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  • Na imprensa ‘há gente a perder muito dinheiro’

    Na imprensa ‘há gente a perder muito dinheiro’

    Nome incontornável da História das últimas três décadas da Imprensa em Portugal, João Palmeiro conhece o sector da comunicação social como a palma das mãos. Em vésperas de deixar a presidência da Associação Portuguesa de Imprensa, que representa 200 empresas de comunicação social cerca de 450 publicações, concedeu uma entrevista de fundo ao PÁGINA UM. O seu vasto currículo e experiência nacional e internacional, onde se destaca a liderança do Fundo ‘Digital Innovation Media’ da Google, permitem-lhe um conhecimento ímpar das potencialidades mas também fragilidades de um sector em contínua crise. Nesta primeira parte da longa entrevista ao PÁGINA UM, no seu último mês como presidente da API, Palmeiro mostra um olhar crítico à regulação dos media, tanto em relação ao funcionamento da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como face ao previsto regulamento europeu para os media, que está a ser finalizado. Mas a transparência das empresas de media, e o seu financiamento, bem como a problemática das fake news são temas que também aborda, sem fugir a qualquer questão.


    Numa associação de imprensa, que abrange tantos sectores e diferentes plataformas de várias dimensões, como se consegue conciliar este, chamemos-lhe assim, “saco de gatos”? Ou não estamos perante um “saco de gatos”?

    Primeiro, este é um sector altamente regulado, e isso ajuda a responder a algumas das questões, reconhecendo que, de outra maneira, seria praticamente ingerível. Se olharmos para os dados da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), existem cerca de 1.700 empresas inscritas como editores de imprensa. Dessas, existem 70 ou 80 que se chamam televisão de qualquer coisa, e, depois temos uns 50 que são uma espécie de serviços de programas. E, quando eu digo que este é um sector altamente regulado, quero dizer uma coisa que as pessoas se esquecem, muitas vezes: a liberdade de imprensa assenta nessa regulação. Por exemplo, a televisão não só é regulada, como é finita. Ou seja, não pode fazer televisão quem quer. Só faz televisão quem cumpre determinados parâmetros, quer em termos empresariais. Uma empresa deste sector é obrigada a ter 2,5 milhões de euros de capital social. E tem de haver disponibilidade por parte do Estado de dizer que existe uma ou mais frequências vagas, tem de se fazer um concurso onde aparecem outros concorrentes, e depois tem de se ganhar fazendo várias promessas de naturezas diferentes, desde informativa, cultural ou de entretenimento. Tal como a Constituição Portuguesa a descreve, a liberdade de imprensa é, assim, extraordinariamente difícil de ser reconhecida. Naquilo que estamos hoje a falar como imprensa – que é tudo o resto que não depende um alvará para ser utilizado –, esse é outro mundo todo, das cerca de duas mil empresas, da liberdade de se fazer uma empresa para editar qualquer coisa. Sendo que o editar pode ser digital, pode ser uma plataforma.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    De facto, é um sector muito regulado, porque temos a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Constituição. Temos, de facto, muitas leis. Mas, quando falamos da ERC ou da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), estas entidades têm instrumentos suficientes para dar garantias de que aquilo que está a ser-lhe transmitido é isento do ponto de vista da informação?

    São coisas diferentes. A CCPJ é uma entidade que está entre uma Ordem e uma direcção-geral. Não é uma Ordem, porque a actividade jornalística não é autónoma, ou seja, um jornalista não tem uma autonomia igual à de um médico, que diz: “não faço”, ou “não digo”.

    E devia ter essa autonomia?

    Na minha opinião, não pode ter. A autonomia do jornalista reside no estatuto editorial, e quem tem o direito de estabelecer o estatuto editorial, e de o alterar, é o proprietário da publicação, que pode não ser jornalista. Portanto, há aqui uma disfunção que, por vezes, se torna esquizofrénica, entre quem tem o direito de dizer qual é o enfoque, e de que maneira as peças devem ser preparadas, e de quem faz as notícias, e a liberdade para o fazer.

    Fazendo então um paralelismo com a Ordem dos Médicos: sabemos que um médico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ou mesmo do sector privado, tem uma autonomia. E a própria OM tem ingerência na gestão do sector da Saúde. Mas há uma legis artis que um médico tem de seguir, e se não o fizer é responsabilizado. Esse modelo não poderia aplicar-se também aos jornalistas?

    A primeira coisa que temos de perceber é que uma Ordem é uma associação profissional. A CCPJ não é uma associação profissional. E essa associação profissional [Ordem dos Médicos] resulta de uma decisão muito antiga, corporativa, do Estado Novo. Achou que, para não se meter em questões que tinham a ver com certas profissões, das quais precisava para sobreviver e continuar a implantar os seus pontos de vista. Assim, entregou a essas entidades profissionais a regulação das suas actividades. E a regulação dessa actividade começou, e ainda se mantém hoje em dia, na determinação de quem pode ensinar, quem pode fazer cursos, e como podem aceder. É, de facto, uma regulação total da profissão, mesmo sobre o elemento que estava a dizer: a autonomia ou a liberdade de um médico em ter a sua própria consciência.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Sim, mas, por exemplo, um pediatra, dentro destas regras da liberdade e da legis artis, não pode de repente decidir fazer uma operação ao coração.

    Não, não, esses são os casos mais simples de resolver, porque a questão que está aqui, na imprensa, é sobre o acto de publicar. Pessoalmente, defendo – e a minha tese de doutoramento debruça-se nisso – o conceito de acto jornalístico. Fui à procura da definição, e comparei o acto jornalístico com o acto médico, e com o acto jurídico. E há uma diferença fundamental: enquanto o acto médico é sobre mim ou sobre si, quando vamos ao médico, já o acto jornalístico não vive só por si, integra-se num conjunto, numa publicação, num noticiário de rádio ou de televisão, ou num blogue. Ou seja, só por si, uma notícia não vale. A notícia só vale integrada num fluxo, seja do semanário, diário, o que nós quisermos. Faz parte de um fluxo. Esse fluxo tem um referencial, que é um título ou o “bilhete de identidade” da publicação, e tem um suporte e um enquadramento, que é o estatuto editorial. Um jornalista tem toda a liberdade e autonomia, igual à do médico ou do advogado, mas só até ao momento em que diz: “isto está pronto para publicar”.

    Ou seja, a publicação não depende do jornalista…

    A publicação, o direito de publicar, até legalmente, já não lhe compete. Por isso é que há um problema, que não querem discutir nem debater – mas que eu passo a vida a chamar a atenção: quando o jornalista trabalha numa redação, para um editor, e depois chega ao fim do dia a casa e é editor do seu próprio blogue. O que é que pode acontecer? É uma de duas coisas. Eu tenho discutido muito isto com o Sindicato [dos Jornalistas]. No princípio, o Sindicato não gostava de discutir. Hoje já estamos mais abertos. O jornalista pode escrever no seu blogue sobre o mesmo tema que escreveu no jornal de manhã, ou coisas diametralmente opostas ou diferentes, porque é aquilo que ele acha. Só que de manhã não as pôde escrever, porque não cabiam dentro do estatuto editorial da publicação. Ou, fez uma entrevista e usou no jornal 30% dessa entrevista, e depois agarra nos outros 70% e coloca-os no seu blogue. A questão é: quando ele se apresentou perante si ou perante mim para a entrevista, disse: “eu sou o Manuel, jornalista, ponto”, ou disse “eu sou o jornalista que tem o blogue ‘Coitadinha da Ceguinha’”, ou disse “eu sou o Manuel jornalista que venho do Diário de Penacova? É isso completamente diferente para mim, que dou a entrevista, porque eu estou a colocar o jornalista, não só na sua capacidade de pessoa que faz notícias, mas também num sistema de difusão e de divulgação que está aferido a um estatuto editorial. E é tudo isso que o estatuto editorial representa.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    E como fica a CCPJ no meio disso?

    A CCPJ foi a solução menos má, que foi possível encontrar, para a evolução do sistema anterior – que as pessoas já não se lembram –, que era o Sindicato dos Jornalistas. Era o Sindicato dos Jornalistas que passava as carteiras profissionais, porque no sistema corporativo, os sindicatos passavam as carteiras profissionais das corporações a que pertenciam [durante o Estado Novo]. E estavam incluídas numa espécie de um conselho da corporação, que, no nosso caso, era a Corporação de Cultura e Artes gráficas. E esse Conselho da Corporação tinha representantes de impressores, artistas, cançonetistas… Também tinham uma carteira profissional. A carteira profissional destes todos, que estavam nesta corporação, como os outros que estavam nas outras corporações, eram, por lei, passadas pelos sindicatos.

    Isso mudou…

    Quando o sistema corporativo acabou, os sindicatos – entre os quais o Sindicato dos Jornalistas –, continuou a passar normalmente as carteiras. Simplesmente, neste sector houve uma alteração que não houve nos outros sectores. Tivemos uma Lei de Imprensa e a Constituição, depois, que veio dar a esta actividade uma protecção especial, e às carteiras um significado e uma responsabilidade na sociedade completamente diferente das outras. Em muitos casos, as carteiras das outras actividades serviam para as pessoas dizerem que estavam vacinadas; para se servir à mesa tinha de se ter uma carteira profissional para se dizer que se tinha feito a BCG [vacina do Bacilo Calmette–Guérin], era o que as carteiras diziam. Não podiam dizer muito mais do que isso. E esta evolução, que as pessoas naturalmente se esquecem, fez com que, quando Portugal entrou na União Europeia, tudo isto tivesse de ser reformulado. Mesmo assim, a actividade dos jornalistas ficou esquecida. Lembrem-se, por favor, que a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Jornalistas foi a última a terminar. Era como se os jornalistas estivessem fora da normal relação laboral.

    Consta que aí, o seu fim, teve a ver também com interesses dos grupos de media, porque a Caixa era financiado por uma pequena parcela da publicidade…

    Era também financiada por uma pequena parcela de publicidade, sim, que tinha a ver, sobretudo, com os anúncios nos jornais diários dos cinemas, e de outras coisas assim do género. Mas se houve algum interesse privado, não foi esse de certeza. [O adiamento na decisão de extinguir a Caixa, que ocorreu em 2012] terá sido uma boa vontade de respeito pela última presidente da Caixa dos Jornalistas, e terá sido isso que foi muito importante, com certeza, na época…

    Está a falar da mãe do primeiro-ministro [Maria Antónia Palla]?

    Se calhar, estou a falar da mãe do ministro da Justiça [António Costa], na altura…

    Mas a Caixa até tinha excedente…

    Sim. Aquilo que aconteceu foi uma coisa muito simples: a grande função social e de apoio que a Caixa dava foi substituída pela Casa da Imprensa, que teve um período muito difícil. Mas é muito interessante, porque é com o fim da Caixa de Previdência que a Casa da Imprensa se vê obrigada a tornar-se num verdadeiro apoio de solidariedade para os jornalistas: E hoje é uma instituição… Aliás, aqui na Associação Portuguesa de Imprensa temos um protocolo com a Casa da Imprensa, e todos os editores e suas famílias e seus empregados, sejam jornalistas ou não, beneficiam de todos os apoios que a Casa da Imprensa concede.

    Regressemos à CCPJ…

    A CCPJ é uma cooperação bipartida, mas em que o Estado não tem hoje nenhuma intervenção. Houve, durante alguns anos, a obrigação do seu presidente ser um juiz indicado pelo Conselho Superior da Magistratura. Agora, os quatro elementos que representam os editores são obrigatoriamente jornalistas. E há outros quatro que são eleitos pelos jornalistas.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas antes podiam ter carteira profissional, mas nem todos os que eram indicados pelas empresas do sector tinham de ser jornalistas, podiam ser colaboradores ou equiparados.

    De acordo com a lei, as carteiras profissionais, desde que válidas, são todas iguais. E isto é uma matéria que está em cima da mesa: Mas isso é a minha opinião, pessoal, que não é trazida para aqui. Mas todas as carteiras que são emitidas pela CCPJ valem exactamente a mesma coisa.

    Falemos agora da ERC. Por vezes, é criticada por ter uma postura demasiado hostil para com a imprensa; outras vezes por ser demasiado benevolente.

    Primeiro, não podemos olhar para a ERC sem olhar para aquilo que veio antes. A ideia da [concepção] da ERC era que fosse disruptiva em relação ao modelo da Alta Autoridade [para a Comunicação Social], que era um modelo de representatividade: os editores nomeavam duas pessoas, o Sindicato nomeava duas pessoas e os partidos políticos com assento na Assembleia da República nomeavam, cada um deles, um representante. E, depois, no fim disto tudo, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) nomeava um juiz para presidir. Reparem: os juízes nomeados para aqui foram quase sempre juízes que vieram dos tribunais administrativos. Porquê? Porque, do ponto de vista do CSM, estas entidades são entidades administrativas independentes. Não são entidades para dirimir questões como a liberdade da imprensa, que não tem nada a ver com a Administração; são regras que têm a ver com direitos, liberdades e garantias, portanto, com a Constituição. Qual é a parte do direito administrativo que estão nestas entidades? São os registos e toda essa parte. E, portanto, nisso, essas entidades, melhor ou pior, sempre funcionaram.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas há um outro lado importante, o da regulação.

    Como eu costumo dizer, há um pecado original, que temos de ir vê-lo, lá atrás. E o “lá atrás” é: estas entidades são a consequência da nacionalização da maior parte dos meios de comunicação social em Portugal em 1975. A seguir ao 11 de Março de 1975, houve uma nacionalização geral, da qual só escapou a imprensa regional, para além de um ou outro de âmbito nacional. Tirando isso, houve uma nacionalização total. Esta primeira matriz, da qual a maioria das empresas grandes em Portugal faziam parte, daquilo que era a coisa pública, eram geridas pelo Código Administrativo. Mas, na verdade, não eram, porque uma coisa que as pessoas nunca se lembram é do Contrato Colectivo de Trabalho dos jornalistas, em 1978-1980. Era igual, na estrutura, ao Contrato Colectivo de trabalho que foi feito para a Administração Pública. A mesma coisa, o mesmo tipo de carreiras e de jornalistas, de primeira, de segunda, de terceira. Onde é que vocês encontram isso? Na Administração Pública, onde há um técnico de primeira e de segunda. Portanto, é a mesma lógica. Os contratos colectivos que não eram de jornalistas, mas que eram dos outros trabalhadores, chegavam a ter 80 categorias diferentes, porque era o cozinheiro de primeira, de segunda, de terceira, o motorista de pesados… Há 10 anos tivemos de acabar com isso tudo, porque não fazia sentido, não tinha nada a ver connosco.

    Houve que mudar isso.

    Temos de ver que, nessa altura, o Conselho de Comunicação Social – que é o avô ou o bisavô destas entidades – convivia com o Conselho de Imprensa, que era uma entidade de autorregulação do sector, e convivia com uma coisa que eram os Conselhos de Informação, uma espécie daquilo que é, agora, o Conselho de Opinião da RTP e da RDP. E havia um Conselho de Informação para a imprensa, que tratava dos jornais do Estado, um para rádio e outro para a televisão. E, se formos ver o funcionamento e a matriz do funcionamento destas entidades, vai tudo parar ao Direito Administrativo. Em 2005 e 2006 – primeiro com o Governo do Durão Barroso e, depois, do Santana Lopes, quando era ministro o Nuno Morais Sarmento –, fez-se uma primeira tentativa de um novo tipo de contrato de concessão para a rádio e para a televisão, em consequência da directiva AVMS [Audiovisual Media Services], do sistema audiovisual e dos serviços multimédia. Por causa dessa directiva tiveram de fazer alterações na Lei da Rádio e da Televisão, e ao fazer essas alterações, tinham de atribuir à então Alta Autoridade para a Comunicação Social competências que, com a estrutura que detinha, dificilmente conseguiria cumprir. Então, foi criada a ERC na base de os ‘regulados’ não terem nada a ver com a regulação; estão fora. Abandona-se o sistema anterior, a representatividade dos sindicatos e das associações empresariais. Esses ficam de fora. E reduz-se a representatividade dos partidos com assento na AR a quatro representantes. E, depois, esses representantes deviam cooptar, entre si, uma quinta pessoa, que era o presidente. Este foi um sistema que derivava de estudos avançados na Europa sobre o que devia ser a regulação, e como se deveria organizar – não especialmente deste sector, mas em geral. Aplicado num país que tinha detrás toda esta tradição, resultou que, no fundo, os reguladores foram, uma vez mais, vistos como funcionários para executar tarefas administrativas.

    De qualquer modo, a ERC já existe há muitos anos. É efectivamente um regulador sem os regulados, e tem sobretudo um peso político-partidário muito forte…

    A que se junta uma outra coisa, que é um sistema de financiamento completamente idiota. Idiota é a palavra. É idiota, porque é um sistema de financiamento tríplice, que faz com que os únicos que pagam, verdadeiramente, são os regulados. E que faz com que – voltamos à matriz administrativa –, muitas vezes, a ERC está mais preocupada em sobreviver, arranjando maneira de aplicar as taxas; e nós aqui percebemos isso…

    PAV: Está a falar também das multas?

    Não, primeiro fazer receber as taxas, e depois as multas. Percebemos isso quando temos aqui entidades reguladas com reclamações sobre: “ah, estão-me a dizer que o título que eu estou a imprimir agora é amarelo e antes era azul”. Ou: “Ah, e que o título no telemóvel sai mais apertado do que aquilo que está lá no não-sei-quê”. Mas em que mundo é que nós estamos? Mas isto é o Direito Administrativo a funcionar, é a deriva administrativa, com a falta de dinheiro. Porque o único sistema que funciona, de facto, no financiamento da ERC, são as taxas que pagam os regulados. A parte do Orçamento do Estado está sempre sujeita a tranches e a duodécimos, e até antes da troika já era assim. E há a outra parte da ANACOM, que está sempre guardada pelo ministro das Finanças. Na verdade, a maior influência político-partidária que existe em relação à ERC é no financiamento, porque é onde o político Governo tem, de facto, uma arma para encostar à parede a independência e a autonomia das pessoas que estão no Conselho Regulador. Se não têm para pagar aos seus funcionários, o que é que lá estão a fazer? A ERC nunca foi capaz de estabelecer os mercados preferenciais, porque não consegue pagar os estudos indispensáveis para estabelecer os mercados preferenciais. Ao não os estabelecer, tudo o que tem a ver com questões de posição dominante, de concentrar muita publicidade, etc., pode ser o que eles dizem; como pode ser o contrário.

    Aliás, há pouco tempo, a ERC fez uma análise sobre a distribuição dos montantes da publicidade institucional do Estado no âmbito da pandemia, e chegou uma vez mais à conclusão de que os órgãos de comunicação social regionais estavam a ser preteridos em relação aos nacionais, e de que as televisões estavam a receber mais do que deviam. Mas detectam isso, e depois não acontece nada. As situações repetem-se passado uns tempos, não é?

    Existe um relatório que fizemos aqui na Associação, nessa altura, para a ERC, que permitia que pudesse ter dito coisas muito concretas e precisas… Poderia ter tomado uma iniciativa no sentido de melhorar a lei da publicidade institucional do Estado. Não o faz porquê? A ERC não faz supervisão.

    Ainda sobre a ERC. Faz sentido haver uma Lei da Transparência dos Media, com um portal gerido pela ERC, e depois haver a possibilidade de pedir confidencialidade dos dados financeiros e económicos?

    Quando era presidente da Confederação de Meios, quando foi a transição para a TDT [Televisão Digital Terrestre], fui nomeado, pelas três televisões, o negociador da TDT com a ANACOM. E, a certa altura, na história do concurso – que foi ganho na altura pela PT para os sistemas radiantes para a TDT, etc., –punham-se algumas questões sobre os preços, e sobre a forma como a própria PT queria tratar de elementos que achávamos que eram fundamentais para o negócio, como as boxes e outras coisas do género. E fizemos um requerimento à ANACOM sobre esses dados, e quisemos ver os relatórios que a PT tinha feito. Recebemos 30 dossiês, dos quais 29 tinham as páginas em branco. Diziam “informação não disponível na base dos princípios do sigilo”. A mesma coisa aconteceu-nos com os CTT, quando a ANACOM determinou, talvez há 10 anos, que passasse a haver uma avaliação da qualidade da distribuição postal, e que os CTT tinham de contratar uma empresa independente, que todos os anos fazia a avaliação do serviço. Nós sabíamos que as empresas que contratavam eram de antigos funcionários dos CTT. Também dissemos que queríamos ver os relatórios. Não era 90% que veio em branco, mas cerca de 70% veio em branco.

    Mas insisto na questão: há uma legislação sobre a Transparência dos Media e depois pode haver partes confidenciais?

    Tenho, como se diz, “mixed feelings”. Porque a Lei da Transparência portuguesa é mais exigente que a lei da CMVM para as empresas. Ou seja, exige mais informação e informação mais detalhada do que a CMVM exige às empresas que estão em bolsa. Portanto, é de facto uma lei muito detalhada do ponto de vista da informação para o cidadão.

    Mas por que motivo se fazem leis fantásticas ou exigentes, ou demasiado exigentes, e depois, de uma forma administrativa, porque foi a ERC que fez um regulamento, se criam excepções?

    Não, não, não é a ERC que faz o regulamento. O regulamento vem do Direito Administrativo.

    Está previsto na lei que cabe à ERC fazer o regulamento sobre os indicadores financeiros e a possibilidade de confidencialidade [Regulamento nº 835/2020]. Às tantas, com as excepções aniquila-se o princípio da lei…

    Eu entendo a ERC, na sua recente proposta, que esteve em consulta pública, quando diz que as empresas cuja actividade principal não é a de editor, só têm de dar informação quando a actividade jornalística pesa mais do que 10% da sua actividade. Acho que isto é injusto, por uma razão simples: até 2000, 2001, a Lei de Imprensa, e o regulamento dos registos, dizia que qualquer empresa se podia inscrever como empresa editorial. Qualquer empresa. Portanto, nós tivemos aqui associados como a Siemens, a Ordem dos Advogados. Edita uma revista, inscreve-se na ERC e depois é nosso [associado da API]. A partir de 2000 ou 2001, houve uma alteração aos registos, e os registos dizem que caducam todas empresas que não têm como actividade principal a de editor, mas, no entanto, os registos das publicações continuam válidos. E as empresas proprietárias continuam a ser consideradas empresas editoriais.

    Ainda têm os registos das publicações válidos.

    Isto quer dizer – e temos tido aqui vários casos – que uma empresa que estava registada e tinha uma publicação periódica, à qual lhe foi cancelado o registo, continua a sê-la, do ponto de vista da edição da publicação… Essa mesma empresa, no entanto, se depois quer editar outra publicação, tem de criar uma empresa à parte para a publicação nova. Aquilo que respondemos foi que as empresas que estavam registadas antes da alteração devem ter um tratamento diferente daquelas que se registaram depois. Porque depois da alteração, não é possível haver empresas editoras que não tenham como actividade principal a edição. Portanto, faz todo o sentido dizer que só se tiver um peso ínfimo não indicam os dados. Enfim este é um sector muito regulado, mas mal regulado. Mal no sentido em que a regulação foi sempre feita para resolver ou problemas que nos foram postos por fora, ou problemas de evolução tecnológica.

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    Mas quando estávamos a falar na confidencialidade dos dados ou de terem de indicar, não nos referíamos a entidades que claramente não têm actividade jornalística, como, por exemplo, as Ordens profissionais ou os partidos que têm publicações, e que estão no Portal da Transparência. Estávamos a pensar em grupos de media – e houve casos polémicos abordados pelo PÁGINA UM –, que tentam esconder algumas dependências externas ou dívidas. Aí, qual deveria de ser o critério? Um critério em termos de dimensão do volume de negócios ou algo do género, ou deve ser o tal critério de 10% acima disto ou 10% acima daquilo?

    A dimensão das empresas que estão inscritas na ERC é um dos maiores problemas para a subsistência do sector, para o desenvolvimento e a transição para o digital e, do meu ponto de vista, para a organização da regulação. De acordo com os dados da Europa e a classificação das empresas pelo INE [Instituto Nacional de Estatística], temos uma grande empresa de media… Uma, neste sector da imprensa. Depois, temos 54 ou 56 médias empresas. E depois, todas as outras mil e não sei quantas são pequenas ou microempresas.

    A grande, será a Cofina, e depois o grupo Impresa?

    Sim, mas a Impresa, não a holding, porque a SIC é uma empresa separada. A TVI não tem imprensa, portanto não entra nesta linha. O maior drama deste sector é que, neste momento, cerca de 25% das suas empresas não perde dinheiro e há 75% que perde. Mas os 25% que não perde dinheiro, não perde porque está ali nos 0%, 0,1%, 0,2% [de rentabilidade]. E nos 75% em que se perde dinheiro, há gente a perder muito dinheiro.

    É normal que grande parte do sector esteja em constante crise e em constante défice?

    A maior parte das empresas são pequenas ou microempresas, e para essas as regras são completamente diferentes, quer na gestão quer na forma como estão no mercado. O resultado é, depois feito a partir dos papéis que dão; e os papéis não têm lá essas minudências de relação. Por exemplo, uma das coisas que nos preocupa muito, neste momento, é o projecto europeu de regulação para a área dos media, que prevê, desde o início, que as microempresas não sejam reguladas. Portanto, isto quer dizer que 80% das empresas que estavam na ERC, desapareceriam da ERC. Depois, como é que isso se compagina com a lei portuguesa, com estes anos todos em que estiveram na ERC a pagar uma taxa. Quer dizer, enfim… Este é o primeiro aspecto. Segundo aspecto: há um movimento muito forte europeu de colegas de outras associações que querem também tirar as pequenas empresas. Isso, de repente, faria com que em Portugal haveria, para regular, menos de 100 empresas neste sector. Se calhar, era aquilo que um sector desta dimensão em Portugal deveria ter. Só que não pode perder a riqueza que é a diversidade e o pluralismo de todos os outros. Não sei como é que isto vai acabar. As microempresas estão, desde o princípio, na proposta da Comissão.

