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  • Querem saber o que são os impostos? Um assalto!

    Querem saber o que são os impostos? Um assalto!


    Perguntam-me, o que são os impostos?

    Eu digo-vos já: trata-se de um assalto de tais proporções que nem mesmo o mais arguto criminoso seria capaz de conceber tal coisa. A violência estatal sobre o cidadão – ameaçando e coagindo com prisão, multas, penhoras, congelamento de activos… – é infinitamente superior à exercida por um assaltante de pistola em punho. O assalto é permanente, até à morte, uma agressão à propriedade privada sem fim.

    Façamos o seguinte exercício: no final de Agosto de 2022, a receita fiscal e as contribuições para a Segurança Social – sim, são impostos, trata-se de um confisco dos trabalhadores activos a favor dos pensionistas – cifravam-se em 54,3 mil milhões de euros; com o mesmo ritmo mensal até ao final do ano, estima-se que 2022 terminará em 81,4 mil milhões de euros, o que representa 7.900 euros aproximadamente por cada um dos 10,3 milhões de portugueses.

    Imaginemos então que em lugar de pagarmos IRS, IVA, Segurança Social, seja do empregador ou do trabalhador, ISP e mais uma centena de outros impostos, o Estado apenas apresentava uma conta única. No final do ano, com tudo. E assim, no final do ano, uma família de quatro pessoas recebia uma conta 31.600 euros (7.900 × 4)!

    Alguém no seu perfeito juízo imaginaria tal coisa possível? Seguramente uma revolução teria lugar no momento seguinte à apresentação da conta.

    Por isso, tudo é cobrado de forma sub-reptícia.

    As empresas substituem-se aos cobradores fiscais, retendo a colaboradores e clientes uma panóplia de impostos, com os seus representantes legais a serem responsabilizados pela correcta retenção, guarda e entrega ao Estado. Caso não actuem desta forma, correm o risco de calabouço, penhora e o pagamento de pesadas multas, pois, com o ladrão-mor ninguém se mete!

    Quem inventou tal método, em lugar de se aplicar um único pagamento anual num dado mês?  Nada mais nada menos que esse grande “liberal” da Escola de Chicago, Milton Friedman, nos idos anos 40 do século transacto. Aliás, agora compreendemos bem porque tantos políticos o bajulavam: foi o “cozinheiro” para um grande banquete que ainda hoje dura.

    O “contribuinte” – um eufemismo para designar uma vaca cheia de leite – é confundido e enganado da forma mais inventiva possível. Através de um exemplo, vejamos de que forma um assalariado é depenado sem quaisquer contemplações. Na figura seguinte podemos observar que para um salário bruto de 1.500 euros – um milionário nos dias que correm –, o empregador paga 1.856 euros e o colaborador recebe apenas 60% desse valor, ou seja, 1.116 euros, ficando o restante, 40%, para o salteador Estado.

    Incidência de contribuições e IRS num salário de 1.500 euros brutos (casado, com dois dependentes; taxas de retenção de 2022). Análise: Luís Gomes.

    Tudo embrulhado em vários conceitos, tipo “onde está a bolinha”, em que se dá entender que a Segurança Social do empregador é paga por este, enquanto o IRS e a Segurança Social são pagas por este último, quando na prática saem sim 1.856 euros do bolso do empregador, em que 40% é para o bandido e 60% para o trabalhador.

    Tomemos atenção ao seguinte, que é importante: mesmo antes de o trabalhador começar a consumir, terá ainda de pagar IVA, ISP, IMT, IMI. Nada na vida do cidadão escapa a este gigantesco esquema de extorsão: rendimento, consumo, poupança, património, em alguns casos, até a morte.

    Em lugar de uma conversa com um padre, todos os cidadãos no segundo trimestre de cada ano fazem a sua confissão junto do bandido: “Excelência, ganhei tanto, está aqui, envie-me a conta”.

    Em muitos casos, existem tansos que ficam felizes com as “devoluções”, esquecendo-se de que foram assaltados sem apelo nem agravo ao longo do ano. Emprestaram dinheiro ao Estado sem juros. É uma agressão sem fim da privacidade, onde todos os segredos da vida financeira devem ser revelados a burocratas sem rosto.

    10 and 20 euro banknotes

    Para incrementar a confusão, até dizem que os colaboradores do trabuqueiro – vulgo funcionários públicos e políticos – pagam impostos! No nosso exemplo, ao Estado custa-lhe apenas 1.116 euros, enquanto o empregador paga 1.856 euros (mais 66%) por cada funcionário, actuando com uma clara vantagem – para ele é tudo mais barato!

    A manipulação é tal que até nos fazem crer que há uma luta sem tréguas entre “ricos” e “pobres”, em que o sistema tudo faz para “espremer” os primeiros e dar aos segundos, quando, na verdade, o que existe são duas classes: (i) os beneficiários do saque, receptores líquidos de impostos (políticos, funcionários, empresas com licenças do Estado, monopólios públicos, clientela política, reguladores, burocratas…); e (ii) os assaltados, os otários da história. O opróbrio sobre os segundos é total quando tentam evitar o roubo – não pagou impostos!

    A propaganda paga com o fruto do saque até tem o despudor de afirmar que o assalto representa a Civilização! A doutrinação até começa cedo na escola, um dos exemplos é este livro infame, com o título:  A Joaninha e os Impostos!

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    Aquilo que se deveria explicar às crianças seriam os valores que tornaram a Civilização Ocidental especial: respeito pela propriedade privada, moeda séria e poupança; o que não é consumido da produção do período é dedicado à poupança, servindo para ser aplicada em bens de capital. É isto que torna uma sociedade próspera. Ninguém vai poupar e investir se é assaltado em todas as esquinas. Não é uma casualidade que Cuba, Coreia do Norte e Venezuela sejam uma sociedade de miseráveis; tudo reverte para o assaltante.

    Imaginemos um indivíduo analfabeto numa ilha deserta, sem bens de capital, qual a diferença de produtividade em relação a um engenheiro nessa mesma ilha deserta? Nenhuma. Para produzir bens de capital, como uma cana, uma vara ou instrumentos de caça, o indivíduo tem de recolher alimentos numa quantidade superior ao seu consumo por forma a sustentar-se nos dias em que se dedica à produção de bens de capital. Sem poupança não há civilização. A tributação é a destruição da poupança, impedindo a prosperidade das sociedades e gerando uma montanha de pobres.

    Em relação a Portugal, desde 1973 que a tributação não pára de crescer em percentagem do PIB, enquanto as taxas de crescimento da nossa carteira não cessam de diminuir. Em 1973, o crescimento anual do PIB per capita foi de 11% e o peso das receitas fiscais (não inclui contribuições) no PIB era inferior a 10%; em 2020, em percentagem do PIB, as receitas fiscais eram superiores a 22%, enquanto o PIB per capita decrescia quase 9% em resultado de um confinamento criminoso da população.

    Evolução desde 1973 do crescimento das receitas fiscais (em percentagem) do PIB e do crescimento anual per capita do PIB. Fonte: Banco Mundial. Análise: Luís Gomes.

    Quanto mais pobres, maior a justificação para mais impostos: “temos que redistribuir”, diz-nos o ladrão. “Não se preocupem, pois irei devolver parte do saque pelos famélicos e desfavorecidos, através de serviços ‘gratuitos’ à população”, acrescenta. E muitos, mesmo muitos, acreditam. Estamos na presença de uma população com o Síndrome de Estocolmo: “eles, afinal, até são bonzinhos, vão ajudar os pobres e dar-lhes serviços gratuitos”!

    Esquecem-se é de explicar que a tributação diminui a poupança e a acumulação de capital, impedindo a subida de salários, lucros, oportunidades de investimento e emprego, essenciais à melhoria das condições de vida dos mais desfavorecidos…

    Mas atiram-nos: e então os países escandinavos, onde é tudo uma espécie de “Alice no País das Maravilhas”?

    Como podemos constatar na figura seguinte, até aos anos 50 do século transacto, a Suécia era um país de reduzida tributação, com um capitalismo pujante, tornando-se num dos países mais ricos do Mundo, graças a mercados livres, reduzida regulação e tributação.

    Evolução das receitas fiscais e contribuições para a segurança social em percentagem do PIB na Suécia entre 1860 e 2010. Fonte: Magnus Henrekson e Mikael Stenkula

    Brincar ao socialismo desde então teve consequências nefastas para a Suécia, que desde 1970 apresenta taxas de crescimento ridículas, em que em muitos anos são expressivamente negativas, como em 1977, 1991-1993, 2009 e 2020. Ainda hoje, a Suécia está a viver da prosperidade obtida durante a maior parte do século XX, em particular na sua primeira metade.

    Vamos agora ao “Estado Social”, onde nos prometem a “redistribuição” – apesar de ninguém lhes ter pedido nada –, através de serviços “gratuitos”, como a Educação, a Saúde e as pensões, que são um esquema em pirâmide ao melhor estilo Madoff. Se há coisa que ficou provada com o colapso da União Soviética foi a ineficácia do planeamento central.

    Vamos supor que aplicávamos o actual modelo estalinista da Saúde no sector da alimentação, igualmente “essencial” à população – felizmente, o capitalismo conseguiu praticamente eliminar a fome nas sociedades ocidentais. Teríamos então cantinas públicas, com um único menu, com uma contratação e recrutamento centralizados.

    Evolução (%) entre 1961 e 2020 do crescimento anual per capita do PIB da Suécia. Fonte: Banco Mundial. Análise: Luís Gomes.

    Os cozinheiros, os empregados de mesa, os administrativos, tudo seria contratado por um burocrata sentado num ministério. Estão a ver o desastre que isto seria, certo? Corrupção – não lhes custou a ganhar o dinheiro, as receitas são fruto de um assalto – a rodos, ineficiência e desperdício sem fim. Por que razão vamos achar que isto irá funcionar na Educação e na Saúde? Aliás, durante a putativa pandemia, foi notório o desnorte das baratas tontas que estavam à frente da coisa.

    Para além do “Estado Social”, também temos a “justiça social”, onde se utilizam taxas progressivas nos impostos directos. Onde prefere um assaltante praticar um assalto? A um bairro de ricos ou de pobres? Claro está, a um bairro de ricos.

    Como dizia um membro de um partido trotskista do regime: “Temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Há muito que perderam a vergonha, não é de agora.

    Ainda temos aquela expressão altissonante, em particular vindo daqueles que se propõem a “reformar” ou a modificar as leis tributárias: “os impostos têm de ser justos”. Como é que um assalto, uma agressão à propriedade privada, alguma vez pode ser justo?

    close-up photo of assorted coins

    Pergunta-me agora o leitor? Mas está contra qualquer tributação?

    Não, na minha opinião deve existir alguma taxa, paga por todos os cidadãos, que permita garantir que o Estado proteja a propriedade privada (polícia, defesa, notários…) e assegure o cumprimento dos contratos (tribunais). Nada mais.

    Por fim, a assistência àqueles que ficaram para trás, incapazes de se alimentarem e terem um tecto. Numa sociedade livre, sem estar refém de uma classe parasitária, essas pessoas serão uma pequena franja, devendo a comunidade organizar-se para as ajudar. Não é difícil, numa sociedade de mentalidade católica como a nossa, seguramente funcionará.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • O fascismo está onde menos se espera

    O fascismo está onde menos se espera


    Nos dias que correm, o epiteto “extremista de direita” tornou-se um supremo anátema – é mais do que suficiente para desqualificar por completo um adversário. Por exemplo, para a nossa imprensa mainstream, um “extremista de direita” é alguém boçal, inculto, e mesmo troglodita, que defende valores tradicionais como Deus, Pátria e Família.

    Com a vitória em Itália do partido Irmãos de Itália, liderado por Giorgia Meloni, lá tivemos nós que apanhar com o inenarrável jornal Público a anunciar que essa vitória estava a gerar “medos muito reais” sobre a comunidade LGB. Aparentemente, uma vitória democrática nas urnas estava a deixá-la sem dormir e com medo de sair à rua.

    Giorgia Meloni

    Outro terrível epiteto muito em voga é o “neoliberalismo”. Quem não se recorda das “muitas perversões neoliberais contaminaram o PS”, detectadas por Ana Gomes, que é, aliás, militante do PS há não sei quantos anos, mas muitos serão. Ninguém sabe definir tal “monstro”, que, tal como o gigante Adamastor, teima em impedir as glórias económicas do actual regime, apesar do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa expressar o desejo de se “abrir caminho para uma sociedade socialista”.

    Em paralelo, a imprensa mainstream e os líderes políticos tentam convencer-nos de que existe uma luta sem tréguas entre a esquerda e a direita, com ideias muito diferentes e antagónicas. Temos as sondagens a preverem possíveis maiorias de esquerda ou de direita; ou a dizerem-nos que a direita sobe e a esquerda desce.

    Também temos as linhas vermelhas impostas a um partido “fascista”. Segundo os principais fazedores de opinião, isolá-lo e ostracizá-lo é a única política pública aceitável. Fica sempre uma pergunta no ar: por que não fizeram o mesmo com os partidos que defendem ideologias totalitárias e regimes sanguinários?

    If you repeat a lie often enough it becomes truth printed wall taken at daytime

    Nas recentes eleições no Brasil foi-nos servido o mesmo prato: de um lado, um ex-presidiário corrupto tratado como um homem de amor e diálogo, capaz de liderar e com um enorme coração; do outro, um genocida boçal e perigoso.

