Etiqueta: Estórias de Vera Cruz

  • Evangelho das coisas ínfimas

    Evangelho das coisas ínfimas

    Então, por volta das três horas da tarde, Jesus bradou em voz alta: “Elohi, Elohi! Lemá sabachtháni?”, que traduzido quer dizer: “Meu Deus, meu Deus! Por que me abandonaste?”

    Marcos 15,34


    Eu, o Narrador, vos digo:

    Olhai a grande cidade obscena sob o sol luminoso. Encurralados entre o mar e as altas montanhas de pedra, milhares de edifícios. Apertados uns contra os outros, parecem assustados, mas não têm para onde fugir. O sol no alto do céu azul está a vigiá-los.

    Atentai bem:

    A boca negra da estação do metrô incessantemente vomita pessoas cabisbaixas e apressadas que provavelmente têm coisas urgentes para fazer. Mas o mundo passaria bem sem elas e sem as coisas que pretendem fazer. O sol não se importa com elas, quer apenas fustigá-las.

    Todas as histórias se parecem:

    De quando em quando corre um rápido sopro de ar pelo meio das ruas escaldantes. É como um suspiro que escapasse do peito da grande cidade de concreto. Nada mais que uma breve lufada que dobra a esquina e segue. E, logo, as ruas voltam ao ranço de todos os dias: misto de mijo velho e chope azedo.

    black and white building during daytime

    As cidades não se diferenciam muito:

    Quem consegue vencer o labirinto das ruelas estreitas, pode ver o mar que se estende preguiçoso e verde sob o céu sem nuvens. Na branca areia da praia, meninos e meninas andrajosos dormem amontoados. Por toda a longa noite cataram moedas no asfalto. Agora repousam. Sujos e ainda famintos. Quando acordarem, já levantarão com a mão estendida. Pedindo. Mas também ameaçando.

    A gente é sempre a mesma:

    Entre as altas palmeiras, homens amarram grandes fardos de latas amassadas de cerveja. Milhares de latas. É a fruta que mais dá por ali, seja nos regadios do asfalto preto seja no latifúndio da areia infértil. Dá coco também. Ocos cocos vazios que nada valem.

    Mesmo pesaroso, devo informar-vos que:

    Homens e mulheres passeiam pela grande calçada que separa a branca areia da barreira de edifícios. Aos milhares, velhos quase todos, azafamados. Nada têm a fazer, porém estão sempre apressados. Incessantemente, vão velozes de uma ponta à outra da longa praia. Parecem seguros de que, com essas caminhadas, enganarão a morte.

    Eu, fiscal de ninharias, vos asseguro que:

    A grande cidade movimenta-se também no interior dos edifícios. Pessoas vão de uma peça a outra realizando pequenas tarefas. Falar ao telefone, por exemplo. Preparar um café. Assistir televisão. Estão vivas e é isso que se espera de pessoas vivas: que andem de um lado a outro fazendo pequenas coisas.

    Eu vos alerto, porém, para um detalhe:

    Naquele meio-dia algo viria para sacudir o ramerrão.

    Escutai o meu relato:

    Um homem negro, de uns quarenta anos, nem alto nem magro, estava deitado numa daquelas calçadas sujas. Não era um homem decente derrubado por um mal súbito, como pode ocorrer às vezes. Não! Via-se pelas roupas rasgadas que era um nenhum. Tinha uns poucos fios de cabelos brancos nas têmporas. Ostentava os pés inchados e os calcanhares rasgados dos bêbados. Era, portanto, um dos tantos milhares que dormem naquelas calçadas e nos poucos desvãos onde os síndicos de edifícios ainda não colocaram ferros pontiagudos.

    Eu, auditor de insignificâncias, preciso insistir:

    Havia um homem preto de uns quarenta anos deitado numa calçada sob o sol amarelo. Daria um belo quadro, se ainda existissem pintores. O sereno rosto quase azul, a rala barba, o corpo ossudo por baixo dos trapos. Parecia estar dormindo. Mas, não, ele não estava dormindo.  Isso as pessoas só perceberam depois.

    Eu, praticante da esquecida arte dos contadores de histórias curtas, asseguro-vos que:

    Os que deixavam apressados a boca da estação do metrô tinham que desviar do homem estirado sobre as lajes rachadas do largo. Os que chegavam para pegar o trem também contornavam aquele corpo estendido no chão. Se estivesse morto, certamente alguma alma caridosa se encarregaria de jogar uma folha de jornal sobre ele. Mas o homem estava vivo.

    white and red textile on gray concrete floor

    Como sabeis, meu dever consiste em ajuntar minúcias ridículas:

    O braço esquerdo dobrado é o travesseiro. O braço direito, ligeiramente flexionado, está estendido diante do corpo. Um movimento muito leve, carinhoso, percorre a mão desse braço direito.