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    Mas essa regulamentação comunitária está concluída?

    Não está ainda concluída. Já está muito avançada nas votações no Parlamento Europeu e, quer a Presidência [do Conselho Europeu] sueca, em curso, quer a presidência espanhola – que vem a seguir –, querem fechar estes processos antes de entrar no ano eleitoral, em 2023. Ainda por cima é um regulamento, portanto não tem a mesma latitude de uma transposição, que poderia determinar que as microempresas ficavam excluídas nos próximos 10 anos.

    Será a ERC que terá de tomar conta de uma série de novas regras que estão previstas?

    Não é só isso. A ERC vai ser integrada num regulador europeu. Quer dizer, é uma coisa completamente diferente que se vai passar.

    Um bocado como o Infarmed [em relação à Agência Europeia do Medicamento]?

    Sim, e com a ANACOM, e com todos os reguladores. Vão ser integrados num regulador europeu, que já existe, que se chama a ERGA [European Regulators Group for Audiovisual Media Regulators], e que já existe como associação de reguladores deste sector. Habituaram-se a trabalhar uns com os outros, mas vai ser uma mudança imensa. Agora, a questão é se ficam de fora uma quantidade de microempresas e se vingar a ideia das pequenas empresas… Eu até admito que estamos num movimento em Portugal de médias empresas se tornarem pequenas ou microempresas, para fugirem à regulação.

    E quais serão as consequências disso? Fala-se muito na desinformação, no rigor informativo e na forma como agora começam a aparecer conteúdos que estão ali num misto entre comercial e jornalístico. Como é que depois isso vai funcionar em termos de regulação? Qual será a entidade externa que estará ali a proteger o leitor?

    Teoricamente, as microempresas deixam de ser consideradas como empresas que podem editar uma publicação periódica, seja digital, papel ou o que for. Isto contraria a Constituição Portuguesa, que diz que ninguém pode ser impedido, por razões administrativas, desde que cumpra com os registos necessários. Por outro lado, toda a História da legislação portuguesa sobre comunicação social, desde os anos 1820, teve sempre como principal objectivo determinar como é que era feito e verificado o registo. E depois, quem é que decidia…

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas num cenário de uma empresa deixar de estar sob regulação, significará que deixa de poder editar?

    Não. Pode editar, mas vale é a mesma coisa que um boletim [risos], ou qualquer coisa que é distribuída. Quer dizer, não tem protecção específica.

    Quer queiramos quer não, o facto de um órgão de comunicação social estar registado na ERC, de certa forma dá um estatuto diferente…

    Dá uma responsabilidade, e dá uma obrigação de cumprimento de regras deontológicas. Cumpra-se ou não.

    Se há então esse “risco” de pequenos órgãos de comunicação social poderem ficar desobrigados das regras da ERC, mas também ficam sem o seu cunho. Porque, na verdade, o facto de um jornal poder ser alvo de uma entidade com poder regulador, dá-lhe também uma responsabilidade…

    Exactamente, e permite-lhe exigir um respeito de determinados princípios que têm como base a liberdade de imprensa

    Portanto, não vê que este novo regulamento seja favorável para o sector.

    Acho que o regulamento, da maneira como está, foi muito feito em cima do joelho em Bruxelas, e de modo a ficar pronto a tempo antes das eleições. Não se pensou, não se maturou o suficiente. Nós, em Portugal, temos este problema, mas a Espanha tem um problema completamente diferente. A regulação em Espanha pertence às regiões autonómicas, e não têm regulador nenhum. Zero regulador. Vão ficar dependentes do regulador de Bruxelas de um dia para o outro. Ainda é mais complexo. Agora, o problema deste tipo de coisas é não olharmos para o que ele significa realmente. E esta mudança, que a Europa está a fazer, tem uma base. E foi dita logo pela Comissão desde que tomou posse: temos de estruturar os media europeus de uma maneira forte, organizada, e para que possam concorrer no Mundo inteiro, transmitindo os pontos de vista e as visões europeias sobre os temas mais importantes e mais profundos. Quer dizer que quem tem uma dimensão hiper local, não faz parte deste discurso.

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    Prevalece o europeu, deixa de lado o local…

    E, na maior parte dos países da Europa, porque houve guerra, destruição e fronteiras que foram deslocadas, é muito recente a organização e a implantação dos órgãos de comunicação social. Portanto, já é feita numa perspectiva de uma certa dimensão. Em Portugal, não estamos tal e qual como estávamos em meados do século XIX, porque não tivemos guerra, nem cataclismos… Neste momento, o que pode acontecer é haver um empurrão para um crescimento do acordo do tamanho das empresas. Convencidos de que isto era um benefício, por volta de 2006 e 2007, pedimos ao Governo, e o Governo criou, um apoio à cooperação e ao desenvolvimento empresarial. Mas fica quase sempre deserto. Ninguém concorre a isso, quase. Depois, há muitas razões, na CCDR [ Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] do Norte pedem isto, e na do Sul já pedem aquilo… Há razões dessas que nós conhecemos. Mas, na verdade, não podemos dizer que haja um fluxo das empresas a dizer: “vamos lá aproveitar isto, que o Estado vai pagar aqui alguma coisa para nós aprenderemos a cooperar e a viver uns com os outros”.

    Fala-se muito da questão do serviço público da imprensa. Ou seja, como o mercado não consegue ou não quer pagar esses serviços que a comunicação social dá, o Estado deve apoiar. Recentemente, por causa da pandemia, houve critérios um pouco estranhos na atribuição de verbas à comunicação social. Concorda com um modelo de financiamento por parte do Estado? E se sim, esse financiamento deveria ser regular ou apenas pontual, e com que critérios?

    Para o bem e para o mal, a Constituição diz assim: serviço público é rádio e televisão, ponto. Por aí, não vamos lá. No entanto, a Lei de Imprensa diz que compete ao Governo acompanhar e verificar as condições económicas do sector, por forma a que essas condições económicas não possam pôr em causa o pluralismo e a diversidade. Portanto, não é pela evocação de que é um serviço público, mas é pela obrigação do Estado, e isso leva-nos aos apoios. É isso que permite os apoios, quando a Europa [União Europeia] impede apoios estatais em sectores.

    Close-up Photo of Gray Typewriter

    Quando falo de serviço público, estava mais a pensar no conceito de bem público do ponto de vista da teoria económica. Ou seja, o Estado intervir quando um bem não é suficientemente valorado pelo mercado, mas que é fundamental…

    Sim, eu sei, eu sei. Eu digo sempre que se a Constituição não dissesse “serviço público é este”, poderíamos falar assim. Acho que uma vez que a Constituição diz isto, para não haver confusões, é melhor não falarmos de serviço público nem de serviço ao público, porque são coisas confusas. Agora, por outro lado, como a Lei da Imprensa diz isto, e a própria Constituição também reconhece, o Estado tem de se preocupar com esse lado; é isso que permite ajudas do Estado em Portugal. Mesmo assim, ainda temos aí muitos problemas e muitas questões. Agora, a Comissão e o Parlamento Europeu, nos últimos anos, têm recomendado aos Estados que apoiem a imprensa, através da publicidade institucional. Mas o problema da publicidade institucional do Estado é que não tem um significado igual em todos os Estados-membros da União Europeia.

    Varia de país para país…

    O Estado que tinha este conceito mais avançado era a França, depois a Itália e a Inglaterra. O Governo português seguiu sempre um modelo muito próximo do modelo francês, e portanto, há um sistema de apoio. Depois, criou-se um sistema da publicidade institucional do Estado. Esta publicidade representa, em globo, que o Estado seria o maior investidor publicitário em Portugal. Seria, não: é o maior investidor publicitário em Portugal. E não estou a falar de uma outra coisa, que são as publicações obrigatórias e os anúncios. Isso é algo que, para algumas publicações, conta muito. Quer dizer que vivem com base nisso e têm imensos problemas por causa do código das aquisições públicas [Código dos Contratos Públicos], porque estabelece limites que muito depressa são ultrapassados. A publicidade institucional do Estado, se se cumprissem as regras todas que estão na legislação, deveria funcionar de uma maneira equilibrada. Qual é o problema? A lei foi feita numa altura, na década de 1980, em que eram as agências de publicidade que compravam o espaço para as campanhas que produzia. Não havia centrais de compras.

    man sitting on bench reading newspaper

    E as coisas mudaram..

    Hoje, os departamentos de Estado têm toda a liberdade de fazer concursos, na base da lei da publicidade institucional, ou só para a criatividade, ou para a campanha completa. Aqueles que fazem só para a criatividade, depois vão ter de fazer outro concurso para comprar o espaço para aquela campanha. E a este concurso, só concorrem as centrais de compras. Os que fazem para uma empresa que oferece tudo, essas empresas, na maior parte dos casos, vão comprar o espaço às centrais de compras. Isto quer dizer que é muito difícil, no procedimento administrativo da compra, distinguir a forma como essa compra influencia, de facto, a distribuição da publicidade do Estado. Os franceses, no fim do tempo do Mitterrand, inventaram uma lei – que deu pelo nome do então ministro das Finanças, o senhor [Michel] Sapin – que obrigava a que, quando o Estado comprava publicidade, as facturas dessa publicidade obedecessem a um descritivo específico, em que havia o preço da publicidade, que é o preço que está na tabela de publicidade, e depois tinha descontos. Toda a gente é livre de fazer os descontos que quer, mas os descontos estão lá. E depois dizia uma coisa: tudo paga IVA. Ou seja, o desconto paga IVA? Paga, sim senhor. Portanto, o desconto pode ser feito, mas tem de ficar claro e tem de se saber a razão desse desconto, e, em última análise, constitui fiscalmente um crime não mostrar os descontos. Bom, isso depois caiu em desuso, e já num dos Governos de Macron, que chamou outra vez o senhor Sapin para ministro das Finanças, repôs-se a lei, há três ou quatro anos. É evidente que não foi tal e qual, como no final dos anos de 1980, com o Mitterrand, mas repô-la em vigor já com adaptações actuais. Portanto, há formas, e há formas actuais – não me venham dizer que são só antigas – de tornar mais transparente as compras da publicidade institucional do Estado.

    Mas o apoio do Estado deve ser só através da publicidade, ou pode haver mesmo um mecanismo de apoio automático?

    Olhe, nós aqui na Associação temos estudado isso até à exaustão, quer comparando com outros países, quer comparando com a realidade portuguesa. E vou dizer-vos: o mecanismo que salvou a imprensa portuguesa, entre 1983 e 1985, quando houve o primeiro default, em que esteve cá o FMI, foi o subsídio ao papel, que é um subsídio de que toda a gente diz mal. Toda a gente diz que havia aldrabices, roubalheiras e 30 por uma linha. Mas se olharmos efectivamente para a situação, e para o que aconteceu a partir daí, nos anos de 1987 a 1989, que foram anos equilibrados para a imprensa, foi isso que a salvou naquela altura. Portanto, a partir daí, na Associação estabelecemos um programa que se chama PECSIR [Plano de Emergência para a Comunicação Social, Imprensa e Rádio], e já vamos para aí no PECSIR 4 ou 5, porque o vamos adaptando. O modelo era um pouco o mesmo, só que o subsídio não era dado ao papel, era dado às leituras ou às vendas.

    Até porque agora praticamente já nem temos imprensa em papel. Aliás, por exemplo, o Público já é maioritariamente um jornal digital, e até o próprio Expresso está nos 50-50 entre papel e digital…

    Sim, tem havido uma adaptação, claro.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Através da contabilização da assinatura digital…

    Eu costumo sempre dizer que as assinaturas em digital – a palavra “assinatura” – são a prova de que este sector pensa muito pouco e investe muito pouco na universidade ou nos estudos sobre esse tema. Porque eu não compro assinaturas nenhumas, eu compro acessos. E é isso que nós devíamos dizer. Os acessos é que contam, não são as assinaturas. As assinaturas era uma coisa que havia no tempo do papel, não é? Em que nós transferimos, em termos de vocabulário, a palavra “assinatura” de outras actividades que tínhamos.

    Em todo o caso, continua-se a falar e a contabilizar as assinaturas. Ainda há tempos, no Portal Base surgia certa Câmara Municipal a comprar umas centenas de assinaturas digitais, durante seis meses, ao Público.

    Pois, eu não sei o que isso é. Eu luto sempre. E em situações como estas, digo sempre: não há assinaturas, aquilo que há são acessos. Até porque aquilo que o Governo é obrigado a preocupar-se, face à Constituição, é do acesso dos cidadãos à informação. É isso que lá está escrito! Portanto, são acessos pagos, mas são acessos. Temos na Associação acompanhado alguns projectos que têm tentado resolver isto. Um projecto, não sei se já ouviram falar, o Pay per View, que era um projecto em que existe uma transacção de acessos, e depois quem tem o acesso só tem de determinar o tempo em quer o acesso. Nesse tempo tem a faculdade de dizer: “eu pago”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que gosto”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que leio”, ou mesmo “eu só pago quando tenho um artigo que vou distribuir aos meus amigos”. E então isto obriga-me a pagar. Portanto, tem estas possibilidades todas. Em qualquer circunstância, são acessos. Quer dizer, a pessoa inscreveu-se, digamos assim, para através de uma aplicação poder ter acesso a publicações e, depois, a publicação é que determina: “não, eu só dou acesso se me pagares tanto”, ou “eu dou acesso desde que dês qualquer coisa”. Mas tem o acesso.

    Regresso à pergunta inicial: advoga que se adoptem modelos de financiamento mais constantes por parte do Estado?

    Se calhar estou há demasiados anos nesta cadeira, e, portanto, é o que os meus filhos me dizem quando discuto isto com eles… Por vezes, o facto de já ter tentado tantas vezes determinadas soluções, leva-me a dizer: “essa já não vale a pena”. Todas as soluções que se baseiam no princípio de dizer às pessoas: “olhe que a liberdade de imprensa não é uma coisa adquirida, é preciso fazer alguma”, batem sempre na parede. Sobretudo as gerações mais novas, acham que a liberdade de imprensa é como o ar, quer dizer, está aí, portanto, porque é que eu tenho de me preocupar com isso? Isto depois tem a ver com a desinformação e todas essas coisas: não tem havido maneira suficientemente forte de chamar a atenção para isso. Portanto, tenho defendido que, de um lado, temos a publicidade institucional do Estado, e do outro lado, isenções fiscais. Estas são as ferramentas seguras para que não haja no meio disto uma tentativa de “eu dou mais a este do que dou àquele”, e de começarmos a discutir coisas intermináveis. Como, por exemplo, estamos agora a discutir por causa da transposição da directiva dos direitos de autor, que é: “como meço aquilo que eu ganho ou não ganho?”. Eu não meço nada, quer dizer, não tenho capacidade para medir nem para analisar. Mas se me perguntarem, eu também não tenho dados para lhes dar [risos]!

    Vemos, por exemplo, casos de relações de empresas de media com autarquias, como se viu recentemente com a Câmara de Gaia… Não era melhor haver uma forma de financiamento e apoio ao sector que não passasse por estas “parcerias comerciais”, que acabam sempre por beneficiar os mesmos, os grandes grupos?

    Sim. A publicidade institucional do Estado, de um lado, que é investimento, e é investimento que tem a ver com o mérito de quem tem ou não tem leitores, de quem tem ou não tem pessoas que vão ver. E, do outro lado, isenções fiscais, que essa é igual para todos; os que têm mais negócio têm mais, e os que têm menos negócio têm menos.

    bundle, jute rope, newspaper

    Mas através do IRC, essa vantagem é quase irrelevante, porque grande parte das empresas paga pouco ou nem paga, quando tem prejuízo…

    Não, mas há isenções fiscais em relação à publicidade. Por exemplo, a majoração da publicidade, em relação aos investidores de publicidade. Não estou a falar do Estado, estou a falar dos privados. Quer dizer, você investe 100; no entanto, nas suas contas põe lá que investiu 150 em publicidade.

    No caso da imprensa, porque não haver um apoio em função do número de jornalistas ou de notícias? Mas notícias produzidas em exclusivo, ou seja, não é aquilo que acontece agora, que é uma notícia feita por uma agência, e depois temos o churnalism

    Não sou muito fã dessa ideia, por causa da contratação colectiva de trabalho. Só por isso, não sou muito fã dessa ideia. Eu sou um defensor – vencido neste sector, porque a maior parte das pessoas não pensa como eu, e ainda bem – de que não é possível avaliar jornalistas como se avalia outro tipo de trabalhadores. Não é possível. Como é que eu avalio os jornalistas? É que esse modelo levaria a isso. Estamos a seguir há alguns anos, com muito interesse, uma situação que existe na Madeira, que resultou de uma luta que tivemos durante anos contra o Alberto João Jardim [presidente do Governo Regional da Madeira entre 1978 e 2015] por causa do Jornal da Madeira, que era subsidiado pelo Governo Regional. Tivemos uma luta que meteu Presidentes da República, quase secretários-gerais das Nações Unidas da época. Mexemos tudo e mais alguma coisa, e já no fim ele [Alberto João Jardim] lá mudou. E em consequência disso, hoje existe um sistema de apoio da Madeira, que se chama o MediaRam: o Governo Regional paga uma parte do salário de cada jornalista, que cada publicação emprega, mais os custos sociais. E isto tem funcionado sem problemas. Temos falado disto muitas vezes aqui no Governo central, e dizem: “é impossível, não podemos fazer, porque a Comissão Europeia cai em cima de nós”. E nós dizemos: “mas na Madeira fazem”. Temos a certeza que não tiveram que pedir o estatuto de região ultra-periférica para poderem fazer isso. Portanto, fazem. E posso-lhe dizer mais: muito recentemente estivemos com o Governo Regional dos Açores, que também está a estudar a possibilidade de passar a fazer isso nesse arquipélago. Portanto, eu penso que sim. Todas essas soluções são possíveis. E volto a dizer: em Portugal esta [solução] está na Madeira.

    Selective Focus Photography of Magazines

    Estamos a centrar a entrevista muito na parte financeira e de sustentabilidade dos jornais, mas apontam-se muitas culpas às novas plataformas e ao desinteresses dos jovens, e fala-se pouco na qualidade da imprensa. Esse modelo não valorizaria o jornalista?

    Daquilo que sabemos das publicações fora de Portugal, as que têm êxito são as que apostaram na qualidade do jornalismo, embora a qualidade do jornalismo seja muito difícil definir – eu passo a vida a dizer isso. No entanto, aquilo que eu digo sempre é que a qualidade do jornalismo é o cumprimento das regras de informação em relação ao assunto que se está a tratar. Não posso deixar o assunto a meio porque ouvi dizer que o meu concorrente está a… Não posso. Portanto, estes elementos de facto só se fazem com jornalistas e com pessoas que sabem o que é que estão a fazer. Além disso, há uma posição muito pouco popular que temos aqui na Associação: entendemos que o salário dos jornalistas não pode ser igual ao salário dos caixas de supermercado ou igual ao salário mínimo nacional.

    Mas isso acontece hoje, não é? Há já bastante tempo, aliás…

    Sim. Temos a tabela do contrato de 2010, que se aplica às publicações com uma facturação anual inferior a 2 milhões euros; dos valores dessa tabela, metade já foram comidos com o salário mínimo nacional. Portanto, temos esta situação estranhíssima: um estagiário pode ganhar mais do que uma pessoa que entrou para o jornal há dois ou três anos.

    No mundo digital é importante não esquecermos as questões de desigualdade de informação e de acesso. Além disso, a difusão nas grandes plataformas seguem critérios próprios sobre desinformação ou fake news. Mas há uma dificuldade de os leitores acederem a informação sobre uma panóplia de temas. Como vê isto no âmbito da liberdade de imprensa?

    Primeiro: a liberdade de imprensa, de que estamos a falar, não é a mesma que está nas leis. A liberdade de imprensa que estava nas leis é a do mundo analógico, em que eu posso verificar em determinados tempos – no tempo da notícia –, e posso actuar. A liberdade de imprensa hoje é também a do tempo da tecnologia. Se eu não tiver isso em consideração, seguramente que todos os anos vamos ter uma baixa global – não é só em relação a Portugal –, na percepção que as pessoas têm em relação aos acessos. Portanto, o primeiro problema é esse. Mas depois há um segundo problema, quando eu obrigo as plataformas a serem responsáveis pelos conteúdos que distribuem. Eu digo: “se esses conteúdos forem contra aquilo ou contra aqueloutro, não pode ter”. Essas plataformas não têm como negócio ganhar dinheiro connosco. Sim, nós somos importantes para elas ganharem negócio, mas não é com conteúdos específicos, é com o fluxo geral dos conteúdos. Portanto, essas plataformas não querem arriscar. Preferem ter sistemas automáticos que vão através de leitura de palavras, e cortam.

    Mas aí não estamos a assistir a uma crescente erosão da qualidade da informação?

    Daí uma velha visão que temos aqui na Associação, e pela qual eu já penei muito, na Europa e até no Mundo: então, eu tenho que estar junto com a plataforma a olhar para isso.

    Mas como, se as plataformas são inalcançáveis?

    Não; elas são alcançáveis.

    Tem conseguido resolver algumas situações?

    Sim, temos conseguido resolver algumas situações. Claro que depende muito ainda das relações pessoais, ou seja, de conhecer a pessoa, de falar com ela. É tudo uma questão de organização.

    Photo of Hand Holding a Black Smartphone

    Na sua opinião, o que devem ser conteúdos não autorizados? Isso tem a ver com questões da sustentabilidade também da liberdade de imprensa.

    Conteúdos não autorizados são aqueles que são genericamente proibidos pelas convenções internacionais ou pelas leis nacionais, nos casos em que as leis nacionais sejam mais fechadas, como o incitamento ao ódio.

    Mas aí estamos a falar de um crime.

    Não. O problema é que a plataforma é única, mas as leis não são iguais. Portanto, na dúvida, eu elimino tudo.

    Por exemplo, questão da identificação de fake news, há uma questão que salta como argumento: “nunca foi publicado por nenhum jornal, rádio ou tv”. Como jornalista, observo que alguns temas não são noticiados não por serem fake news mas por questões de pressão política ou outra. Não faz com que a história não seja verídica.

    Há um estudo anual que devem conhecer, do The Reuters Institute, que faz, há já 13 anos, perguntas sempre sobre essa matéria, nomeadamente sobre o que é qualidade e tudo mais. Os dois temas que os portugueses elegem sempre como pontos críticos são os erros de português e as trocas de referências. Por exemplo, escrever 1495 em lugar de escrever 1945. Ora bem, eu só estou a dizer isto porque os leitores, ou os que acedem à informação, também têm de ser formados. Quer dizer, isto já não é como antigamente que, eu porque sabia ler um jornal, ganhava uma certa cultura. E essa cultura, tornava-me um especialista de leitura de jornal, digamos assim. E, portanto, eu sabia distinguir, sabia ver, sabia analisar o que era um jornal. Hoje, a maior parte das pessoas que lêem notícias, não distinguem. Por exemplo, uma das minhas lutas, muito grandes, com a CCPJ, é esta: a informação não-jornalística tem o mesmo direito da informação jornalística, tem de ser bem escrita, bem tratada e bem-apresentada. Tem é de ser separada da informação jornalística.

    Fotografias de João Palmeiro por Júlia Oliveira

  • ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    É já um fenómeno da literatura brasileira, embora ainda com uma carreira literária curta. O primeiro romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, arrecadou o Prémio Leya 2018 (e depois o Prémio Oceanos e também o Jabuti), foi aclamado pelo público e pela crítica, já vendeu mais de 750 mil exemplares, foi traduzido em 24 línguas e será adaptado ao pequeno écrã. Formado em Geografia e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, este baiano transporta para a sua arte os universos com os quais se cruzou desde a infância – primeiro através das suas raízes familiares, e até dos seus antepassados, e depois pelo trabalho que exerceu para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O colonialismo, que diz ainda existir no Brasil, as desigualdades e as injustiças sociais são temas omnipresentes na sua escrita. O seu segundo romance, Salvar o Fogo, dá novo corpo à realidade dos que não podem falar por si. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o autor critica as grandes tecnológicas, pelo seu papel na crescente polarização da sociedade, que vê como uma ameaça à democracia, e reforça a importância de se saber conviver com a diferença.


    Na sua escrita, há uma tónica muito forte de intensidade, de vivacidade nas palavras e num modo emotivo de contar a história. Essa intensidade vem das suas experiências de vida mais marcantes?

    Sim, acho que tem uma relação com isso que você disse, eu até falava mais cedo. Esse mundo da leitura… Tem uma história de Moisés em Salvar o Fogo, quando ele fala da descoberta da leitura, acho que nesse ponto a minha vida se aproxima da história da personagem. Porque de facto, a minha rotina e o meu quotidiano, transformaram-se. Quando eu descobri a leitura, eu tenho a impressão de que a minha vida ficou maior, que ela não se restringe apenas a este espaço que nós chamamos de real. Há todo um mundo imaginário onde eu habito também, e onde as minhas personagens habitam, e que me dão histórias e narrativas que tornam a minha vida maior do que ela é. Então, eu tenho uma sensação de que eu habito estes dois planos – o que nós convencionamos chamar de real –, mas eu também habito a minha imaginação, este plano imaginário. E daí, imaginar que as histórias dessas personagens foram sentidas de uma maneira literal por mim neste plano e transmutar tudo isso em narrativas; transmutar tudo isso para a literatura. O meu interesse pela literatura, e acho que a maior parte do interesse dos autores, no fundo é a gente estar se debruçando sobre a nossa condição humana. Daí a importância de compreendermos as histórias, os sentimentos, e tudo aquilo que faz parte de uma narrativa literária.