    Enquanto este circo anima a populaça, o regime continua a saquear a população. Fá-lo bem e sem cessar há mais de 48 anos. Agora, até tem várias armas ao seu dispor: inflação elevada, impostos brutais – sobre o consumo, o trabalho, a poupança, o património… – e uma regulação sobre todos os aspectos da vida económica dos cidadãos.

    Para garantir que todos os dissidentes são severamente multados, dispõe de um exército de reguladores, polícias e fiscais que vigiam, inspeccionam e garantem que nenhum desgraçado incumpre a legislação kafkiana em vigor. Apesar de nada produzirem de útil à sociedade, os tecnocratas e colaboradores dos principais órgãos de regulação auferem salários principescos, inalcançáveis para qualquer empresário a trabalhar de sol-a-sol.

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    Esta máquina de extorsão trabalha para um dono que já não mora em Portugal. A casta que nos governa limita-se a seguir as suas ordens. Durante a putativa pandemia foi evidente esta voz.

    É agora evidente que vivemos há muito tempo num regime fascista, que piora todos os dias, apesar das eleições de quatro em quatro anos, que já não servem qualquer propósito. Se servissem, ninguém poderia votar.

    Por que vivemos tão obnubilados? Na minha opinião, julgamos que o fascismo é algo do passado, associado aos anos 20 e 30 do século passado, onde vigorou a par com o socialismo.

    Em relação ao primeiro, vem-nos de imediato à memória o regime fascista italiano de Benito Mussolini e o regime nazi de Adolfo Hitler. Em relação ao segundo, a União Soviética de Stalin e a China comunista de Mao Tsé-Tung. São exemplos paradigmáticos de regimes totalitários. 

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    Como podemos caracterizar as principais diferenças entre Fascismo e Socialismo? No primeiro, permaneceu a existência da propriedade privada dos meios de produção; ou seja, existiam donos de fábricas, lojas e escritórios. No segundo, nada disso, atendendo que todos os meios de produção foram colectivizados; o Estado tornou-se o único proprietário e, por essa razão, a iniciativa privada e o livre mercado eram inexistentes.

    Mas será que a diferença era assim tão expressiva?

    Efectivamente, nos regimes fascistas existia propriedade privada, mas apenas no papel. Na verdade, o Estado determinava o que se produzia, em que quantidade, os métodos de trabalho, como era distribuído o resultado da produção, os salários, os preços, bem como, os dividendos que os proprietários podiam receber.

    Na prática, um planeador central do regime condenava o proprietário a assumir um papel de mero “pensionista”, ou mesmo um fiel depositário dos títulos de propriedade, em lugar de um empreendedor movido pelo lucro. 

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    Segundo os fascistas, o bem comum estaria sempre acima dos interesses mesquinhos e egoístas de cada indivíduo que constitui a sociedade. Os planeadores centrais sabiam o que era melhor para cada membro. Nada melhor que a frase definidora do fascismo de Mussolini: “Tudo dentro do Estado; Nada fora do Estado; Nada contra o Estado”. A negação do capitalismo e do livre sistema de preços era uma característica comum a estes regimes.

    O controlo de preços e salários foi algo inevitável para este tipo de regimes; como é sabido, promoveram grandiosas obras públicas – a rede de auto-estradas da Alemanha nazi era notável –, subsídios a vastas camadas da população, garantido, desta forma, um povo obnóxio, e vastos programas de rearmamento. Tal escalada bélica terminou no desastre que todos conhecemos: a Segunda Guerra Mundial.

    Para pagar esta orgia de gastos públicos sem fim, estes regimes totalitários recorreram largamente ao imposto silencioso: a inflação. Tal política, como sempre, obrigou os comerciantes e retalhistas de todo o tipo a reflectir o aumento da massa monetária, obrigando-os a subir preços, caso contrário, os seus negócios deixariam de ser rentáveis. Efectivamente, em 1936 o partido Nazi, que então governava a Alemanha, impôs o controlo de preços e salários.

    Quando um regime tenta controlar preços – rendas, salários, preços de bens e serviços –, inevitavelmente irá criar distorções. Veja-se o regime de arrendamento português, em particular depois de 1974; com uma inflação elevadíssima. Durante as décadas de 70 e 80 do século passado, os proprietários não puderam subir as rendas, criando cidades com prédios decrépitos e em ruínas, em particular em Lisboa e Porto, fazendo desaparecer a oferta de casas para arrendamento.

    Quando isto acontece, os particulares e comerciantes tentam realizar transacções “ilegais”, criando um mercado negro, não oficial. Na Venezuela, por exemplo, a taxa de câmbio Bolívar/USD é completamente distinta quando ocorre na rede bancária – que pratica o preço oficial – e quando tem lugar no mercado negro. A compra de dólares norte-americanos e de Bitcoin, ou de outras criptomoedas, é a única forma dos venezuelanos protegerem o seu património da desvalorização imposta pelas rotativas do banco central venezuelano.

    O surgimento do mercado negro teve lugar nos regimes totalitários que aqui citámos. Se o Governo não me permite cobrar o preço que eu desejo, tentarei encontrar um cliente que esteja disposto a realizar uma transacção comigo na “ilegalidade”. Por outro lado, quando não se permite a subida de preços, ocorrem falhas no fornecimento de bens e serviços, atendendo que os empresários deixam de ter incentivos a produzir, pois irão certamente arruinar-se aos preços oficiais.

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    Por outro lado, ao ser eliminado o sistema de preços, os empresários passam a estar “cegos”, deixam de conhecer os negócios que apresentam a maior probabilidade de lucro – os preços são sinais dados pelos consumidores -, atendendo que os preços deixaram de reflectir as preferências dos consumidores e a oferta disponível, para passarem a ser decididos por um burocrata, arvorado em planeador central. São conhecidas as rupturas de fornecimento de bens essenciais que ocorrem diariamente em países como Cuba ou Venezuela.

    Quando tal acontece, os Estados endurecem a sua resposta. Por um lado, começam a aplicar pesadas multas a quem realiza transacções no mercado negro; se insuficiente, se não tem o necessário efeito dissuasor, como reprimiam mais? Através de uma rede de espiões, informadores e delatores, visando criar uma atmosfera de terror sobre as pessoas.

    Mesmo familiares próximos podiam ser os informadores do Governo – um bufo pode estar em cada esquina. Em tais regimes, aquele que fosse apanhado a cometer uma ilegalidade, podia receber um bilhete para o céu ou para uma instância de férias, algures na Sibéria ou em Birkenau, para, no fim, provavelmente cavoucar a sua própria sepultura.

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    Muitos dos perseguidos políticos eram também eliminados da vida pública através de internamentos compulsivos. Como? Eram declarados insanos pelas autoridades. E as razões para tal? Eram muito perigosos para a sociedade. Passavam a ser uns maluquinhos, necessariamente fechados num hospício, que necessitavam de uma reabilitação psiquiátrica. Uma purificação das ideias.

    Por outro lado, o racionamento de bens e serviços tornava-se uma realidade, atendendo que a produção deixava de ser suficiente para as necessidades. Para tal política, lá aparecem as senhas de racionamento e os salvo-condutos.

    Na União Soviética existiam determinados bairros, apenas reservados ao escol – existem sempre animais mais iguais que outros –, que obrigavam à posse de um salvo-conduto, não vá a plebe dar-se conta de tal luxo reservado apenas para alguns. As pessoas passavam a ter de obter documentos governamentais para aceder a uma vida “normal”: comer, vestir, entrar na habitação…Irá agora acontecer o mesmo, agora, com o acesso à energia.

    Ora, a escassez de bens e serviços essenciais nos ditos regimes, como é óbvio, gerou fortes hostilidades ao Governo. Qual foi o seguinte passo? Culpar a população; evitar qualquer assuada. O sistema era perfeito: o problema eram as más pessoas que boicotavam o sistema – na versão moderna, não são pessoas de bem.

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    Infelizmente, existiam cidadãos sem as necessárias virtudes públicas que era necessário denunciar; regra geral, uma infeliz minoria, que exigia o desinçar das suas impurezas. Para manipular as massas e culpar determinadas minorias de todos os males – como foi o caso dos judeus na Alemanha nazi –, os Estados recorreram à propaganda e à perseguição.

    O partido nazi era exímio em tal exercício: ainda hoje o documentário “Triunfo da Vontade”, da cineasta preferida de Hitler, Leni Riefenstahl, é considerado um dos melhores documentários da História da propaganda política.

    Em paralelo, criava-se um clima de terror sobre uma minoria, culpando-a de todas as desgraças, como foi o caso dos judeus da Alemanha nazi, através de restrições, regras e leis absurdas, que destaco apenas algumas:

    • 3 de Outubro de 1938: decreto da confiscação de propriedade judaica, regula a transferência de valores por judeus para não-judeus;
    • 5 de Outubro de 1938: todos os passaportes emitidos para judeus são invalidados. Judeus têm que entregar passaporte anterior que se tornará válido novamente após carimbo da letra J;
    • 15 de Novembro de 1938: todas as crianças judias são expulsas das escolas públicas;
    • 28 de Novembro de 1938: a liberdade de movimento de judeus passa a ser limitada.

    Face a este histórico, é fácil concluirmos que qualquer regime totalitário tem características muito semelhantes, independentemente da ideologia subjacente:

    • A propriedade privada apenas existe no papel, ou simplesmente não existe;
    • O livre mercado e a livre iniciativa estão fortemente condicionados; as liberdades, os direitos e as garantias são inexistentes;
    • Enorme despesa pública, com recurso à inflação para a pagar, visando “comprar” a população, seja através de obras públicas faraónicas, seja através de subsídios ou emprego público. Atendendo a esta política, invariavelmente são obrigados a controlar preços, que provoca a distorção da estrutura produtiva, destruindo todos os incentivos à produção e diminuindo o rendimento e a poupança das populações;
    • A tentativa de “saltar” as restrições, que condicionam a liberdade e a livre iniciativa dos cidadãos, gera uma forte repressão por parte do Estado. Multas, prisão, campos de concentração ou mesmo a pena de morte, são os pratos servidos, dependendo do grau de protérvia do regime;
    • Os indivíduos perigosos, aqueles que defendem ideias diferentes do poder, são eliminados por internamentos compulsivos, campos de reabilitação, podendo ser considerada a eliminação física;
    • A propaganda é inevitável, para manipular as massas, caso contrário, as pessoas iriam compreender a origem do problema; regra geral, utiliza-se a culpabilização de uma minoria por tudo o que corra mal – a culpa é sempre das pessoas impuras;
    • Para manter a situação controlada, a vigilância das pessoas torna-se permanente, utilizando-se toda a espécie de métodos: rede de informadores, espiões ou, como agora acontece, modernas tecnologias de vigilância (câmaras, controlos biométricos, moedas digitais…).

    Nas décadas recentes, em particular a partir de 2020, as sociedades ocidentais parecem estar a caminhar neste sentido: para o crescente totalitarismo.

    Em primeiro lugar, algo que já ocorre há décadas: a nacionalização do sistema monetário. Com o fim da convertibilidade do Ouro em 1971, a capacidade de manipulação de taxas de juro – o preço do dinheiro –, e da quantidade do dinheiro em circulação, tem-se tornado crescente. Em particular com a cartelização de grandes bancos centrais.

    Agora, os Estados podem impunemente aumentar os défices públicos, atendendo que se podem financiar a taxas de juro próximas de zero, ou mesmo negativas, pois os bancos centrais aparecem e compram todas as obrigações por si emitidas – dinheiro de monopólio não é um problema para estas entidades.

    Mesmo com recurso a uma enorme inflação, emissão de moeda para adquirir obrigações e financiar défices e despesa pública, a receita nunca é suficiente: o saque fiscal será, seguramente, crescente e imparável. A vigilância de todos os nossos movimentos financeiros é uma necessidade. Nos últimos anos, as empresas e os particulares tornaram-se delatores do sistema, todos nos denunciamos, pois foram obrigados e incentivados a enviar enormes quantidades de informação às autoridades.

    Com o advento das moedas digitais dos bancos centrais, o big brother fiscal será absoluto. Todos os nossos movimentos financeiros passam a ser conhecidos pelo poder, obliterando a privacidade do dinheiro físico que a escol certamente pretende abolir nos próximos anos, apesar das “juras” à complementaridade de tal forma de dinheiro – as conspirações tornam-se sempre realidade.

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    Tolhida pelo medo e o pânico, a sociedade passou a aceitar a segregação como algo normal; mais fácil de implementar numa sociedade como a portuguesa, habituada ao azorrague há séculos. Através de um salvo-conduto, os puros passaram a ter acesso exclusivo aos locais de lazer e divertimento; um dia destes, até para bens e serviços essenciais, como a saúde. O certificado digital foi o primeiro passo.

    Aos impuros está reservado o recolhimento, a ostracização e a vergonha pública, tal como os acusados do Santo Ofício, obrigados a usar um barrete, enquanto caminhavam na via pública para deleite das multidões.

    Os direitos humanos que julgávamos adquiridos, após o que se passou nos campos de concentração nazis, onde o Dr. Josef Mengele fazia experiências médicas sem o consentimento das vítimas, passaram a ser colocados em questão.

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    Em paralelo, em uníssono, a imprensa apenas apresenta uma narrativa, não sendo agora pouco mais do que propaganda, uns autênticos áulicos do poder e fornecedores de cisco informativo. Mas não se fica por aqui: lançam encómios à discriminação, à ridicularização de quem pensa diferente e fomentam o discurso de ódio, que muitas vezes criticam noutras situações.

