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  • Uma democracia de quase meio século e a sua (até agora) única mulher primeira-ministra

    Uma democracia de quase meio século e a sua (até agora) única mulher primeira-ministra

    Mais de um terço da actual população portuguesa ainda não era nascida quando a primeira mulher, assumiu a chefia de um Governo democrático. Foi apenas por 100 dias, num Executivo de iniciativa presidencial, mas constitui ainda hoje um marco indelével na História de Portugal, talvez a merecer sucessoras. O Museu da Presidência da República mostra, até finais de Agosto, “retratos” da vida singular de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa exposição evocativa que deve ser visitada não apenas por quem a quiser ver, mas sobretudo para todos aqueles que a devem ver: todos os portugueses.


    “Não foi Presidente da República, mas é quase como se tivesse sido”. Exageros à parte, embora pudesse mesmo ter sido, foi com estas as palavras, em “testemunho suspeito”, como confessou, que Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou na sexta-feira passada uma exposição no Museu da Presidência da República dedicada à única mulher portuguesa que ocupou a função de primeira-ministra: Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004).

    Foi no dia 1 de Agosto de 1979 que Maria de Lourdes Pintasilgo fez História ao tomar posse como a primeira mulher a ocupar o máximo cargo governativo, mas essa foi, na verdade, uma marca indelével da sua vida. “Em que é que não foi a primeira?”, indagou Maria Antónia Pinto Matos, directora do Museu da Presidência, no discurso de inauguração.

    De facto, mesmo tendo sido primeira-ministra num Governo de iniciativa presidencial durante cerca de uma centena de dias – ou seja, Ramalho Eanes, então presidente da República, nomeou-a por sua iniciativa, após a demissão de Mário Soares, até às eleições legislativas de 2 de Dezembro de 1979, que viriam a ser ganhas por Sá Carneiro –, Maria de Lourdes Pintasilgo esteve sempre um passo à frente do seu tempo.

    Embora liderando um Governo de gestão, durante o seu mandato ainda se criou o Número de Contribuinte Fiscal, se reforçou a criação de diversas Instituições de Solidariedade Social, se implementou o Serviço Nacional de Saúde e ainda se estabeleceu a escolaridade obrigatória.

    Licenciada em Engenharia Químico-Industrial aos 23 anos, pelo Instituto Superior Técnico – num tempo em que mulheres eram uma raridade em curso de Engenharia –, trabalhou como investigadora na Junta de Energia Nuclear e, mais tarde na CUF.

    Mas foi como “católica progressista”, com a sua “intervenção social em causas sociais, ambientais e das mulheres, [que] continuam actuais”, conforme salientou a directora do Museu da Presidência, que Maria de Lourdes Pintasilgo mais se destacou.

    Durante o Estado Novo, ainda recusou ser deputada na Assembleia Nacional – de partido único –, mas aceitou ser procuradora da Câmara Corporativa, uma espécie de órgão consultivo, mas sem pendor político.

    Com boas relações pessoais com Marcelo Caetano – antes da queda do regime com o 25 de Abril – nos primeiros anos da década de 70 ainda foi consultora na Secretaria de Estado do Trabalho e Previdência e presidiu ao Grupo de Trabalho para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social.

    Chegou a integrar a delegação portuguesa à Assembleia Geral das Nações Unidas, proferindo, entre 1971 e 1972, diversas intervenções, entre as quais sobre o direito dos povos à auto-determinação, a condição feminina e a liberdade religiosa.

    Com a democracia, surgiu a sua experiência governamental. Antes das primeiras eleições legislativas da III República, esteve nos diversos Governos Provisórios. No primeiro assumiu o cargo de secretária de Estado da Segurança Social. No segundo e terceiro foi ministra dos Assuntos Sociais.

    Em 1975, já com Portugal a ser governado por um Governo Constitucional, Maria de Lourdes Pintasilgo foi membro do Conselho de Imprensa, e também passou a ocupar a presidência da Comissão da Condição Feminina.

    Mas outros voos se seguiram. Em Agosto de 1975 foi nomeada embaixadora junto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), onde permaneceu até ser chamada por Ramalho Eanes para chefiar o executivo em 1979. Foi, aliás, também a primeira portuguesa a ocupar essas funções.

    Ainda na década de 80 tentou mesmo chegar à Presidência da República, concorrendo às eleições de 1986, as mais concorridas de sempre e ganhas apenas à segunda volta por Mário Soares. Sem máquinas partidárias de apoio, recolheu na primeira volta apenas 7,36% dos votos, ficando atrás de Mário Soares, Freitas do Amaral e Salgado Zenha.