    Além da imaginação, também o seu percurso profissional e académico permitiu que tivesse um contacto muito próximo com a realidade do Brasil profundo, onde há extrema pobreza e comunidades carenciadas. Que bagagem é que o seu trabalho lhe deu para escrever as histórias? Seria capaz de retratar estas personagens sem essas vivências?

    Olha, acho que talvez eu conseguisse escrever, mas não estas histórias e estas narrativas que eu tenho escrito. Vou dar o exemplo de Torto Arado, que é uma história que surgiu para mim muito cedo, na adolescência. Eu era muito influenciado por uma literatura brasileira que tinha sido escrita na primeira metade do século XX, que era uma literatura plural e que dava conta da nossa diversidade étnica e cultural; e depois, o Brasil perdeu-se um pouco neste caminho. Então, eu gostava muito dessa literatura e já foi algo que despertou a escrita de Torto Arado. Mas eu era muito novo, tinha 16 anos, não tinha metade das experiências da vida que eu tive, e que conquistei depois… E aí quando eu fui trabalhar como servidor público no campo brasileiro, há mais de 17 anos, aquela história que já existia em mim cresceu e eu pude contá-la com a densidade e a profundidade com que foi narrada. Então, eu sinto todas essas experiências profissionais que eu tive – e não só profissionais, mas do ponto de vista académico. Eu terminei o curso fazendo graduação em Geografia, fiz mestrado em Geografia e depois um doutoramento no campo da Antropologia e Estudos Étnicos. Toda essa formação me deu um repertório de vida e social que termina reverberando naquilo que eu escrevo. Não existe, nem é dissociável o Itamar que foi pesquisador e cientista e o Itamar escritor; o Itamar servidor público e o Itamar escritor. Eu sou apenas uma pessoa, e tudo aquilo que eu experimentei e vivi termina reverberando naquilo que eu narro e escrevo também.

    A pobreza, as desigualdades, o colonialismo e o racismo são temas que não só estão presentes na sua obra, como também os tem abordado publicamente. Considera que um artista deve usar a sua visibilidade para se tornar também, de certa forma, um activista?

    Eu gostaria de não ser lido e não ser visto como um activista. Mas eu acho que todos nós criadores que trabalhamos com arte – não só na literatura, mas num contexto geral – estamos reflectindo sobre o nosso tempo, não é? A arte termina sendo um testemunho que temos a compartilhar com o outro da nossa vida, do meio onde vivemos, daquilo que é relevante para nós, daquilo que precisamos pensar e reflectir no nosso tempo. Então, eu acho que é inevitável que coisas que fazem parte do nosso mundo hoje, ou que fazem parte das nossas preocupações hoje, surjam naquilo que nós escrevemos. E claro, depois que me tornei autor e conquistei leitores, eventualmente eu precisei me manifestar como pessoa pública, como cidadão, sobre temas relevantes para o Brasil. Não gostaria de fazer isso com frequência, e tento não fazer com frequência, mas, por exemplo nas últimas eleições presidenciais, eu percebia que o país estava em risco. Então, não havia possibilidade de permanecermos neutros, até porque a neutralidade é uma conduta e uma opção política, não é? E eu disse: não, eu preciso me manifestar.

    Torto Arado, romance inédito vencedor do Prémio Leya 2018, arrecadou depois, no Brasil os prémios Oceanos e Jabuti.

    Sentiu como se fosse quase uma obrigação?

    Eu me engajei mesmo naquele momento, porque achava que nossa democracia e a sociedade brasileira estavam em risco se optassem pela continuidade do governo anterior. Mas eu procuro não participar tão activamente de tudo. Claro que como cidadão eu quero partilhar muitas coisas, mas é porque eu acho que a Literatura já revela e já diz muito sobre mim. Já diz muito do que eu penso sobre o mundo. Então, eu gostaria, de facto, que a literatura bastasse. Que eu nem precisasse falar sobre as histórias, sobre os livros, que elas por si bastassem. Mas como eu sei que não é possível, às vezes eu tento me manifestar e, enfim, ocupar o espaço que os leitores me destinaram para que eu possa de facto fazer valer essa consciência também.

    Os seus livros também mostram o poder e a influência da Igreja Católica, nomeadamente como detentora de propriedades e, em certa medida, do domínio que exerce sobre as populações carenciadas. O Brasil é um país muito religioso, onde o Cristianismo tem um peso considerável. A forma como fala da Igreja em Salvar o Fogo pode ser lida como uma crítica directa a esta instituição? Acha que o cristianismo devia ser menos importante para o povo brasileiro?

    Eu acho que a História do Cristianismo no continente americano é uma história de grande violência. E neste caso, por acaso, é a Igreja Católica, mas poderia ser uma Igreja Evangélica, e a violência ainda assim seria a mesma. Então, na História da América e de quando o continente foi ocupado pelos europeus – estou pensando nos espanhóis, nos portugueses, nos ingleses, nos franceses –, as sociedades que lá estavam no continente americano foram subalternizadas. Estes europeus que chegaram à América, a primeira coisa que colocaram não foi um tijolo para construir a parede de uma casa. A primeira coisa que se colocou foi uma cruz cristã nestes territórios. E esta cruz foi símbolo de muitos apagamentos de saberes, crenças e filosofias que existiam antes. Então, a história da Igreja Católica em Salvar o Fogo é a história de uma personagem, que é esta instituição, e que nos atravessa ao longo da História. Nos atravessa de maneira definitiva. Durante muito tempo, o empreendimento colonial escravista só teve êxito porque tinha o apoio decisivo da Igreja. Se pensarmos no Brasil, em particular, a Igreja era e ainda é uma grande detentora de fracções de terra. Até hoje, a Igreja em alguns lugares tem conflito com pequenos produtores. A Igreja foi a maior detentora de escravizados no Brasil, se considerarmos a instituição. As fazendas que ela detinha… O maior proprietário, digamos assim, de pessoas escravizadas, era a Igreja Católica.

    E é importante para si salientar isso?

    Sim, é uma história que não pode ser esquecida, que deve ser lembrada. Que, por fim, fala muito do nosso mundo e da nossa vida hoje. Hoje no Brasil, a Igreja Católica cada vez perde mais espaço institucional na sociedade, mas, em contrapartida, não quer dizer que a nossa vida seja diferente. A Igreja Evangélica assume tudo isso, e ela tem uma grande bancada na Câmara dos Deputados; ela participa de tudo na nossa vida pública. E interferiram sobremaneira nas últimas eleições, fazendo campanha para o presidente que foi derrotado no pleito. Ou seja, o Estado deveria ser laico, mas praticamente não é laico ainda, porque tem uma grande participação dos religiosos na Igreja no nosso quotidiano. As mulheres são as maiores vítimas de tudo isso, porque quando a gente fala de interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, no Brasil não se pode nem falar isso. Isso não é um direito. Acho que em Portugal, claro, não deve ser uma coisa pacificada, mas ainda assim, a mulher que precisa não vai morrer na fila da Saúde Pública, porque é reconhecido como um direito. Ela tem o direito sobre o seu próprio corpo. Afinal, o Estado português é um estado laico.

    No Brasil, a religião continua ainda muito entranhada na política?

    No Brasil, embora o Estado laico seja propagado, na prática ele não é. Porque a nossa vida ainda tem grande interferência da religião e do Cristianismo. Sem contar que o Brasil, como é um país plural, temos outras práticas religiosas, práticas indígenas, práticas afro-brasileiras, e essas práticas religiosas sofrem imensa violência dos cristãos no Brasil. Eu vivo numa cidade que tem um grande número de templos, que são os terreiros de Candomblé, templos afro-brasileiros. E é muito comum invadirem esses templos, quebrarem as coisas que estão lá. Eu vivi durante um tempo no final de uma avenida chamada Mãe Stella de Oxóssi, porque homenageava essa sacerdotisa e a yalorixá de Candomblé, importante para a cidade. E na entrada da avenida tinha uma estátua dessa mulher, como tem uma estátua aqui do Marquês de Pombal. Colocaram essa estátua de um grande escultor baiano que até já morreu, o Tatti Moreno, foi uma das últimas coisas que ele realizou… E incendiaram essa estátua um ano depois, e foi incendiada por cristãos evangélicos. Ou seja, a liberdade religiosa deveria ser garantida a todos, não apenas aos cristãos. Mas essas pessoas que praticam outras religiosidades, como a Luzia em Salvar o Fogo, que tem essa relação com o fogo e com o sobrenatural, é tida como feiticeira, como bruxa. A estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi queimada como se ela fosse uma bruxa, não é? Enfim, mostra um pouco dessa violência religiosa que ainda está muito presente no Brasil.

    Numa entrevista, afirmou que o Brasil, apesar de se ter tornado independente há 200 anos, ainda funciona numa lógica muito colonialista, e que agora os brasileiros são colonizadores de si mesmos. De que forma é que isso se manifesta, concretamente?

    Sim, eu acho que no período das grandes navegações – não estou falando só do Brasil e de Portugal, estou envolvendo os europeus e estou pensando no continente americano e no continente africano –, se inaugurou uma maneira de viver que ainda é determinante para os nossos dias. Que é este modo de habitar o mundo que é colonial, e que é baseado na exploração e na destruição das pessoas e dos meios. Quando eu falo em colonialismo, nesse habitat colonial, eu não estou apontando o dedo para ninguém. É apenas o reconhecimento de uma maneira de viver o mundo que está impregnada – não só no Brasil, mas na Colômbia e creio que em Portugal também, se a gente pensar no contexto da União Europeia. Portugal não é um país decisivo para a União Europeia, e fica muitas vezes a reboque daqueles que podem exercer a sua vontade. Estou pensando em países como a Alemanha, a França. Ou seja, esta relação entre opressores e oprimidos é uma coisa que se reproduz em muitas partes do mundo. Estou pensando na Palestina, em tantos lugares, não é? E o Brasil já poderia ter trilhado outro caminho; afinal, a independência do país foi declarada há 200 anos. Em 200 anos dá para acontecer muita coisa. Mas o Brasil, mesmo depois da Independência, optou por manter a escravidão em território brasileiro. Foi o último país do Mundo a abolir a escravidão. É um país onde essa estrutura do habitat colonial está impregnada em todos os contextos, porque é um país que tem uma classe que tem sobrenome, e que tem uma ascendência, muitas vezes europeia, que está dominando e domina as populações que não fazem parte deste grupo; que são subalternizadas.

    Segundo romance de Itamar Vieira Junior foi lançado em final de Abril em Portugal.

    Ainda há um caminho a percorrer…

    Exactamente. O Brasil continua a colonizar a si mesmo. Mas esta é uma constatação apenas, porque esta é a história do capitalismo. O capitalismo vive essa relação de explorador e explorados, de opressores e oprimidos. E inclusive, essa construção do que é ser branco, do que é ser negro, do que é ser indígena, não é algo natural nosso. Em algum momento da história, principalmente quando o capitalismo cresce assente nas grandes navegações, o ser negro e ser branco é uma construção social. E isto ainda está impregnado no nosso quotidiano, na nossa vida. São rankings de vida e valor construídas naquele tempo, que precisam ser descontruídas. Então, ainda vamos falar sobre isso durante muito tempo, não é? [risos]

    As mulheres assumem uma preponderância nos seus romances, são personagens de grande força, o feminino está muito exaltado. No seu crescimento, as mulheres da sua família tiveram um papel primordial? Foram, também, elas que o influenciaram e contribuíram para que desenvolvesse a sua sensibilidade artística?

    Com certeza. Eu acho que, embora talvez as feministas até contestem, há atributos que as mulheres carregam na sua maneira de ser, no seu corpo, na maneira como se relacionam com o mundo, com a História… E eu cresci numa casa atravessada pelo patriarcado, pelo machismo, mas com estas personagens que me intrigavam muito quando eu era criança. Porque eu observava elas serem vítimas de violência, às vezes vítimas de violência doméstica. Elas eram vítimas da sociedade que as tinham como pessoas inferiores com saberes inferiores, mas elas nunca se conformaram com isso e elas sempre contestaram. E o que é curioso é que não eram mulheres escolarizadas, letradas. Porque se fosse uma mulher que frequentasse a universidade, poderia ter contacto com escritos da Simone de Beauvoir e de tantas outras feministas, e construíam um repertório intelectual para combater tudo aquilo. Mas elas eram mulheres simples, pouco escolarizadas, e que ainda assim contestavam tudo aquilo. Isso se impregnou de tal maneira no meu imaginário, que sempre que eu escrevo, elas chegam inevitáveis com a força que essas mulheres – mãe, tias, avós, primas – tinham na minha família, não é? Então, para mim essa leitura de mundo, que às vezes caminha neste sentido que também é um sentido decolonial, vamos dizer assim, de desconstruir esse modo de viver a vida que foi construído no passado. Porque se a gente pensar no projecto colonial escravista, ele foi imaginado, projectado e executado por homens. Ou seja, é um projecto patriarcal.

    E trazer as mulheres para uma história que é desconstruir tudo isso, é devolver uma narrativa que lhes foi roubada, usurpada em algum momento. De que elas eram bruxas, feiticeiras, que eram personagens inferiores. Em Torto Arado, tem um personagem, o Zeca Chapéu Grande, que é um curador, uma espécie de feiticeiro, mas aquilo nunca é questionado. Claro que há racismo, mas nunca é questionado pelas pessoas do seu grupo. No caso da Luzia, ela é tida – eu não sei se sim, os leitores vão descobrir ao longo da leitura – como uma personagem que guarda poderes sobrenaturais. Mas ela, por ser mulher, é estigmatizada como bruxa, como feiticeira, como alguém que deve ser destruída, exterminada. Ou seja, estas duas histórias já dizem muito do lugar que a mulher ocupa na sociedade. E daí, essas mulheres incríveis que fizeram parte do meu imaginário e da minha educação, invadiram essas histórias com força também.

    Actualmente, a polarização da sociedade parece ser crescente, e o Itamar já criticou esta onda de cancelamentos a que assistimos. Como artista, naturalmente, valoriza a liberdade de expressão. Acha que a arte e a literatura podem ter um papel importante para combater esta intolerância?

    Eu não sei se a literatura tem feito isso com frequência, mas eu acho que é um excelente instrumento para que a gente desconstrua, para que devolvamos a ideia de sermos humanos – de que nós podemos acertar, mas também podemos errar. Parece que em nosso tempo a gente perdeu um pouco o sentido da nossa humanidade. Se a gente for olhar as redes sociais, é um massacre, é um discurso de ódio. Estou pensando principalmente no Twitter, eu nem tenho Twitter por causa disso. Eu brinco que o Twitter é o… Não sei se você já leu o 1984 de George Orwell, mas o Twitter é aqueles dois minutos de ódio. Quando tocava o sino naquela cidade, e as pessoas iam para a frente de uma tela – e é uma obra publicada em 1948, ainda não existia nada nisso, nem telemóveis nem Twitter –, e lá vociferam tudo o que sentem de ódio e exercitam o ódio para se manterem vivas. E as redes sociais virou essa teletela do 1984. Eu não sei como está traduzida no português de Portugal, mas no português do Brasil chamamos teletela. E, de facto, criaram-se ali ambientes onde as pessoas só aceitam conversar com quem concorda com elas, ambientes polarizados. E isso tem posto a democracia em risco. Porque se você olhar, o Partido Republicano nos Estados Unidos, que até há 20 ou 30 anos era um partido de centro-direita, tem caminhado para a extrema-direita. No Brasil, existia um partido de centro-direita, que era o PSDB, que governou com Fernando Henrique Cardoso, e durante muitos anos governou estados no Brasil. E ele deixou de existir praticamente, quase não existe mais; e quem ganha espaço é a extrema-direita.

    Os próprios algoritmos das redes sociais foram feitos de modo a fomentar a discórdia e a polarização…

    Exactamente. E pensamos que as Big Tech, as tecnológicas, são inocentes, não é? Que só estão ali para reunir as pessoas, mas não, elas têm trazido uma crise para a democracia no Mundo. E a gente perdeu o sentido de que nós somos humanos, de que nós erramos, de que as pessoas pensam de forma diferente, mas ainda assim isso não quer dizer que nós não possamos coexistir, não possamos conviver. E esse altericídio das redes sociais – porque é um altericídio, a morte da alteridade –, a Literatura pode nos devolver essa alteridade. Porque quando lemos uma história, nós aprendemos a gostar das personagens, mesmo que elas errem, mesmo que elas falhem. E reconhecemos nelas a Humanidade que também é nossa, porque nós somos isso. Nós falhamos, nós erramos, não é? Nós tentamos acertar, nós sonhamos. Ou seja, penso que em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver, de exercitar a alteridade também. Com muito menos polarização, porque não é algo saudável.

  • ‘A tecnologia nunca substitui o carácter humano da Educação’

    ‘A tecnologia nunca substitui o carácter humano da Educação’

    Autor bestseller, Jorge Rio Cardoso capturou a atenção de milhares de leitores que procuram as suas dicas sobre como maximizar o aproveitamento escolar de crianças e jovens. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Aveiro, é professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA), em Santarém. É também reformado do Banco de Portugal, onde exerceu funções como técnico superior. A sua carreira bem-sucedida como perito em Educação e motivação dos estudantes, começou com a conquista de um obstáculo: Jorge Rio Cardoso foi um aluno “sofrível”. Mas afinal o seu calcanhar de Aquiles transformou-se em força, depois de ter descoberto o atletismo, que lhe infundiu de autoestima e confiança. Hoje, ensina educadores e pais a ajudar os mais novos a serem bons alunos e o seu método Ser Bom Aluno – ‘Bora lá’? revelou-se eficaz a melhorar os resultados escolares. A pretexto do seu novo livro Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, o PÁGINA UM entrevistou este professor e investigador que acredita que o foco da Educação não deve estar apenas nas classificações, e que os pais devem fomentar a alegria, a iniciativa e uma autoestima saudável nos filhos, para a sua formação como seres humanos.


    Tornou-se especialista em sucesso escolar, mas nos seus tempos de escola nem sempre foi um bom aluno, e só quando começou a praticar atletismo é que se deu uma viragem no seu aproveitamento. Até que ponto é que atividades extracurriculares, como o desporto ou as artes, podem contribuir para a motivação das crianças e dos jovens nos estudos?

    Eu diria que é essencial. Ou seja, não há ninguém que consiga aprender se estiver triste ou desmotivado. A motivação é fundamental, sobretudo aquela que nós chamamos de motivação intrínseca, aquela que vem de dentro de nós. Essa é a que é capaz de nos transcender. Realmente, eu era um miúdo com baixa autoestima, desmotivado, não via interesse na escola. Aliás, a escola não me identificava nada de bom. E as coisas mudaram quando apareceu na minha vida o atletismo. O atletismo deu-me alegria, regras, disciplina e, depois, essa alegria, eu passei-a também para os estudos. Comecei a perceber que quando me esforçava mais no atletismo, quando treinava mais, os resultados melhoravam, e comecei a perceber que com o estudo também era assim. Porque eu estava convencido de que uns tinham nascido bons alunos e outros maus alunos, e eu, logo por azar, estava nos segundos. Tinha nascido mau aluno, e estava mais ou menos conformado. Depois, comecei a perceber que realmente o problema era que estava desmotivado, não sabia muito bem o que era isso de estudar. Às vezes, os pais põem esta questão: como é que eu motivo o meu filho ou a minha filha para a escola? E eu digo sempre que a questão está mal colocada. É: como é que eu motivo o meu filho, ou a minha filha, para a vida? Ele tem que estar motivado para a vida. Dentro da vida há a escola e um conjunto de outras actividades. Quando eu confronto alguém, pode ser uma criança ou não, com duas actividades; uma de que ela gosta muito, de grande probabilidade, como jogar à bola, por exemplo, ou ballet, e outra de pouca probabilidade, que ela não gosta muito, como estudar, geralmente há ali fases comunicantes. Para ela merecer a primeira, geralmente vai apostar – serviços mínimos, pelo menos – naquilo que é estudar. No meu caso, foi um desporto que mudou as coisas, mas poderia ter sido, por exemplo, uma actividade que é essencial na concentração e na motivação, que é a música. Seja praticar um instrumento, seja cantar, tudo isso é muito importante do ponto de vista educacional. Também as neurociêncais dizem que há uma alteração profunda em termos cerebrais. Podia ter falado, como disse muito bem, nas artes, no teatro, na dança… Há imensas actividades que, para além das competências naturais que trazem, conferem também a alegria de viver, e isso depois propaga-se a tudo, nomeadamente num aspecto essencial, que é estudar.

    Também fala neste livro, Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, da importância de fomentar uma autoestima saudável e dos afectos. Como é que os pais podem encontrar esse equilíbrio entre elogiar e reforçar a confiança das crianças, e ao mesmo tempo impôrem regras e disciplina?

    A questão está muito bem posta, porque temos que arranjar um equilíbrio. Os jovens terem autoestima é fundamental. No livro, dou até uma regra que acho importante, que é para cada crítica haver cinco elogios. Claro que às vezes os pais dizem que não têm muito para elogiar, porque se baseiam apenas nas notas, e então quando as notas não são boas, acham que não têm nada para elogiar. Mas, por exemplo, o esforço que o jovem está a fazer, ou encontrar qualquer coisa que não era dele e ir entregar, ou alguém que se aleijou e ele foi ajudar nos curativos… Tudo isso são motivos de elogio, e a sua atitude para com os outros. Porque, digamos, a Educação não é apenas passar conhecimento. Hoje, o conhecimento está na ponta dos dedos. E, portanto, aquilo que mais quero de um filho ou de uma filha, não é propriamente que ele seja doutor, engenheiro ou professor catedrático.  Mas sim que um seja um bom pai uma boa mãe, que viva a cidadania, tenha respeito pelos outros, isso é fundamental. E hoje em dia, na forma como a escola está, o ser solidário, o ter valores de honestidade, não é pontuado, não é? Não é assim que eu vou entrar em Medicina. Portanto, não é o tema deste livro, mas penso que a escola terá que mudar no sentido de treinar esses mesmos valores fundamentais para o cidadão de amanhã. Porque sabemos que os países mais ricos não são propriamente aqueles que têm mais metais preciosos ou mais petróleo. Nada disso. São aqueles que têm mais capital humano, e o capital humano não é apenas no sentido de saberem muitas coisas, mas precisamente porque são sociedades em que esse capital humano – que inclui vários aspectos, além de criar empatia com os outros, saber trabalhar em equipa, e saber ouvir os outros. Todos esses aspectos podem ser treinados naquilo que é a Educação.

    Referiu que a ambição dos pais não deve ser que os filhos sejam engenheiros ou médicos, por exemplo. No seu livro realça a importância de se detectar e potenciar os talentos das crianças e dos jovens. Como é que os pais podem fazer isso? Estando atentos às pré-disposições e às preferências das crianças?

    Sim. Hoje em dia, o ensino em Portugal já está muito voltado para isso. Até porque conhecemos o relatório do Professor Guilherme de Oliveira Martins. As competências essenciais à saída da escolaridade obrigatória… Aliás, num dos meus livros, foi ele que fez o prefácio exactamente por causa disso. Há um conjunto de competências, que muitas vezes vão muito para além daquilo que a escola valoriza, que é linguística e a lógico-matemática, mas há muitas outras, nomeadamente, por exemplo, criar empatia com os outros. Há aquelas pessoas que nos deixam bem dispostos, e não é propriamente a contarem piadas, mas a forma de elas estarem, a escuta activa. Tudo isso são aspectos muito importantes. E na sociedade nós notamos, há aquelas pessoas mais extrovertidas, ou mais exuberantes. Se estivéssemos a falar de uma casa, eu diria que isso seriam os tijolos, mas, às vezes, esquecemo-nos de uma parte, que é o cimento que une esses tijolos, e que não se dá por eles mas que são essenciais para a solidez desse edifício. E eu comparo esse cimento a essas pessoas que unem pontos e arranjam consensos. E portanto, estas pessoas são essenciais. É um talento realmente muito importante. Ser capaz de se ver o ponto de vista do outro, e no fundo, talvez a coisa mais importante, que é a inteligência emocional.

    Pois, dessa inteligência não se fala tanto.

    Há um estudo que eu gosto sempre de referir, que responde a esta pergunta: porque é que as pessoas têm sucesso? Sucesso, enfim, esta palavra tem muito que se lhe diga. Não é apenas no campo das notas; é, digamos, de singrar em instituições e serem respeitadas. E havia a ideia de que podia ser do chamado QI, que hoje está um bocadinho em desuso. E, curiosamente, o QI só explica 20% do sucesso das pessoas. Então, onde é que estão os outros 80%? Estão precisamente em aspectos ligados à inteligência emocional. E a boa notícia é que, enquanto a inteligência emocional é qualquer coisa que pode ser trabalhável, ou seja, nós conseguimos mudar as nossas atitudes, a maneira de ver os outros. É algo em que nós podemos evoluir. E com o QI já não é bem assim. O QI, seja alto ou baixo, é praticamente o mesmo ao longo da nossa vida, não há forma o mudarmos. E depois, também há outra coisa: às vezes, aquelas pessoas muito inteligentes são pessoas um bocadinho inadaptadas e que se isolam. Às vezes não são as pessoas mais felizes. E esta nossa capacidade de ser feliz, às vezes passa por viver aquilo que é a cidadania, mas com solidariedade perante aqueles que não tiveram uma vida tão simpática ou que à partida têm alguma deficiência. Aliás, quando há uma criança com necessidades especiais de Educação numa turma, é claro que é muito bom para a criança, porque vai ser estimulada, mas também é muito importante para todos os elementos da turma, porque o cuidado e a solidariedade vão ser ensinados e trabalhados. Embora, eu aqui gosto sempre de referir um aspecto: a integração é diferente da inclusão. Porque inclusão é a criança estar lá na turma. A integração é o que acontece depois nos intervalos: se ela fica a um canto, então não está integrada. Para as estatísticas, ela está lá, mas depois é preciso sensibilizar e promover valores, e isso é que é educar.