    Dá vontade de perguntar, está tudo doido? Nada disso, o escol sabe muito bem que esta é a oportunidade de ouro para obter mais poder e acelerar em direcção a um regime ainda mais totalitário e saqueador.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • “Vai ficar tudo bem”, ou a “lotaria” do Estado será a nossa “terminação”

    “Vai ficar tudo bem”, ou a “lotaria” do Estado será a nossa “terminação”


    Ontem, durante a manhã foi publicada a evolução dos preços ao produtor na Alemanha para o mês de Agosto: os preços subiram 45,8% em relação ao mesmo mês do ano passado! A inflação criada durante os últimos dois anos pelo Banco Central Europeu (BCE) está assim de boa saúde… e não se deveria recomendar.

    Resta-nos o consolo de ter servido para pagar a funcionários públicos e apaniguados do Estado durante os dois anos da “pandemia”, para que estes pudessem estar em casa sem fazer nada e a ver séries Netflix. Vai ficar tudo bem! Lembram-se?

    assorted bunch of fruit lot

    Nos últimos dias, não parámos de escutar sobre a necessidade de tributar os “lucros excessivos” das grandes empresas. Pessoalmente, parece-me que a única entidade com lucros excessivos até à data tem sido o Estado português. Aliás: saiu-lhe a lotaria!

    Apenas à boleia da inflação, e em relação a 2021, no primeiro semestre de 2022, o Estado português logrou obter mais 5,7 mil milhões de Euros de receita fiscal e mais mil milhões de Euros de contribuições para a Segurança Social. Não é um total, é um acréscimo em relação a 2021 – e apenas para a primeira metade do ano. A este ritmo, no final de 2022, poderá resultar numa receita adicional de 13,4 mil milhões de Euros, algo como 1.325 Euros a cada português.

    Para uma família de quatro pessoas (pai, mãe e dois filhos), o Estado português irá obter uma receita adicional no valor de 5.306 Euros. Os 350 Euros que serão devolvidos em Outubro (125 × 2 + 50 × 2) representam apenas 6,5% do “assalto”. Depois de despojar, de forma pungente, o ladrão, qual samaritano salaz, devolve uma migalha do butim. Aparentemente, reina a felicidade entre todos. Vai ficar tudo bem! Não é?

    10 and 20 euro banknotes

    Entretanto, sabemos que a Grande Líder Europeia, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista, apresentou um grandiloquente plano de redução do consumo de energia, em que constam medidas do tipo: “use menos”. Depois de ter proibido os europeus de adquirir energia ao maior produtor mundial, temos agora medidas absolutamente inovadoras e geniais, que a nenhuma cabeça se lhe tinha ocorrido: “use menos”.

    Podemos estar descansados: os Estados Unidos sofreram, certamente, o mesmo boicote comercial quando bombardearam e invadiram nações soberanas como o Vietname, o Camboja, a Sérvia, o Iraque, a Somália, o Afeganistão, a Síria – sim, a Síria, precisamente, a área rica em Petróleo, está a ter lugar nos nossos dias –, Granada; enfim, a lista é infindável. Além disso, as sanções à Rússia estão a resultar: quando o frio apertar, iremos usar lenha. Vai ficar tudo bem! Não é?

    Entretanto, o Estado português voltou a confiscar os proprietários, num novo ataque aos “ricos e fascistas”, visando proteger os “fracos e os oprimidos”, os inquilinos. O criminoso quer ser o único a gozar da inflação criada pelo seu Banco Central, mais ninguém pode beneficiar do saque.

    Durante a década de 70 e 80 do século passado, em particular durante o período “revolucionário”, o parque habitacional português ficou em ruínas devido ao congelamento de rendas, que não acompanharam a evolução da inflação, mas parece que a insanidade nunca tem fim. Aplicar a receita que não resultou é o lema. Vai ficar tudo bem! Não é?

    person walking near The Great Sphinx

    Entretanto, depois do discurso da esmola, parece que alguns demoraram a compreender que o maior esquema em pirâmide da História da Humanidade, denominado Segurança Social, está próximo da falência. Aparentemente, só agora começam a compreender que o confisco dos jovens a favor de um exército de idosos não irá terminar bem. 

    Todos os esquemas em pirâmide têm um fim: ele anuncia-se quando os novos idiotas que entram no esquema são insuficientes para pagar as saídas. Para perpetuar a fraude, o poder não quer assustar os idiotas, mas apenas diminuir o confisco dos que desejam sair. Vai ficar tudo bem! Não é?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?

    Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?


    Há umas semanas, Vítor Constâncio deu uma entrevista à RTP a respeito da inflação, com aquele ar doutoral que o caracteriza (cansado até), a viver o “produto” de muitos anos de milionárias sinecuras oferecidas pelo partido em que sempre militou. Com um semblante que parecia reflectir um certo enfado, lá respondeu às perguntas do jornalista José Rodrigues dos Santos, que parecia, sem ironia, vir bem preparado.

    Este último iniciou a entrevista com a seguinte questão:

    – Não terá o Banco Central Europeu (BCE) actuado demasiado tarde em relação à inflação?

    blue and yellow star decor

    Em resposta, Vítor Constâncio utilizou mais ou menos estas palavras: – A inflação, até Agosto do ano passado (2021), esteve sempre abaixo de 3%, ou seja, enquadrada no objectivo de 2%. Só no final de 2021 a coisa piorou, passando os 3% e por aí fora, até ter ficado evidente que teria de existir um ciclo de subida de taxas de juro, iniciando-se mais cedo nos Estados Unidos. Qualquer variação das taxas de juro leva tempo a produzir efeitos.

    Seguidamente, Rodrigues dos Santos ripostou: – Não deveria ter ocorrido uma actuação mais cedo, dado que agora temos a inflação a destruir os salários?

    Vítor Constâncio voltou a responder com um ar professoral: – As taxas de juro demoram tempo a fazer efeito e, por conseguinte, mesmo que tivesse ocorrido uma actuação mais atempada, não teria havido grande diferença na taxa de inflação que hoje temos…”porque… repare… os grandes pulos na inflação deveram-se a grandes choques internacionais de preços; primeiro o Petróleo, depois a alimentação, o trigo e outros produtos alimentares intermédios… que deram origem ao aumento dos preços”.

    Vítor Constâncio, antigo vice-presidente do Banco Central Europeu

    Interrompendo, Rodrigues dos Santos retrucou direito à “ferida”, com estas palavras: – Mas não houve uma enorme impressão de moeda pelo BCE por alturas da pandemia?

    Eis que o “professor” contesta com enorme protérvia: – A impressão de moeda não é a causa da inflação que se atribuiu durante muito tempo, na chamada visão monetarista das coisas. Veja que, entre 2008 e 2015, 2016 e mesmo 2017, ocorreu impressão de moeda, ou seja, um aumento espectacular do balanço dos Bancos Centrais e não houve inflação durante todos esses anos! Portanto, essa teoria da emissão monetária não tem aqui grande justificação. O ponto aqui é que a inflação começou com choques externos, primeiro na energia, depois na alimentação e, claro, começou a partir de certa altura, mas só este ano, nos preços internos. A política monetária tem de tentar mitigar precisamente isso.

    Resumamos então as palavras de Vítor Constâncio:

    1 – A impressão de dinheiro não tem qualquer relação com a inflação;

    2 – A inflação, que estamos presentemente a viver, é fruto de um truque de prestidigitação: o resultado de choques internacionais nos preços, gerando “pulos”.

    Mas esta propaganda estatal não se ficava por aqui. Na semana passada, no inacreditável discurso da esmola, o nosso primeiro-ministro atirava: “… consequência da pandemia e, sobretudo, da guerra da Rússia contra a Ucrânia, temos vindo a sofrer um brutal aumento da inflação que atinge duramente o poder de compra das famílias…”. Aqui a inflação não apareceu por magia, digamos por choque, mas já foi consequência da pandemia e da guerra na Ucrânia.

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    Importa deixar algo claro a estes senhores que o único responsável pela inflação é o Governo, pois tem o monopólio da emissão de moeda, através do seu Banco Central, juntamente com o sistema bancário – que apenas pode operar caso possua uma licença bancária – , que igualmente emite moeda quando concede créditos por contrapartida da emissão de moeda.

    Mais ninguém gera inflação. Não é o Putin, não é a “pandemia”, nem tão pouco são os “choques ou os pulos” dos preços.

    Quem gera inflação é o Banco Central e o sistema bancário por si licenciado e supervisionado – mais ninguém!

    Como expliquei neste vídeo, quando há emissão de dinheiro não ocorre qualquer produção de bens ou serviços, não há aumento de riqueza, apenas a sua redistribuição. É como uma pirâmide de flutes de champanhe: os copos mais próximos do topo (neste caso, os mais favorecidos e os apaniguados do Estado) são os primeiros a receber o champanhe; enquanto os que estão abaixo (os pobres) recebem apenas gotas, mas já a saberem mal, em resultado de preços inflacionados.

    A inflação é, na verdade, um roubo dos ricos e poderosos aos pobres, nada mais. Os ricos vêem os seus activos e propriedades a valorizar, o Governo vê as suas receitas a disparar e a dívida pública a diminuir, tanto em termos reais como em peso do Produto Interno Bruto (PIB).

    Vítor Constâncio diz-nos que, entre 2008 e 2017, houve uma impressão massiva de moeda, mas não houve inflação. Diríamos mesmo que, desde o final de 2008, não aconteceu outra coisa que não seja a impressão massiva de moeda e inflação. Vejamos o balanço do principal Banco Central do Mundo: a Reserva Federal norte-americana (FED).

    Evolução do balanço da Reserva Federal norte-americana entre 2009 e Agosto de 2022, em biliões de dólares. Fonte: St. Louis Fed; Análise do autor

    Entre o início de 2009 e o final de 2017, o balanço duplicou, ou seja, subiu 110%, a um ritmo anual de 8,6%. Esta emissão é amplificada 10 ou 20 vezes pelo sistema bancário, pois esta nova moeda é creditada a seu favor, podendo assim conceder crédito com uma pequeníssima fracção destas reservas.

    Isto foi o que precisamente sucedeu durante aquele período até ao início da “pandemia”: os bancos norte-americanos concediam crédito com juros de 0% às grandes empresas, como a Apple ou a Tesla, por contrapartida da criação de moeda – ou seja, inflação. Com esta liquidez compravam as suas próprias acções nas bolsas de valores e faziam subir as cotações. Uma redistribuição a favor dos accionistas destas empresas, algo que o Dr. Vítor Constâncio não se deve ter apercebido seguramente.

    Vamos utilizar um momento-chave dos Bancos Centrais, quando a administração do Banco Central Europeu (BCE) – na altura presidido por Mario Draghi, e com Vítor Constâncio a ocupar a vice-presidência – anunciava a 26 de Julho de 2012: “… está pronto para fazer o que for necessário para preservar o euro; e acreditem que isso será suficiente…”.

    O que é que aconteceu com as cotações das principais acções norte-americanas e os principais índices bolsistas no período entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, no final de Fevereiro de 2020: a Tesla subiu 2 521%, ao ritmo anual de 54% ao ano, a Amazon 845%, ao ritmo anual de 34%, e por aí a fora. Para os multimilionários norte-americanos, este período foi de enorme bonança. A inflação seguia inteiramente a seu favor.

    Retorno do preço da acção ou pontos do índice entre 26 de Julho de 2012 e 28 de Fevereiro de 2020
    (Unidade: %; medido em Euros). Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    O que é que aconteceu com o imobiliário para o mesmo período: o índice “S&P/ Case-Shiller U.S. National Home Price Index”, que mede os preços do imobiliário para as principais cidades norte-americanas, subiu 50% entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, a um ritmo anual de 5,4%, muito longe da suposta inexistente inflação que nos anunciava Vítor Constâncio na entrevista.

    Mas podiam dizer-nos que os lucros da Tesla foram excepcionais e subiram vertiginosamente durante este período, justificando tal subida meteórica. Não, nada disso. Entre 2012 e 2019, a Tesla nunca apresentou lucros para nenhum exercício. Em 2017 até apresentou perdas colossais de 1,9 mil milhões de dólares (fonte: Macrotrends).

    Mas agora vamos ver o que aconteceu com as obrigações que foram objecto de ajuda por parte do BCE de Vítor Constâncio, após anúncio salvífico do euro em Julho de 2012.

    Na figura seguinte podemos ver que inflação foi coisa que “nunca existiu”, em particular para as obrigações gregas que subiram 644%, ao um ritmo anual de 22%, desde o épico anúncio de Mario Draghi até aos nossos dias. Tratou-se de um verdadeiro milagre para um Estado falido, que tem hoje uma dívida pública superior a 220% do PIB e que, antes da ajuda de Mario Draghi, se financiava nos mercados acima de 35%!

    Evolução mensal do preço e da taxa de juro implícita das obrigações emitidas pelo Estado grego com maturidade a 10 anos (Unidade: índice e %). Fonte: Investing (Thomson Reuters Greece 10 Years Government Benchmark). Análise do autor

    Para o mesmo período, as obrigações portuguesas subiram 146%, as espanholas 86% e as italianas 61%, uma verdadeira festa para bancos e multimilionários, que à boleia da inflação dos Bancos Centrais viram uma importante fracção da riqueza mundial ser canalizada directamente para os seus bolsos.

    Mas eis que chegou um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%: era necessário imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã. Pela primeira vez, os Estados deixaram de se preocupar com quem lhes pagava a conta. O processo foi e é simples: enormes défices financiados com a emissão de obrigações e adquiridas pelos Bancos Centrais por contrapartida da emissão de moeda. Inflação sem limites!