    Sim, reconheço que vós não precisais desta parábola:

    Muitos contornam o corpo sem lançar um só olhar para ele porque sabem que, hoje em dia, o que mais há são corpos caídos pelas ruas desta cidade.

    Ouvi, porém, o que tenho a declarar:

    Mas também existe gente curiosa. Uns velhos bem velhos e uns meninos bem meninos que olham o corpo estirado e percebem logo o lento movimento daquela mão. Uns riem abertamente. Outros sorriem. Outros, subitamente chocados, viram o rosto.

    Prestai atenção neste irrelevante pormenor:

    Naquela rua, havia um gato dormindo dentro de uma vitrina vazia.

    Digo-vos mais:

    O homem caído tem os olhos fechados e uma expressão quase beatífica. Seus lábios estão ligeiramente entreabertos de modo que todos podem ver uns belos dentes brancos e, entre eles, a ponta lúbrica de uma língua vermelha. É manso, quase imperceptível, o movimento daquela mão de grossos dedos que vai e vem empolgando o cilindro de carne quente.

    Sim, admito que aqui ninguém precisa de fábulas, no entanto:

    O homem do negro rosto azulado está fazendo amor consigo mesmo. Certamente pensa numa mulher porque seu rosto está como que suavizado por um sorriso. Uma mulher distante no tempo. Uma jovem mulher. E lentamente ele se afaga. Indiferente ao sol e aos edifícios. Sempre pensando numa fêmea. Em certos trechos do corpo dessa mulher. A bunda. Os seios. A racha úmida. A catinga boa que elas exalam quando estão excitadas.

    Concluirei, sim:

    Indiferente às pessoas apressadas e estamos todos apressados , o homem continua a se acariciar. Indiferente a tudo, o preto de cabelos ligeiramente grisalhos nas têmporas permanece deitado no largo da estação executando um movimento muito suave com a mão direita. A mão que acaricia uma parte daquele mesmo corpo. Um movimento muito suave sob o sol inclemente, na calçada, na clareira entre os altos edifícios.

    Eis, filhos de Deus, a moral desta alegoria:

    Muitos se reconheceram naquele movimento triste de mão solitária: o amor que se fabrica a si mesmo, o amor possível.

    Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco

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  • A movimentada festa dos praticantes de um ofício extinto

    A movimentada festa dos praticantes de um ofício extinto

    Prezado chefe, conforme combinado segue relatório de minha investigação:

    Tendo chegado a este Planeta Terra, mais especificamente a uma cidade chamada Brasília, nos últimos dias do mês de Seu Júlio, de 2023, vi surgir logo uma oportunidade de fazer o levantamento sobre os terráqueos ordenado por Vossa Excelência.

    Foi quando um senhor, cujo sobrenome seria em nossa linguagem marciana algo como Casa dos Fundos, acessou o Google e lançou naquele sistema de busca duas palavras: Preciso sósia. E acrescentou uma fotografia dele.

    People Toasting Wine Glasses

    O diálogo

    Assumindo o aspecto daquele cidadão, apresentei-me a ele e travamos o seguinte diálogo:

    – Para que o senhor precisa de um sósia? – perguntei.

    – Para me representar numa festa.

    – Festa?

    – Sim, amigos reuniram-se e, depois de muito refletirem, resolveram me dar um inusitado presente no dia do meu septuagésimo aniversário: uma festa.

    – Pessoas carinhosas, presumo.

    – Sim, e extremamente criativas.

    – Qual será o meu trabalho?

    – Representar-me na tal festa.

    – O que terei de fazer?

    – Circular entre pessoas sentadas ao redor de mesas e sorrir para elas.

    – Mas o que devo dizer a elas?

    – Nada. Pessoas que vão a festas de aniversário não querem ouvir nada. Preferem falar muito e em voz alta. E beber loucamente.

    – Portanto, posso imaginar que por lá encontrarei alguns chatos.

    – Vários. Diga a eles duas ou três frases banais e complete: preciso circular entre meus convidados.

    – Mas eles, pelo lado deles, não ficarão chateados?

    – Não. Logo pegarão outra vítima.

    – Por que o senhor não vai à festa?

    – Porque me sentiria ridículo!

    – Foi então que resolveu me contratar?

    – Sim, porque seria ainda mais ridículo uma festa sem o homenageado. Seria, como diria Mário Quintana, um velório sem defunto.

    group of people tossing wine glass

    Os retardatários

    No dia seguinte, na hora aprazada, seis da tarde, apresentei-me no local indicado. Permaneci por lá até às três da madrugada, quando a dona da casa, literalmente, varreu para fora os retardatários.

    Os jornalistas

    Pelo que pude depreender, tratava-se de uma festa de pessoas que exerceram um ofício hoje inexistente chamado jornalismo impresso.