    E onde é que traça a linha entre aquele que deve ser o papel dos pais na educação de jovens e crianças, e aquele que deve ser o da escola?

    Há claramente uma linha de separação, embora a presença dos pais na escola seja muito importante. Eu tenho um filho pequeno, e a escola dele, que é uma escola pública, promove por exemplo grupos interactivos, e os pais são convidados a estarem na escola uma vez por semana. A presença dos pais na escola previne muito insucesso escolar. Sempre que há um problema, o acompanhamento próximo faz com que se detecte o problema que o aluno está a viver e resolve-se logo ali à partida.  A sintonia entre pais e escola é absolutamente fundamental. Às vezes, os pais, com a melhor das intenções, querem explicar ainda melhor aquilo que foi feito na escola. Acho isso bastante errado, porque nós às vezes estamos a explicar como nos ensinaram há 20 anos ou há 30, e não como são os modernos conceitos hoje. E isso pode provocar na cabeça do aluno alguma confusão. Agora, os pais têm de ir para além da escola. Há um conjunto de várias actividades que trazem competência, regras e alegria, e essas sim, é que os pais devem pôr à disposição. Os pais devem ajudar os filhos a ser. Ou seja, a outra parte que vai para além da escola. Diria que pais e escola estão em sintonia, digamos que cada um tem a sua área privilegiada, o que não quer dizer que não haja ali uma zona cinzenta, comum aos dois. O que os pais devem fazer é valorizar a escola, e o trabalho dos professores. É essencial, porque o jovem não vai investir o seu tempo, a sua paciência e a sua atenção numa coisa que os pais desvalorizam.

    Outra questão que gera alguma controvérsia tem a ver com os rankings e as classificações. Há quem considere que se tem baixado um bocado a exigência nas escolas, nos últimos anos, nomeadamente com as medidas relativas às reprovações. É, no entanto, possível defender-se que não se coloque demasiada ênfase nas notas, mas ao mesmo tempo, reconhecer-se que deve haver uma certa exigência. Qual é a sua visão sobre isto?

    Sim, percebo a sua questão. O facto de não haver reprovações, assim no sentido clássico, aquilo que estávamos habituados, não quer dizer que tenhamos baixado a exigência. Se calhar até é mais exigente. Não vou deixar ninguém para trás, mas se calhar vou ter que ter pedagogias alternativas, e vou ter que experimentar outras formas de fazer chegar o conhecimento aos alunos. Se eles tiverem que ficar mais um mês porque ainda não adquiriram as competências, se calhar, isso é um grande incentivo para trabalharem mais e esforçarem-se mais. Realmente, nós falamos de uma avaliação somativa, as notas clássicas. Mas há uma outra avaliação que é muito importante, .que é a avaliação formativa. Ele sabe trabalhar em grupo? Sabe arranjar consensos? A liderança, o empreendedorismo, são tudo coisas que se trabalham, não é? E, portanto, aquela ideia do sentido prático da vida também é fundamental. E aqui, falo da escolaridade obrigatória; claro que no ensino universitário as notas vão ser muito importantes. Mas às vezes há muito a cultura da nota, sacrifica-se tudo pela nota. E até se chega ao exagero de dizer uma coisa que é mais do que evidente, que é, os meninos e as meninas são diferentes uns dos outros… E sabemos que no plano teórico, se houvesse uma turma só de raparigas e outra só de rapazes, e houvesse um tipo de ensino de acordo com as características, e outro para eles, é claro que as notas subiriam, não tenho dúvidas nenhumas disso. E há quem defenda esta segregação, diria eu. Mas nós queremos é educar, e que os meninos e as meninas se conheçam. Que tenham os naturais conflitos, e os saibam resolver. Se calhar, assim estamos a prevenir violência doméstica, por exemplo. Também já houve a ideia de separar os alunos muito bons daqueles que são maus. Também sou completamente contra isto. Agora, o que acho que é o grande problema, e que mais tarde ou mais cedo vai ter que ser resolvido, é a forma como os alunos entram nas universidades. E ainda entram com as notas, hipervaloriza-se as notas. Se fossem as universidades a escolher… Com um médico, não são só as hard skills que importam, por exemplo, mas também a forma como comunica. Por isso, se as várias áreas do saber, as várias universidades escolhessem também os alunos, poderia haver também essa componente, para além da nota. Porque eu lido com muitos directores de agrupamentos de escolas, e eles dizem que essa parte dos valores realmente é muito, mas que têm que prestar contas perante o Ministério da Educação. E o Ministério da Educação olha para os rankings, vê em que lugar é que está a escola, no sentido de eles cumprirem as metas curriculares e os programas. Portanto, mesmo achando interessante esta história dos valores, não é por aí que estão a ser avaliados. Para que isto possa mudar, a forma como os alunos entram nas universidades pode ser uma parte da mudança.  

    Portanto, acha que se devia valorizar menos as notas e os rankings.

    Sim, claramente, porque, às vezes, estamos a comparar coisas que não são comparáveis. Agora, também não desvalorizo totalmente os rankings, atenção. Não vou dizer que eles não servem para nada, mas numa imagem, para se perceber o meu pensamento, é como um termómetro. Vejo a temperatura, e se for mais de 38 graus, há aqui qualquer coisa. Mas, dizer que só quero saber da temperatura corporal, não me leva nada. Se calhar, pode ser um problema grave ou pode acabar por não ser, pode ser uma pequena gripe, etc. Depois, há outros instrumentos que tenho que usar, e também na Educação é a mesma coisa. Os rankings dão-nos informação, mas há muitos outros indicadores. Temos que ver as coisas de um ponto de vista objectivo.

    Ia perguntar-lhe precisamente qual era a sua opinião em relação à segmentação do ensino de rapazes e raparigas, mas já respondeu.

    Sim, sou completamente contra, porque a sociedade é diversa. Aliás, nós até devemos, às vezes, colher os exemplos que saem da natureza. Sou a favor de todo o tipo de diversidade, seja ao nível da diversidade intelectual, ou de opiniões. Podemos não ter exactamente a mesma opinião, mas temos é que respeitar a opinião do outro, desde que seja, evidentemente, fundamentada. Sou contra essa segregação. Dir-me-ão que as notas subiriam. Não tenho dúvidas disso. Porque realmente, nós professores, quando estamos a ensinar, é para o aluno médio. Não é para um rapaz nem para uma rapariga, é para o que chamamos um aluno médio. Mas é muito importante que, nisto que é educar, os rapazes e as raparigas partilhem o mesmo espaço. Claro, não vai ser tudo um mar de rosas. Eles têm as suas diferenças, mas há com certeza uma interacção e coisas que eles começam a perceber, como a necessidade de respeitar o outro. O bullying trata-se disso, não conseguir respeitar uma pessoa que é diferente, seja por que motivo for.

    Sabemos o estado em que se encontra a Educação, e da desmotivação que muitos professores e alunos sentem. Acha que este modelo universal da escola pública está a atravessar uma crise? Ou, por outro lado, não vê o panorama actual de forma assim tão negativa?

    Ao longo da História da Educação, verificamos sempre que ninguém está contente. Ou seja, daqui a 30 anos ou 100 anos, evidentemente que as pessoas dirão que é possível fazer melhor. Acho que se tem caminhado na direcção certa. Para explicar um bocadinho aquilo que será o futuro da escola, tenho que falar em três modelos. Nisto, que é a Educação na escola, há sempre três elementos fundamentais: o professor, o aluno e um elo privilegiado entre o professor e o tal conhecimento ou competências; e aqui o aluno tem um papel passivo de ouvinte. Porque a ideia de ensinar é “eu ensino e tu aprendes”. E vais aprender o quê? O que eu acho que devo ensinar, porque o inteligente aqui sou eu. Ou seja, o aluno não participa na construção do seu conhecimento. Ele pode estar com uma grande curiosidade – e para aprender, a curiosidade é fundamental – sobre vulcões e, mas no programa os vulcões é só daqui a dois anos. E o professor: “olha, pena, não te vou ensinar”. Isto é evidentemente pouco simpático. Depois, há um segundo modelo, menos mau, digamos assim, que é um privilegiado entre o aluno e as tais competências. Ou seja, o aluno acede ao conhecimento fazendo umas leituras prévias antes de ir para a aula, e o professor é um elemento facilitador. Se o aluno não percebe alguma coisa, o professor ajuda. E isto é um bocadinho aquilo que nós chamamos a aula invertida; o aluno chega à aula e já tem algum conhecimento. O modelo de Bolonha de que hoje em dia tanto se fala, no fundo, privilegia este modelo. Agora, aquilo que eu acho que é o futuro é um elo privilegiado entre professor e aluno. O conhecimento e as competências ficam, digamos, para um segundo plano, porque muitos do conhecimentos que nós falamos, às vezes, ficam desactualizados.

    Não parece um contrasenso colocar os conhecimentos em segundo plano na escola?

    Lembro-me de conhecimentos que me passaram no primeiro ciclo – já foi há muitos anos –, que eram os caminhos-de-ferro de Angola, coisas assim desse género. Hoje em dia, podemos dizer que é um conhecimento inútil, porque alguns desses caminhos, se calhar, já nem existem. Quando pretendemos passar valores, esta proximidade entre professor e aluno é muito importante.  O peso das disciplinas – português, inglês, matemática –, como as conhecemos, vão perdendo peso, em benefício daquilo que chamamos uma lógica de projecto. Porque, quando estamos, por exemplo, a trabalhar numa aprendizagem relativamente às alterações climáticas ou outra coisa qualquer, geralmente há um conhecimento multidisciplinar. Portanto, vou buscar os conhecimentos de várias das tais disciplinas tradicionais. Podemos pensar em criar um evento, uma conferência final, e em quem é que vamos convidar para falar sobre isso. Pôr os alunos a pensar, a decidir e a trabalharem é muito importante, porque, às vezes, o output que dali sai tanto pode ser um vídeo, como um áudio… O que leva à indisciplina é o aluno estar sossegado na cadeira, porque nem todos estão. Por isso, gera-se barulho, os professores ficam enervados. Aqui, deixe-me dizer-lhe uma coisa que acho que vai ser o futuro da escola, e que é fundamental: a educação emocional. Porque só consigo estudar se estiver equilibrado emocionalmente. E, portanto, o yoga, a meditação e o mindfulness são absolutamente fundamentais.

    E vê isso a ser aplicado hoje, ou ainda está longe de serem práticas generalizadas?

    Hoje, ainda há escolas que passam completamente ao lado disto. E, hoje em dia, é mais difícil de estudar do que era no passado, porque há milhentos canais de televisão, redes sociais, há 1001 coisas que não havia, por exemplo, no meu tempo. As crianças hoje não são estimuladas, são hiperestimuladas. Depois, para eu treinar as aprendizagens, tenho que pôr água na fervura e voltar à minha calma. Tenho que saber identificar as minhas emoções e saber geri-las, e, às vezes, eles não têm esse instrumental. Nesse sentido, o yoga ajuda bastante, é científico. Por vezes, até estamos tristes e pode ser por pequenas coisas e não ter acontecido nada de especial. Se tivermos um instrumento como a meditação, aquilo imediatamente desvanece. Portanto, nas escolas – e agora as escolas podem escolher uma parte do seu currículo –, a educação emocional é absolutamente determinante no que vai ser o futuro daquele ser humano. É muito importante no sentido de eu saber resolver conflitos.

    Então, há mudanças a empreender e o momento actual pode ser uma oportunidade nesse sentido?

    Sim. O modelo que acho fundamental, e que será um bocadinho um guia na escola, é de um elo privilegiado entre o professor e o aluno. O conhecimentos ficam para depois.  Juntando isto a aulas mais atractivas, em que se põe o aluno a fazer, a trabalhar, a criar – seja um vídeo, um powerpoint, uma entrevista –, enfim, à procura do conhecimento. Havia um pedagogo que dizia que, mais do que uma cabeça cheia – de conhecimentos –, interessa-me uma cabeça que saiba pensar. Acho isto fundamental. Porque, hoje em dia, vivemos numa sociedade em que as pessoas, às vezes, não querem decidir, porque têm receio de ter alguém contra si. Então, vão passando nos intervalos da chuva. Por isso, não digo de que clube é que sou, ou de que partido é que sou. Não quero opinar porque, logicamente, terei pessoas contra mim e outras que, se calhar, até concordam com a minha posição. Mas esta ideia de educar passa muito por aspectos desta natureza.

    O uso da tecnologia para fins educativos é hoje um tema incontornável. Por um lado, há quem preveja modelos de ensino com amplo recurso à tecnologia, mas há também quem receie os seus perigos. Neste livro, fala dos limites que considera que os pais devem aplicar aos filhos na utilização dos aparelhos tecnológicos. Acredita que o ensino vai ser feito cada vez mais com a ajuda destes instrumentos?

    Sim. Acho que, às vezes, na Educação – e em muitas outras áreas do conhecimento –,  queremos transformar as coisas numa questão binária. Por exemplo, trabalhos de casa: é a favor ou contra? Na questão que me está a pôr, é exactamente a mesma coisa. Acho que tem sempre que haver uma coisa que é fundamental, na Educação e em tudo na vida, que é bom senso. A tecnologia veio para ficar, não a podemos ignorar. A tecnologia dentro da sala de aula, pois eu acho muitíssimo bem. Só que não vamos agora cair no exagero de dizer que é tudo tecnológico, e desprezo o papel, desprezo a escrita… Nada disso. A nossa ideia será um equilíbrio. Na sala de aula, aquilo que eu defendo é a tecnologia igual para todos e todos terem o mesmo acesso, porque isso é muito importante. Há pouco tempo, até dava este exemplo numa entrevista, do estudo de Os Lusíadas, que é uma coisa evidentemente difícil de trabalhar. Como nós sabemos, Os Lusíadas evocam um bocadinho a epopeia marítima portuguesa. É, no fundo, o percurso de Portugal até ao Extremo Oriente. E pergunto não seria tão mais fácil sensibilizarmos o aluno na sala de aula através do Google Maps, e mostrarmos exactamente o local que serviu de inspiração para o Camões escrever aquela estrofe. Evidentemente que sim. E, depois, até dei outro exemplo para pôr os alunos a pensar, que isso é que eu acho que é fundamental, e treinar a criatividade, que se chama o pensar fora da caixa. Então, e se Camões tivesse nascido hoje, em 2023, o que é que ele teria para elogiar do que é ser português? Já não seria a epopeia marítima. Não seria a epopeia marítima, então o que é que seria? E isto é uma coisa para pôr os alunos a pensar. Será o Ronaldo, a nossa simpatia? Portanto, a tecnologia dentro da sala de aula, acho que é muito importante. Porque hoje em dia, em face das fake news, é preciso que treinemos o sentido crítico de toda a gente, a começar pelas escolas.  E agora, com a inteligência artificial, ainda vai ser pior. Consegue-se pôr políticos a dizer coisas exactamente ao contrário daquilo que eles pensam! Portanto, as potencialidades são enormes, tanto para o lado positivo, como pelo lado negativo. Então, como é que nós fazemos isto? Podemos criar uma “polícia”, mas temos que desenvolver este espírito crítico, confrontar fontes, ver se são credíveis ou não. Isso é muito importante.

    E quando é que o uso da tecnologia deixa de ser saudável?

    Há um conselho que eu dou aos pais e que também falo neste livro: como é que devo tirar a tecnologia, ou não, das mãos do aluno? Há alguns sinais de alerta. Se aquilo está a virar obsessão e ele não passa sem aquilo, claro que eu tenho de corrigir. Se aquilo lhe está a tirar o sono. A forma dos pais lidarem com isto é regras de utilização. Portanto, ele tem direito, imagine, a uma hora por dia. Se continuam os sinais, então essa hora vai ter que ser reduzida. Se ele já mostra sinais de responsabilidade e de saber gerir os seus impulsos – a tal inteligência emocional –, então vamos alargar o período, porque ele merece. Enfim, isto funciona não só com a tecnologia, mas também, por exemplo, com as saídas à noite. Se ele se mostra responsável, podemos passar para o patamar seguinte. Educar passa muito por este aspecto gradual. Mas não sou a favor de um modelo de Educação em que é só com o papel e acaba-se com a tecnologia, nem só tecnologia e o papel é inimigo. Podemos arranjar um modelo equilibrado, em que a tecnologia vai auxiliar, mas nunca substitui o carácter humano da Educação.

  • ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A Arte de driblar destinos’: o título do romance de estreia de Celso Costa, com o qual venceu o Prémio LeYa aos 73 anos – e que recebe em mãos este sábado na Feira do Livro de Lisboa – ilustra na perfeição a vida do matemático, professor e estreante autor brasileiro. Nascido no Paraná, de uma família com escassos recursos financeiros e com morada numa propriedade remota chamada Ribeirão do Engano, o romancista teve um percurso inusitado: para além de fintar a pobreza, a sua paixão pelos números levou-o a estudar Engenharia e Medicina, desistindo de ambas antes de, finalmente, encontrar a sua vocação no prestigiado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde se focou na Geometria Diferencial. A partir daí, não houve mais recuos. Com o seu doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, solucionando assim um problema matemático com mais de dois séculos. Por esse motivo, a “Superfície Costa” foi baptizada em sua homenagem. Agora, chegada a altura de abandonar o papel de professor universitário, Celso Costa brincou novamente com o destino e abraçou as Letras. Algo que, afinal de contas, não era assim tão improvável: como confessou ao PÁGINA UM, apesar de seguir a sua amante Matemática, a Literatura sempre esteve ali, num lugar especial, no seu coração.


    A Arte de driblar destinos é um romance de autoficção, muito inspirado na sua própria vida e nas suas experiências pessoais. Como surgiu esta vontade de escrever e de contar a sua história?

    Essa vontade de fazer uma narrativa acontece num momento da minha vida em que estou na iminência de me aposentar da Universidade. Eu sou professor universitário, e ainda continuo a dar aulas, mas actualmente estou aposentado. E mais ou menos uns seis anos antes de me aposentar, como sou um leitor compulsivo… eu leio muito desde sempre, assim mais intensivamente desde os 14 anos. Mas quando eu comecei a ter mais acesso a literatura, comecei a ler muito. Então, com 18 anos eu conheci Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, o nosso Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas, Clarice Lispector, Machado de Assis. Já nessa idade, eu tinha uma certa amplitude de leituras. Lia os sonhos que os outros tiveram. E aí, segui uma carreira de matemático, e na iminência da minha aposentadoria, não sei se foi muito bem calculado, porque geralmente a gente não calcula muito o que acontece. Acho que as oportunidades e os desejos de repente eclodem, e você vai atrás daquele desejo.

    E foi o que fez?

    Sim, aí surgiu um desejo de escrever uma narrativa ficcional que se passaria num ambiente mágico chamado Aleph, pegando no O Aleph do Jorge Luís Borges, e que pudesse fazer um panorama da história da Matemática, mas focado através das lendas. Por exemplo, qual é a veracidade da lenda da maçã que caiu na cabeça do Newton? Será que lhe caiu mesmo essa maçã na cabeça? Arquimedes, quando descobriu a lei de flutuação dos corpos em líquido, ele saiu nu pela rua de Siracusa porque ele descobriu essa lei quando estava imerso numa banheira, lá nuns banhos gregos. Os gregos tinham muito a questão dos banhos, aqueles grandes banhos colectivos. Quer dizer, colectivos só para a alta classe do poder. Então, Arquimedes estava lá, e de repente teve aquela epifania, e descobriu uma lei física que diz que o volume de água deslocado é igual ao peso do corpo que está em flutuação. É uma lei simples no fundo, mas só é simples depois de se saber. Eu escrevi, então, sobre esse ambiente mágico colocando as lendas. Esse livro teve uma boa aceitação do público que orbita em torno da Matemática, e que é muito, porque são os professores da escola básica, os alunos universitários, os professores; é um público grande.

    Refere-se ao primeiro livro que publicou, A Vida misteriosa dos matemáticos, em 2018.

    Sim, foi o primeiro livro que eu escrevi, e teve uma repercussão muito boa que me animou. E falei: então porque não ficcionar as minhas memórias? Também têm o seu valor dramático. O seu valor pícaro, como disse o Manuel Alegre, do júri da LeYa. Então, resolvi escrever as memórias ficcionadas. E essas memórias, tal como A vida misteriosa dos matemáticos, demoraram-me cerca de quatro anos a escrever. Até chegar o momento em que eu coloquei o manuscrito no correio e mandei para a LeYa, que também foi um momento importante. E esse primeiro impulso que eu tive com o meu primeiro livro, levou-me a fazer essa ficção, que evidentemente vai ter uma continuidade, porque ainda há mais um livro pela frente. E outros tantos projectos que eu tenho sobre ficção, tenho muitos projectos iniciados. Então, eu vejo o Prémio Leya com um significado que o próprio nome diz: um prémio. E esse prémio certamente vai impulsionar-me, trouxe ventos de incentivo para que eu continue a escrever.

    Caminhou sempre nos campos das ciências exactas. Estudou Engenharia, Medicina e Matemática, áreas que são geralmente vistas como antagónicas à Literatura e às Artes. Como alguém que se movimenta tanto nos números como nas letras, como é que percepciona as diferenças entre estes dois domínios?

    Ambas são linguagens. Então, nós temos a linguagem da Matemática e temos a linguagem da narrativa. E quando eu falo em linguagem, falo numa coisa um pouco mais ampla, porque a linguagem matemática tem regras muito fixas. É como jogar xadrez. Quer dizer, você tem que seguir as regras para chegar a um resultado. Então, a Matemática tem as suas regras lógicas, já desde Aristóteles, mas evidentemente que foram aperfeiçoadas com o passar do tempo pela Humanidade. Então, desse ponto de vista, os preceitos para se fazer Matemática é você aprender truques para usar essas regras. Por exemplo, a gente tem livros de xadrez, que explicam as inúmeras aberturas possíveis. Porquê? Porque o jogo do xadrez é infinito, assim como o jogo da Matemática também. Na verdade, é mais infinito ainda, porque o jogo da Matemática está num degrau acima do xadrez, evidentemente. Então, se você de repente tem essa capacidade, que é uma coisa também um pouco inexplicável, evidentemente que todos podem caminhar na Matemática. Alexandre Alekhine, que foi talvez o maior jogador russo de xadrez, foi preso durante a época dos czares russos e colocado numa prisão, e jogava xadrez com ele mesmo. Mas o xadrez era um xadrez imaginário no tecto da prisão. Eu vejo que a Literatura também tem as suas regras; a narrativa tem as suas regras, que vão-se moldando ao tempo, vão-se desdobrando e reinventando. E é preciso também aprender essas técnicas, e eu dediquei-me muito a aprendê-las. A técnica do gancho; de atirar alguma coisa na narrativa e não contar tudo exactamente, para depois recuperá-la mais à frente. O pai dos contos russos, um dos maiores contistas que a Humanidade teve, que é Tchekov, dizia que se num conto, você coloca uma espingarda, essa espingarda tem de atirar nalgum capítulo. Ou se apresentar um doente de tuberculose no capítulo 50, ele tem que dar uma tossidinha no capítulo 5. Então, existem regras. Por exemplo, em A Arte de driblar destinos, o primeiro capítulo é uma tourada. E do ponto de vista da sequência cronológica, não é a primeira memória do narrador, porque a história vai desde que o narrador tem três anos, até aos 19. Mas o episódio da tourada acontece quando ele tem cinco anos. Não estou dando spoiler, porque o primeiro capítulo não é considerado spoiler [risos].

    Então, começar o livro com o episódio da tourada foi uma questão técnica?

    Sim, comecei pela tourada porque a narrativa pede isso. Uma narrativa é um compromisso que você faz com o leitor, e que é: “vamos viver o mesmo sonho”. E você não pode perder o leitor por um escorregão com a verossimilhança, não. Mas se esse contrato com o leitor é um contrato que se estabelece e é cumprido, então o leitor e o narrador vão até ao fim da situação. Então, pelo menos este é o meu ponto de vista, é preciso iniciar a narrativa lá no alto da chamada às emoções. Eu creio que essa tourada, esse pequeno espetáculo que se instala nessa pequena cidadezinha de mil habitantes… Uma cidade que não tem televisão, no tempo de 1960. Aliás, também não tinha geladeira, porque as geladeiras eram para os mais abastados que podiam ter. Mas tinha electricidade, que já era um grande avanço, e as vitrolas. Então, nessa pequena cidade, os grandes movimentos, as turbulências que aconteciam, era quando vinha uma tourada, um circo, ou um rodeo. Eu comecei com a tourada no sentido de ser um momento festivo, em que as emoções estão lá no alto.

