    Brasil, preso entre o passado e o futuro… e, já agora, Portugal também


    No Palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa, há um quarto muito especial. É decorado com cenas do livro D. Quixote, do espanhol Miguel Cervantes, e é esse o nome daquela habitação real. Foi aí que nasceu e morreu o rei D. Pedro IV de Portugal, primeiro Imperador do Brasil, cujos 200 anos de Independência hoje se comemoram. Apenas 36 anos separam as datas do seu nascimento – 12 de Outubro de 1798 – da sua morte – 24 de Setembro de 1834 -, mas este rei e imperador teve uma vida tão preenchida cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir em ambos lados do Atlântico.

    Faltavam dois anos para a invasão de Portugal pelas tropas de Junot quando, esse mesmo Junot chegou a Portugal para servir como embaixador do governo de Napoleão. Em 1805, o homem que alcançara o posto de general francês durante a campanha do Egipto, apresentou-se na corte portuguesa, perante o príncipe regente, D. João VI, trajando o seu uniforme de coronel general dos hussardos. Branco e azul, as mesmas cores do Portugal de então.

    Pormenor do quarto D. Quixote, Palácio Nacional de Queluz

    As cicatrizes no rosto do francês compunham a imagem militar e o pequeno D. Pedro, presente ao lado do pai, não deixou de ficar impressionado. Mal sabia que, dentro de dois anos, aquele mesmo homem iria dar início a uma invasão de Portugal que marcaria a história do mundo. E da qual ele também faria parte de forma preponderante.

    Dizem as crónicas da época – registadas nas memórias de Laura, mulher de Junot – que dois dias depois da apresentação das credenciais do embaixador francês, um criado de D. João VI foi pedir o uniforme hussardo para que se fizesse uma cópia para uma versão de adulto e outra para uma criança. A criança que o vestiria depois era D. Pedro, aquele que ficaria conhecido para a história como “Rei Soldado”.

    Este pequeno episódio da infância de D. Pedro poderá ajudar a explicar o sentimento militar que esteve presente durante a vida de D. Pedro e levou a vários episódios que marcaram as relações entre Portugal e Brasil, países irmãos, com história comum, mas que parecem estar cada vez mais afastados, sobretudo quando a política brasileira surge polarizada nas eleições marcadas para Outubro.

    D.Pedro I do Brasil, e IV de Portugal, quando infante.

    Se antes havia um fluxo migratório de Portugal para o Brasil – país imenso e com uma capacidade de fixação mais ampla -, agora o polo inverteu-se e Portugal tem de receber os irmãos falantes de português, procurando integrar hábitos e costumes próprios da geografia livre e tropical do que da soturna e fria cultura europeia.

    O processo da Independência do Brasil já foi sobejamente descrito. Não faltaram recentemente obras sobre a questão e revistas nacionais dedicaram páginas e páginas ao assunto. O coração de D. Pedro, depositado na Igreja da Lapa, no Porto, viajou de avião da força aérea do Brasil, com o presidente da Câmara do Porto a bordo, para levar a relíquia até às antigas terras de Vera Cruz.

    Faltou, no entanto, frisar que a ideia de exibir o coração do Imperador no Brasil partiu de um descendente brasileiro de D. Pedro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que tem a particularidade de, ao contrário do que sucede com grande parte da família, exercer actividade política desde 2005. O descendente do rei português é actualmente deputado federal por S. Paulo, representando o Partido Liberal, do qual também faz parte o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

    Por cá, podemos lembrar que também temos um descendente de D. Pedro na política: é Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD e empresário de Comunicação Social.

    As comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil acontecem num país que organizou um referendo em 1993 para poder decidir se queria um regime republicano ou monárquico. A maioria optou pela forma republicana, mas o referendo não ficou livre das acusações de anti-democrático pelo facto dos membros da família real terem sido proibidos de participar nas campanhas do lado monárquico. Em Portugal, República desde 1910, nunca houve esse referendo, sendo que o regime é imposto ao povo sem qualquer escrutínio.