    Jornalistas eram pessoas inteligentíssimas, que ganhavam pouco, trabalhavam muito e divertiam-se ainda mais. Produziam diariamente algo que era como um livro, só que de folhas imensas.

    Os jornalistas dividiam-se em duas categorias: os repórteres, que escreviam inverdades sobre políticos honestos; e os redatores, cuja função era deturpar ainda mais aquelas torpes acusações.

    Para executar sua missão, eles se utilizavam de aparelhos chamados máquinas de escrever. Um senhor idoso disse que recentemente levou uma dessas máquinas a uma neta que vive nos Estados Unidos e que a menina ficou realmente espantada:

    – Puxa, vô! Ela até imprime.

    shallow focus photo of black corded microphone

    Os patrões

    Jornalistas eram comandados por patrões, pessoas que eles costumavam roubar quando prestavam conta de suas viagens de trabalho.

    Dou dois exemplos:

    Um jornalista que foi a Manaus e por lá comeu um peixinho de 30 reais num boteco fuleiro apresentou a seu patrão uma nota de 300 reais na qual constava: Bacalhau à Lagareiro.

    Um fotógrafo bastante robusto foi a Buenos Aires e lá comprou dois galos de prata numa loja de artesanato. Quando apresentou a nota, salgadíssima, na qual constavam “dos pollos”, o patrão reagiu:

    – Mas você comeu dois frangos numa só refeição?

    – Veja o meu porte!

    Detalhe sórdido e líquido: Na foto acima está a bebida servida à sorrelfa, à socapa, por trás do balcão, só para os mais chegados ao aniversariante, contratante e tratante.

    Os bêbados

    Quando reunidos, jornalistas preferem contar anedotas sobre seus companheiros de profissão que não tinham controle pleno sobre o ato de ingerir bebidas alcóolicas, pessoas que carinhosamente tratam por “bêbados”.

    Célebre é o caso de um deles que foi a Florianópolis e lá caiu no sono em local inapropriado. Ao despertar, viu diante de seus olhos grossas barras de ferro. E exclamou: “Que merda fiz ontem para estar preso?” Ao levantar-se, percebeu que estava dormindo sobre uma calçada da Avenida Beira Mar Norte e que a grade pertencia a um edifício, que com ela, a grade, procurava livrar-se dos mendigos.

    A piscina

    A festa foi realizada à beira de algo que chamam piscina, uma escavação que contém água, recoberta por uma grade de proteção feita com fios de nylon trançados.

    Durante a festa, curiosamente, caíram apenas duas pessoas (ambas abstêmias!) na tal piscina. Um desatento jornalista esportivo cruzou-a rapidamente, em ângulo oblíquo, tropicando sobre a grade de proteção. Teve ali, disse ele depois, a ideia para uma nova competição olímpica.

    O outro jornalista não chegou a atravessar a piscina. Deu apenas meia dúzia de delicados saltos acrobáticos, de rara beleza plástica, sobre a tela de proteção, mal molhando os sapatos.

    As bebidas

    Jornalistas, aparentemente, gostam muito de beber. Os mais idosos, que eram numerosos, davam preferência a uma bebida insípida, incolor e inodora chamada “água”. A maioria, porém, inclinava-se por um suco escuro servido em taças bojudas. A minoria dedicava-se a um líquido amarelado que era retirado de garrafas vermelhas. Essa última espécie me pareceu a mais sedenta.

    Os pelotenses

    A mesa que mais me chamou a atenção era aquela na qual estavam pessoas que se consideravam realmente especiais, mais cultas e civilizadas. Eram oriundos todos de um lugar chamado Pelotas.

    Havia um chamado Karl Edward, que se apresentava como Príncipe da Pomerânia, e outro que se dizia Kzar de Leningrado, Serguei Narigovitch. Um outro era plebeu, porém milionário, chamado Joseph Cross, o Lorde das Cidades Satélites. Nessa mesa havia um cidadão que não quis me declinar seu nome. Disse-me apenas: “Sou O Empresário Paulista”. O mais jovem daquela mesa sussurrou: “Não, eu não sou, como andam dizendo por aí, O Novo Tubarão Branco”.

    Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco


    Nota do autor:

    Embora não seja comum o autor dizer de onde tirou a ideia de escrever uma crônica (na minha época, em Pelotas, dizia-se: quem explica é porteiro de boate), resolvi dar aqui um breve esclarecimento:

    Odeio aniversários, em especial os meus. Sabendo disso, meus filhos resolveram comemorar o septuagésimo. Chamaram inclusive pessoas de lugares distantes. Quando soube, fiquei furioso. No tal dia, quase não fui à festa. Mas acabei cedendo ao choro da minha mulher. Lá o vinho tratou de acalmar-me. Como a maioria dos convidados era jornalistas com os quais trabalhei nos anos 1970 e 1980, resolvi vingar-me deles.