    Se sempre teve uma paixão tão forte pelas letras, por que esperou tantos anos para começar a escrever

    Porque, de alguma maneira, a Matemática é uma amante muito exigente. E é muito divertido também, sempre foi muito divertido. Eu sempre trabalhei desde pequeno, desde os meus onze anos, que a minha família tem as suas precariedades. Vem de uma fazenda que se chama Ribeirão do Engano, e a cidade de onde a minha família toda veio chama-se Cinzas. Então, pais analfabetos, e eu sempre trabalhando em tudo quanto era ofício desde muito jovem. E depois numa cidade um pouco maior, já trabalhava numa oficina mecânica. E eu entregava as chaves para os mecânicos trabalharem lá nos carros, e ficava num pequeno escritoriozinho que tinha uma bancada. Aí chegava um mecânico, e falava “me dá uma chave de boca três quartos”. Eu apontava, e quando ele devolvia eu dava baixa. Mas enquanto isso, eu fazia divisões mentais no papel. Mas você pensa que eram umas divisões quaisquer? Não, eu dividia um polinómio por outro polinómio. Eu brincava com divisões de polinómio. Então, apesar de eu estar sempre trabalhando, a Matemática era essa amante exigente. Eu ficava mais ou menos quatro, cinco horas por dia ininterruptamente. E aí, comecei a impressionar os professores. E logo no final da minha escola secundária, antes de ir para a capital e ingressar na universidade, eu apaixonei-me por uma garota da minha classe, mas ela não me dava muita bola… E aí, eu escrevi um caderno inteiro de versos para ela. Dei-lhe e, felizmente, o caderno desapareceu. Aliás, ainda temos um grupo de WhatsApp da nossa turma, que eram 17 pessoas, e ela felizmente perdeu o caderno. Nunca mais vou ver esse caderno [risos].

    Portanto, não resultou? [risos]

    Não, não resultou nada, não me quis. Eu fui embora para Curitiba e as nossas vidas separaram-se durante muito tempo. E aí, temos esse grupo de Whatsapp das 17 pessoas que se formaram lá naquela cidadezinha do interior, e que depois cada um foi para o seu canto para fazer a universidade.

    (Foto: Luís Breda)

    Ainda a propósito da exigência da Matemática, numa entrevista recente chegou a dizer que alguns matemáticos proeminentes tinham terminado os seus casamentos com a obsessão de resolver certos problemas. Na sua tese de doutoramento, o Celso fez uma descoberta que resolveu um problema matemático com mais de 200 anos. No seu caso, houve algum momento em que a matemática lhe tenha roubado espaço para a vida pessoal?

    Não, acho que não. Nesse caso da vida pessoal, não foi afectada pela minha dedicação à Matemática, mas geralmente afecta um pouco. Fica muito obsessivo. E na verdade, quando eu fui para o Rio de Janeiro para frequentar um mestrado e um doutoramento na área da Matemática, num centro chamado IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que é certamente o mais importante centro de matemática da América Latina. Mas nessa época eu morava em Santa Teresa, que é um lugar que lembra muito Lisboa, porque é cheio de ladeiras. E os meus colegas na república que nós tínhamos lá, onde morávamos todos, tinham um conjunto de rock chamado O Bando da Santa, tinha um grupo de teatro infantil também, e mais eu e um amigo, que éramos matemáticos. A gente vivia todos ali na mesma comunidade. Então, foi nesse ambiente que eu continuei os meus estudos. E na minha tese de doutoramento eu resolvi esse problema antigo, e a Superfície Costa, que o mundo da Matemática denominou assim, passou a ser a terceira superfície no elenco das superfícies com as qualidades que ela tem, que é uma superfície mínima e mergulhada no espaço. Tem uma característica, um registo de propriedades que a fazem muito especial. Antes dela, existiu o catenóide, descoberto pelo Euler, um matemático suíço, em 1740, e o helicóide, que 150 anos depois, serviu para modelar a molécula do ADN. A molécula do ADN consiste em duplos helicoides que são unidos por pontes de proteínas. E a Superfície Costa surgiu como uma terceira superfície nessa galeria.

    E que impacte é que teve essa descoberta na sua vida profissional?

    Teve uma repercussão internacional muito grande e colocou-me na Academia Brasileira de Ciências do Brasil. O presidente da República na época, logo depois, condecorou-me com a medalha de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essas honrarias, o reconhecimento…

    (Foto: Luís Breda)

    E agora, é novamente distinguido, mas desta vez pela arte literária…

    É, aí eu um dia estou deitado porque ainda não me tinha levantado, porque lá é quatro horas a menos que em Portugal, e eu durmo tarde; às sete e meia da manhã, e o Manuel Alegre – eu vejo aquele número imenso com 55, internacional –, me ligando dizendo que eu tinha ganhado o Prémio LeYa. Fui apanhado de surpresa, de maneira realmente muito genuína, porque eu nem conseguia dizer-lhe nada. Eu só disse três palavras: poxa, poxa, poxa! [risos] E ele disse para eu me preparar, porque ia ter os jornalistas a ligarem-me. Mas ainda deu tempo de eu avisar a minha esposa, os meus filhos e os amigos mais próximos que eu tinha ganhado o prémio. Que coisa fantástica [risos]. Inacreditável, como é que pode, não é? Os meus amigos diziam, “o que é isso, mas você é um matemático e ganhou o Prémio LeYa, que história é essa”?

    Tendo em conta o seu percurso, seria um cenário improvável.

    É, muito improvável. Acho que talvez seja o único caso da História [risos]. Bom, do Prémio LeYa certamente. Nós temos psicólogos que escrevem literatura de alto nível, e médicos também. Eu tenho uma filha médica, começou na Medicina há uns três anos. E eu quase fui médico, não é? [risos]. Quando a gente estava numa mesa um dia, uma pessoa perguntou se eu gostaria de ter tido outro destino. E eu disse que talvez gostaria de ser médico. Porque acho que um médico tem uma experiência com a realidade que é muito contundente. A vida dele, o ambiente onde ele observa, de momentos muito delicados da existência humana. Então, tem muito médico que faz boa literatura, porque ele tem uma massa de observação muito importante.

    Mas quando estudou Medicina, acabou por desistir do curso. Mesmo assim, olhando para trás, pensa que gostaria de ter enveredado por esse caminho?

    Eu gostaria de ter sido médico porque agora quando eu peguei na literatura, eu pensei, poxa, se eu tivesse a observação de um médico [risos]… Acho que poderia beneficiar disso. Mas na época em que eu estudei medicina, na verdade eu queria ser professor do cursinho. Aqui em Portugal não tem essa questão do cursinho, porque se entra na universidade através de uma prova.

    (Foto: Luís Breda)

    Sim, em Portugal a média dos exames soma à média do ensino secundário. No Brasil têm que ter aulas de preparação para o exame que concede o acesso ao ensino superior, o vestibular, certo?

    Sim, no Brasil zerou o jogo, só a prova é que conta, e essa prova é para as universidades federais e é igual no país inteiro. Então, são milhões de estudantes fazendo aquela mesma prova, e tem uma que é de redacção, de Física, Química, essas coisas. Dependendo da sua classificação, você pode pedir uma primeira carreira ou uma segunda carreira. É evidente que, por exemplo, na área da Medicina, a pessoa pede Medicina ou depois pede Odontologia ou Veterinária, que são profissões em que a concorrência não é tão alta. Então, você pode optar por uma segunda carreira que não é aquela que você vislumbrava. Na época em que eu estava em Curitiba, que é a capital do Estado [do Paraná], e que eu estudava Engenharia, estava um pouco desgostoso porque eu gostava mesmo era da Matemática. Mas enquanto estava a estudar Engenharia, eu estava a morar numa casa de estudantes universitários e estava sem dinheiro também. Eu só consegui ir para Curitiba porque ganhei um prémio com dinheiro dos professores lá do meu colégio. Eles enviaram-me para lá, e comecei Engenharia. Entrei naquela casa com 400 estudantes universitários, em que você tinha alimentação, roupa lavada, cama, tudo o que você necessitava. No primeiro ano você tinha que trabalhar para poder pagar a casa: trabalhar no restaurante, na lavandaria, na fazenda, enfim. E depois no segundo ano já não precisava mais de trabalhar porque já era morador efectivo, se tivesse cumprido uma boa tarefa, não é? Mas pagava-se uma coisa mínima, eram 50 euros por mês para ter tudo isso. Aí, um dia eu estava no meu quarto, e algum estudante que estava atendendo na portaria a chamar-me, porque tinha um telefonema do interior do Paraná.

    Sim, e até pensou que o telefonema trazia uma má notícia…

    Eu já fiquei em sobressalto, porque podia ser notícias ruins da família. E cheguei lá, era o director do meu colégio falando: “Celso, o prefeito da cidade passou na câmara de vereadores uma lei em que vão pagar a casa de estudantes universitários até ao final do seu curso”. Não precisava de pagar mais a casa de estudantes. Mas estava sem dinheiro, não tinha dinheiro. E aí, resolvi ir lá pedir ao dono do cursinho para me deixar fazer um super-intensivo de dois meses, porque eu iria fazer o vestibular de Medicina, com a tentativa de ficar nos dois primeiros lugares e ganhar a posição de professor. Era assim que os professores entravam no cursinho. Aí, entrei na Medicina e me transformei em professor de Física do cursinho, e no primeiro ano, dissecação de cadáveres… Cadáver em cima da mesa, todo estraçalhado porque já tinha servido os estudantes dos outros anos. O livro ali para identificarmos os músculos, e aquilo começou a me desgostar, aquela coisa de você decorar os 206 ossos do corpo humano… O próprio professor lá, que era uma sumidade; era um fenómeno, porque ele era um ortopedista famosíssimo, cirurgião. Tinha o seu carro, mas ele não conduzia; tinha um motorista, porque aquelas ruas de paralelepípedo na direcção, podia afectar a sensibilidade das mãos dele. Folclore, não é? E aí, com o esqueleto lá na frente, ia identificando os 206 ossos do corpo humano. E eu decidi desistir dos dois. Achava que iria para São Paulo fazer Física na USP.

    Foi depois disso que surgiu a oportunidade de estudar Matemática?

    É, nesse momento eu tive que sofrer uma arguição da minha mãe, ela chamou-me lá para o interior. Perguntou porque é que eu estava a desistir, disse que eu estava a rasgar dois bilhetes de lotaria. Foi um drama na família. Mas aí, um professor me convidou para eu ir para o Rio de Janeiro, para fazer um curso curto de dois meses. Eu fui e tive um desempenho que impressionou os directores do curso, e pediram-me para eu voltar no próximo ano, que eu não precisava de Faculdade nenhuma e poderia entrar directamente no mestrado. Pulei a Faculdade, fui para o mestrado e para o doutoramento, fiquei sete anos lá, fiz a tal descoberta, entrei como profissional da universidade. Agora, pensando em me aposentar, sempre com a leitura actualizada, enveredei pela Literatura, pela escrita, pela narrativa.

    Uma das principais mensagens de A Arte de driblar destinos é a importância da educação e do conhecimento para conseguir ir-se mais longe. No Brasil, as pessoas que nascem em meios mais desfavorecidos têm essa oportunidade de vingar, ou as possibilidades são muito desiguais?

    As oportunidades são muito desiguais, porque a gente tem um sistema público e um sistema privado. É interessante, porque na época em que eu fiz os meus primeiros aprendizados, o sistema público era muito bom. Teve uma certa deterioração, actualmente o sistema público brasileiro está muito fraco. O sistema privado está muito forte, acontece inclusive uma inversão, porque o sistema público antes da universidade é fraco e o sistema privado é forte. Aí, quando vai concorrer na universidade que é pública, entram os estudantes do privado porque eles são mais fortes. Então, quer dizer, o sistema público é fraco no começo e depois é forte porque a universidade brasileira é bastante forte na pesquisa, no ensino, nessas coisas todas. Mas a questão, primeiro, é a do acesso à escola, não é? O acesso é muito desigual.

    Nem toda a gente consegue ter as mesmas oportunidades…

    Exactamente. Mas antigamente a situação era pior, porque actualmente a gente tem um programa que ajuda as pessoas em condições de pobreza extrema. Chama-se Bolsa Família, que dá 120 euros por mês para as famílias mais pobres, e dá mais 30 euros para cada criança, até três crianças com menos de cinco anos. Então, há um programa que é um combate à pobreza. Em 1960, nenhum desses programas existia. Era uma coisa muito difícil você ter as classes desfavorecidas na universidade.

    E prosseguiu os estudos muito por causa da importância que a sua família dava à Educação?

    Exacto, quer dizer, é também outra obsessão da família. O meu pai admirava muito as pessoas letradas, e os advogados. Porque tem essa cidadezinha pequena, mas tinha outra maior do lado, onde era a Comarca. Então, a Comarca era onde tinha o juiz, o delegado. Porque nesses lugarzinhos pequenos não tinha nem delegado; o delegado era um sujeito que recebia uma incumbência de cuidar da ordem. Mas ele admirava muito aquele júri, sabe, aquele jurizinho que uns advogados se batem, um acusando e outro defendendo o réu de um assassinato. Toda aquela cena, tem todo aquele drama que é contado ali. Ele gostava muito desse teatro. Então, queria muito que eu fosse advogado. Filho advogado seria bom [risos].

    [risos] Mas não quis ir por aí…

    Não, por falta de vocação também. Na época em que eu estive diante da universidade, as três carreiras mais importantes eram Engenharia, Medicina e Direito. Então, quem gostava de números iria para Engenharia, quem gostasse de saúde iria para Medicina, e quem gostava das letras e do social, iria para Direito. Eram as três carreiras nobres.

    Já que o título do seu romance fala em destinos, pergunto-lhe se, ao longo da sua vida, com todas as vitórias improváveis, reveses e reviravoltas que vivenciou, alguma vez sentiu que tudo acontecia de uma forma quase predestinada? Como se o destino tivesse um peso na forma como tudo se foi desenrolando? Bem sei que, por norma, os homens da Ciência não acreditam nestas coisas [risos]…

    Eu acho que existe uma transcendência que nós não sabemos explicar, mas que podemos apenas perceber e sentir, não é? Então, do lugar de onde eu vim, essas coisas eram muito fortes. Existiam pessoas de “poder”.  Num certo sentido, eu acho que a nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder, que não tem explicação, mas que é simplesmente um poder, de comunicar com a Natureza. A gente sabe que os indígenas, por exemplo, quando morre um companheiro, sabem que ele morreu naquele momento. Então, nesse lugar onde eu vivi, existia pessoas que tinham também essa capacidade de sentir as coisas dessa maneira. Por exemplo, geralmente os animais, quando se machucavam por algum problema, a ferida infectava e criava bicho; os bichos habitavam lá e começavam a comer aquela carne em putrefacção… E tinha pessoas que eram os benzedores. E eles chegavam lá e benziam os animais, e aquelas bicheiras todas caíam no chão sem nenhum remédio. E outro personagem – que eu não usei porque senão o livro teriam sido 500 páginas –, era uma pessoa que conversava com as cobras.

    Conversava com as cobras?

    É, ele pegava a cobra, botava no embornal e levava para casa. O meu avô tinha uma certa extensão de terra onde tinha uns boizinhos e eles começaram a morrer, porque a cobra picava no focinho. Se a cobra picar na perna, o animal não morre porque tem muito sangue para diluir o veneno; mas se pica no focinho, é uma zona muito irrigada, então espalha-se muito rapidamente e o animal morre, especialmente se for um animal jovem. E estavam morrendo. Aí, ele chamou o compadre dele, o nome dele era Dentinho Queijo, não sei porquê. O Dentinho Queijo chegou lá e o meu avô explicou-lhe o que estava a acontecer, e depois foram andando pelo terreno e chegaram onde morava a cobra. Ele ficou ali um bocado a fazer as rezas dele e depois saiu uma imensa cascavel lá de dentro. Ele começa a fazer as rezas, a cascavel se enrodilhou. E ele disse ao meu avô: “Seu Pedro, podemos ir tomar café agora”. Aí, ele foi lá na casa, que ficava perto, foi conversar, colocar os assuntos em dia… Era assim que se vivia, porque havia um rádio a pilhas mas não tinha muitas comunicações do exterior. Aí, eles fizeram todos aquela sociabilidade, voltaram lá para o lugar onde estava a cobra, botou no embornal e foi embora.

    Era uma espécie de encantador de cobras [risos].

    Era. Assim como também havia um sujeito que ficava em cima da água, esse cara também existia.

    [risos]  Passou por algumas experiências quase sobrenaturais…

    É. São experiências muito marcantes na infância e em parte da juventude. Existe um imaginário que eu – e isto já é uma teoria –, acho que esse avanço em direcção à tecnologia vai nos afastando dessa outra comunicação com a Natureza que a gente vai perdendo. Então, o Dentinho Queijo, no ADN dele, tinha a cobra. Porque nós somos animais, somos as árvores, somos os outros animais… Sei lá, eu por exemplo gosto muito de entrar de baixo de cavernas e buracos; talvez eu tenha um ADN também de lagarto, coisas desse tipo [risos]. É uma conexão com a Natureza, que é muito importante.

  • ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    Jornalista norte-americano de investigação, premiado, Paul D. Thacker não se acanha quando fala sobre a corrupção na indústria farmacêutica. Vive em Espanha há sete anos e é do país vizinho que conduz hoje as suas investigações, mantendo um acompanhamento próximo da actualidade nos Estados Unidos. Há mais de 20 anos que investiga as campanhas que visam distorcer a Ciência. Em 2021, recebeu o prémio de jornalismo British Journalism Award pela publicação de uma série de artigos que denunciavam os interesses financeiros de especialistas médicos que aconselharam os Governos dos Estados Unidos e do Reino Unido durante a pandemia de covid-19. Nos Estados Unidos, foi um dos investigadores principais na comissão de Finanças no Senado que investigou as ligações entre médicos e a indústria farmacêutica, e as suas revelações contribuíram para a produção de nova legislação sobre o tema. É um forte crítico da censura que se instalou com a pandemia de 2020, e os seus trabalhos têm alertado para os perigos da indústria farmacêutica. Mais recentemente colaborou nos Twitter Files. Presente no recente Congresso Internacional de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, Paul D. Thacker concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, onde também aborda a forma como as empresas de relações públicas “mandam” agora nas narrativas e nos media.


    Como é que um jornalista norte-americano acaba a viver em Espanha?

    Faço investigação, e a minha mulher é uma médica espanhola, e só pode trabalhar na Europa.

    Quando veio para Espanha? Planeia ficar?

    Há sete anos. Oh, sim. Vou ficar aqui. Adoro Espanha, é óptima. É um grande país. Cresci na Califórnia e no Texas. Sempre ouvi espanhol. Sempre gostei. E Espanha lembra-me muito a Califórnia. Quando vim aqui pela primeira vez de visita (estávamos a namorar), estávamos no comboio de Madrid para Pamplona e pensei: isto é parecido com a Califórnia. Ah, sim, Espanha parece-se muito com a Califórnia!

    Portanto, planeia ficar, então. Com a Internet consegue-se trabalhar em qualquer lado?

    O único problema é, por vezes, o fuso horário. Escrevo sobre temas norte-americanos. Como o Glenn Greenwald, que está no Brasil, eu estou um pouco distante dos Estados Unidos. Então, tenho uma capacidade de ter um olhar um pouco mais objetivo do país e do que está a acontecer lá. Mas, às vezes, o fuso horário é mau. Como no caso de uma palestra que dei este ano na Brown University, e que começou por volta das 4:00 horas da tarde. Eram 11:00 horas da noite aqui!

    Antes de 2020, já investigava a indústria farmacêutica e os escândalos nessa indústria, a corrupção, as ligações a políticos e organizações. O que mudou na investigação da indústria farmacêutica após a covid-19? Parece que investigar agora as farmacêuticas e a corrupção no sector se tornou em blasfémia. Ainda se pode investigar as farmacêuticas?

    As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção. Se entrarmos em qualquer livraria encontramos livros sobre o historial de corrupção na indústria farmacêutica; é a indústria que mais multas pagou na História dos Estados Unidos. Mas, a partir de 2015, todas as pessoas que faziam perguntas sobre o sector começaram a ser chamadas de “anti-vacinas”.  Eu estava a investigar uma empresa chamada Monsanto, que era uma empresa tão corrupta que quando compraram a empresa [a Bayer, em 2018] descartaram a marca. Foi a única maneira da Monsanto existir hoje. Foi uma empresa apanhada a mentir vezes sem conta. Por volta de 2015, houve um evento no Clube Nacional de Imprensa para falar sobre algo como desinformação na Ciência ou semelhante. Foi aí que começou a surgir todo este tema da “desinformação”, como se tivéssemos um problema com desinformação.

    É então algo que já vem detrás.

    Temos jornais e outros meios para que as pessoas possam estar informadas, mas esse tema da “desinformação” passou a ser algo único. De alguma forma, é algo único agora. Tão único neste ponto da História da Humanidade que precisamos realmente de ter especialistas em “desinformação”, verificadores. Mas nós já tivemos isso. Durante a Inquisição, na Europa, na Idade Média, tivemos isso, e a Igreja era o verificador de factos. O árbitro das verdades.

    Sim, exactamente…

    Então, esse novo tema surgiu, e foi muito estranho. Escrevi um artigo para o Huffington Post sobre o facto de ter havido essa conferência, que foi, curiosamente, liderada pela empresa de relações públicas que trabalha para a indústria agroquímica, para a Monsanto, e tudo mais, para empresas que mentem sobre os produtos químicos agrícolas. Achei bizarro. Era uma empresa de relações públicas [Ketchum PR] que, na verdade, também representou Putin e a empresa petrolífera russa [Gazprom], tem um longo historial na divulgação de desinformação. Quer dizer, isso é relações públicas! E foi assim que este tema [desinformação na Ciência] foi implantado – por uma empresa de relações públicas.

    Esse tipo de empresas tem muita influência.

    Num painel, havia um participante que foi lá para falar sobre alterações climáticas; e a sua solução para as alterações climáticas era a energia nuclear. Estava lá outro participante a falar sobre organismos geneticamente modificados (OGMs), e de como “são seguros”. E estava lá outra pessoa para falar sobre vacinas, e de como são seguras. E assim foi todo o resumo da conferência: se acreditam nas alterações climáticas, então a solução é a energia nuclear; e os OGM são seguros, e as vacinas são seguras. E eu estava lá e o primeiro pensamento que tive foi: de que vacina estão a falar?

    Falava-se genericamente que todas as vacinas são seguras…

    Ninguém jamais diria que todos os produtos farmacêuticos e medicamentos são seguros, porque a primeira questão que surgiria seria: de que medicamento está a falar? Na indústria de dispositivos médicos, ninguém diria que todos são seguros, porque você questionaria: qual dispositivo médico? Eu investiguei alguns deles [dispositivos médicos]. Investiguei os produtos da Medtronic. Foram retirados do mercado, porque eram perigosos, estavam a ser colocados em pessoas e eram perigosos. Estavam a ferir as pessoas e a prejudicá-las. Foi muito claro que houve o arranque de uma campanha de relações públicas que deu o pontapé inicial… Logo naquela altura fui chamado pela primeira vez de “anti-vacinas”, o que foi bizarro. Eu nunca tinha escrito ou até mesmo pensado alguma coisa sobre vacinas! Como é que eu podia ser “anti-vacinas” se eu nunca escrevi, nem twittei, nem disse nada sobre vacinas?

    Isso é típico em campanhas de comunicação…

    Passei muito tempo a olhar para a história da indústria de relações públicas. A história da desinformação na Ciência remonta à indústria de relações públicas nos Estados Unidos, e tem a ver com a empresa de relações públicas chamada Hill+Knowlton, que na década de 1950 começou a trabalhar com a indústria do tabaco para criar a maior conspiração da História dos Estados Unidos. Que conspiração foi essa? A conspiração de que os cigarros eram seguros, que não se sabia se eram perigosos. E foi brilhante! E o que fizeram? Para fazer isso, basicamente tomaram conta de universidades e começaram a trabalhar com os professores universitários para criar essa realidade alternativa, de que não se sabia se o tabaco era perigoso ou não. Ou de que talvez fosse seguro! A narrativa era: tem a certeza de que o fumo passivo é mau? Quais são as suas provas? Mas isso é que ressoa com a realidade que temos visto com a covid-19. Temos também esse envolvimento com as universidades.

    Paul D. Thacker, no Congresso de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, que decorreu nos dias 20 e 21 de Maio, em Fátima.

    Aquilo que está a dizer é que essa questão de desinformação começou muito antes da covid-19, e que começou a ser criada e a crescer antes desta pandemia?

    Penso que estava a acontecer muito antes. E há uma coisa muito óbvia que se tornou muito clara para mim, nos últimos dois anos. Se um produto era aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), se esse produto fosse um produto farmacêutico ou um dispositivo médico, você podia fazer as perguntas básicas que qualquer pessoa que entende de Medicina faria: qual é a sua eficácia, como funciona, quais são os efeitos secundários. Mas hoje, assim que um produto é aprovado pela FDA, já não se pode fazer nenhuma dessas perguntas. Essas perguntas não são permitidas. Não se pode fazer perguntas quando é uma vacina, porque as vacinas são “Ciência”. Não se pode questionar sobre corrupção envolvendo vacinas ou sobre quão bem funcionam, ou quais os seus efeitos colaterais. Hoje, as pessoas que fazem essas perguntas são chamadas de “anti-vacinas”. As farmacêuticas ainda não criaram uma campanha de relações públicas que rotulasse as pessoas como “anti-farmacêuticas”. Não dizem que alguém é um “anti-remdesivir”, por exemplo, porque as pessoas iriam rir. Mas conseguiram safar-se com a narrativa de chamar a todos de “anti-vacinas”, porque é cativante. É como uma campanha feita por uma empresa de relações públicas muito boa. Tal como acontece com a indústria do tabaco. É cativante chamar de “anti-vacinas”, você pode ficar obcecado com isso.  É assim, como uma lavagem cerebral em torno deste assunto. É uma religião. Não podemos tocar nisso.