    No caso do Banco Central norte-americano, o FED, desde o início da “pandemia” até hoje, subiu o seu balanço em 4,5 biliões de dólares (12 zeros); o BCE não ficou atrás, imprimindo praticamente a mesma quantia, neste caso em euros.

    Então o que aconteceu entre o início da “pandemia” e o início da guerra da Ucrânia? Como podemos ver na figura seguinte, o petróleo subiu 351%, ao ritmo anual de 121%.

    O petróleo, no final de Março de 2020, valia 20 dólares por barril (cerca de 18 euros) e no dia 23 de Fevereiro de 2022 – um dia anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia – valia 92,1 dólares por barril (81,3 euros).

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 30 de Março de 2020 e 23 de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor

    Para o mesmo período, a madeira subiu 323%, ao ritmo de 113% por ano, o gás natural 169%, ao ritmo anual de 68%, a aveia 155%, ao ritmo anual de 64%, e por aí fora.

    A impressão massiva de dinheiro para as pessoas “ficarem a casa”, enquanto se lhes dizia que iria “ficar tudo bem”, gerou uma enorme inflação. Não foi o resultado de um truque de magia, mas uma inflação deliberadamente criada pelos Governos.

    Será que estas subidas foram mais ou menos acentuadas após o início da guerra da Ucrânia?

    A partir de 22 de Fevereiro até finais de Agosto, de entre 22 matérias-primas, apenas sete subiram a um ritmo anualizado superior – assinaladas a cinzento –, ou seja, 30%, aproximadamente.

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 23 de Fevereiro de 2022 e 29 de Agosto de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Destaque para o gás natural que subiu 131% até ao final de Agosto de 2022, a um ritmo anual de 411%. Esta subida deve-se, não só à inflação criada pelos Bancos Centrais, mas também à “estúpida” política de sanções da União Europeia (UE).

    Em conclusão, a presente inflação que estamos a viver é da exclusiva responsabilidade dos Governos, que têm o monopólio da emissão de moeda, juntamente com o sistema bancário com uma licença governamental, que lhes autoriza a prática de reservas fraccionadas, uma prática altamente inflacionária.

    Numa primeira fase, esta “loucura” foi apenas um fenómeno de ricos: carros antigos, arte, acções, obrigações, imobiliário, passes de jogador de futebol, imobiliário…

    black and silver laptop computer

    Numa segunda fase, a impressora trabalhou com tal intensidade, que a massa monetária criada foi parar essencialmente às mãos dos apaniguados do Governo, a quem lhes foi proporcionada uma procura completamente artificial e desnecessária: testes, máscaras, vacinas, contratação de funcionários públicos de forma massiva, subsídios para o “fique em casa”, etc.

    Esta “liquidez” foi usada para adquirir bens que fazem parte do cabaz de compras utilizado para medir a inflação. Desta vez, não foi possível ocultar, daí a necessidade da propaganda e dos truques de prestidigitação.

    A inflação é o aumento de massa monetária: isto é, um monopólio do Governo e do sistema bancário autorizado pelas autoridades. Nada mais.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Globalismo: a nova tirania

    Globalismo: a nova tirania


    A revolução luterana de há 500 anos não trouxe apenas o Estado Absoluto, também demoliu a visão comum que mantinha a sociedade unida. Cada indivíduo era agora capaz de interpretar as Sagradas Escrituras, em lugar de um intermediário que passava anos a estudar, enquadrada por uma instituição milenar. Cada um tinha agora uma opinião sobre a sociedade: a ideologia.  

    Eu não me adapto à realidade, onde existem fraquezas humanas, como o vício do jogo, a miséria moral ou a assimetria de informação – por exemplo, a relação entre um médico e um paciente, onde nem sempre o segundo questiona sobre os medicamentos receitados pelo primeiro –, a realidade é que tem de adaptar-se à minha visão sobre a sociedade.  

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    Tudo isto foi ajudado por uma revolução no pensamento. Tivemos Descartes que afirmou: “tudo que vemos, sentimos, tocamos, pode ser fruto de nossa imaginação, não existindo realmente. Apenas o pensamento tem força e prova de verdade”. Aquilo que está dentro da cabeça do homem é de alguma forma mais verdadeiro do que a sua percepção da realidade.  

    Um século depois, Kant reforçou a revolução mental original de Descartes, afirmando que, embora não possamos ter certeza se temos dois braços, ou se é frio ou quente, escuro ou ensolarado fora de nossa mente, a Razão é universal; isto é, se as pessoas pensarem bastante em qualquer coisa, chegarão às mesmas conclusões. As ideias tornaram-se mais verdadeiras do que a vida real. A era das ideologias tinha começado.  

    As ideologias são por natureza projectos universais. Todos os homens devem ter uma igual condição económica (Marx); Os melhores devem governar as massas (tecnocracia). Apenas há lugar na sociedade para determinadas raças (Nacional Socialismo); A sociedade deve abandonar os carros (Globalismo); Não há lugar na nossa sociedade para não vacinados (Covidismo). 

    Todos os homens têm o seu lugar na sociedade e têm que chegar lá para que as coisas funcionem tal como prescrito pela realidade ideológica, mesmo que o “lugar apropriado” de algumas pessoas seja o Gulag, Auschwitz ou mesmo um campo de “concentração para não vacinados na Austrália”.  

    Pode parecer que a revolução individualista foi desfeita pela chegada do pensamento ideológico universalizante; a visão de mundo comum que orientou a nossa civilização foi abalada pelo individualismo da primeira Modernidade, apenas para ser substituída por um novo universalismo ideológico.  

    Para São Tomás de Aquino, a bondade é a verdade, e a verdade significa que o que está dentro das nossas cabeças (ideias, noções, percepções) coincide com o que está fora (a própria realidade). Para qualquer ideólogo é o contrário: a “bondade” é ter a própria realidade de acordo com o que está dentro da cabeça, a ideologia que ele adopta.  

    Em lugar de testar sua percepção contra a realidade, os ideólogos julgam a realidade contra a sua ideologia, “mais verdadeira que a própria realidade”. Ao lidar com qualquer fenómeno social, partem sempre das premissas da sua ideologia.  

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    Todas as ciências foram tocadas pela ideologia, até a Economia. Tivemos Keynes, um estatístico que inventou a macroeconomia, inaugurando a gestão de agregados – o consumo agregado, a despesa agregada, o investimento agregado – e retirando a acção humana individual da equação. Todas as mentiras e dissonâncias são possíveis, facilitando a propaganda de Estado e abrindo caminho a uma enorme burocracia encarregue de forçar a ideologia sobre a sociedade. 

    Os bancos centrais emitem dinheiro para estimular a economia. Um indivíduo falsifica dinheiro. Os primeiros actuam em nome do bem, da ideologia. O segundo tem como destino o calabouço. 

    Os bancos centrais compram obrigações soberanas para reduzir os encargos com juros dos governos, provocando a redução dos juros e a subida do preço dessas obrigações. Como tem informação privilegiada, um indivíduo compra acções da empresa XYZ, dado que tem conhecimento de uma iminente subida do seu preço em bolsa. Os primeiros estão a ajudar o governo a realizar um estímulo fiscal. O segundo está a manipular preços, devendo ser detido pela prática de “inside trading”. 

    O Estado encerra um restaurante em nome do combate a uma pandemia com uma taxa de sobrevivência de 99%, está a evitar a “morte de milhões”. O segundo deverá ir à ruína e esperar em casa por uma esmola, se alguma vez chegar. 

    person holding brown leather bifold wallet

    O principal problema do pensamento ideológico é que ele é literalmente a adoração de uma fantasia. As fantasias são coisas que não existem no mundo real, apenas existem dentro das nossas mentes; acreditar no que está dentro da cabeça ao invés de sentidos mentirosos é o ponto de partida do pensamento ideológico.  

    O seu segundo problema é que as ideologias não permitem o elemento mais essencial na sociedade humana, a natureza humana. Se lermos uma história escrita há centenas ou milhares de anos, veremos os homens a agir tal como agem hoje, sofrendo pelas mesmas causas, buscando os mesmos prazeres, caindo nas mesmas tentações – o vício do jogo, por exemplo – e assim por diante. O homem não muda e, embora cada homem seja diferente de todos os outros, em certo nível todos os homens são iguais. 

    Aos estarmos cegos para a natureza humana, os ideólogos sempre caem na mesma armadilha universalizante. Eles podem ser ideólogos de visão única, como neoliberais ou comunistas, ou podem acreditar que os não vacinados são seres inferiores, que merecem ser ostracizados pela sociedade; no final, todos eles tratam toda ou pelo menos grandes áreas da Humanidade como se todos os homens fossem clones do que eles vêem no espelho. 

    Eles estão sempre optimistas sobre como as pessoas se vão comportar, eles sempre assumem que todos querem e valorizam exactamente as mesmas coisas que eles.  

    woman in black and white tank top leaning on wall

    Regra geral, estes “loucos” necessitam da violência de Estado para imporem a sua versão da realidade aos demais. Ou detêm poder efectivo sobre o Estado ou conseguem influenciar quem o detém.  

    Estamos agora na etapa final da revolução protestante: uma ideologia global imposta sobre toda a humanidade, imposta através de instituições globais, como a OMS e os Bancos Centrais. Os “loucos” não se importam com a realidade, afinal apenas querem o nosso bem, até dizem: “Não terás nada e serás feliz!” 

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Assim se fez um Estado Tirano

    Assim se fez um Estado Tirano


    Até há cinco séculos, a promulgação de leis pelo Estado era algo pouco comum. Esperava-se que as pessoas fizessem o que era a prática comum numa dada comunidade e se abstivessem de fazer aquilo que as pessoas “pouco decentes fazem”.

    De certa forma, essa noção ainda hoje persiste. Os polícias, por exemplo, tendem a ver os criminosos em geral não exactamente como infractores da lei, mas como pessoas que fazem coisas que pessoas decentes não fazem: “Eu não saio por aí a roubar coisas”.

    man in black jacket walking on bridge near body of water during daytime

    Os sistemas jurídicos anglo-saxónicos ainda preservam essa tradição: a Common-law. Os casos são resolvidos através de um caso anterior semelhante e, em seguida, estendendo a decisão precedente sobre a nova situação aparentemente relacionada.

    Funcionou bem para as pequenas comunidades, muito unidas e com poucas diferenças, mas com sociedades crescentemente complexas, isto é, com grupos sociais com distintas culturas, aquilo que parece óbvio para um grupo social pode ser um absurdo para outro.

    O sistema legal romano foi outra abordagem que existiu no passado, criado com um vasto império, de pessoas e culturas amplamente diferentes. Nele, não havia lugar para o direito comum: tudo o que se proíbe está escrito; tudo o que não é proibido é permitido.

    É assim que os sistemas judiciais funcionam na maior parte do Mundo nos nossos dias. No entanto, com uma diferença importante: os juízes eram bastante livres para interpretar a lei escrita à sua maneira. Desta forma, a lei, no sistema romano, acabava por não ser algo a ser obedecido literalmente, mesmo que tal literalidade fosse possível. As leis eram directrizes e não obrigações morais, onde o costume determinava se uma determinada lei era compreendida e aceite pela sociedade em geral.

    Com o advento do Estado Moderno, onde as burocracias imperam, começou a tratar-se a lei escrita como algo divino, aquilo que denominamos por “positivismo”, pois as leis promulgadas são chamadas de “direito positivo”, em contraste com o direito consuetudinário – construção jurídica baseada em costumes a partir das tradições dos povos de determinado local e que passaram a ser aceites como norma.

    A actual teoria do Estado todo-poderoso surgiu no momento em que um monge martelou um pedaço de papel na porta de uma igreja – na noite das Bruxas, nada menos! –, altura em que se viviam importantes revoltas sociais no norte da Europa.

    A criação de Frei Martinho Lutero de uma religião totalmente nova não foi uma causa, mas uma consequência da sua martelada na porta de uma igreja. Ele desejava desafiar uma pessoa do seu bairro que andava a angariar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma, para debater com ele a legitimidade das suas “técnicas de venda”.

    A véspera de Todos os Santos foi o momento perfeito para pregar as suas propostas na porta daquela igreja em particular, já que no dia seguinte seria realizada a maior exposição de relíquias sagradas de todo o norte da Europa, garantindo a propagação da sua mensagem a milhares de peregrinos.

    Lutero, um professor que conhecia as Sagradas Escrituras, desafiava uma pessoa que provavelmente conhecia as Sagradas Escrituras apenas do que escutava nas suas idas às missas, com as seguintes regras: todo e qualquer argumento deveria ser extraído das Escrituras – algo justo!

    A religião era então, e ainda é – seja o cristianismo, o islamismo, o budismo ou o moderno ateísmo –, a lente através da qual vemos, a lógica com a qual interpretamos, o mundo ao nosso redor.

    Naquela época, na Europa, a religião significava uma coisa, e apenas uma coisa, em todos os lugares. Não apenas os seus princípios morais formavam a estrutura de comportamento aceitável, mas o tempo religioso – o calendário litúrgico – deu às pessoas a própria noção de tempo.

    As práticas religiosas – por exemplo, as peregrinações àquela igreja onde Lutero martelou as suas propostas – eram essencialmente universais e partilhadas por todos; a autoridade religiosa era a base da autoridade civil, e assim por diante.

    A autoridade religiosa não significava que um rei fosse considerado um procurador de Deus. Muito pelo contrário. Na verdade, significava que o trabalho de qualquer governante podia e devia ser comparado com o que era então universalmente aceite como vindo de Deus; governaria como representante do povo. Não de Deus: do povo.