    Os 200 anos da Independência do Brasil são apenas um episódio num caminho cujos primeiros capítulos começaram em 2008, quando o presidente português, Aníbal Cavaco Silva, fez uma visita de Estado ao Brasil, entre 6 e 9 de Março, para celebrar os 200 anos da chegada da Corte portuguesa após a invasão das tropas de Napoleão, comandadas por Junot. Entre as várias cerimónias públicas, Cavaco jantou, no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com o então presidente Lula. De destacar que o actual primeiro-ministro português, António Costa, também fez parte da comitiva oficial que se deslocou ao Rio de Janeiro com Cavaco Silva, indo então na qualidade de presidente da Câmara de Lisboa.

    Coração de D. Pedro IV em exposição. (Foto: D.R.)

    Eram tempos diferentes: Lula, que é agora candidato contra Bolsonaro, ainda não tinha sido julgado e preso na sequência do caso “Lava-Jato”. O nome de Jair Bolsonaro não surgia nas notícias como o de um adversário político de relevo.

    Entre 2008 e o presente ano de 2022, podemos ainda evocar a data que, em 2015, registou os 200 anos da criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Foi a 16 de Dezembro de 1815 que Portugal se tornou numa imensa Nação transatlântica, com capital no Rio de Janeiro. A bandeira passou a incluir uma esfera armilar – a mesma que está ainda hoje na bandeira da República portuguesa.

    Só que, dois anos depois, houve a revolta liberal no Porto. O 24 de Agosto, data que faz parte da toponímia da cidade Invicta e que teve os seus 200 anos assinalados com relevo. O rei teve de regressar a Lisboa e D. Pedro disse: “Eu fico”! Mas nunca se explicou bem porque falhou a ideia da capital de Portugal ficar no Brasil. Isso seria uma boa ideia para se discutir nos próximos anos, sobretudo quando parece que a capital do Brasil começa a ser Lisboa.

    Lula da Silva, presidente do Brasil aquando da visita de Cavaco Silva, então presidente da República Portuguesa, ao “país irmão” em 2008.

    A história escreve-se com mais datas, perdidas nas ruas das cidades, sem que dediquemos muito mais tempo à sua origem e ao que podem representar para o nosso futuro.

    Ainda vamos a tempo de celebrar mais datas que vão atingir a idade redonda de 200 anos nos próximos tempos. Ou então continuar a esquecer, a negar a sua origem e a perder mais futuro.

    Lembremos então que, daqui a 10 anos, vamos ter os 200 anos da Lutas Liberais e que a Avenida 24 de Julho, em Lisboa, evocará os 200 anos da Libertação da cidade. Durante muitos anos era o equivalente ao 25 de Abril de 1974.

    Lembremos ainda que D. Pedro IV cruzou o oceano Atlântico três vezes: a primeira, em criança, quando foi para o Brasil. A segunda, em 1832, quando veio lutar contra o irmão. E a terceira, em 1972, há 50 anos, quando o Brasil celebrou os 150 anos da Independência e o seu corpo foi enviado para o panteão em S. Paulo.

    Agora, viajou o seu coração, a parte do corpo que faltava. Uma quarta viagem à qual, espera-se, somar-se-á uma quinta: quando o coração regressar ao Porto, a cidade que se diz “Invicta” por ter sido aí que D. Pedro resistiu, vitorioso, ao cerco das tropas absolutistas do seu irmão.

    Pormenor do convite da exposição comemorativa dos 200 anos da deslocação da Corte Portuguesa para o Brasil, inauguradano Rio de Janeiro.

    D. Pedro pode ter nascido e morrido no quarto do Palácio de Queluz, mas o corpo está hoje no Brasil. Entretanto, em Lisboa, no Panteão dos Bragança, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, está o corpo de D. Miguel. O irmão derrotado nas lutas liberais mas reabilitado pela Ditadura. Foi exumado na Áustria em 1967 e trazido para Portugal, um ano antes de Salazar cair da cadeira.