    Embora tenha apoiado a criação do Partido Renovador Democrático (PRD), uma força partidária apadrinhada por Ramalho Eanes – que chegou a 45 deputados nas eleições de 1985 –, aproximar-se-ia posteriormente ao Partido Socialista, chegando a ser eleita eurodeputada independente nas eleições para o Parlamento Europeu em 1987 e 1989.  

    E é para todos estes e muitos outros tempos da antiga primeira-ministra que a exposição “Maria de Lourdes Pintasilgo – Mulher de um Tempo Novo” transporta os visitantes. Nos expositores, há um pouco de tudo: artefactos, objectos, livros, fotografias e documentos, que se unem para (re)contar a sua história.

    Dividida em dois pólos, no primeiro estão também incluídas as “memórias” das eleições presidenciais que viria a disputar em 1986. Aí estão expostos, por exemplo, além de material da campanha, parte dos seus apontamentos, escritos à mão.

    O segundo pólo, por outro lado, é mais pessoal e intimista. Ali vislumbra-se a sua infância nos brinquedos com que cresceu, nas fotografias de família, na sua colecção de Santas Anas. Descobre-se aí a mulher, a militante feminista, a cristã que trouxe o Graal – um movimento internacional de mulheres cristãs que começou na Alemanha – para Portugal, e a sua obra.

    Nesta exposição, as várias dimensões de Maria de Lourdes Pintasilgo não cabem em rótulos simplistas. Pelo contrário, desafiam-nos, o que é evidente, desde logo, na aparente contradição entre a sua vincada fé católica e o feminismo que defendia, ou a sua tendência política à esquerda.

    Mas há muitos aspectos que a exposição não mostra, mas que apenas se pode intuir, ou saber, por aquilo que contam os que a conheceram. Durante a cerimónia de abertura, Marcelo Rebelo de Sousa frisou a ausência de “tiques populistas” em Maria de Lourdes Pintasilgo, acrescentando que “não era plástica”.

    Admitindo ter “saudades das conversas intermináveis” que mantiveram, o presidente da República defendeu ser “um grande dever cívico recordar Maria de Lourdes Pintasilgo”, que “vivia a vida com uma intensidade ilimitada”.

    Para conhecer a vida e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo, o PÁGINA UM recomenda o documentário de Graça Castanheira, que pode ser visualizado na RTP Arquivos.

    Fotos: Pedro Matias / Museu da Presidência


    Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de um Tempo Novo

    EXPOSIÇÃO | 14 mai. – 31 ago. ’22 | Viveiros do Jardim da Cascata do Palácio de Belém | Exposição permanente do Museu da Presidência da República | Horário: 10h-13h | 14h-17h, todos os dias, com exceção de segunda-feira e da manhã do terceiro domingo de cada mês | Entrada livre

  • A censura depois da escrita, séculos antes do Estado Novo e de Zuckerberg

    A censura depois da escrita, séculos antes do Estado Novo e de Zuckerberg

    Sempre cheia de boas intenções, como o inferno, a Censura é uma das armas do poder para controlar e dissuadir o livre pensamento, e para orientar as sociedades. Cada vez mais actual nos dias de hoje, com a censura de órgãos de comunicação social e nas redes sociais, na verdade a Censura sempre existiu. A Biblioteca Nacional mostra, em exposição, como se fazia entre os séculos XV e XIX.


    Censura, nos dias de hoje, remete de imediato para o bloqueio de informação no conflito russo-ucraniano. O Governo de Putin já censurou a actividade de órgãos de comunicação social independentes da Rússia e do estrangeiro; por sua vez, no Ocidente fez-se o mesmo sobre alguma imprensa russa.

    Censura também foi aquilo que se aplicou, nos últimos anos, a tudo aquilo que se considerou desinformação, ou fake news, tanto na imprensa como sobretudo nas redes sociais, com fact-checkers a determinarem os textos que deveriam ser suprimidos dos olhares mais “sensíveis”. No Facebook, por exemplo, algumas palavras ou imagens davam origem a “castigos” aplicados por algoritmos ou por operadores humanos inalcançáveis e sem paradeiro conhecido.

    A palavra Censura tem também sobretudo em Portugal uma conotação política, que nos transporta para o período anterior à democracia instaurada: o Estado Novo. Não é estranho que assim seja, uma vez que muitos portugueses se lembram ainda de sentirem na pele a repressão daquele período.