    A voz do povo era a voz de Deus, e, muitas vezes, era a visão do povo sobre o que era certo e o que era errado, dentro do contexto de um consentimento religioso absolutamente unânime, que manteria ou deporia reis e príncipes.

    beaded brown rosary

    A autoridade de um governante, portanto, dependia de como ele usava a sua – bem pequena – autoridade. Ele realmente tinha o poder de aprovar algumas leis positivas, mas a lista de requisitos era bastante vasta. Entre outras coisas, não podia aprovar uma lei que não fosse útil ou que fosse contra o costume estabelecido. O rei era uma espécie de velho patriarca que não diria aos seus filhos e netos como governar as suas próprias casas, mas cuja autoridade seria respeitada para resolver disputas.

    Além disso, toda a sua autoridade vinha de compromissos: ele teria que proteger cada uma das pessoas que viviam nos “seus” territórios, enquanto o povo teria que alimentá-lo, tal como aos seus exércitos privados – ridículos em comparação com os exércitos modernos. Ele era um servo da terra, o mais baixo servo, pois seria o último a abandonar o território.

    Entretanto, uma mosca feia, gorda e peluda presa na pomada da sociedade estava a surgir: o dinheiro. Mais especificamente, o facto de que havia uma presença cada vez maior do dinheiro na sociedade, apesar de não haver então lugar para ele.

    De acordo com a Lei – isto é, com o costume –, alguém que nascesse guerreiro ou agricultor teria para sempre tal estatuto na sua vida terrena. A única escolha real era o ingresso na vida eclesiástica, uma espécie de terceira via.

    O dinheiro não fazia diferença: um guerreiro rico ainda deveria ser um guerreiro, arriscando o seu pescoço pelos outros; um agricultor teria de continuar a lavrar a terra e não podia comprar ou vender terras. Todo o dinheiro do Mundo não podia transformar um guerreiro num agricultor, ou vice-versa.

    gray concrete castle

    O comércio começou a enriquecer algumas pessoas. A maioria vinha de famílias de agricultores. Não havia lugar para os ricos na sociedade, mas eles conseguiram esculpir um lugar para si, usando o seu dinheiro em benefício dos militares. Não é uma novidade, algumas dessas pessoas continuaram a fazê-lo até aos nossos dias. O principal fabricante de armas da Alemanha em ambas guerras mundiais foi a Krupp, um conglomerado familiar que começou naquela época como um negócio familiar.

    Antes que os ricos chegassem à cidade, não havia tal coisa. Havia castelos com fossos, mas, infelizmente, sem dragões, e terras em redor. Quando havia guerra, os civis entravam no castelo e os militares saíam, mas em tempos normais era o contrário.

    Com o dinheiro, surgiu algo novo. Os novos ricos começaram a financiar os muros, cada vez maiores, ao redor das muralhas iniciais do castelo e, por sua vez, construíram casas e lojas dentro das novas muralhas.

    O nome dessas cidades comerciais que se desenvolveram entre as muralhas originais e as novas e maiores do castelo era o Burgo – a fortificação que servia de abrigo às populações situadas fora das muralhas. Os seus habitantes ficaram conhecidos como a “burguesia”.

    Obviamente, os militares e a burguesia “tornaram-se amigos”, em detrimento dos pobres, que continuavam fora das muralhas originais – e do burgo. Na época de Lutero, as revoltas dos camponeses estavam a começar a ser comuns em todos os lugares, mas os militares (os nobres) estavam de mãos atadas, por essa desagradável tradição de obedecer a Deus. A revolução de Lutero forneceu-lhes a escapatória.

    Mais do que isso, instalou-se uma nova autoridade religiosa que diria aos príncipes como lidar com os camponeses revoltados: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos”.

    people gathering on street during nighttime

    “Como se matam cães raivosos” foi estendida a todas as seitas que não se juntavam ao seu novo governo – a Igreja Luterana – aprovado pelo Estado (ou melhor, aprovado pelos governantes locais; os Estados eram muito pequenos e ainda sem importância, e, acima de tudo, o poder era 100% pessoal: o Estado era o seu rei).

    É por isso que todas as denominações protestantes de hoje podem traçar as suas linhagens institucionais e teológicas até uma ou duas das três seitas protestantes aprovadas pelo Estado do século XVI: luterana, calvinista e anglicana. Todas as outras opções que surgiram de diferentes interpretações da Sola Scriptura foram obviamente eliminadas – “como se matam os cães raivosos”.

    De certa forma, algo bastante semelhante já tinha acontecido alguns séculos antes, quando a seita gnóstica dos cátaros surgiu no sul de França e Norte de Itália. Ao tornar-se um cátaro, a pessoa libertava-se de todos os compromissos e obrigações anteriores, a base da então ordem social. As pessoas começaram a persegui-los e a matá-los, nomeando-se ao mesmo tempo juízes e carrascos, algo intolerável para a Igreja Católica. Foi assim que a Inquisição surgiu: para libertar os falsamente acusados.

    O sul da França, na época dos problemas cátaros, era o centro do mundo; o norte da Europa no tempo de Lutero era o deserto, os arredores da civilização. Foi assim que a nova religião conseguiu tempo suficiente para obter massa crítica e, desta forma, sobreviver muito mais tempo do que o catarismo.

    group of people walking on pedestrian lane

    O calvinismo – apoiado diretamente pela burguesia de Genebra – era então um fenómeno local, que sobreviveu tanto pelo caos completo no Norte quanto pela falta de importância da Suíça na época. O facto de os suíços serem tão ferozes, a ponto de todos quererem contratá-los como mercenários, ajudou a protegê-los.

    Assim, começaram as Guerras Religiosas Europeias e, por gerações e gerações, a Europa tornou-se um vasto campo de batalha onde os seguidores da Antiga e da Nova Religião tentavam obter vantagem para libertar os outros do jugo das suas horríveis heresias e superstições. Cem anos de derramamento de sangue.

    Qual foi a solução? O Tratado de Vestfália. Pode ser resumido ao seguinte: a religião de cada pequeno governante seria imposta a todos os seus súbditos. Por outras palavras, enquanto antes da revolução Luterana todos concordavam sobre o que Deus queria que um governo fizesse, e a sua autoridade repousava na conformidade a essa visão comum, depois da Vestfália cada governante local ganhou autoridade para decidir, por conta própria, qual seria a verdade de Deus.

    Os reis foram, de facto, colocados acima de Deus, recebendo o direito de julgar se o que sempre foi considerado por todos, em todos os lugares, como Revelação Divina se era ou não verdade.

    Para implementar a “nova verdade”, iniciou-se a propaganda de estado em grande escala. Iniciou-se pela interpretação das Escrituras Sagradas da seita vencedora, obviamente imposta pelo Estado, através da criação da “educação pública”, uma invenção protestante. Doutrinar a versão correcta era o lema.

    Hoje, a doutrinação das crianças no sistema escolar alcança níveis nunca imaginados, temos como exemplos a “civilização e progresso decorrentes do pagamento de impostos” – até existe um livro, a Joaninha e os impostos –, a “ideologia de um conjunto de letras sem fim” ou mesmo a nova “ciência emanada da DGS”. Um sem-fim de programas escolares destinados a criar um homem-novo – o comunismo também se propunha a tal.

    A revolução Luterana abriu caminho para o direito divino absolutista; por cá, o expoente máximo foi o Rei D. José e o seu “carrasco”, o Marquês de Pombal. Apesar de terem sido “déspotas esclarecidos” não tinham o poder, longe disso, que um Estado moderno hoje possui. Algum cabeleireiro naquele tempo teria que pedir uma licença estatal para abrir ou inscrever-se nas finanças assim que abre actividade?

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    O passo lógico surgiu depois: do rei absoluto passámos ao povo absoluto, surgindo essa entidade metafísica denominada colectivo. O colectivo até passou a escrever constituições – o contrato social. Sempre achei divertidas as entrevistas a dirigentes do Partido Comunista, onde todos invariavelmente afirmavam não serem responsáveis por nada, tudo tinha sido decidido pelo colectivo!

    O Estado, tendo absorvido o poder supostamente cedido “pelo colectivo”, tornou-se ainda mais absoluto do que qualquer monarca absoluto. Afinal, enquanto um rei ou uma rainha absolutista podia ignorar a vida real do “seu” povo, a ponto de acreditar que “dar-lhes brioches” seria a solução para a falta de pão, um Estado moderno tem olhos sem fim.

    Hoje em dia, com toda a tecnologia que um Estado pode colocar a seu serviço, o seu problema não é ignorar o que realmente significa a falta de pão, mas analisar todo o vasto fluxo de dados que lhe chega. Ele ouve cada palavra falada em cada telemóvel, mas necessita descobrir o que vale a pena ouvir. Ele vê em tempo real as pessoas que circulam pelas cidades, mas necessita descobrir quem observar. Ele necessita de nos impor um passaporte sanitário para circular numa fronteira ou entrar num restaurante, mas necessita saber como identificar os dissidentes que não se vacinaram.

    A revolução Luterana não trouxe apenas a tirania absoluta do Estado, que se concentra agora numa tentativa de estabelecer um governo global, através de instituições globais que definem a nova religião, onde um conjunto de sacerdotes pretende governar em nome da Humanidade, do Clima e do Planeta.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lembram-se do Cisne Negro? Cheira que está perto…

    Lembram-se do Cisne Negro? Cheira que está perto…


    Primeiro, era “temporário”:

    • A 27 de Maio de 2021, a Secretária do Tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janel Yellen, afirmava: “Segundo a minha opinião, a recente inflação que estamos a sentir será temporária. É algo não endémico…”;
    • No final de Agosto de 2021, o presidente do Banco Central norte-americano, Jerome Powell, dizia que a recente subida da inflação era um fenómeno transitório;
    • A 28 de Outubro de 2021, a presidente do Banco Central europeu, Christine Lagarde, comentava que “… a recente subida da inflação na zona Euro acima da meta de 2% é temporária e espera que as pressões inflacionistas diminuam no próximo ano”.
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    Depois, de “temporário” passou para “afinal, veio para ficar”:

    • No final de 2021, a Secretária do Tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janel Yellen, alterou o discurso: o processo inflacionário tinha deixado de ser temporário;
    • Em Março de 2022, o presidente do Banco Central norte-americano, Jerome Powell, reconheceu que a inflação era um problema que necessitava de medidas drásticas;
    • No início do presente mês, a secretária do tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janet Yellen, admitia que estava errada acerca da inflação.

    E, por fim, de “afinal, veio para ficar” veio o “pânico”:

    • Na manhã de 15 de Junho, antes da efectivação da subida das taxas de juro pelo Banco Central norte-americano, o Conselho do BCE reunia-se de emergência, anunciando uma nova ferramenta, denominada: “anti-fragmentação”. Traduzindo: o BCE passará a imprimir dinheiro e a comprar obrigações apenas para os estados em apuros;
    • Na tarde de 15 de Junho, o Banco Central norte-americano subiu a sua taxa directora em 0,75% (75 pontos base), a maior subida desde 1994!

    Cheira, portanto, a fim de festa.

    Tal como escrevi em artigo anterior, no passado dia 19 de Abril, a visita de um Cisne Negro poderia ocorrer a qualquer momento. Isto não é uma surpresa. As afirmações dos responsáveis pela situação a que chegámos é a surpresa. Como podia ser uma surpresa?

    O que esperavam do resultado de imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã?

    O principal Banco Central do mundo, a Reserva Federal norte-americana, imprimiu 4,75 biliões de Dólares norte-americanos (USD) desde o final de 2019, o equivalente a 22 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) português (0,22 biliões de USD) e cerca de 20% do PIB norte-americano (23,5 biliões de USD).

    Ao mesmo tempo, obrigava-se a sociedade a ficar em casa, sem nada produzir, distribuindo cheques e pagando todas as necessidades com dinheiro proveniente da impressora de notas. Anunciava-se então um final feliz: “tudo ia acabar bem”!

    Evolução dos activos totais (em biliões de USD) do balanço da Reserva Federal norte-americana entre o final de 2019 e Junho de 2022. Fonte: St. Louis Fed. Análise do autor.

    Os sinais de fim de festa são agora evidentes.

    No último dia 10 de Junho, para o mês de Maio, a inflação nos Estados Unidos situou-se em 8,6%, um máximo de 40 anos. Na Zona Euro, para o mesmo mês, a inflação foi de 8,1%.

    Entretanto, apesar das minúsculas subidas de juros por parte dos Bancos Centrais, o mercado de dívida pública começa a dar sinais de pânico.

    A rendibilidade implícita das obrigações emitidas pelo Estado Federal norte-americano com maturidade a 10 anos rompeu o máximo de 2018, um pouco acima de 3%. Agora, situa-se em 3,3%, um máximo de 11 anos. Importa notar que esta subida foi muito rápida: em pouco mais de 2 anos subiu de 0,4% para 3,3%.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações norte-americanas com maturidade a 10 anos negociadas no mercado secundário entre Janeiro de 2008 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Este é um dos grandes problemas que se depara aos Bancos Centrais: continuar a manipular, no sentido descendente, as taxas de juro pela compra massiva de obrigações com dinheiro de monopólio pode gerar uma inflação sem precedentes.

    Esta subida também afectou os países do sul da Europa, os denominados PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha). Agora, assistem à queda do preço das suas obrigações negociadas no mercado secundário, elevando o juro implícito e tornando incomportável o custo de futuras emissões.