    Esquecer o legado liberal de D. Pedro e não compreender que Portugal e Brasil já foram um Reino Unido é condenar-nos a perder mais 200 anos de História. A não ser que se o plano seja celebrar, com grande pompa e circunstância, daqui a quatro anos, os 100 anos do 28 de Maio.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe

    Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe


    Caro amigo leitor, veja se consegue responder a esta questão sem ter de ir procurar em livros ou na Internet: quem foi a mulher do último rei de Portugal?

    Se não sabe – ou até diz que nem sequer precisa de saber para continuar a sua vida –, tudo bem. Pode permanecer na ignorância sobre a sua própria História, pois esse é um direito que lhe assiste.

    Aliás, num país que se diz republicano, acredito que até seja um ponto de honra e orgulho dizer que não sabe, nem quer saber, nem lhe interessa conhecer o nome da mulher do último rei de Portugal.

    gold and blue crown

    No entanto, um povo culto e conhecedor da sua própria História é um povo exigente. E, dessa exigência, resulta depois uma melhor escolha dos governantes. Só que há portugueses com orgulho na sua ignorância e, mesmo assim, permitem-se serem exigentes com os dirigentes. Estes, que não são propriamente burros, sabem que os outros, ignorantes da sua História, podem depois ser facilmente comprados com falinhas mansas e subsídios. É, aliás, da História.

    Serviu esta introdução para dizer que há dias, na revista do Expresso (Edição 2591 de 24 de Junho de 2022), na secção de passatempos, nas palavras cruzadas, no 2 Horizontal, pedia-se que se indicasse, com seis letras, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Assim que olhei para aquilo, pensei que era uma questão muito inteligente e lembro-me de ter congratulado, mentalmente, o autor – Marcos Cruz – por ter apresentado uma tão interessante questão.

    Repare-se que não estava a pedir o nome da “última rainha de Portugal”, embora se pudesse dizer que a mulher do rei é sempre uma rainha. Não. Se fosse a última rainha de Portugal, a questão poderia tornar-se aberta a subtilezas e interpretações jurídicas quanto ao que o autor das palavras cruzadas pedia. Seria a última rainha reinante, que foi D. Maria II, ou a mulher do último rei de Portugal?

    Palavras cruzadas do Expresso: para seis letras, quem foi a “mulher do último rei de Portugal”. A resposta certa (Amélia) estava, afinal, errada.

    Perguntar quem foi a mulher do último rei de Portugal é, assim, um pouco diferente do que perguntar quem foi a última rainha de Portugal, se bem que para uns puristas, uma e outra são sempre a mesma coisa: é mulher de rei? Então é rainha!

    Mas, é preciso ver que o último rei de Portugal, quando deixou de ser rei, ainda não era casado. Não tinha rainha. Porque, como todos bem sabemos, o último rei de Portugal foi… bem, caro leitor, quem foi mesmo o último rei de Portugal?

    A maioria das pessoas a quem coloco esta pergunta costuma dizer que o último rei de Portugal foi D. Carlos. Cada vez que me dizem isso, peço-lhes então que verifiquem os seus conhecimentos sobre a História que ambos partilhamos em comum pelo facto de termos escrito “República Portuguesa” no CC.

    Se D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908, pelo Costa e Buíça, e se, nesse mesmo dia, mataram também o seu filho mais velho e herdeiro do Trono, Luís Filipe, então Portugal ficou sem rei entre Fevereiro de 1908 e 5 de Outubro de 1910, data da Implantação da República?

    Ora, claro que não, caro leitor. Claro que não porque, o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho mais novo, que ficou para a História de Portugal como D. Manuel II.

    Aclamado em Cortes, no mesmo edifício onde hoje é Assembleia da República, a 6 de Maio de 1908, seria deposto a 5 Outubro de 1910, tendo partido para o exílio, em Inglaterra, com a sua mãe, Amélia de Orleans.

    Estabelecido então, sem sombras para dúvidas, que o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho D. Manuel II, a questão levantada pelas palavras cruzadas do Expresso é, deveras, interessante.