    Se se fizer uma análise cronológica, a Censura não foi inventada nem agora nem por Zuckerberg nem por Salazar. As suas origens remontam vários séculos atrás, obrigando a uma grande viagem no tempo. E é isso mesmo que nos quer fazer a Biblioteca Nacional na exposição “Bibliotecas Limpas”, patente até 23 de Abril próximo, e que percorre os ínvios caminhos da censura literária sobretudo entre os séculos XV e XIX.

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    Que a Censura ainda é mais antiga do que os livros impressos, isso bem se sabe. No século XIII já o poder, sobretudo associado à religião, controlava o acesso à informação, e mesmo sabendo-se que poucas pessoas sabiam ler, já existiam listas de livros proibidos.

    Em todo o caso, foi com a instituição do Tribunal do Santo Ofício (ou da Inquisição), chegado a Portugal na primeira metade do século XVI, durante o reinado de D. João III, que a Censura se “profissionalizou”. Vigorou durante quase três séculos, até ser extinto em 1821.

    A Inquisição, instaurada essencialmente para evitar a disseminação de ideologias contrárias ao catolicismo – como o judaísmo e, mais tarde, os movimentos protestantes – foi uma das estruturas eclesiásticas mais opressoras da História da Europa. Apesar de ser um órgão religioso, era dotada de poder jurídico, tendo legitimidade para condenar hereges a penas de prisão ou mesmo à morte por estrangulamento e/ou pelo fogo.

    Mas além desta tenebrosa função, a Inquisição era um dos braços da censura dos livros; na verdade, constituída por três até aos tempos do Marquês de Pombal que, em 1768, instituiu a centralizadora e mais politizada Real Mesa Censória.

    Além dos inquisidores do Santo Ofício, que passaram a exercer o exame de livros a partir de 1536, uma outra instância, o denominado Ordinário (ligado à Igreja), já o fazia desde 1517. Uma tríade de “vigilantes da pureza” foi completada em 1576 com os revisores do Desembargo do Paço, uma mão mais política.

    Qualquer obra tinha uma revisão prévia, antes de ser impressa, e depois, para ser comercializada, passava de novo pelos revisores para apurar se cumprira todas as eventuais alterações. Os textos das censuras nos livros aprovados eram quase sempre publicados, integrados nas obras, sendo que, em muitos casos, serviam também como elogios aos autores.

    Compilação das obras de Gil Vicente, editadas em 1586, tiveram partes expurgadas por indicação da Censura em 1624.

    A Censura nem sempre era total, ou seja, não se aplicava pela simples proibição integral da obra, denominada macrocensura.

    Também havia, porém, a microcensura, que eliminava e impunha correcções apenas em partes, na maioria dos casos após a impressão das obras, realizada à mão (riscando palavras, frases ou imagens) por iniciativa sobretudo de religiosos. É nesta segunda linha que a exposição Bibliotecas Limpas se debruça.

    Hervé Baudry, curador desta exposição e investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa diz haver “uma ironia latente nesta denominação, pois as bibliotecas estavam sujas”, explicando que “por um lado, sujas pela tinta com que os censores tingiam as palavras, frases ou páginas consideradas heréticas, mas metaforicamente esta sujidade a ser limpa representa a repressão e a punição, perpetradas em nome da moralidade e da ortodoxia católica.”

    Este tipo de limpeza dos censores consistia, assim, em expurgar passagens ou palavras para que os livros pudessem ser lidos sem afectar o seu autor. Assim, “a correção não era das almas e dos corpos, como nos processos da Inquisição sobre pessoas, mas sim das palavras”, como se adianta no catálogo da exposição.

    Neste processo, os censores substituíam ou acrescentavam palavras, como se mostra nos exemplares expostos na exposição. Noutras situações, como numa edição de 1524 em latim de Ovídio, obviamente para leitura de religiosos, era dada a orientação expressa de “não se poder ler sem a permissão dos superiores” se a obra não estivesse expurgada de partes consideradas sensíveis.

    Os nomes de Erasmo de Roterdão e Thomas More foram suprimidos em obras.

    Existem até casos muito curiosos de censura nem sempre se discernindo a causa. Por exemplo, numa edição de Heródoto de 1592 surge o nome do impressor ilegível, descaracterizando cada letra. Noutros casos são feitas colagens com papel sobre passagens de textos ou mesmo o nome de autores, como acontece numa edição de 1535 de uma obra do filósofo grego Luciano de Samósata com comentários de Erasmo de Roterdão e Thomas More.