    Durante o último dia 14 de Junho, as obrigações gregas e italianas com maturidade a 10 anos chegaram a ser negociadas a 4,7% e 4,2% respectivamente, um máximo de mais de 10 anos.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações italianas com maturidade a 10 anos negociadas no mercado secundário entre Janeiro de 2008 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    No final de 2021, a Grécia era o país mais endividado da Zona Euro, com um rácio de dívida pública vs. PIB de 193%, seguido da Itália, com 151%, e de Portugal, com 127%.

    A título de exemplo, com um dívida próxima de 300 mil milhões de Euros, em caso de uma subida de 1%, Portugal sofre um acréscimo de 3 mil milhões de Euros de encargos com juros, cerca de 25% do custo do Serviço Nacional de Saúde.

    No caso do Japão, este rácio encontra-se agora em 266%, sendo talvez o maior sinal de alarme do desastre que está a acontecer no mercado de dívida pública. Recordemo-nos que o Japão leva quase oito anos de avanço com este tipo de políticas monetárias, tendo iniciado a compra de activos financeiros por emissão de dinheiro em 2000.

    Em face de uma dívida tão elevada, o Banco Central japonês determinou que o juro implícito das obrigações com maturidade a 10 anos não podia superar, imagine-se, os 0,25%! Hoje é praticamente o único comprador destes títulos de dívida pública.

    Com esta política está a destruir o Iene japonês. Em 2022, cai 13% frente ao USD e encontra-se num mínimo de mais de 20 anos!

    Evolução de Iene japonês (JPY) cotado em Dólares norte-americanos (USD) entre Janeiro de 1998 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Esta é a situação que irão enfrentar em breve os dois principais Bancos Centrais, o norte-americano (Reserva Federal) e o europeu (BCE): ou combatem a inflação seriamente ou tornam os estados e os bancos comerciais insolventes, destruindo, ao mesmo tempo, a moeda e o poder de compra dos cidadãos – precisamente o que os japoneses agora enfrentam, em que compram do exterior tudo mais caro, em resultado da depreciação do Iene japonês.

    Apesar da nova crise de dívida soberana – capaz de destruir o sistema monetário que surgiu com o final dos acordos de Bretton Woods (1971) –, a imprensa tem-se dedicado a anunciar o “desastre” que se abateu sobre as Criptomoedas. A correcção de mais de 60% do Bitcoin faz notícia todos os dias.

    Parece que perdemos a perspectiva das coisas. Esta loucura monetária iniciou-se no início de 2020, em que a maioria dos activos financeiros subiu à boleia de uma impressão de dinheiro sem limites.

    Medido em USD, entre o final de 2019 e o último dia 15 de Junho, as duas principais Criptomoedas – o Ethereum e o Bitcoin – subiram 851% e 214% respectivamente. Foram seguidas pelo Petróleo, com 89%, e pelo Nasdaq 100, com 33%. Para o mesmo período, o Euro perdeu 7% e o Iene 20%!

    Variação (%) de oito activos financeiros, medidos em Dólares norte-americanos, entre finais de 2019 e 15 de Janeiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    É assim alguma surpresa que as Criptomoedas sejam os activos financeiros que mais corrigem?

    Continuo a prever que em caso de descontrolo do mercado de dívida pública norte-americana – isto é, caso ocorra uma subida vertiginosa da taxa de juro implícita (maturidade a 10 anos), por exemplo, de 4,3% para 5% em poucas sessões –, os mercados de acções e de obrigações poderão sofrer um autêntico cataclismo. Algo a que nunca assistimos.

    Como é óbvio para todos, o dinheiro não desaparece. Quando começar a sair dos mercados de dívida e de acções, em caso de pânico, os investidores vão dar-se conta que o Bitcoin é a verdadeira reserva de valor, pois não tem risco de contraparte.

    Na verdade, quando alguém tem um Bitcoin numa carteira digital, este activo é seu, não depende da solvência de nenhuma entidade, seja um banco comercial, um Banco Central ou um estado. Quando o pânico se instalar, podemos assistir a subidas vertiginosas no mercado de Criptomoedas e de Matérias-Primas, o refúgio do dinheiro em fuga.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Economia: um mundo ao contrário

    Economia: um mundo ao contrário


    Vivemos num mundo de contradições: a Educação é universal, as sociedades nunca estiveram tão bem preparadas, o Ensino Superior “democratizou-se”, mas, no entanto, as falácias e os sofismas prosperam.

    A desinformação sobre temas económicos e de mercados financeiros nunca foi tão gritante. Aos nossos olhos, uma elite de banqueiros centrais, burocratas e políticos vendem, todos os dias, patranhas sem qualquer contraditório. A sociedade acredita acriticamente em tudo o que lhe dizem, como se fossem dogmas; eles são os novos presbíteros que nos conduzem à salvação.

    Os bancos deixaram de ser bancos. Em lugar de entidades que procuram atrair as nossas poupanças, protegendo ao mesmo tempo a nossa privacidade, são agora gigantescas máquinas de burocratas, directamente ligadas à autoridade tributária. A maioria das suas receitas provém da especulação com títulos de dívida dos Governos, em lugar da tradicional intermediação financeira.

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    Enquanto isso, dizem eles, por exemplo, que as Criptomoedas apenas servem para lavar dinheiro e consomem muita energia. Mas “esquecem”, ao mesmo tempo, de esclarecer que, afinal, com as Criptomoedas todas as transacções são rastreáveis – ao contrário do dinheiro físico – e que o consumo de energia é essencial para um processo de mineração sério, em lugar de um simples apertar do “botão”, que é como os bancos centrais produzem dinheiro.

    Recordemos o charlatão Alves dos Reis, que imprimia notas iguais às do Banco de Portugal, tendo levado, durante algum tempo, uma vida de luxo em Lisboa. Após ter sido descoberto, foi condenado a 20 anos de prisão, dos quais 12 em degredo.

    Contudo, agora, os bancos centrais imprimem moeda sem limites – como se viu, em particular, nos anos de 2020 e 2021 –, algo não possível com o Bitcoin. Mas a “culpa” da inflação, dizem, é da guerra na Ucrânia.

    Dizem-nos também que estão a combater a inflação com juros próximos de 0% e subidas de 0,5%. E com isto, enfim, a inflação já se aproxima dos dois dígitos – ou está mesmo acima em alguns países da União Europeia. Em paralelo, diabolizam as StableCoins – exigindo que sejam ainda mais reguladas –, quando se sabe que estas são usadas em projectos DeFi (finanças descentralizadas) remunerando acima da taxa de inflação.

    Evolução da taxa de inflação (%) na Zona Euro entre Junho de 2021 e Maio de 2022. Fonte: Trading Economics.

    Há dois anos, os “peritos económicos” informavam-nos que a deflação era algo diabólico, trágico mesmo.

    Que argumentos eram utilizados para tal conclusão? As pessoas, quando tal acontece, atrasam o seu consumo, esperando por preços se tornem ainda mais baixos no futuro. Caso tal aconteça, a contracção económica está ao virar da esquina. Funestíssimo! A razão para a loucura monetária que estamos a viver.

    Há muitos anos, quando os computadores não paravam de descer de preço, algum consumidor foi tentado a não comprar algo que necessitava de imediato? Alguém no seu perfeito juízo deixa de comprar um bem ou um serviço porque agora custa 100 e daqui a um ano 95?

    Não será isto, afinal, beneficiar os pobres e desfavorecidos, pois o poder aquisitivo da moeda que têm no bolso incrementa? Não é a subida da produtividade, fruto da acumulação e inovação capitalista, que pode fazer resultar em preços mais baixos para todos? Verdades que desapareceram!

    Na Constituição Portuguesa diz-se também que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte”. Isto é verdade?

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    Vejamos. Os bancos podem utilizar de forma impune o sistema de reservas fraccionadas – ou seja, concedem crédito a particulares e empresas a partir da emissão de moeda a partir do “nada”, diminuindo, desta forma, o poder aquisitivo do dinheiro que temos no bolso.

    Isto é uma óbvia agressão à propriedade privada.

    Não obstante, esta prática está perfeitamente legalizada e é responsável pelas crises financeiras que atravessamos, cada vez mais acentuadas.

    Segundo consta, o fenómeno da inflação resulta da evolução de um índice de preços definido por uma agência governamental:

    Será mesmo assim? Não deveria ser a evolução da massa monetária?

    Se imaginássemos que o Alves dos Reis, com as suas fantásticas notas falsas, decidia comprar maçãs no mercado de Lisboa sem qualquer preocupação em relação preço, o que iria acontecer? Correcto: o preço subia!

    Os vendedores sabiam que Alves dos Reis as compraria mesmo que subissem o preço. E com isto levava que a propriedade privada das outras pessoas fosse afectada, atendendo que, com a mesma quantidade de dinheiro, passariam a comprar cada vez menos maçãs.

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    Na prática, é isto o que está a acontecer com toda a massa monetária emitida nos últimos dois anos pelos Bancos Centrais. Já todos repararam, certamente, na subida do custo de vida dos últimos dois anos: comida, preços das casas. E até nos activos financeiros – excepto as acções dos bancos –, incluindo as Criptomoedas, subiram expressivamente e sem cessar.

    Não será isso uma “prova” de que massa monetária, emitida do ar, “correu” para esses bens, provocando subidas exponenciais do seu preço?

    A título ilustrativo, o Ethereum subiu 1.349% e o Bitcoin 340%. Qualquer cidadão se apercebe que os preços sobem, de forma inexorável com o aumento da massa monetária; mas, todavia, segundo a versão oficial, a inflação é algo temporário e desaparecerá em breve.

    Sabemos ser um consenso que consumir agora é preferível a consumir no futuro. Mas conceder um crédito significa que alguém realiza um sacrifício no presente para consumir no futuro; e por isso exige um preço, por exemplo, de 5% ao ano. Porém, agora só o podem fazer no mundo das Criptomoedas, através de projectos DeFi.

    Variação (%) do preço (em euros) das principais Criptomoedas e das das acções de bancos entre o final de 2019 e 8 de Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Porque na Economia dos Bancos Centrais temos taxas de juro reais negativas – que significa taxas de juro nos bancos inferiores à inflação –, e este é um fenómeno de mercado que veio para ficar, uma nova verdade.

    Ora, não será evidente que esta situação resulta da compra de títulos de dívida, a partir de moeda emitida do “ar”, provocando a descida da rendibilidade desses títulos, inclusive para um valor negativo?

    Mas isto também se passa, em certa medida, com a Segurança Social. Em breve explicarei como…

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Senhora Lagarde, o Zimbabué, a inflação e o Banco Central Europeu

    A Senhora Lagarde, o Zimbabué, a inflação e o Banco Central Europeu


    Recentemente, ficámos a conhecer a taxa de inflação para o mês de Maio de 2022 na Zona Euro: 8,1%; um máximo de muitas décadas! Em Portugal situou-se nos 8,0%, um máximo desde 1993, quase três décadas depois.

    A imprensa já noticia isto com a maior das naturalidades, sem mais; há uns meses seriam as rupturas das cadeias de abastecimento, há umas semanas a guerra na Ucrânia. Indagar as razões de tal evolução não parece ser a vontade da imprensa mainstream. As dezenas de casos da varíola dos macacos parece ser agora mais importante que os 8,0% que perdemos todos os anos nas nossas poupanças aplicadas nos bancos, onde o juro é literalmente de 0,0%.  

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    Enquanto isto acontece, a principal instituição responsável por esta situação, o Banco Central Europeu (BCE), parece estar imune a qualquer crítica ou reparo. Aliás, a sua presidente, Christine Lagarde, parece apenas estar preocupada em “atacar” as Criptomoedas, como se viu numa entrevista a um canal holandês.

    Apesar de tudo, tiveram coragem de a questionar sobre o crescimento do balanço do BCE, em particular de 4 biliões de Euros (atenção: são 12 zeros) desde o início de 2020. Respondeu ela, candidamente, que “teve de ser”, caso contrário, teríamos assistido a uma autêntica catástrofe financeira, uma recessão económica nunca vista!

    A protérvia não tem limites: não se conhece nenhuma Economia ocidental que não tenha colocado as impressoras de notas a funcionar a toda a velocidade durante 2020 e 2021, mas a Senhora Lagarde conhecia e conhece as consequências de um cenário alternativo ao adoptado – “teria sido muito pior”, informa-nos!

    Evolução do balanço do Banco Central Europeu (em biliões de Euros) entre 1999 e 2022. Fonte: FRED Economic Data (análise do autor)

    Na verdade, ao contrário do que a Senhora Lagarde imagina, já podemos tirar conclusões da sua política monetária: há mais de quatro décadas que não assistíamos a uma inflação tão elevada.

    Não foi a guerra na Ucrânia, Senhora Lagarde: foi a impressora do BCE, por si presidido, que provocou uma enorme subida dos preços.

    A população com rendimentos fixos, a mais pobre, enfrenta agora enormes subidas de preços quando se dirige a um supermercado, abastece o carro, ou recebe as contas de luz e gás em sua casa.

    Não é por causa da guerra da Ucrânia, como tenta impingir.

    Senão vejamos, o que aconteceu, entre o final de 2019 e o final de Fevereiro de 2022 com algumas matérias-primas. Ou seja, antes da invasão da Rússia à Ucrânia. Chegaram a subir mais de 200%, no caso da Madeira; o Gás Natural subiu 101%, o Petróleo encareceu 57%. Os cereais também registaram fortes subidas: a Aveia cresceu 139%, o Milho 80% e o Trigo 66%.