    Mas isso é uma forma de censura…

    Escrevi um artigo sobre o facto de não se poder fazer, quando se trata de uma vacina, as perguntas normais que se fazem para qualquer outro produto aprovado pela FDA. Assim, as vacinas são mágicas. Ao contrário de todas as outras terapêuticas que se conhecem, as vacinas são mágicas. Você não pode fazer perguntas. São apenas vacinas e “funcionam”. Mas havia outras questões relativas, por exemplo, aos ventiladores, que foram usados em pessoas com covid-19. E há alguns estudos que concluíram que as pessoas realmente morreram por causa do protocolo que foi implementado em hospitais, usando os ventiladores. Então, também não podíamos falar sobre isso. Não podíamos questionar o protocolo médico. Eu nunca prestei atenção a este tema, o que captou a minha atenção desde o início [da pandemia] foi o professor John Ioannidis, da Universidade de Stanford. Começou a publicar algumas declarações e alguns estudos sobre o vírus e foi muito criticado.  Depois começaram a censurar o que dizia. O YouTube eliminou declarações suas a uma televisão por ser “desinformação”.

    pile of blister packs of colorful medicine tablets

    Foi absurdo…

    E eu pensei como era estranho, nem sequer era permitido ter-se uma opinião! Pensei: o que está a acontecer? Não fazia sentido. E outra coisa que me impressionou também foi, logo no início, quando as vacinas foram lançadas… Primeiro, essas vacinas foram lançadas à pressa no mercado, nem sequer foram aprovadas, apenas foram autorizadas [para uso de emergência]. No New York Times, lia-se que a Pfizer indicava que tinham 95% de eficácia. E esta é uma grande manchete, certo? Porque todos estavam preocupados com o vírus. Então, se alguém lê “95% de eficácia”… Mas depois, alguns parágrafos abaixo no texto percebia-se que aquele número não vinha de um estudo; era de um comunicado de imprensa! Ninguém viu esses dados, excepto a empresa, e a empresa divulgou um comunicado à imprensa. E um comunicado de imprensa acabou como manchete no New York Times! E essa publicação foi planeada para quê? Eu sei, porque investiguei, e na verdade serviu para pressionar a aprovação pela FDA. Para pressionar toda a comunidade biomédica. Foi tudo relações públicas. E o New York Times, e esses outros meios de comunicação social, foram cúmplices disso.

    Mais uma vez, o papel de influência da comunicação empresarial e das relações públicas…

    Então, as coisas realmente mudaram [na pandemia de covid-19]. Havia algo realmente chocante na censura. Sabe, censura de cientistas, e também o comportamento dos grandes órgãos de comunicação social. O ambiente mediático fragmentou-se, porque agora temos a Internet, e pessoas como eu podem publicar uma newsletter. Há o Twitter, para que as pessoas possam ver coisas que não conseguiam ver [nos media nem em outras redes sociais]. O que está a acontecer é que agora há essa necessidade de fechar isso [esse acesso livre a informação independente]. Então, há a mensagem dos grandes media, e há os documentos e informações que pessoas como eu divulgam. E as pessoas estão a ler. Como se fecha isso? Tinham de erodir isso, e criaram o tema da “desinformação”, e uma infraestrutura para ir atrás de pessoas independentes e fechar esse acesso a informação. Essa infraestrutura envolve agências governamentais e estranhas organizações sem fins lucrativos, que muitas vezes são financiadas pelo Governo e em colaboração com esses centros de investigação académica. E estão em pânico, porque estão a perder poder.

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    Algo que me impressionou é que, antes da covid-19, víamos os liberais, os comentadores de esquerda, a criticar os capitalistas e o capitalismo e os mercados financeiros, as grandes empresas. E agora é chocante ver que a esquerda e os chamados “liberais” são aliados do grande capital. São aliados das Big Tech, das grandes farmacêuticas, e apoiam, por exemplo, medidas como o dinheiro digital de bancos centrais. O mundo parece estar de cabeça para baixo. O que está a acontecer?

    Não faço ideia do que se passa. Há oito anos, as pessoas que mais criticavam a indústria farmacêutica eram liberais, de esquerda. Agora, estão todos “na cama” com a Pfizer. Será que se esqueceram que essas pessoas querem apenas lucros, que trabalham para obter lucros? Aquilo que penso é que as mensagens da indústria foram planeadas para atrair pessoas que são de centro-esquerda. Em relações públicas, fazem grupos de foco. Pensam sobre as mensagens que querem passar, e para quem as querem passar. É preciso entender como funciona a indústria farmacêutica e como os fármacos são colocados no mercado. A indústria farmacêutica não faz investigação, não faz pesquisa. Quem faz pesquisa são pequenas empresas, pequenas empresas de desenvolvimento normalmente associadas às universidades. As farmacêuticas colocam os medicamentos no mercado. Agora, toda a pesquisa de biomedicina está a ocorrer principalmente em torno de universidades, que, nos Estados Unidos, são como distritos do Partido Democrata. Penso que há muito dinheiro a entrar nessas áreas, muita convergência entre a biomedicina e o Partido Democrata. O Partido Democrata é agora o círculo eleitoral da biomedicina.

    Por exemplo, em Portugal, podemos ver neste momento um forte movimento nos media para pressionar o Governo a comprar medicamentos relativos ao vírus sincicial respiratório [denunciado pelo PÁGINA UM]. Vemos médicos que são consultores de farmacêuticas, as quais vendem medicamentos para esse vírus, a falarem a jornais para pressionar o Governo a comprar, mas sem revelarem as suas ligações ao vendedor do medicamento…

    Não há indústria por aí que seja mais corrupta… Eles têm muito dinheiro para gastar, e o que fazem é muito sofisticado. Há muitos médicos, muitas escolas médicas, grandes revistas de Medicina, que estão comprados pela indústria farmacêutica: O nível de sofisticação e a quantidade de dinheiro são provavelmente inigualáveis no planeta. Eles conseguem o que querem.

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    Ficou surpreendido com este tipo de pressão? E com a censura e as ligações entre Governo, redes sociais e a comunicação social?

    Nos Estados Unidos, o Governo não pode dizer directamente a um meio de comunicação social que não pode publicar algo. Isso é inconstitucional. O que está a fazer é pressionar. O mesmo está a ser feito com as empresas que operam as redes sociais. Quando comecei a publicar sobre haver censura, tive jornalistas, amigos jornalistas, a dizerem que não era possível estar a acontecer aquela censura. Vi jornalistas a fazer campanha a favor do Governo. Eram avessos à possibilidade de estar a haver censura com intervenção do Governo. Quando os documentos [do Twitter Files] começaram a sair, ainda se via essa negação de que isso estava a acontecer. Ainda há essa negação. Um jornalista do Washington Post, por exemplo, escreveu um artigo com um balanço de seis meses sobre Elon Musk. No artigo não tem nem uma referência aos Twitter Files. Como se faz um balanço de seis meses da actuação de Elon Musk e não se menciona os Twitter Files? Como se faz isso e se chama a si próprio jornalista? Não faz sentido, e não é jornalismo. E é por isso que olhei para esses documentos e divulguei essas duas histórias. Elas ajudam a explicar como e por que isso está a acontecer. O que está a acontecer é que muitos desses jornalistas tinham elos de ligação muito próximos com o Twitter, e esses laços evaporaram-se quando Elon Musk o comprou. Eles perderam o acesso especial que tinham, perderam os seus privilégios especiais.

    Qual é a sua opinião sobre o facto de um candidato à presidência dos Estados Unidos, Ron DeSantis, ter feito o seu anúncio no Twitter. Eu ouvi o anúncio no Twitter Spaces e era como ver a história acontecer em directo.

    Bem, quero dizer, essa é uma maneira de olhar. Mas então veja-se os media norte-americanos. Não fizeram nada mais além de criticar o que aconteceu, como se fosse a pior coisa de todos os tempos. Só falavam das falhas técnicas e de como o anúncio correu mal… Essa é a forma como os media caracterizam Elon Musk e DeSantis… Depois, há a sondagem de Harvard que apontou que, na política, Elon Musk é o mais popular agora na América. DeSantis é o número três. Isso é incrível. E depois questionamos: porque é que os meios de comunicação social são assim tão desconectados com o resto do público americano. Os media começam a mostrar que têm vivido numa espécie de bolha. E vivem numa bolha há muito tempo. Os media agora são amigos do Governo. Isso começou basicamente na época de Trump. Sinto muito, estou descendo um elevador. Pode estar cortando essa mudança. Há muitas coisas que não gosto em Trump. Mas, ao mesmo tempo, eu podia ver que muitas das notícias sobre ele não eram justas. Eu disse a um amigo meu jornalista: era preciso inventar tudo isso sobre Putin [de uma alegada ligação a Trump]? O que temos agora nos media norte-americanos é esta história básica: pega-se em Trump, Elon Musk e Ron DeSantis e coloca-se na coluna A, e na coluna B coloca-se Q, antissemitismo, extrema-direita, supremacia branca, anti-ciência, anti-vacina. Depois, tira um da coluna A e mistura com algo da coluna B. E essa é a sua história. Apenas mistura e combina, e isso são os media de hoje. Não é jornalismo, é apenas isso. Como se escrevessem em pânico. E a questão é que eles pensam que estão a ser inteligentes. Mas o público americano vê isso. É por isso que o número de americanos que confia nos media nunca foi tão baixo.

    Tem a sua própria página, a sua newsletter, publica em jornais e escreve sobre os Twitter Files. Como vê a mudança na maneira como as pessoas consomem notícias e informações? Porque hoje podemos ler notícias e grandes peças de investigação fora dos grandes órgãos de comunicação social mainstream. Mas também vemos o aumento do poder das redes sociais e das grandes plataformas de tecnologia no controlo do acesso a informação. Como vê a evolução destas questões? Pensa que vai haver um movimento para travar esta tendência e tentar tornar as coisas impossíveis para jornalistas como você?

    Realmente, não sei. A maioria dos americanos ainda está a receber a maior parte da informação pela televisão. A televisão ainda tem muito poder. Muitos desses jornais, desses meios de comunicação tradicionais, ainda têm muito poder. Eu estou a aproximar-me dos 20.000 assinantes. Estou muito longe do Washington Post. Mas é ótimo, é um óptimo número. Mas eu não estou a competir directamente com esses grandes meios de comunicação social. Há cerca de um mês, vi que o New York Times escreveu algo sobre Anthony Fauci e descobri que havia duas coisas que eles relatavam que eu tinha relatado em Dezembro! Mas é claro que não havia menção ao facto de eu ter relatado essas coisas primeiro. Aquilo que os media fazem é ou negar informação que você escreve, dizendo que é um absurdo, que é desinformação, ou então vão lê-la secretamente e vão roubar a informação. Sei quem são os meus subscritores. Posso ver quando eles se inscrevem, e eu conheço os meus assinantes. Há lá muitos jornalistas de investigação. Há muitos deputados, membros do Congresso, funcionários do Congresso. Eu não tenho muitos assinantes, mas tenho muitos assinantes da elite, leitores da elite. Então, talvez eu tenha mais impacto. Tenho leitores da elite que estão a vir e a ler o que eu tenho para dizer, ou porque estão a tentar estar bem informados, ou porque se trata de um jornalista em algum lugar a tentar descobrir como roubar algo e usar sem me mencionar.

    Jeremy Vine e a jurada Janet Kersnar, editora executiva do Business of Fashion, entregam o prémio de Jornalismo Especializado no British Journalism Awards 2021 a uma colega de Paul Thacker no BMJ.

    No outro dia, ao entrevistar Andrew Lowenthal, ele falava sobre o Complexo Industrial de Censura. Como podemos quebrar isso, e como podemos garantir que no futuro não iremos viver numa ditadura, onde não existe liberdade, incluindo liberdade de imprensa e de expressão?

    Bem, eu não posso falar a partir de uma perspetiva portuguesa porque eu não sei como os media portugueses funcionam ou o Governo português. Posso falar do ponto de vista norte-americano e dessas histórias sobre o que está a acontecer, com as pessoas a serem censuradas, a serem expulsas das redes sociais, a ser-lhes negado o direito a ter uma voz e uma perspectiva. Penso que foi isso que chamou definitivamente a atenção. Esses repórteres do Post e do New York Times estão a negar o que está a acontecer. Mas todos, todos os seus leitores, sabem o que está a acontecer. Eles estão a ler e não são estúpidos. Eles estão a ver os documentos [Twitter Files]. Membros do Congresso também estão a ver. Funcionários do Congresso também. Ligam-me e perguntam-me sobre o que está a acontecer. E eu penso que mais relatórios sobre o que está a acontecer, e como isso está a afectar a nossa capacidade de ter uma democracia decente e uma política decente. Eu penso que são importantes os processos [judiciais] que estão a avançar nos Estados Unidos para expor e impedir que isso suceda novamente. Penso que, no Congresso, podemos começar a retirar financiamento às organizações que estão envolvidas nesse tipo de comportamento contra os americanos. Quando um Governo começa a fazer censura com seus próprios cidadãos, é assustador. E a incrível magnitude de influência e envolvimento nesta área, da censura, por parte das universidades… As universidades estão muito envolvidas na censura; criaram esses centros académicos sobre desinformação, especialistas em desinformação.

    E na Europa, temos a Comissão Europeia com novas leis, novos regulamentos para os meios de comunicação social e também para as redes sociais, e aplicará multas enormes se as redes sociais permitirem aquilo a que chamam desinformação e discurso de ódio. E isso incluirá o Twitter. Está preocupado com o facto de, na Europa, o Twitter poder estar condicionado por este novo regulamento, porque vimos o que aconteceu na Turquia.

    Quer dizer, estou preocupado com um continente que tem um historial forte de fascismo. Em Espanha, temos o caso do jogador de futebol do Real Madrid que foi alvo de comentários racistas. Em Portugal, provavelmente também há quem chame nomes racistas a jogadores negros. E não podemos permitir isso e precisamos fazer algo para limitar a capacidade de pessoas fazerem isso. E isso todos percebem. O problema é o que está a acontecer nos bastidores com vista a limitar a capacidade de as pessoas terem debates abertos e opinião.


    N.D. Leia, sobre esta entrevista, o editorial de Pedro Almeida Vieira intitulado “O venenoso abraço das farmacêuticas à imprensa“.

  • ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    Andrew Lowenthal tem uma vasta carreira na defesa dos direitos humanos no mundo digital e na defesa da privacidade online, tendo sido co-fundador da EngageMedia, uma organização sem fins lucrativos. O autor e investigador australiano tem colaborado na divulgação dos ‘Twitter Files’. O seu trabalho está focado no estudo e denúncia do crescente autoritarismo digital. É investigador no Institute for Network Cultures da Universidade de Amesterdão e escreve na sua página Network Affects, na plataforma Substack. Lowenthal foi um dos oradores presentes na Conferência Internacional “Saúde Mental e Propaganda”, que decorreu em Fátima, no passado fim-de-semana. Em entrevista ao PÁGINA UM, o investigador falou sobre o “Complexo Industrial de Censura”, o qual se tem vindo a formar a nível global, e que tem vindo a investigar junto com o jornalista Matt Taibbi, entre outros. Sobre os ‘Twitter Files’, revelou que Elon Musk “não está a dar acesso a novos documentos” à equipa de jornalistas e escritores que têm estado a conduzir a investigação aos documentos internos daquela rede social. Mas a investigação prossegue aos documentos já disponibilizados e vão surgir mais revelações. Os ‘Twiter Files’ – que pode acompanhar AQUI no PÁGINA UM – têm vindo a revelar a sinistra máquina de censura instalada no Twitter – e que abrange também outras redes sociais e Big Techs – no tempo da anterior gestão do Twitter.


    Tem uma longa carreira na defesa da privacidade digital, liberdade de expressão e direitos humanos em plataformas online, mas vejo que também foi um pouco apanhado de surpresa com o que se passou nos últimos anos, com o forte aumento da censura. Durante o seu percurso, alguma vez esperou que chegássemos a este ponto, com toda a censura que tem existido?

    Não, não esperava. É interessante porque, de certo modo, todo o trabalho que eu fazia era sustentado na ideia de que não actuavamos, particularmente, em relação ao poder corporativo e aos media e à tecnologia, e que podíamos acabar numa situação muito má. Mas, na verdade, nunca imaginei que essa situação pudesse ser assim tão má. Algo fez com que isto se desenvolvesse de uma forma muito mais autoritária do que eu alguma vez poderia imaginar, portanto, não, de facto nunca esperei. Eu receava que, de forma geral, as coisas piorassem, mas não radicalmente, como aconteceu desde a covid.

    Escreveu sobre a existência de um “Complexo Industrial de Censura”, que tem mobilizado milhares de milhões de dólares e de euros. Afinal, em que é que consiste este ‘complexo’, quem é que o detém? E como é que se chegou até aqui?

    Bem, é um conjunto de vários grupos com diferentes interesses. Este sistema ao qual chamamos “Complexo Industrial de Censura” envolve associações filantrópicas, financiamento governamental e organizações governamentais, académicos, think-tanks (grupos de reflexão), organizações não-governamentais, e os media. E, portanto, há diferentes áreas onde existe uma grande coordenação. Sabemos que há um projecto intitulado Virality Project, que estava a controlar a informação que circulava sobre a vacinação contra a covid, e que admitiu explicitamente visar também histórias verdadeiras que encorajassem hesitação vacinal. E eles colaboravam de perto com o Facebook, o Twitter, o TikTok, e outros. Por isso, eu não penso que haja uma única entidade central neste complexo, mas há, sem dúvida, vários núcleos que têm procurado exercer muita influência na forma como as pessoas percepcionam o mundo.

    E há muito dinheiro envolvido nessa indústria…

    Sim, muito dinheiro. Dinheiro que vem de associações filantrópicas privadas, de entidades governamentais… Nalguns casos, há fortes ligações a serviços de informação e às Forças Armadas, algo que ficou claro com os ‘Twitter Files’, que não é uma teoria da conspiração que as pessoas imaginam, acontece mesmo na realidade. Então, sim, em certos casos, há contractos como aquele que foi feito com a Peraton, na ordem dos mil milhões de dólares. Muitos dos grupos que vimos são mais de dimensão pequena a média – bem, e grande também –  como académicos e think-tanks, mas os seus orçamentos variam entre 3, 4 ou 5 milhões e 40, 50 milhões de dólares. O Instituto Aspen em particular coloca muito dinheiro neste tipo de “trabalho”, dezenas de milhões de dólares. Portanto, sim, é mesmo um projecto com um financiamento massivo, tudo sob o pretexto da “desinformação”. E a desinformação existe, mas a ameaça que representa foi exagerada essencialmente para servir de justificação para a censura.

    Então, a desinformação foi vista como uma oportunidade para se censurar?

    Sim, sim. De forma geral, esse é também o meu pensamento em relação à pandemia; é que há pessoas espertas que veem certas oportunidades e agarram-nas, a não ser que estejamos particularmente vigilantes.

    E falamos de algumas empresas, como as grandes farmacêuticas que, depois da pandemia, têm agora ainda mais dinheiro para patrocinar os media e muitas destas entidades que actuam sobre a “desinformação”. Portanto, é um problema que está em crescimento?

    Sim.

    E como é que vê a sua evolução? Porque o problema está a crescer, as entidades por detrás deste complexo industrial de censura estão a tornar-se maiores, é uma indústria gigante… Por isso, como é que nós enquanto cidadãos podemos desmantelar isto, o que é que podemos fazer?

    Acho que a primeira coisa é mostrar às pessoas que existe, e que há ainda muita coisa que nós não sabemos também sobre o nível de censura que os sistemas de controlo de informação criaram. Outro passo é lutar contra muita da legislação recente que tem sido aprovada, na União Europeia, e a nível nacional, no Reino Unido, na Austrália, nos Estados Unidos, e por aí fora, e que está realmente a tentar institucionalizar a censura com o pretexto da desinformação e do discurso de ódio. E acho que criar órgãos de comunicação social independentes é fundamental, porque alguns canais de media foram tão “capturados”, e o debate é tão abafado… A democracia significa as pessoas dizerem o que pensam e a pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas, porque havia um custo social por dizerem aquilo que pensavam. Eu também estive calado durante algum tempo, acho que a maior parte das pessoas esteve, mas é crucial que deixem de estar.

    Para nós europeus, o que vimos passar-se na Austrália durante a pandemia foi um choque total e um horror. Como é que foi para si ver o que se estava a passar na Austrália, e na Nova Zelândia?

    Acho que muitas das pessoas na Austrália não faziam ideia que estavam assim tão fora do que era o “normal” das coisas… E, também, muitas das pessoas lá não tinham grande contacto com o exterior. Para quem não estivesse, por exemplo, em Melbourne, a vida era bastante normal em muitos sítios. Não se podia sair do país e talvez do Estado, mas, na verdade, não se sentia que fosse assim tão diferente. Penso que as pessoas em Melbourne e Sydney tiveram uma experiência muito distinta. E o facto de estarem muito desconectados do resto do mundo, por estarem muito longe, faz com que não se perceba bem o quão autoritárias as coisas se estão a tornar. E isso ainda acontece. Quando eu falo com os meus amigos, acho que eles não veem o quanto a Austrália se afastou das normas ocidentais. Claro que foi mau em Portugal, Espanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas a Austrália e a Nova Zelândia levaram mesmo a coisa a outro nível. Acho que há cada vez mais quem queira sair da Austrália e comparar as realidades, mas a Austrália é uma sociedade muito orientada para a segurança, por isso procura sempre minimizar riscos. É um país que não lutou pela sua independência para se tornar numa nação, por isso a maioria da população, pelo menos, não sabe o que é tomar grandes riscos ou lidar com grandes ameaças.

    Mencionou o autoritarismo e, nos últimos anos, temos vindo a seguir esse caminho, com uma nova ideologia nesse sentido a capturar o Ocidente. E isto pode ser algo cíclico, tal como já aconteceu no passado. Acredita que é possível que passemos mesmo a viver numa sociedade autoritária e que se perca a democracia?

    Sim, quer dizer, isso cabe às pessoas decidir. Infelizmente, parece que, neste momento, há muita gente que está bastante feliz a viver numa sociedade autoritária. Acho que muito poucos diriam que não desejam uma democracia, mas em muitos casos penso que o disseram, na verdade. Porque muitas destas insistências vieram do espectro “liberal” progressista da esquerda – que foi onde eu me inseri duas décadas da minha vida –, e acho que eles não o veem como autoritarismo, mas como um acto de consideração pelos outros, e cuidar dos outros com um sacrifício necessário em prol dos mais vulneráveis. Portanto, acho que eles não veem o autoritarismo, e isso é assustador. Eles acreditam mesmo nisso. E talvez também tenha sido assim comigo durante algum tempo. Mas, convencer as pessoas que existe um custo-benefício nestas coisas, e que perder liberdades e até segurança ao ceder demasiado poder ao Governo e às empresas, que essas mesmas pessoas de esquerda costumavam pôr em causa…

    Sim, e isso é muito estranho. Porque, do ponto de vista da esquerda, dos liberais, há uma década ver-se-iam estas grandes empresas – Big Pharma, Big Tech, os bancos – como egoístas e sedentos de lucro, capitalistas. Portanto, o que é que mudou, o que é que aconteceu à esquerda? Já não acham que estas instituições querem lucro e guerras?

    Sim, eu sei, esta é a pergunta de um milhão de dólares que toda a gente quer descortinar. Eu acho que, essencialmente, as pessoas trocaram liberdade por segurança.

    Mas não é uma segurança real. É uma grande farsa.

    Não, eu concordo, não é segurança, verdadeiramente. Mas acho que devido a esta troca de prioridades, decidiram que valia a pena fazer este “pacto com o diabo”, com as pessoas mais poderosas da sociedade. E creio que o crescimento do populismo de direita e esta polarização, retirou, essencialmente, a nuance e a sofisticação à crítica. Ou se formavam alianças com o poder corporativo liberal, ou sofria-se as consequências do populismo de direita. Portanto, penso que algumas pessoas se colocaram dentro destas opções limitadas, e decidiram escolher ou uma ou outra, em vez do que deveriam ter feito, que era criar mais opções.

    E há uma terceira opção, que é a dos cidadãos e da sociedade civil, com pensamento crítico. Não temos de estar divididos apenas em duas fações. Há uma terceira alternativa…

    Sim, há uma terceira alternativa, que é não escolher nenhuma das duas opções. Mas sim, penso que obviamente tem a ver também com as redes sociais e o medo da exclusão social. Mas este tribalismo, a limitação do espaço político e a polarização contribuíram para este fenómeno, e é por isso que acho que a existência de mais espaços heterodoxos e diferentes é algo fundamental nesta altura, em vez de se aderir a uma das duas “tribos”.

    A sua vida, trabalho e finanças melhoraram ou pioraram nestes últimos anos? Porque mencionou que durante muitos anos, tinha amigos mais conectados com o espectro liberal, de esquerda… De repente, está rodeado de pessoas que não concordam consigo e que o veem como uma possível ameaça. Isso afectou-o pessoal, profissional ou financeiramente?

    Sim, sem dúvida, mas talvez de uma forma diferente em comparação com outros activistas. Eu “liderei” devagar, não fui cancelado nem fiz nada abruptamente. Também porque eu queria, pelo menos, manter-me em contacto com as pessoas de mente mais aberta no espaço da esquerda ‘liberal’. Sem dúvida que houve pessoas durante a pandemia que não queriam falar comigo, porque eu tinha opiniões “erradas”. Financeiramente, tive sorte, de certa forma, porque há uma espécie de nicho e um espaço – embora não muito grande – para pessoas com ideias mais heterodoxas. Mas certamente que já não estou como estava quando conduzia uma ONG e em que tinha um excelente financiamento. Poderia lá ter continuado e estaria numa posição muito confortável. Portanto, sem dúvida que, voluntariamente, escolhi uma situação financeiramente mais precária, porque senti que estava a fazer parte de uma coisa que, não é que fosse totalmente desonesta, mas que certamente pactuava com desonestidades, com uma mentalidade cada vez mais autoritária.