    No entanto, o mais comum era o expurgo através de tinta ou a simples retirada de páginas, através de rasgos, como se pode observar na meia centena de obras expostas, que incluem livros de Horácio, Santo Agostinho, Copérnico, Erasmo de Roterdão e Voltaire, bem como dos portugueses Gil Vicente, Amato Lusitano, Garcia de Orta, Garcia de Rezende, Sá de Miranda e Luís de Camões. Note-se que estes livros tinham tido a sua impressão autorizada, mas, por razões várias, e por vezes décadas mais tarde, acabavam por ser erróneos ou possuindo conteúdos inaceitáveis.

    Por exemplo, o Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, publicado originalmente em 1516, teve expurgos décadas depois. É um dos exemplos onde se verifica diferenças nos critérios da Inquisição na Península Ibérica, uma vez que a vizinha Espanha não o suprimiu. A explicação? Os espanhóis estariam mais interessados na censura política do que na literária.

    Saliente-se também que a posse de livros proibidos – mesmo que tivessem tido circulação autorizada anteriormente – foi, durante a primazia da Inquisição, um crime considerado de extrema gravidade. Por exemplo, Cristóvão Francisco, um lisboeta de 25 anos, foi executado em finais do século XVI por deter um livro reprovado pelo Catálogo do Concílio Tridentino por conter superstições e blasfémias, segundo consta nos arquivos da Direcção-Geral do Livro.

    Mesmo livros médicos acabaram por ter as “partes íntimas” manchadas.

    Os livros proibidos eram listados e compilados, com indicações por vezes muito precisas sobre as partes a retirar, como sucedeu em 1624 com o Index auctorum damnatae memoriae, onde também se incluíam instruções para corrigir centenas de obras. Feitos os ajustes necessários, os títulos poderiam então voltar a circular com a seguinte inscrição: tutto lege.

    Os cidadãos comuns não eram os únicos a serem perseguidos. Alguns dos maiores nomes da História nacional viram as suas obras censuradas pela máquina burocrática inquisitória. Foram os casos de Luís de Camões e Bocage. A expressão “cagando ao vento”, de um poema de Bocage, foi reprovada pelos censores. Já Os Lusíadas, considerada a obra-prima da literatura portuguesa, terá tido algumas correcções na edição original, e uma edição espanhola de 1639 chegou a ser proibida pela Inquisição de Coimbra por “conter muitas coisas escandalosas e ofensivas para a Religião Católica”.

    Muitas vezes, a Censura pretendia um efeito dissuasor. Acontecia nos casos em que, embora os textos tivessem passagens rasuradas, a tinta não impossibilitava que se percebesse o que estava escrito. Nessas situações, Baudry explica que, ao verem que aquele conteúdo estava proscrito, as pessoas não liam. Recorde-se que ler ou ter um denominado “livro defeso” era suficiente para se ser condenado. Na Torre do Tombo encontram-se vários processos inquisitoriais desta natureza. O último caso conhecido foi o do frade Francisco de Santa Ana, em 1817, por ler Voltaire.

    Se as palavras podiam representar um perigo para a moral e os bons costumes, as imagens também. A nudez, especificamente, não tinha espaço nos conteúdos permitidos, fossem de natureza científica ou artística. Numa obra de Ambroise Paré, um cirurgião francês, que ilustra a extracção de cálculos na bexiga, a genitália do paciente aparece tapada por uma mancha branca.

    O Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, chegou a ter mais de 90% do seu conteúdo rasurado.

    Embora a Inquisição tenha sido abolida no início do século XIX, a Censura nunca foi, e tem-se transmitido por várias formas, em função do regime político de cada país, ou mesmo por via da auto-censura, por vezes seguindo o politicamente correcto, mesmo quando se trata de Literatura, baseada na liberdade de pensamento e criação.

    Um dos casos mais evidentes em Portugal ocorreu em 2019 quando a Porto Editora decidiu rasurar três versos da Ode Triunfal de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, na edição de um livro escolar do 12º ano, por conter linguagem explícita e elogiosa à pedofilia.


    Bibliotecas Limpas – Censura dos livros impressos nos séculos XV a XIX

    EXPOSIÇÃO | 25 fev. – 23 abr. ’22 | Sala de Exposições da Biblioteca Nacional (Lisboa) – Piso 3 | Entrada livre