    Evolução (%) do preço das principais matérias-primas entre finais de 2019 e Fevereiro de 2022. Yahoo Finance (contratos de futuros).

    A impressora da Senhora Lagarde, ao contrário dos anos anteriores a 2020, não só afectou os activos financeiros, mas também os bens de consumo da generalidade da população, que vê o seu poder de compra confiscado pela tal suposta política salvífica do BCE.

    E como a Senhora Lagarde e o BCE causaram a inflação?

    Bem, é um processo de complexidade muito mais elevada que o utilizado pelo Zimbabué, onde há uns anos Robert Mugabe pagava religiosamente aos funcionários públicos, simplesmente ordenando que o seu banco central imprimisse notas, e com estas pagava os salários. Seguidamente, os funcionários públicos saíam à rua e desatavam a comprar, gerando a subida de preços, pois os vendedores sabiam que notas não faltavam! Os preços subiam e os funcionários públicos berravam então por mais. Solução para isto? Colocava-se a rotativa a funcionar com mais velocidade, e formou-se um círculo vicioso que terminou em hiperinflação.

    Aqui, na civilizada Europa, o método é muito mais sofisticado, ao abrigo de um qualquer programa de estímulos e em nome de um bem-comum. De forma simplista, eis como funciona:

    • Um Governo necessita de dinheiro; para isso, emite obrigações ou títulos de dívida;
    • Para se realizarem propostas de compra por essas obrigações, o Estado organiza um leilão, onde apenas os bancos comerciais podem participar;
    • Vamos imaginar que após a realização do leilão, apura-se um preço de 100 Euros por obrigação, com um cupão anual (juros) de 10 euros, ou seja, um juro implícito de 10% (10 ÷ 100);
    • Para procederem à compra das obrigações, os bancos solicitam um empréstimo ao BCE, e vamos imaginar que é de 1.000 Euros e que foram vendidas 10 obrigações;
    • Seguidamente, ao abrigo de um programa de estímulos, o BCE decide comprar essas obrigações aos bancos no mercado secundário; ou seja, por essa razão os bancos comerciais compram toda a dívida pública, pois já que sabem que, no futuro, existe um comprador com notas de monopólio disposto a comprar tudo – é garantido, e nunca falha;
    • O BCE emite “dinheiro do ar”, ou seja, credita reservas aos bancos comerciais e adquire essas obrigações, obviamente com lucro para os bancos. Vamos imaginar que as compra por 200 Euros – não nos podemos esquecer que para a Senhora Lagarde dinheiro não lhe custa e nunca é um problema; desta forma, o juro implícito passa a ser 5% (5÷200). Por isso, nos últimos anos as taxas de financiamento do Estado português não pararam de descer, era “o milagre dos mercados”. Os bancos podem assim amortizar a dívida e embolsar 1000 Euros;
    • Com as obrigações no seu balanço, o BCE distribui essas obrigações pelas suas filiais, por exemplo, as obrigações emitidas pelo Estado português vão parar à sua filial em Portugal, o Banco de Portugal; assim, no momento de pagar o cupão da obrigação – os juros -, é pago ao Banco de Portugal pelo Estado português, constituindo uma receita para o Banco de Portugal;
    • No final, o Banco de Portugal, depois de abatidas as suas despesas, distribui lucros ao Estado português e paga impostos sobre esses lucros. Coisa fantástica! É uma espécie de alquimia financeira, onde a inflação gerada pelo BCE roda a favor de bancos e Estado. Depois, o “patinho feio” da história é a plebe, que tem de suportar preços mais elevados.
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    Naquela entrevista, não estranhemos que a Senhora Lagarde nunca tenha comentado o enorme esquema em pirâmide que é hoje o BCE.

    Vamos analisar a sua situação financeira. No final de 2021, as contas do BCE informavam-nos do seguinte:

    • Activos totais: 8,6 biliões de Euros (atenção: 12 zeros), dos quais 4,9 biliões, investidos em activos financeiros – isto é, obrigações dos diferentes Estados da Zona Euro –, e 2,2 biliões em empréstimos aos bancos comerciais da zona Euro;
    • Capitais próprios: 0,109 biliões de Euros, ou seja, apenas 1,3% dos activos totais.

    Para simplificar a coisa: seria o mesmo que o leitor constituísse uma empresa com 1.300 Euros do seu capital (dinheiro) e pedisse ao banco 98.700 euros. Com os 100.000 euros decide comprar uma loja de rua. Esta é a situação do BCE: o capital representa apenas 1,3% dos activos. Estamos perante uma alavancagem financeira de 78 vezes (100÷1,3), algo que um investidor particular, através de CFDs – um produto financeiro regulado –, está proibido de fazer pela ESMA, o regulador europeu dos valores mobiliários.

    E isto por uma razão muito simples: se os prejuízos forem de 2%, as perdas para os accionistas serão de 156% (78 vezes os 2%).

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    Voltando ao nosso exemplo: se a loja de rua desvalorizar 2%, passando a valer 98.000 Euros, significa que a perda para o accionista é de 156%, aproximadamente. Isto porque perdeu os 1.300 Euros do seu capital inicial, e ainda mais 700 Euros. Além disso, a sociedade está falida, pois a loja não permite pagar as dívidas: 98 000 < 98 700!

    É esta a instituição, o BCE, que se arroga de afirmar o seguinte: “O dia em que tivermos a moeda digital do Banco Central, um euro digital, garanto que o Banco Central estará por trás dela e penso que será muito diferente“. Julgamos que a diferença é em relação às Criptomoedas. A segurança do tal Euro Digital assenta em dívida pública de Estados falidos, o tal activo subjacente de que Christine Lagarde nos fala.

    E ainda teve tempo a Senhora Lagarde para o “chavão” do risco das Criptomoedas, porque supostamente as pessoas “não percebem os riscos” do investimento. Bastaria à Senhora Lagarde percorrer as páginas web de corretoras de valores devidamente autorizadas, onde são comercializados produtos de risco, como os CFDs, onde aparece o seguinte aviso: “82% das contas de investidores não profissionais perdem dinheiro quando negoceiam CFD com este distribuidor”.

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    Apesar destas corretoras realizarem milhares de perguntas e testes aos seus clientes, de os avisarem de uma panóplia de riscos, temos estes resultados com produtos regulados. Mas depois, a Senhora Lagarde diz que o problema são as Criptomoedas e que estas “devem ser reguladas”.

    Enfim, continuamos a ser tratados pela Senhora Lagarde como criancinhas, incapazes de compreender o risco associado às Criptomoedas [obviamente que estas são altamente voláteis, devendo apenas investir-se o dinheiro que se pode perder, uma pequena fracção do património financeiro de cada um.]

    Por fim, a pérola da entrevista: o seu filho investe em Criptomoedas, não seguindo o seu conselho. Talvez seja uma pessoa sensata. Se o fez há uns anos, conseguiu preservar o seu poder aquisitivo, ao contrário das pessoas que deixaram o seu dinheiro no banco a ser confiscado pela inflação criada pela Senhora Lagarde e a sua “rica” regulação.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Manifesto contra uma lei sanitária e contra um golpe de Estado

    Manifesto contra uma lei sanitária e contra um golpe de Estado


    Há dias, em mais um Conselho de Ministros que faz anúncios recebidos acriticamente pela imprensa mainstream, foi-nos dado a conhecer o anteprojecto de Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública. Disseram-nos que tal documento resultou “de um aprofundado estudo por uma Comissão da mais elevada competência técnica, nas áreas jurídica e de saúde pública”. Protérvia não falta ao Governo.

    E pensávamos que já tínhamos “visto” tudo, e de tudo.

    Referimo-nos, naturalmente, àquilo que sucedeu desde Março de 2020: o maior e mais impensável ataque ao Estado de Direito Democrático e à Constituição da República Portuguesa, perpetrado precisamente pelos titulares dos órgãos que a juraram defender; a saber, Presidente da República, Primeiro Ministro e governo, com o beneplácito régio da Assembleia da República.

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    aqui se escreveu sobre este assunto.

    Por conseguinte, não satisfeitos, estamos agora na iminência de tornar a distopia global, nascida a partir de uma “pandemia”, numa verdadeira “bomba atómica” contra o Estado de Direito Democrático, o que representará as exéquias sem glória nem pudor da Constituição da República Portuguesa (CRP).

    Dizem-nos que o malfadado – e quase arriscaríamos a acrescentar já malparido – anteprojecto contou com a participação dos egrégios, excelsos e ilustres juiz conselheiro jubilado António Henriques Gaspar, procurador-geral-adjunto João Possante, e doutor Ravi Afonso Pereira, em representação da Provedoria de Justiça. Assim lança o regime uns “ases” em forma de “duques” para nos fazer cenas tristes: uma berrante e aberrante esquiço de lei que nem digna seria numa certa república popular encravada entre a China e a Coreia do Sul.

    Na nota justificativa desta “pérola” legislativa, temos este “penedo”: “procurou-se ainda dotar as disposições legais de uma adequada densidade, pois em caso algum pode a declaração de uma emergência de saúde pública, mesmo na sua fase crítica, traduzir-se numa carte blanche para o poder executivo adoptar quaisquer outras medidas que na lei não estejam expressamente previstas ou, pelo menos, nela não tenham fundamento.”

    Nem queremos imaginar o que seria se estas sumidades não se apercebessem do risco de conceder uma carte blanche ao Governo…

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    Falemos a sério: efectivamente, o que o anteprojecto manifestamente mostra é ser mesmo uma carta em branco, que pode ser usada da mesma forma nas mãos de um democrata ou de um tirano. Com a única diferença de que se um tirano a usar continuará a ser um tirano, e se um democrata a usar se tornará um tirano. Mas só na primeira, porque quererá usá-la sucessivas vezes.

    Outra nota relevante que consta do documento é de que as medidas usadas durante a covid-19 eram necessárias. Continuamos sem questionar ou aquilatar os seus resultados; assim, surge esta outra “peça de filigrana”: “Desde cedo, logo em Março de 2020, que se iniciou um debate sobre a adequação do quadro jurídico perante uma tão grave crise de saúde pública, designadamente questionando-se até que ponto algumas das medidas tidas por necessárias para um eficaz combate à pandemia teriam ou não cobertura ao abrigo da legislação em vigor.”

    Andámos, certamente, distraídos. Não vimos debate, apenas améns, e resoluções de Conselho de Ministros umas atrás das outras, todos assobiando como se tivessem respaldo constitucional.

    Na verdade, importa dizer que estas “medidas tidas por necessárias” não só não foram eficazes como também nem eram necessárias, como também se revelaram catastróficas; basta comparar com o país que, por exemplo, nunca as implementou: a Suécia.

    Note-se isso no confronto da mortalidade total – porque, surpresa talvez para os defensores das “medidas tidas por necessárias”, morre-se de muitas outras doenças – entre diversos países latinos e escandinavos durante os anos de 2020 e 2021. Por exemplo, no país que implementou as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, Portugal – teve na faixa etária entre os 20 e 65 anos um rácio de mortalidade 70% superior à de certo país que não quis, malvado, implementar as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, Suécia.

    Óbitos totais por milhão de habitantes no grupo etário 20-65 anos em 2020 e 2021. Fonte: Eurostat.

    Similar constatação observamos no grupo etário com idade igual ou superior a 65 anos. Neste caso, o país que tomou todas as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, restrições de visitas a lares, “fraldas faciais”, isolamentos e lockdowns, etc., etc., etc. – teve 16% mais mortes de idosos do que certo país onde um rei se lamentou com um “falhámos; temos um grande número de mortos e isso é terrível”, porque, enfim, não foram implementadas as “medidas tidas por necessárias”. É certo que o nosso presidente da República não disse “acertámos”, mas andou lá perto em elogios à eficácia das nossas “medidas tidas por necessárias”.

    Outro facto que nos deixa perplexos é a mudança de paradigma; desde sempre, as epidemias, tal como outras catástrofes, eram tidas por eventos fortuitos, imprevisíveis e naturais. Mas agora tudo mudou: para além do senhor Gates – que até já anunciou a próxima pandemia, mas já está a receber royalties por nos ajudar a prevenir a “coisa”–, agora, arriscamo-nos a ver o infame anteprojecto tornar-se lei, podemos vir a viver em permanentes emergências sanitárias.

    Óbitos totais por milhão de habitantes no grupo etário dos maiores de 65 anos em 2020 e 2021. Fonte: Eurostat.

    Basta tão só que o Governo de ocasião as decrete se e quando assim o entender. Uma simples gripe, uma anunciada onda de calor, uma previsível vaga de frio, uma suposta carta de um bioterrorista, tudo poderá ser uma justificação bastante para uma tirania para o bem da nossa saúde, para que seja possível que o Governo possa implementar, aí está, as “medidas tidas por necessárias”. Assim reza, para mal dos nossos pecados, o artigo 2º do malfadado anteprojecto.

    Eis-nos, por conseguinte, ao “estado a que chegámos”: um Governo de uma república dita democrática – mas em que a capital não se chama Kinshasa – passa a ser nosso dono e senhor. Pode declarar uma emergência, sem mais, apenas por que lhe apetece; não por haver meia dúzia de critérios pré-definidos e objectivos – vá lá, um! –, seja quantitativo ou qualitativo, emitido por uma entidade verdadeiramente independente.

    Ora, o anteprojecto não estabelece qualquer critério e depois sustenta-se numa comissão científica ad hoc, criada à posteriori, escolhida directamente pelo poder político, sendo que a maioria (seis em nove membros) é nomeada pela voz e caneta do primeiro-ministro! E define as sinecuras.