    E qual é a sua visão relativamente ao Twitter e aos ‘Twitter Files’, que têm sido um marco em termos de mudar algumas opiniões em torno da censura. E o que é que pensa sobre a contratação da nova CEO do Twitter, que é uma executiva do World Economic Forum?

    Pois, não posso dizer que esteja entusiasmado, não é a escolha que eu gostaria de ter visto. Quer dizer, ainda não vi muita coisa sobre ela, mas pelo que vi, não é o que eu esperava que acontecesse. Parece que estamos a voltar ao ponto em que estávamos antes. Talvez possa ajudar a equilibrar as coisas, porque o Elon Musk parece muito errático e não um decisor consistente, o que talvez não seja um problema quando se constrói carros. Mas quando se está a dirigir uma rede social, as pessoas precisam de saber mais claramente quais são as regras. E não se pode saltitar de um lado para o outro e mudar as coisas, porque confunde muito as pessoas. Na construção de carros, um pode ser amarelo e o outro vermelho, e o público não participa nessas decisões, por isso não o confunde… Enfim, não sei, mas não é a escolha que eu teria esperado.

    E ainda está a trabalhar com os ‘Twitter Files’, ainda poderemos esperar novas histórias suas sobre o Twitter?

    Sim. Musk já não está a dar acesso a novos documentos, mas temos outros documentos sobre os quais ainda não se escreveu, por isso haverá mais.

    Participou numa conferência em Portugal sobre a pandemia e toda a propaganda a que assistimos. Qual é a sua visão sobre o que se tem passado na comunicação social e a propaganda à volta dos temas relacionados com a pandemia? Porque há alguns temas que são nocivos para as pessoas, pela forma como os media os têm transmitido…

    Sim, essencialmente, acho que houve uma quantidade enorme de propaganda. Por vezes, é difícil para as pessoas utilizarem esta palavra, porque fá-las pensarem nos anos 20 ou 30 do século passado, e talvez não seja a palavra mais adequada para os dias de hoje…

    Qual é a palavra que escolheria?

    Não sei, quer dizer, trata-se de controlo de percepção da informação. São campanhas de relações públicas muito sofisticadas. Penso que as pessoas entendem melhor assim. Se falarmos em propaganda, acho que corresponde mais à verdade, é factualmente correcto. Agora, se é ou não a palavra que fará as pessoas que estão mais à margem passarem para o nosso lado, é outra questão… Mas acho que houve claramente imensa propaganda. Foi altamente sofisticada, foi de um outro nível. Estávamos mais seguros no caso da guerra no Iraque. Porque, na altura, acho que as pessoas conseguiram perceber a manipulação, e foi por isso que houve muita contestação. Enquanto que, no caso da pandemia, acho que eles aprenderam muitas lições com a guerra no Iraque, sobre a necessidade de uma maior sofisticação na forma como os governos ou as empresas passam a sua mensagem à população. Precisa de ser muito mais social. Tínhamos Internet em 2003, mas era algo mais aberto e livre. Mais uma vez, acho que o Virality Project nos mostra quanta manipulação se engendrava e como se coordenavam os governos e as grandes tecnológicas e, infelizmente, a sociedade civil [na pandemia]. Muitos deles pensavam que estavam a fazer a coisa certa, e que estavam preocupados com a sociedade… Quando pensavam na vacina [contra a covid-19], imaginavam uma vacina tradicional – e eu ainda sou defensor das antigas vacinas – mas isto era outra coisa, e é muito difícil convencer as pessoas disso. Muitas pessoas ainda não se convenceram. No geral, as pessoas estão a tornar-se mais cépticas. Quase ninguém se tornou menos céptico ou mais crente de que o Governo fez a coisa certa. Portanto, isso dá-me alguma esperança de que as coisas estão a direcionar-se para um maior cepticismo, e acho que eventualmente uma massa crítica se irá formar.

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    Está, então, esperançoso num despertar da população em relação a estas campanhas de “relações públicas”, e espera que estejam mais atentos e vigilantes quanto a este “Complexo Industrial de Censura”…

    Bem, estou esperançoso, mas com cautela, porque definitivamente que não está a acontecer tão depressa como seria necessário.

    E, quanto ao trabalho: quais são os seus planos para um futuro próximo? Porque agora está a escrever mais sobre outros assuntos, e a Humanidade enfrenta outros desafios, como o dinheiro digital centralizado que está a chegar, e as cidades dos 15 minutos que estão a começar a ser testadas… São muitos os desafios. Quais são os seus projectos para o futuro?

    Está em desenvolvimento.. Uma das coisas é que continuo a trabalhar com Matt Taibbi nos ‘Twitter Files’. E, depois, estou no processo de estabelecer uma nova iniciativa que aborda os totalitarismos digitais, portanto, trata de censura, moedas programáveis, privacidade, este tipo de questões. E, na verdade, alguém está a trabalhar no lugar em que eu estava, no âmbito dos direitos humanos digitais que, de certa forma, colapsou porque foi [uma área] cooptada pela Big Tech. Por isso, estamos a tentar perceber como é que podemos reconstruir ou renovar este papel [da defesa dos direitos humanos online] que perdemos na sociedade civil.

    Isso dá-nos esperança, porque vimos, com choque, algumas ONGs no campo dos direitos humanos e das liberdades civis em conluio com os governos e com todo o autoritarismo a que assistimos. Portanto, está a dar-nos esperança.

    Farei o meu melhor.

  • ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    Spoiler: esta é uma entrevista imperdível para os amantes de cinema. Mário Dorminsky tem um extenso currículo, de muitas valências, mas um dos seus papéis principais é o de co-fundador do Fantasporto, considerado o maior festival português de cinema. A sua 43.ª Edição decorreu de 24 de Fevereiro a 4 de Março passado, pela primeira vez no histórico Cinema Batalha, reabilitado pela Câmara Municipal do Porto. Em conversa com o jornalista Frederico Duarte Carvalho, em exclusivo para o PÁGINA UM, Dorminsky fala da estreia do festival no Batalha e do estado actual da indústria cinematográfica, relembrando com nostalgia a “época áurea” do cinema em Portugal e as dificuldades actuais de promover a Cultura e os espaços culturais.


    Este ano, o Fantasporto esteve pela primeira vez no Cinema Batalha. Como foi a experiência neste Batalha renovado, e agora “casa” do Fantasporto?

    Honestamente?

    Talvez seja preferível então uma resposta politicamente correcta…

    Politicamente correcto, muito bem. Acho que já dei a entender… Penso que há duas valências, uma delas é aquela que o Batalha oferece a quem o visita. E, como aliás já vem sendo habitual, mas neste ano em particular, a nossa imagem internacional é muito mais forte do que a imagem nacional. E daí que todos os estrangeiros que nos visitaram – e que, pelo que se pode contabilizar, são cerca de 170, a não ser que haja outros espectadores que nós desconhecemos… Acho que eles gostam muito do espaço. E, de facto, o espaço é, à primeira vista, muito agradável. Depois, tem algo de muito particular, que é um painel do [Júlio] Pomar, que ocupa toda a altura do edifício, a nível interior, e mantém-se outro alto relevo no exterior. Em 2012, o edifício foi considerado de interesse municipal. E nesse ano, aliás, com a minha intervenção – e também na altura da Paula Silva, do IGESPAR –, resolvemos fazer um projecto para considerar este espaço como um edifício de interesse nacional. Entretanto, a terminologia mudou, e passou-se a usar o termo “monumento de interesse nacional”. Assim, há dois monumentos, neste momento, dentro deste espaço: um é o Fantasporto, e o outro é, concretamente, o edifício em si do Cinema Batalha, actualmente chamado de Centro de Cinema.

    Como potenciar isso?

    A lógica que eu veria, em termos de funcionamento desta sala, seria próxima de uma programação de uma Cinemateca. Por isso, com parâmetros de programação que seriam de maior abertura conceptual e, também, por outro lado, de uma linha mais autoral. E haver um certo equilíbrio. O problema é que, aparentemente, chegou-se à conclusão… Independentemente, de eu ter excelentes relações com o director desta casa, Guilherme Blanc, acho que há uma política erradíssima em termos da programação do espaço. Não é que não conheça, já ouvi falar, mas nunca tive coragem de ver 99,8% dos filmes que eles exibiram até agora, e que vão exibir até Julho. A programação é extremamente fechada, e acho que não atrai públicos. Atrair públicos será feito provavelmente através de convites à borla, algo que, estranhamente, nos edifícios da Câmara parece algo que acontece. Tivemos pedidos de borlas para o Fantasporto deste ano como nunca. Quer dizer, as pessoas acham que não há, de facto, bilheteiras para comprar a porcaria de um bilhete a cinco euros. Ou a dois euros e meio, que é possível se tiverem um cartão oferecido gratuitamente pela municipalidade do Porto.

    Achas que é devido à falta de valorização da cultura, que as pessoas pensam que a cultura é de borla? O valor de cinco ou de dois euros e meio é quase simbólico. E mesmo assim as pessoas não querem pagar…

    Não, não… Quer dizer, na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga.

    Ou seja, as pessoas pensam que já pagam a Cultura com os seus impostos.

    Exactamente. Eu também gosto, quando me oferecem a possibilidade de ir, sei lá, a um festival de rock; e ir de borla em vez de ter de pagar os 170 ou 200 euros pelos três dias, e até me oferecem, inclusivamente, um espaço VIP, onde posso beber, e vou mostrar-me. Aliás, o que acontece aqui, é a tal “quequice” de vir a um espaço como é, neste caso, o Batalha. Isto é, o Batalha antes de o ser, já é um espaço “queque”. No fundo, repete, aliás, aquilo que aconteceu com a Casa da Música no Porto, em que as pessoas iam ver determinado tipo de programação, que era uma programação hiper-elitista. Não acredito que as 700 pessoas dentro da sala fossem capazes de ter conhecimentos e gosto em termos musicais para poder sair de lá e dizer “magnífico”, “fantástico”, “genial”. E aqui, provavelmente acontecerá a mesma coisa no Cinema Batalha em muitos projectos que vão ser exibidos.

    Que cinema há no Porto no resto do ano, quando não há Fantasporto? Tirando o cinema comercial, obviamente… Em Lisboa, por exemplo, há a Cinemateca. No Porto, ainda está em funcionamento o Cineclube?

    O Cineclube do Porto fez uma sessão aqui e estava cheio. Uma sala pequena, tinha 120 pessoas. Mas, de qualquer forma, o que me parece é que este espaço, para conseguir conquistar público – porque ainda não conquistou –, vai acontecer o que já está a acontecer. Eu recebi já um convite para a próxima semana, à borla, para ver um filme e um ciclo que vai começar agora aqui.

    E vale a pena esse ciclo, ou não pagavas para ver?

    Não, eu nem de borla. Agora, a questão é que nem sequer aí há o factor de descoberta. Porque eu conheço o realizador, já vi um filme dele, e já disse que nunca mais vou ver nenhum.

    É uma questão pessoal?

    Não, é uma questão de gosto, e de aquilo que eu acho que é cinema e aquilo que eu acho que é instalação cinematográfica. É a mesma coisa que a exposição que nós temos aqui nesta casa, e que não nos permite colocar nada junto das paredes, nem podemos fazer sequer a exposição que estava prevista, do José Emídio, nos 60 anos do aniversário de uma das maiores estruturas culturais em termos de artes plásticas do país, que é a Cooperativa Árvore. De qualquer forma, o que acontece é que isso limitou-nos.

    E não houve cartazes dos filmes em exposição.

    Não tivemos hipótese de meter cartazes dos filmes, nem bandeiras dos países..! Uma vez, metemos bandeiras dos países à frente do Teatro Rivoli [risos]. Porque havia lá muitos buraquinhos, e disseram “ah, porque é que não põem bandeiras dos países?”, e pusemos. Pronto. Mas aquilo que costumamos pôr, que é billboards, cartazes dos filmes, que até são pagos; quer dizer, até as empresas pagam para ter os cartazes em destaque. Isso não, não pudemos pôr uma passadeira para fazer uma espécie de passadeira vermelha, pelo menos na abertura e no encerramento. Não pudemos fazer rigorosamente nada que tenha a ver com o festival. Para conseguir pôr um painel para tirar fotografias na entrada do espaço – aliás, não é bem na entrada, no lado esquerdo –, foi preciso ser o director a dizer que podíamos pôr ali. Eu acho que é do conhecimento geral, de toda a gente que vá à borla ao Fantasporto e participe no festival [risos], e que vê as condições de trabalho que a equipa tem… Quer dizer, tem um barraco que eu acho que aparece nas imagens. E ao mesmo tempo, tem um buraco por onde passam as pessoas que vão aquecer a comida no micro-ondas. E é isso o nosso espaço. O bar seria um espaço importante para nós, para que as pessoas se pudessem reunir, encontrar, beber uns copos. Aliás, os estrangeiros, em particular, gostam bastante de beber a nossa cerveja. E nem faço publicidade à cerveja que ainda apoia, ao fim de 42 anos, o Fantasporto, que aliás é a Superbock, precisamente [risos].

    Uma cerveja do Norte, pode-se mencionar como sendo um facto.

    Não, a Sagres também se bebe cá. Mas não interessa. Afinal, chegámos à conclusão que o bar fechava às 20 horas, o que quer dizer que abre às 15h e fecha às 20h. As pessoas não podiam sequer utilizar o bar. O único momento em que eu senti que houve alguma animação e gozo entre as pessoas, foi em certo dia ao fim da tarde, juntaram-se umas 30 pessoas, e o bar a fechar e as senhoras com vontade de ir embora porque já estava a chegar às 20 horas.

    Não lhes pagam horas extra… Mesmo havendo um festival internacional, não há horas extra e fecha tudo às 20 horas?

    Se houver, somos nós que pagamos, atenção, está contratualizado. Tudo o que sejam horas-extra, somos nós que pagamos, em qualquer das áreas. Inclusivamente na segurança.

    Mas o apoio da Câmara, ainda assim, é de salutar ou é apenas o possível?

    Não, não é só o que é possível. O problema é que o apoio da Câmara incorpora o espaço, que é algo fundamental. O Teatro Sá da Bandeira é o espaço que eu continuo a ter, no meu imaginário para fazer o Fantasporto à moda do Teatro Carlos Alberto, mas teríamos de ter dinheiro para o alugar.

    Achas que o Sá da Bandeira é que seria o sítio do Fantasporto?

    O Sá da Bandeira é o novo Carlos Alberto. Ou melhor, era um renovado Carlos Alberto.

    Tem condições?

    Tem, e a nível de estrutura e da engenharia, há 10 anos que estava garantida. E eu admito que ainda esteja, porque toda a estrutura de sustentação dos vários pisos é feita com grandes pilares de ferro, se é que se pode dizer assim. O que quer dizer que não há grandes problemas, excepto, dizem eles, nos camarotes mais elevados do espaço. De qualquer forma, é uma sala que é verdadeiramente gótica [risos]. E permite fazer, não só em termos de fachada como de entrada e de tudo, um espaço que não é fantasmagórico, mas visualmente atractivo.

    city buildings near body of water during daytime

    O Sá da Bandeira é privado…

    É privado, sim, e eles pedem um bocado de dinheiro por aquilo. Aliás, nós fazíamos lá o Baile dos Vampiros até determinada altura, só que depois os preços aumentaram substancialmente. Chegámos a fazer espectáculos musicais em paralelo com o próprio festival, com bandas de vários tipos, e lembro-me, por exemplo, de um momento interessante do Claudio Simonetti, que é o autor das bandas sonoras dos filmes do Dario Argento. Estavam lá os dois… E a adesão das pessoas a projectos desse género também é interessante, à parte do Fantasporto.

    Bom, não me mentiste, porque eu pedi-te só uma opinião sobre o Fantasporto aqui na Batalha, e nós já falámos de várias coisas.

    Mas há mais aspectos…

    Há mais aspectos de que possas falar? Então pronto, continua…

    Toda a área circundante. Isto é, toda a área circundante é bonita. É uma zona turística.

    É, temos o Teatro de São João…

    Exactamente. Só que, primeiro, não há parques de estacionamento. As pessoas perguntavam: “onde é que eu ponho o carro?”. Segundo, havia uma frequência de manhã muito magrebina. Pronto, não interessa estar a definir. Não tenho nada contra eles, mas a determinada altura… Aliás, até brinquei com uma realizadora turca e com o marido, e estava-lhe a dizer “opá, isto de manhã parece a Turquia, parece Istambul” [risos]. E, depois, ao fim da tarde, começa a ser uma coisa mais complicada. Além de uma coisa que me surpreendeu negativamente, e que eu aparentemente consegui resolver falando com o presidente da Câmara, que é a sopa dos pobres mesmo em frente ao Batalha. Tudo isso cria uma sensação de mal-estar. As pessoas diziam-me para olhar para dentro do Batalha.

    As sessões depois da meia-noite sempre foram uma marca do Fantasporto.

    Sim, foram uma marca, e até às duas e três da manhã, e por aí fora [risos]. E aqui não pudemos fazer. Aliás, viu-se pelo número de pessoas que estavam na sala.

    E a sala deste ano não foi muito grande, tem metade do tamanho daquela que tinham.

    Eu não queria falar nisso, porque isso é uma história que, então, estávamos aqui muito mais tempo a falar…

    Mudemos agora um pouco de prisma. Como é que está o audiovisual nacional, actualmente?

    Está excelente, nunca se viu tanto cinema como agora.

    Mas as pessoas vêem em plataformas, em casa…

    Estás a dizer o que eu ia dizer. Podemos falar claramente de tudo o que é streaming, logo aí, dos grandes, acho que são sete canais. As pessoas têm acesso a esses canais, e já estamos a falar aí das primeiras gerações de ‘fantas’. Porque as primeiras gerações de ‘fantas’ já foi há quarenta e poucos anos, não é? As duas últimas gerações já são a malta dos ipads, dos computadores, da piratagem [risos]. Das televisões que já começaram há uns anos a ter 30 ou 40 filmes quando entrou o cabo… Começaram a entrar 30, 40 ou 50 filmes diferentes por dia. Claro que depois repetem. Mas, lá está, as alternativas aí são tantas. Aliás, quando foi o período da covid-19, as pessoas mais jovens não sentiram nada [risos]. Já estavam habituadas a ver cinema em casa, já tinham com que se entreter à vontade.

    Aliás, diz-se que as restrições da pandemia só funcionaram mesmo porque as pessoas já estavam pré-habituadas a estar em casa. Foram elas que pediram para ficar em casa antes de o próprio Governo o decretar. Um grande exemplo de civismo, não é verdade? [risos]

    [risos] Exactamente. Os números são claros, muita gente já falou sobre esse tema. E vamos falar naquilo que é a única multinacional em Portugal, e que toma conta de 96% do mercado de distribuição e de exibição em Portugal, que é a NOS. E são nossos patrocinadores também, através da TV Cine. O cinema teve uma quebra, há dez anos, de 70%. Os dados do Instituto de Cinema, há dois anos, eram de uma quebra de mais 20%. Temos 10% do que era normal, o que é uma coisa absurda. A grande excepção, por exemplo, no ano passado, a nível de espectadores, foi o Top Gun – Maverick, que fez um número muito significativo de espectadores, e aparentemente, segundo o que foi dito, equilibrou um bocadinho as contas.

    E mesmo esse filme talvez tenha resultado porque era a continuação de um filme dos anos 1980. A geração que viu o Top Gun em 1986 quis agora vê-lo de novo no grande ecrã…

    Exacto, e tem uma banda sonora muito boa; já a do outro também era excelente. Ou melhor, é aquela que se adapta ao gosto da maioria das pessoas. E isso também levou a que o filme fosse, de facto, um sucesso.

    Sim, agora não é normal os filmes ficarem mais do que duas semanas nas salas, não é?

    E para fazer isso… Mas isso também é culpa da própria distribuição. Eu tentei manter a distribuição que fazia antes, mas só que a partir do momento em que passou a haver o domínio total – com a excepção concretamente das salas do El Corte Inglês, a UCI… Tirando essas salas, e outra meia dúzia que o Paulo Branco tem em Lisboa, se é que é meia dúzia, mais uma que existe no Porto e mais dois estúdios que fazem parte da estrutura de equipamentos municipais da Câmara…

    Voltando ao Batalha. Conseguias fazer alguma coisa com o actual Batalha?

    Tinha de ter uma programação completamente diferente. Estou-me a lembrar de duas salas no centro de Londres, com uma programação de filmes de culto, que é uma coisa que chama muita gente, e cada vez mais. No outro dia estava a falar com um distribuidor, e ele disse-me que agora ia comprar clássicos, que é o que está a dar. Quando ele fala em clássicos, eu depois cheguei à conclusão. era algo, sei lá, do tipo Streets of fire [risos].

    Todos os filmes que fizeram sucesso nos anos 1970 e 1980.

    Já são clássicos. E um gajo começa a pensar… Aliás, temos uma área chamada Fantasclassics, que este ano não fizemos. Quando começamos a pensar em clássicos… “Clássicos, mas este filme nós passamos. Já tem quarenta anos”.

    Na minha e na tua geração, quando pensamos em clássicos, estamos a pensar em filmes a preto e branco, até aos anos 1940-50, ou 60, no máximo. A partir dos anos 70 já são quase uns contemporâneos. Mas para muita gente até os filmes dos anos 90 já são clássicos.

    O próprio cinema americano altera o cinema mundial, e o cinema europeu se altera com o cinema novo.

    Se calhar há muitos filmes que estão clássicos porque só existem em DVD e VHS, e muita gente não os viu hoje, e outros já os viram há muito tempo.

    Aliás, se vamos pensar numa coisa que chegou a existir e que as pessoas nem sabem, que é uma coisa chamada 70 milímetros [risos]. E ver o Lawrence da Arábia em 70 milímetros, uma pessoa até fica com sede [risos]. Enorme filme, mas pronto. Estou a brincar com a areia porque se passa, de facto, no deserto.

    Mas estás a imaginar um Lawrence da Arábia no Batalha?

    Não dá, não dá, isto é miserável. Este ecrã é pequeníssimo. Quer dizer, para o tamanho da sala, o ecrã até dá mais ou menos neste momento.

    O IMAX também é o que faz sucesso.

    Eu pessoalmente não sou fã.

    Na indústria, parece que se está a privilegiar mais técnicas do que histórias. O que vês daquilo que te vai chegando?

    Ora bem, temos de dividir cinema em duas áreas completamente diferentes. As multinacionais, que continuam a ter produção própria; uma produção que, teoricamente, é feita para chegar ao mercado das salas de cinema. Quando eu falo em multinacional, pode-se pensar que são filmes que qualquer um pode exibir, mas não é verdade. Os distribuidores em cada país têm os direitos de uma determinada multinacional. Cá em Portugal, os direitos são todos da mesma empresa. Têm três nomes diferentes, mas é a mesma empresa e os sócios são praticamente os mesmos. Mas isso leva a que haja esse cinema, dos super-heróis e das “Ressacas”.

    E do outro lado tens um cinema de descoberta, daquelas cinematografias que normalmente não entram num país como Portugal. Daí que haja uma diversidade de países no caso do Fantasporto, que é brutal. Quer dizer, nós recebemos filmes de 60 e tal países, e temos filmes de 30 países a ser exibidos – que não entram em Portugal de maneira alguma, nem nas televisões nem em lado nenhum, já não há hipótese. Entravam no passado, no pós-25 de Abril de 1974. Estamos a falar já dos clássicos [risos]. Nem há cá, como em Espanha, alguns serviços de streaming que têm clássicos e filmes que, de alguma forma, foram fazendo a História do Cinema, e que raramente entram no circuito comercial. Nós cá somos extremamente radicais nesse aspecto. São raros os projectos que são organizados por institutos de vários países europeus, e que criam Festas de Cinema. Então, viramo-nos muito para a Ásia, onde de facto, o festival tem um peso muito forte.

    Há uns anos deram um prémio ao primeiro filme de ficção científica chinês.

    Sim. No próximo ano, a China vai estar presente em força no Fantasporto. Não só através da China mainland como através de Hong Kong e da Formosa. E depois, há países que ninguém liga e que têm coisas notáveis. A cinematografia do Cazaquistão é absolutamente brutal! Não exibimos nada este ano porque um amigo nosso, que é distribuidor, e por sugestão minha, vai fazer precisamente um pack de filmes do Cazaquistão para começar a divulgar através dos festivais. E, recebe também, logicamente, um fee de aluguer por esse núcleo de filmes que, entretanto, conseguir. Essas cinematografias são êxitos grandes em vários países. No ano passado, umas quatro dezenas de ante-estreias mundiais. Isso só mostra o peso do festival em certos países onde os portugueses não ligam ao cinema que lá se produz.

    Sim, somos mais bem tratados lá de fora para dentro…

    Eles sabem que o Fantasporto tem um impacto que lhes permite depois lançar o filme a nível internacional. Uma senhora que trabalha com festivais no Hungary Film Institute disse-me que para muitos o Fantasporto é um espaço de lançamento do cinema húngaro. Agora, há outros detalhes. Este ano tivemos cá 170 estrangeiros, dos quais 80% são realizadores de filmes que estiveram aqui presentes. E tivemos os realizadores desses países, aqui, sem pagar uma única viagem.

    Quer dizer que que o Fantasporto está bem de saúde, recomenda-se, e vai continuar no Batalha, enquanto não conseguires o sonho do Sá da Bandeira [risos].