    Senão vejamos: D. Manuel II, último rei de Portugal estava solteiro quando foi deposto a 5 de Outubro de 1910. A rainha era a rainha-mãe, Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    De facto, o último rei de Portugal casou. Mas o matrimónio só teve lugar em 1913, três anos depois de ter sido deposto do trono de Portugal, já quando estava a viver no exílio inglês. D. Manuel II casou a 4 de Setembro de 1913 com Augusta Vitória, princesa de Hohenzollern-Sigmaringen. Esta foi, de facto, tal como pedia as palavras cruzadas do Expresso, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Daí a minha primeira reacção ter sido a de verificar ali uma maneira muito inteligente de colocar a questão, já que, dizer “última rainha de Portugal” seria algo que levantaria dúvidas. Haveria quem defendesse que se deveria considerar Augusta como rainha, visto ter casado com um rei – mesmo que ele não o fosse na prática –, e haveria aqueles que defenderiam que a última rainha de Portugal seria aquela que ocupava o cargo em 1910, antes da abolição da monarquia, o que, nesse caso, era D. Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de Manuel II.

    D. Manuel II foi destronado em 1910, com a implantação da República, e era então ainda solteiro.

    Mas a questão do Expresso era taxativa e sem espaço para dúvidas, uma vez que não nos embrenhava em questões jurídicas, apresentando-nos, sim, uma simples questão de cultura geral colocada de forma inteligente: quem fora a mulher de D. Manuel II, último rei de Portugal? E a resposta, única e inequívoca, é só uma: Augusta.

    Só que, caro leitor, com quantas letras se escreve a palavra Augusta? Com sete letras. Mas a resposta que o Expresso pedia… seis letras. É nessa altura que aquilo que eu considerava ser a coisa mais inteligente que tinha visto no Expresso nos últimos anos, acabou por se transformar na dúvida mais agonizante sobre a ignorância histórica de Portugal, impressa num jornal que vai comemorar 50 anos de vida em Janeiro próximo e que é responsável pela informação transmitida a muitos portugueses.

    E que forma opinião.

    Será que o Expresso ignorava que o último rei de Portugal fora D. Manuel II e julgava que o pai dele, D. Carlos, é que era o último rei? É que Amélia, mulher de D. Carlos, tem seis letras… Será que a resposta certa era Amélia e não Augusta?

    Esperei uma semana para confirmar a minha dúvida.

    Uma semana depois (Revista Expresso 2592 de 1 de Julho de 2022), lá vinha a solução da 2 Horizontal, seis letras: Amélia. Para o Expresso, a mulher do último rei de Portugal chamava-se Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    Esta ignorância da parte do Expresso é a mesma de muita gente em Portugal e que, infelizmente, ameaça contaminar as gerações futuras. Não vou entrar em clichés de afirmar que, quem não conhece a sua História está condenado a repeti-la, mas gosto sempre de avisar que George Orwell escreveu no seu 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. E o Expresso controla o presente. E se o Expresso nos diz que a resposta correcta à questão de quem foi a “mulher do último rei de Portugal” é Amélia, então o Expresso, ao controlar o passado, está a reescrever o futuro.

    É que esta questão da mulher do último rei de Portugal não é de somenos importância. Ao ignorar que D. Manuel II foi o último rei de Portugal e que casou, mas morreu sem deixar descendência, é o futuro que está em causa.

    O Expresso, ao ignorar isto, nunca vai conseguir informar os seus leitores que o último rei de Portugal morreu em 1932, há exactamente 90 anos – cumpridos a 2 de Julho –, três dias antes da tomada de posse de António de Oliveira Salazar como Ditador, a 5 de Julho de 1932.

    D. Carlos, penúltimo rei de Portugal, assassinado em 1908,e a sua mulher, D. Amélia de Orleães, durante uma visita à Madeira, em 1901.

    O Expresso não vai assim poder contar que, um mês depois, a 2 de Agosto de 1932, Salazar presidiu ao funeral do último rei de Portugal, quando o corpo de D. Manuel II veio de barco de Inglaterra e o caixão desfilou depois pelo Terreiro do Paço, no mesmo local onde pai e irmão foram assassinados 22 anos antes, e sepultado no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora.