    Mas vamos a detalhes do infame documento, e sobre os direitos que tem ganas de atropelar.

    Direito à liberdade

    Segundo o artigo 9º, alínea 1, “A autoridade de saúde pode determinar o isolamento no domicílio, em local adequado de alojamento, estabelecimento de saúde ou estrutura de acolhimento e apoio por um período que não ultrapasse 14 dias, com a finalidade de afastar o risco para a saúde pública, de pessoa afectada por doença que fundamenta a declaração da emergência de saúde pública”.

    Ficamos a saber que, em lugar de um juiz, basta um mero esbirro, na solidão de um gabinete (ou, de pantufas em teletrabalho), para decretar a prisão domiciliária de um qualquer servo da gleba, não só no seu domicílio, mas também em campos de concentração, eufemisticamente denominados por “estrutura de acolhimento e apoio”, e que serão, por certo, destinados aos impenitentes e relapsos.

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    Sejamos claros: o artigo 27º, alínea 2, da CRP – se é que ainda não foi revogada sem nos darmos conta – não permite a privação da liberdade sem controlo judicial: “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.” Mesmo as excepções que constam da alínea 3 do mesmo artigo não permitem que um funcionário administrativo possa privar alguém da sua liberdade.

    E atenção: a “prisão” decretada pelo tal “senhor das pantufas” poderá não ficar pelos 14 dias. Segundo o nº 2 do artigo 30º, caso estejamos na fase crítica da emergência, “o isolamento pode ser sucessivamente renovado por períodos até 10 dias enquanto persistirem as condições de risco para a saúde pública.”, ou seja, a privação de liberdade é pelo tempo que as autoridades de saúde entendam. Se as autoridades considerarem que as “medidas tidas por necessárias” são mesmo necessárias por, vá lá, a vida toda, enfim, “azarito”. Podemos imaginar de que forma este instrumento poderá ser usado para calar vozes incómodas ou até abafar escândalos políticos.

    A arbitrariedade não se fica por aqui: os critérios para determinar se a pessoa está afectada (ou infectada) pela doença ou outras maleitas ficam inteiramente nas mãos das autoridades de saúde. Até porque a emergência pode ser decretada pela simples iminência – ou seja, de algo que ainda não existe, que pode nunca vir a existir, mas que, como pode existir (porque o pode admite a possibilidade do “não pode”), para segurança de todos decreta-se a tal emergência e implementam-se as “medidas tidas por necessárias”, que obviamente incluirá ao enclausuramento domiciliário.

    Recordemo-nos que, na recente crise sanitária, decretaram-se milhares e milhares de prisões domiciliárias, completamente anticonstitucionais, suportadas em teste de duvidosa fiabilidade, que, além de mais, nem sequer garantiam que a pessoa estava doente e que transmitia a infecção.

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    Sobre esta matéria, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 11 de Novembro de 2020, afirmou taxativamente: “Por essa fiabilidade depender do número de ciclos que compõem o teste; Por essa fiabilidade depender da quantidade de carga viral presente… O que decorre destes estudos é simples – a eventual fiabilidade dos testes PCR realizados depende, desde logo, do limiar de ciclos de amplificação que os mesmos comportam, de tal modo que, até ao limite de 25 ciclos, a fiabilidade do teste será de cerca de 70%; se forem realizados 30 ciclos, o grau de fiabilidade desce para 20%; se se alcançarem os 35 ciclos, o grau de fiabilidade será de 3%.”.

    Confrontemo-nos também com o comunicado do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) que, em Julho de 2021, desaconselhou o teste PCR, considerando-o incapaz de distinguir na perfeição o SARS-Cov 2 do vírus influenza (gripe comum).

    Recordemo-nos também de um pedido de informações de um grupo de cidadãos ao Ministério da Saúde para que fosse disponibilizada a “publicação científica, revista por pares, relativamente ao teste RT-PCR como ferramenta de diagnóstico fiável para identificar a infecção por vírus SARS-CoV 2 em humanos”, que justificasse a adopção destes testes. A resposta foi simples: “ não possuía nenhum documento administrativo” a respeito.

    Estes são os critérios científicos que esta gente utiliza para nos mandar para o cárcere: podemos ficar descansados!

    Direito à integridade pessoal

    Segundo a CRP, no seu artigo 25º, alínea 1, “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”. O diagnóstico de uma doença não é uma ofensa à integridade física caso seja praticado por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, conforme o artigo 150º do Código Penal português (CPP): “As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.”; no entanto, carecem de consentimento, caso contrário, não podem ser realizadas, tal como nos indica o artigo 156ª do CPP, alínea 1: “As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

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    Aquilo que propõe o documento aberrante, no seu artigo 11º, é isto: “A autoridade de saúde pode determinar a sujeição a controlo laboratorial ou a outros meios não invasivos de diagnóstico que permitam a identificação das pessoas afectadas pela doença ou das cadeias de transmissão de agente infeccioso.” Nem é necessário o consentimento da pessoa, é simplesmente compulsivo e arbitrariamente decidido pelas autoridades!

    Estes são os exactos métodos utilizados pela tirania chinesa, passando inclusive por cima dos tratados internacionais subscritos pelo Estado português, como o artigo 6º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, no seu nº 1, que convém saber, e ler em voz altissonante: “Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo”. Recordemo-nos que o artigo 8º da CRP diz-nos que os tratados internacionais subscritos pelo estado português vigoram no direito interno português. 

    Direito à identidade pessoal

    Sabemos a ladainha do nº 1 do artigo 26º da CRP: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal…”. Porém, no artigo 12º do infame documento consta esta “prata de lei”: “O Governo pode determinar a obrigatoriedade do uso de equipamentos de protecção individual ou colectiva, que se revelem necessários como meio de contenção da doença, para o acesso, circulação ou permanência em determinados locais, inclusivamente em espaços públicos ou nas vias públicas.”

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    Enfim, querem obrigar-nos a usar fraldas faciais, uma e outras vezes mais, visando assim eliminar a nossa personalidade e criando uma atmosfera de terror e medo. Isto apesar de não existir qualquer evidência científica que as justifique, tal como indicado no documento da OMS de 1 de Dezembro de 2020, na sua página 10: “Actualmente são limitadas e variáveis as evidências científicas que corroboram a eficácia do uso de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade com o intuito de prevenir a infecção por vírus respiratórios, incluindo o SARS-CoV-2.” É impressionante a permanente pressão para nos transformar numa autêntica manada sem individualidade.

    Também podemos mencionar os 150 estudos científicos que provam a ineficácia das máscaras e do prejuízo que podem causar à saúde das pessoas. É insultuoso para a nossa inteligência denominá-las “equipamentos de protecção individual” como este documento o faz.

    Direito a circular livremente

    A possibilidade de circular livremente está inscrita nos Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 13º. Tem dois pontos, ditemos: “1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado; 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.

    A nossa CRP confirma este direito no artigo 44º. Convém citar, porventura: “1. A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional; 2. A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar.

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    Ora, e o que propõe o infame anteprojecto? No nº 1 do seu artigo 31º, dispara: “O Governo pode, por modo adequado e indispensável à prevenção, à redução e eliminação dos riscos de disseminação ou ao controlo da doença que determinou a declaração da emergência de saúde pública, estabelecer: a) Limitações ou interdição de circulação de pessoas ou de veículos; b) Interdição de deslocações ou viagens; c) Proibição de permanência na via pública sempre que não se verifiquem motivos justificados; d) Fixação de cercas sanitárias; e) Evacuação de pessoas que se encontrem em local de elevado risco iminente ou efectivo para a vida ou saúde.”

    Ao abrigo de restrições à circulação, no mesmo artigo 13º, também nos podem colocar uma vez mais em prisão domiciliária – retirar-nos a liberdade é uma obsessão dos autores do documento –, conforme se observa no nº 2: “O Governo pode determinar a obrigação de permanência na habitação, salvo se existirem motivos que justifiquem a ausência, nomeadamente por razões de saúde, imperiosos motivos de natureza familiar, exigências de trabalho, para aquisição de bens essenciais, ou por outro motivo relevante”.

    O tempo de prisão domiciliária é também mais uma vez estabelecido de acordo com os caprichos dos tiranos no poder, ou dos seus lacaios de pantufas, mas seguindo o nº 3 do mesmo artigo 13º -ou seja, aplica-se a tal carta branca a favor do Executivo, a tal que a nota justificativa dizia querer evitar a todo o custo!

    Direito de reunião e manifestação

    Também podemos ainda recordar, porque a CRP ainda existe, outros direitos que nos assistem, nomeadamente os estabelecidos nos nº 1 e 2 do artigo 45º: “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização; 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação”.

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    E então, o que propõe o infame documento? No seu nº 1 do artigo 13º, suspende-se este direito, assim desta simples forma: “De modo adequado e indispensável à redução e à eliminação do risco de disseminação de doença, o Governo pode estabelecer limitações de ajuntamentos de pessoas na via pública ou em lugar aberto ao público”.

    Já estamos a ver o perigo que manifestações de “negacionistas” poderão constituir para a saúde pública; ou de sindicalistas, ou da oposição. Não há critério algum, apenas a total arbitrariedade, o poder infinito de eliminar as manifestações que se entendam “por desagradáveis”.

    Direito a não ser discriminado

    Sobre esta matéria, o nº 1 do artigo 26º da CRP acena-nos com direitos inalienáveis. Diz que qualquer cidadão tem “…protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Mas isso é a CRP, um “papelucho” certamente sem importância perante um infame documento que nos quer salvar a vida, privando-nos de viver. No nº 1 do artigo 22º está prometido que “o Governo pode determinar, após parecer emitido pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, a exigência de exibição de certificado ou teste, relativos a doença, agente infecioso ou a outro fenómeno que tenha fundamentado a declaração da emergência de saúde pública, para acesso a estabelecimentos, locais ou eventos, definindo as pessoas, as modalidades de habilitação e os serviços autorizados a verificar esses documentos”.

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    Todos sabemos que o certificado digital Covid nada certifica! Quem tomou vacina pode infectar e ser infectado; não protege ninguém a não ser, na melhor das hipóteses, a si próprio. Nem sequer é um certificado absoluto contra a morte, até porque os poros do papel em que é impresso são ainda maiores do que os das fraldas faciais. Os tratamentos genéticos experimentais contra a covid-19 nunca imunizaram as pessoas.

    Recordemo-nos que jamais as pessoas foram discriminadas por tomarem ou não uma vacina contra a gripe, que, aliás, e muito bem, é recomendada pela DGS – sem qualquer coerção – a pessoas e grupos de risco.

    Agora, ao arrepio da CRP, quer-se discriminar pessoas apenas por se recusarem a ser inoculadas com substâncias sobre as quais ainda não existem provas sólidas sobre os seus efeitos secundários a médio e longo prazo.

    E mesmo que houvesse 100% de eficácia e 100% de segurança, por hipótese académica, nem a CRP nem o Código Penal português permitem que se discrimine qualquer pessoa, por qualquer motivo, de tomar uma decisão que não contrarie a sua vontade e autonomia sobre o seu corpo.

    O corpo de qualquer pessoa não é pertença do Estado nem da sociedade – parece que muita gente se esqueceu destes sagrados direitos tão arduamente conquistados pelos nossos antepassados.

    Mas o regime comunica todos os dias com crescente protérvia, menosprezando sistematicamente a inteligência das pessoas; o primeiro-ministro até nos diz para discutirmos este infame documento com serenidade! Ainda bem que o diz, porque a vontade é metê-lo já na trituradora.

    Por outro lado, o nosso presidente – perito há mais de 40 anos em mexericos, tricas e conspirações – informa-nos que, por ele, o documento, pronto, “está bem”, mas, vá lá, faz-nos a vontade de comprar um selo, lamber a cola do sobrescrito e mandar o estafeta ao Palácio Ratton – leia-se, Tribunal Constitucional –, não haja por aí uns “chatos” – leia-se, cidadãos indignados por acharem que estavam numa democracia – que aborreçam o regime com processos judiciais. Enfim, bom, bom, para todos, incluindo o Professor Marcelo, era toda a gente comer e calar, sem liberdade.

    O mais grave, é que este projecto-lei, a ser aprovado, será regulamentado em concreto por resoluções do conselho de ministros, que já são bem nossas conhecidas e pelas piores razões, ou seja, será o primeiro-ministro a decidir quem vai preso, por quanto tempo e para onde!?

    Será o primeiro-ministro a decidir quais os estabelecimentos comerciais que encerrarão ao público e por quanto tempo!?

    Será o primeiro-ministro quem decidirá quando cessa a emergência de saúde pública!?

    Será o primeiro-ministro quem decidirá quantas pessoas poderão estar num restaurante, num centro comercial ou em qualquer outro lugar aberto ou mesmo… na via pública!?

    Será o primeiro-ministro quem decidirá qual o cidadão que terá de exibir certificado ou teste para acesso a estabelecimentos, locais ou eventos, ou seja, decidirá quem poderá frequentar um cinema, um restaurante, um estádio de futebol, um ginásio ou talvez, quem sabe, frequentar uma praia!?

    “Reflexão final”

    A Lei nº 34/87, respeitante aos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos, diz no seu artigo 9º que “o titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido.”

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    A tentativa de crime, como sabemos, costuma ser punida, mesmo se em menor grau.

    Sendo assim, temos uma pergunta final: no decurso deste anteprojecto de lei e da sua “libertação” pelo Conselho de Ministros, estará já a PGR a instruir um processo-crime por tentativa de golpe de Estado?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário

    João Pedro César Machado é advogado


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.