    Na verdade, a Monarquia não acabou a 5 de Outubro de 1910, mas sim quando Salazar fez o funeral ao último rei de Portugal, em 1932, sendo que a mulher do último rei de Portugal, Augusta Vitória, faleceu a 29 de Agosto de 1966. Sem descendência.

    O Expresso não vai conseguir ainda contar aos seus leitores que, por D. Manuel II não ter deixado filhos de Augusta, Salazar conseguiu manter o poder porque o país estava dividido entre monárquicos e republicanos.

    Já estava assim desde 1910, pelo que houvera a necessidade de um golpe militar a 28 de Maio de 1926; mas, em 1932, os monárquicos estavam divididos sobre quem deveria suceder a D. Manuel II. Era preciso encontrar um candidato dentro do País ou então ir buscar, ao exílio, na Áustria, os descendentes do rei D. Miguel.

    Mas este era de má memória, pois os descendentes representavam o rei banido do trono depois da derrota na Guerra Civil de 1832-34, contra o irmão D. Pedro IV, do qual D. Manuel II era o último representante real directo.

    D. Manuel II e a sua mulher Augusta Victoria de Hohenzollern no exílio. Nascida em 1890, no Império Alemão, casou em 1913 com o deposto rei português seu primo em segundo grau, Faleceu em 1966, na Alemanha.

    Para Salazar foi a oportunidade de ouro para dividir e reinar. Pediu aos partidários de uma solução interna que se mantivessem quietos, senão iria à Áustria buscar os descendentes do rei Absolutista, mais bem organizados. Disse depois a estes que estivessem quietos, senão iria encontrar uma solução interna. E disse aos republicanos que estivessem quietos, senão iria buscar não importa quem. E todos, “a bem da Nação”, ficaram quietos.

    Nos anos 50 do século passado, seguindo uma proposta do deputado Jorge Botelho Moniz, terminou a chamada Lei do Banimento e os descendentes de D. Miguel puderam regressar a Portugal. Entre eles, veio uma criança chamada D. Duarte, agora o putativo rei de Portugal. O Estado Novo apostou na ignorância dos Portugueses e começou a controlar o passado. A controlar o nosso futuro. Já ninguém falava numa solução interna.

    A 5 de Abril de 1967, o corpo de D. Miguel, após ter sido exumado na Áustria, regressou a Portugal e foi sepultado ao lado do corpo do irmão, D. Pedro IV. Pouco a pouco, o regime do Estado Novo começou a corrigir o resultado da Guerra Civil de 1832-1834, substituindo a memória de D. Manuel II, último rei descendente directo de D. Pedro IV e das ideias liberais, pelos descendentes de D. Miguel, absolutistas e conservadores. E, a 10 de Abril de 1972, já com Salazar morto e enterrado em campa rasa em Santa Comba Dão, o corpo de D. Pedro IV, foi trasladado do Mosteiro de São Vicente de Fora e enviado de barco para o Brasil, por ocasião dos 150 anos da Independência do País.

    D. Duarte Pio de Bragança não é descendente de D. Manuel II, que não teve filhos.

    O Expresso bem que poderia dizer que, em breve, quando o coração de D. Pedro IV, que está na Igreja da Lapa, no Porto, voar num avião da Força Aérea do Brasil, por ocasião dos 200 anos da Independência do País, aquele será o último vestígio físico em Portugal do antecessor do último rei de Portugal. Mas para isso seria preciso primeiro que o Expresso soubesse a História de Portugal.      

    P.S. A pessoa que assina as palavras cruzadas do expresso é “Marcos Cruz”. É do conhecimento público que este é o pseudónimo de Mercedes Balsemão, mulher de Francisco Pinto Balsemão, dono e fundador do Expresso e descendente de um filho bastardo de D. Pedro IV. Tal não significa que tenha sido ela a responsável pela questão que provocou esta crónica. Poderá ter sido outra pessoa que a substituiu. De qualquer modo, em última análise, cabe ao director do semanário fazer a devida correcção. A mulher do último rei de Portugal chamava-se Augusta e não Amélia. Amélia era a senhora sua mãe.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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