    O sonho do Sá da Bandeira… Atenção, a minha equipa acha que é genial, mas eu preciso de ter o dobro ou o triplo do público que tenho neste momento. E para isso preciso de outro espaço, de estar noutra área da cidade.

    Mas o Fantasporto pode ser um espaço para que esta zona chame mais pessoas.

    A programação deste ano foi pensada para o Batalha, que é uma coisa que não é tão fácil quanto isso.

    Explica-me lá então como é isso…

    Nem os filmes que passámos à noite são tão para o grande público como era habitual no Fantasporto. Mas os filmes que passaram no Fantasporto são filmes de qualidade, ponto final. Goste-se ou não se goste.

    Aliás, o Fantasporto dava qualidade a filmes sem qualidade. Mas este ano não houve tanto disso…

    Não. Aliás, o filme mais maluco de todos é o Life of Mariko in Kabukicho, um filme japonês. Digo “maluco” no sentido de ser fora da caixa. Agora, o resto são filmes dentro da caixa.

    Uma coisa que acontece muito, quando os realizadores vêm ao Fantasporto, é que ficam com vontade de fazer filmes no Porto, ou em Portugal.

    E de vir outra vez ao Porto. Aliás, não quero mentir, mas recebi entre 10 a 12 mensagens, e as pessoas adoraram estar cá. E dizem logo: “o meu próximo filme vai ter de estrear aí”. Claro que é sempre uma forma simpática de…

    Não, mas eu estou mesmo a falar de pessoas que querem vir filmar ao Porto.

    Sim, isso tem acontecido. Aliás, o Shape of water [A forma da água, em português, vencedor de quatro Óscares em 2018, incluindo melhor filme e melhor realizador] do Guillermo del Toro, foi escrito cá, no Rivoli. O Argento também esteve cá a escrever um dos seus filmes. Há um espaço que desapareceu, quer dizer, não há a vivência de relacionamento entre os convidados, e que é fundamental. Não há esse espaço. Não é por acaso que as pessoas ficaram afastadas, quando há hotéis à volta da Batalha [risos]. Não é por acaso que as pessoas ficaram num hotel junto do Rivoli. Foram para lá porque eu quis que saíssem daqui e mudassem de zona. Sobretudo à noite, e que não acordassem nesta zona. Os nossos participantes reduziram de 100 para 25. Onde é que punham o carro? Pura e simplesmente perdemos participantes, perdemos público ao vir para o Batalha, e público tradicional do Fantasporto. Ganhámos um espaço que é bonito, agora se funciona…

    Quem escolhe os filmes são vocês os dois, tu e a Beatriz [Pacheco Pereira]?

    Sim, mas isso tem a ver também com a nossa formação, que curiosamente é muito semelhante.

    Beatriz Pacheco Pereira e Mário Dorminsky.

    Sempre funcionaram por serem um casal?

    Sim, mas por sermos muito diferentes, por vezes, nas escolhas. E isso é bom. Eu ainda no outro dia tinha saudades, e estava a dizer que era fantástico nós durante três anos enchermos, todas as semanas, o Coliseu do Porto com filmes que estávamos a exibir nas chamadas noites duplas do Coliseu. São 3.300 lugares, e enchíamos. Pá, onde é que isso é possível hoje? Não é.

    O Festival continuou a ser eclético, com a semana dos realizadores, o fantástico, terror, séries e documentários…

    Esse conceito foi muito interessante para a evolução do Festival. Mas, das duas uma: ou nos definimos como um festival de cinema fantástico, ou como um festival de cinema geral. E isso é uma coisa que, passados estes anos todos, eu acho que cria um bocado de confusão às pessoas. Por acaso, este ano, fizemos um acordo, digamos assim, para que a maior parte dos filmes da semana dos realizadores fossem thrillers. Quer dizer que encaixa mais ou menos…

    No fantástico…

    Não encaixa no fantástico, porque os filmes são realistas. O fantástico tem uma certa loucura, e nós este ano cortámos com essa loucura de uma forma mais ou menos radical. Loucura no sentido de serem, como dizíamos, filmes fora da caixa. Cortámos porque deixou de fazer sentido. Faz sentido se calhar no MOTELX, mas aqui não faz, porque isto é um festival generalista quase.

    Pois, então se calhar aquele público que havia nas sessões da meia-noite…

    Não gostou, mas não gostou já logo na altura da passagem do Carlos Alberto para o Rivoli. E houve ali logo um choque, mas nós não perdemos público. Fomos ganhar público, porque conseguimos conquistar não só o público do fantástico, como o do generalista. O problema é que as salas estão carregadas de DC Comics, Marvel, e super-heróis, e isso é o que agrada, neste momento, à geração que vai às salas de cinema. Porque os pais já ficam em casa… Isto é igual à música, atenção, com a música é a mesma coisa.

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    Eu conhecia o tempo do Carlos Alberto e agora está muito mais higienizado aqui. No Carlos Alberto uma pessoa pode fumar, comia-se dentro da sala se fosse preciso…

    Sim, sim, tomava-se o pequeno-almoço ao sair da sala, às 6 e às 7 da manhã.

    Sim, e agora está muito mais asséptico.

    E, nessa altura, os filmes não eram legendados, e tínhamos lá o homem do talho, da padaria… E no outro dia, uns tipos que me foram levar umas bebidas ao escritório, disseram: “epá, o Fantasporto no Carlos Alberto é que era”. E lá está, este público… Eu disse-lhe assim: “mas você não percebe de filmes”. E ele disse: “mas visualmente era uma coisa espectacular”. E pronto [risos]. A partir daí está explicado uma coisa que é inexplicável. Eu acho que as pessoas continuam a ouvir falar no Fantasporto. Agora, a forma como os media têm funcionado nos últimos dez anos, os jornais foram desaparecendo, e as televisões repetem as mesmas notícias 56 vezes… Não pegam em cultura. Pegam em música, alguns canais. Porquê? Porque os organizadores dos festivais conseguem fazer contratos com as bandas garantindo que a televisão A ou B vai poder exibir o vídeo XPTO.

    Uma das coisas que não quiseste nos últimos anos foi ter uma grande estrela mundial, uma carpete vermelha…

    Sempre quis a carpete vermelha. O problema é que, não tendo carpete vermelha, tenho de dizer aos tipos que, afinal, a roupa na noite de abertura é normal. Eles perguntam sempre qual é o dress code. Nos 25 anos do Fantasporto, montámos uma tenda gigante transparente na Praça D. João I, fizemos uma ligação de passadeira vermelha entre o Rivoli e a tenda. Foi no ano em que a Toyota chegou a fazer um carro Fantasporto, o I Go Fantas. E a Diesel fazia relógios especiais para o Fantasporto… As empresas participavam no Fantasporto de uma forma muito forte. E isso desapareceu.

    Porquê?

    Porque as pessoas começaram a não investir em publicidade. A Diesel, por exemplo, achou que bastava Espanha, não precisava de Portugal. E isso foi acontecendo em contínuo. Com os carros é uma questão diferente, detalhes. Mas pronto, fazer uma coisa glamorosa é perfeitamente possível, e eu aliás ando a chatear o Turismo do Porto e Norte de Portugal; é ridículo que não nos apoiem. Ou melhor, que não apoiem os nossos convidados, para que eles possam sentir algum glamour aqui. Quando vais nos autocarros de turismo, passam à frente do Rivoli e dizem: “aqui é que se realiza o Fantasporto”. Sente-se que há uma ligação directa da cidade com o Fantasporto, mas não é o Futebol Clube do Porto.

    Falta recuperar aqui uma simbiose… É possível recuperá-la?

    Recuperar a simbiose implica que haja um processo tipo Cannes. É ridículo estar a comparar, porque Cannes é Cannes, e aqui não há mercado.

    O nosso small is beautiful.

    Isso é perfeitamente possível criar. Agora, podes ter cânones importantes. Pode haver essa lógica da passadeira vermelha, só que eu tenho de pensar que, para trazer qualquer americano de Los Angeles, só um custa-me uns cinco mil euros. Mas eles não vêm sozinhos, vêm logo com não sei quantos guarda-costas.

    E estão a perder dinheiro ao estar aqui…

    A questão é um bocado essa, eles podem vir cá. Só nos 25 anos, tivemos cá, à vontade, 10 grandes nomes do cinema, dos quais dois oscarizados.

    Qual foi o que te deu mais prazer ter cá?

    O Guillermo del Toro, é evidente, porque já era amigo no passado. O Peter Jackson, por exemplo, nunca veio cá, mas é outro que tal. Nós tivemos patuscadas em vários sítios, os três. Três de barba, três gordos. Agora já emagreceram os outros dois [risos].

    Já estiveste tu, o Guillermo del Toro e o Jackson?

    Ui, umas quatro ou cinco vezes. Queres que eu te conte a história?

    Quero!

    Uma vez fomos a um boteco, daqueles que se comem tapas, só que o homem disse: “ah, ainda não abrimos”. E nós: “não se preocupe, que nós comemos tudo e limpamos tudo”. E o Guillermo, quando chegou cá, disse que não podia comer porque estava a emagrecer. Foi comigo à Brasileira, aquilo eram pratos atrás de pratos. E depois ainda comeu tripas à moda do Porto. E mais sobremesas… Opá, pronto. É malta porreira.

    Só para concluir, gostava de explorar a ideia das salas de culto, que eu acho que isso é parte do futuro. Explica-me lá como isso é.

    Eu e a Beatriz temos falado muito sobre que espaço é que poderíamos eventualmente ocupar, ou recuperar, para poder fazer uma sala de culto. O Cine-Teatro Vale Formoso é um dos projectos que nós temos, mas é um problema, porque é muito grande também. Não exageremos [risos]. Das duas uma, ou tenho parceiros para poder fazer outras coisas do Vale Formoso… Como está agora, para além da sala que tem, dá para fazer mais 10 salas! Cada andar dá para fazer à vontade quatro salas de cada lado. Aquilo é enorme, gigantesco. E tem uma piscina, porque aquilo era da IURD.

    Eu quero explorar mais o conceito em si…

    O conceito é Fight Club; é, sei lá, filmes de Tim Burton, que funcionam sempre. Danny Boyle, irmãos Cohen… Quer dizer, há todo um conjunto de cineastas e de gente que apela à atenção de quem gosta de Cinema, e já não vai ao cinema… [risos] Mas apela à atenção, e isso é fundamental. E eu acho que isso implica o espaço em si; e o que nós temos minimamente disponível são dois em centros comerciais, e eu não quero. Aliás, há três. E depois a montagem das salas, neste momento já é um bocado caro.

    Pena foi quando há 13 anos, a dona Margarida, dona deste espaço, não aceitou o contrato preparado pelo sobrinho dela, que é advogado, com que nós discutimos a possibilidade de vir para o Batalha. Era um projecto total, far-se-ia uma renovação do Batalha, que estava mais degradado. Mas nós não tínhamos na altura um valor de 800 mil euros para a renovação do espaço. E também tínhamos a certeza, e constava no acordo, que daríamos 30% das receitas após a recuperação do investimento feito. Portanto, não era um problema de ter ou não ter dinheiro, só que era uma lógica completamente diferente. A entrada, as bilheteiras, também seriam diferentes. Isto tinha um potencial, de cruzar inclusivamente música com artes performativas e Cinema, o que era excelente. Falhou, porque a dona Margarida decidiu não assinar o contrato, porque foi no período de pré-campanha eleitoral. E já tinha havido contactos, e houve promessas de que a Câmara compraria o espaço. Fez negócio com o Rui Moreira, que foi eleito, e fizeram um acordo. Por isso, quanto pensamos em espaços, é complicado. Há outros espaços, mas não foram cinemas; e os que existem, neste momento são escritórios.

  • ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    De onde surgiu o denominado wokismo e a cultura do cancelamento? Jorge Soley, economista espanhol e professor universitário, acredita que o movimento remonta à Revolução Francesa, mas que bebeu muito do regime comunista de Mao Tsé-Tung. Em O manual do bom cidadão, editado em Portugal pela Dom Quixote, Jorge Soley explica as estratégias e mecanismos que os “zelotes wokes” utilizam para silenciar os “hereges” do século XXI, proibindo o debate, humilhando os “transgressores” e impondo a auto-censura. Evocando diversos casos de palavras, livros, estátuas, e pessoas “canceladas”, em Espanha e no mundo, apela para a resistência à ditadura do politicamente correcto, porque “a neutralidade já não é uma opção”. Em entrevista ao PÁGINA UM, Soley disseca este fenómeno, transversal a todo o Ocidente, não esquecendo de falar sobre os “cancelamentos” durante a pandemia.


    Há quem critique aqueles que falam do ‘wokismo’ por não definirem, propriamente, o termo. Como deve ser definido?

    Não é fácil defini-lo numa frase, porque creio que não seja um movimento unívoco, já que agrega diferentes influências. Mas se tivesse mesmo de o definir, diria que é a crença de que o mundo em que vivemos é estruturalmente horroroso e que temos de o transformar todo desde a raiz. E que quem quer que se oponha é má pessoa. Penso que há muitos aspectos da questão, mas um aspecto comum em todo o mundo ‘woke’ e politicamente correcto é não quererem discutir. Querem cancelar o debate. Eu tenho as minhas ideias, e há pessoas com ideias muito diferentes das minhas, e podemos falar e trocar argumentos; poderão até convencer-me que algumas das ideias que tenho são equivocadas e incompletas, e vice-versa. Mas, no mundo woke, algo muito característico é a eliminação do debate. Porque dizem: “não, se tu não estás de acordo com isto, és má pessoa, és a favor do racismo estrutural, das fobias, da homofobia estrutural, e contigo não se pode falar porque estás do lado errado da barricada”.

    No seu livro fala das origens do movimento woke, defendendo não ser fenómeno de agora. Como surgiu?

    Creio que é uma confluência de muitos factores e alguns, inclusivamente, contraditórios. Detecto na Revolução Francesa alguns elementos, por exemplo, com o que se passou durante o Terror. É a tal ideia de que todos os que não estão de acordo comigo são inimigos da Humanidade; foi o que aconteceu com Robespierre. Nos dois séculos que se seguiram, foram-se somando novos contornos e, no meu livro, falo da influência da Escola de Frankfurt, de Antonio Gramsci, de Mao. Mais do que Marx, de Mao. Acredito que Mao, Gramsci, e a Escola de Frankfurt são muito importantes para a visão ideológica do mundo woke.

    De um modo geral, as pessoas ficam surpreendidas com a comparação que estabelece entre o Maoismo e o wokismo? Acham exagerado…

    Bem, sim… O que é que eu encontrei em Mao? Encontrei vários elementos que me parece que são semelhantes ao que estamos a viver agora. Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o facto de haver certas ideias não permitidas. Depois, outro paralelismo tem a ver com a Revolução Cultural. E também os fenómenos através dos quais, de repente, as massas se lançam sobre uma pessoa e a destroem. Evidentemente, na altura de Mao isso fazia-se com paus e afastando os professores que supostamente não compartilhavam do movimento maoista. Muitas vezes, havia castigos físicos. Hoje, evidentemente, o linchamento é feito nas redes sociais. Outro aspecto da Revolução Cultural é o exigir que os dissidentes, aqueles que não estão de acordo, se humilhem publicamente. E, para além disso, não basta humilharem-se, ficam estigmatizados para sempre. A escritora J. K. Rowling será para sempre uma “transfóbica”, porque já a rotularam assim. Mesmo que agora se arrependesse, seria igual, não valeria a pena, porque se pedir perdão é uma prova de que estava errado. Se eu cometo um erro, não tenho nenhum problema em pedir desculpa. Mas o que não vale a pena é desculpares-te numa tentativa de que te “salvem a vida”, ou que te perdoem, porque não te vão perdoar. Nem Mao, tão pouco, perdoava. A pessoa ficava marcada para sempre.

    Também é professor universitário, e as universidades, no mundo ocidental, têm tido um papel significativo na difusão do “politicamente correcto”. Em Espanha, como é a realidade nas universidades?

    Creio que em Espanha, como em todo o mundo ocidental, há alguns casos de professores submetidos a pressões, inclusive sob risco de perder o emprego, por dizerem o que teoricamente não se pode dizer: por exemplo, que há apenas dois sexos, e que a biologia não depende do que alguém pensa, é o que é. No entanto, penso que sobretudo o que procura a ideologia woke não é tanto castigar aqueles que dizem o que é supostamente incorrecto, mas sim a autocensura. E acho que em Espanha há muito medo e autocensura. Com a maior parte dos professores universitários vê-se uma grande diferença entre o que te podem dizer em privado e o que dizem publicamente. Ninguém quer problemas. Então, em privado diz-se algumas coisas, e depois, em público, sobre as “questões problemáticas”, fala-se de uma forma muito cuidadosa, e autocensuras-te. E penso que isso é um empobrecimento enorme para a dimensão intelectual. A meu ver, temos de dizer o que pensamos e argumentá-lo; a autocensura é sempre má. E, nas universidades, a autocensura está muito presente.

    Teve algum tipo de represálias ou reprimendas, no seu círculo profissional, por se insurgir contra o politicamente correcto?

    Na verdade, não tive problemas graves. Pode haver sempre alguém que te critica ou que te insulte, mas pessoalmente não me aconteceu nada de grave. E também é verdade que, onde estou, quem me rodeia até concorda mais ou menos com o que eu digo. Além disso, digamos, já tenho mais de 50 anos; se fosse um jovem universitário, com 25, 30 anos, teria mais cuidado e iria exercer uma maior autocensura sobre mim mesmo. Com a minha idade, já me autocensuro pouco.

    No livro, utiliza o termo “patologização do dissidente”, que consiste em, além de se acusar os críticos das pautas woke de “discurso de ódio”, atribuir-lhes fobias várias, o que permite cancelar o debate de uma forma até paternalista ou condescendente…

    Sim, parece-me que são tentativas de cancelar o debate, rotulam qualquer coisa de “discurso de ódio”, ou dizem que és louco e que padeces daquelas fobias. Por este caminho, acaba-se com a liberdade de pensamento e com a liberdade de expressão. Acho que é muito perigoso, e que se deve restringir o consenso do que é convencionado como discurso de ódio. Estritamente, deve ser algo que cause um dano real a outras pessoas. Tudo o resto tem de ser legítimo, numa sociedade democrática, e tem de se poder falar sobre. Na minha opinião, ninguém tem o direito a não ser ofendido. O problema da ofensa é determinar se houve ou não ofensa; é subjectivo, é da própria pessoa. Então, qualquer coisa, até uma pergunta, pode subjectivamente considerar-se ofensiva. Se aplicássemos esse critério, num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar. Então, acredito que temos que nos poder expressar em liberdade, e isso significará que haverá coisas que ofenderão as pessoas. Têm que se assumir isso nas democracias ocidentais, faz parte do debate poder ser ofensivo. A mim, há coisas que me dizem que me ofendem, mas eu, diante disso, em vez de “cancelar” quem o disse, tento dar-lhe argumentos para fazer a pessoa ver que aquilo que disse é um disparate. Se, ainda assim, a pessoa me quiser ofender, bom, é um problema seu. Mas, enfim, creio que é algo que faz parte da nossa vida em comum, da nossa civilização.

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    Há um apelo à vitimização?

    Sim, agora, parece que o segredo para prosperar nesta sociedade é encontrar um grupo ao qual possas aderir, e onde possas dizer que te vitimizaram, que és uma vítima. Houve um momento em que fazíamos piadas sobre “vitimizar” os gordos, os condutores de camiões, os comedores de pizza. E, o que era uma piada, entre amigos, agora, há quem o reivindique, dizendo que existe uma pizzafobia e que os comedores de pizza – que não comem saudavelmente – são vítimas de uma sociedade que os obriga a consumir. Ou seja, no movimento woke, perante qualquer disparate que te ocorra, é muito provável que se torne realidade – é apenas uma questão de sentar e esperar; se esperares algum tempo torna-se realidade.

    Fala também sobre como os “desejos” de certos grupos se transformaram em clamores por direitos. Acha que os wokes instrumentalizam a narrativa dos direitos humanos para conseguirem o que querem?

    Sim, eu creio que sim, existem direitos, que são universais e são para todos os Homens. Quando se fala nos direitos das minorias… quer dizer, são os direitos de todos, todos temos direitos! Aqui, o problema desta transformação do conceito de direito, é quando aquilo que eu desejo tem de se converter num direito. Se eu desejo, por exemplo, ter um filho, tenho o direito de o ter. E tenho de o ter, porque se é a minha vontade, então é o meu direito. Quando algo se transforma num direito desta forma… Um direito implica sempre um dever: o dever da sociedade e do Estado de garantir esse direito. Para mim, cada um tem o direito a tentar levar a vida que quiser. Mas não tem o direito a que esse direito lhe seja mesmo garantido, se por si mesmo não o consegue. Porque se o modo de vida a que aspiro envolve ter filhos, mas não os posso ter, eu não tenho nenhum direito a reclamar que, por exemplo, o Estado me pague um ventre de aluguer. O problema dessa inflação de direitos é que, no final, se gera uma inflação de deveres e isso parece-me muito perigoso, porque então, estamos a desvirtuar o que é a sociedade e o Estado para assegurar qualquer capricho de uma pessoa.

    Há quem argumente que ser contra o wokismo é ser contra a igualdade de oportunidades. Como responde a esta crítica?

    Acho que é o contrário. Opormo-nos ao wokismo é, precisamente, garantir igualdade de oportunidades para toda gente, independentemente do seu sexo, da sua raça, do que for. Nos Estados Unidos, a denominada política de identidade consiste em negar a igualdade para criar os novos privilegiados. Estes privilegiados são os grupos vitimizados. São os novos reis, os “aristocratas” que têm, por exemplo, ajudas do Estado, a quem se reservam lugares nas universidades e postos de trabalho. Os opositores do wokismo estão contra esta nova “artistocracia”; são a favor da igualdade de oportunidades para todos. Para grupos, minorias, todos. É um pouco aquilo que disse Martin Luther King, que sonhava com uma sociedade em que a cor da pele não tivesse importância. Eu creio que Martin Luther King, nisto, tinha razão. Hoje em dia, todos os defensores da Teoria Crítica da Raça, dizem que Martin Luther King era racista. Era um racista branco. Porque, afirmam, a sua visão, em defesa de uma sociedade em que ninguém é discriminado pela cor da pele, é, ao fim e ao cabo, consolidar o racismo estrutural branco. Mas eu acho que estão errados, e estou do lado de Martin Luther King.

    Sim, segundo esses teóricos, é possível que um negro demonstre “branquitude”, ao ser bem-sucedido e não se mostrar oprimido, por exemplo. Também alegam que todos os brancos são inerentemente racistas, sem excepção. Trata-se de argumentos circulares e, por isso, de falácias?

    Sim; não são, verdadeiramente, argumentos. Como são circulares, no final, digamos, são apenas dogmas de fé. Face a isso, não pode haver um debate racional, porque qualquer coisa que digas, para eles, demonstra precisamente que és um defensor do racismo estrutural. É igual. Não há debate, porque são afirmações dogmáticas e circulares.

    Cita vários exemplos de “cancelamentos”, nomeadamente sobre transsexualidade, orientação sexual e racismo. Também houve, recentemente, o tema da pandemia, que mereceu muitos cancelamentos e rótulos, a médicos e investigadores reputados. No seu livro, contudo, acaba por não abordar muito esta questão…

    Não sou cientista, por isso, na verdade, nunca me considerei negacionista nem nada, porque não tenho capacidade para julgar. Mas houve de tudo. Houve pessoas que disseram coisas que não se podiam comprovar; mas, depois, havia gente que dizia coisas pelas quais, num certo momento, foram canceladas porque se considerou que o que diziam era uma barbaridade, e que depois se viu que até tinham razão. Portanto, houve esse mecanismo de eliminar o debate com o rótulo de “negacionista”. Algumas pessoas, foram censuradas nas redes socais. E nas televisões públicas de Espanha foram excluídas porque expressaram dúvidas sobre o que dizia o Governo num dado momento. Coisas que, passado um ano, já se podia dizer e estava tudo bem, já não se era considerado negacionista por causa disso. Percebo que há momentos, como os que vivemos com a pandemia, em que havia muita incerteza e ignorância, não sabíamos o que enfrentávamos. Mas, apesar de tudo, há que assumir sempre riscos, é bom que as pessoas possam dar a sua opinião; e que possa haver um debate sobre as medidas, sobre as vacinas, os confinamentos e o seu impacto. Houve, por exemplo, uma pessoa que alertou para os confinamentos, porque poderiam ter um impacto muito negativo entre os adolescentes. E chamaram-no de tudo, disseram que não devia participar nos debates televisivos. E, agora, em Espanha, estamos a viver uma epidemia de suicídios adolescentes como nunca houve. Deveríamos tê-lo tomado em conta. Gostaria de pensar que, no futuro, se tivermos de enfrentar situações parecidas, possa haver mais debate e mais discussão civilizada, e ninguém seja destruído por dizer coisas diferentes das que diz, a cada momento, o Governo e o Ministério da Saúde.

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    Este livro tem como subtítulo “para compreender e resistir à cultura do cancelamento”. Como podemos, então, resistir e combater este fenómeno?

    Devemos combatê-lo de todas as formas. Podemos combatê-lo na nossa vida quotidiana, não cedendo, tendo a coragem de falar com naturalidade e dizer o que pensamos. Acredito que isso é muito importante, que cada um de nós possa dizer aquilo que quiser, e que o diga em público sem ter problemas. Se toda a gente fizer isso, é difícil que nos detenham. E, por outro lado, digo sempre, também, que temos de apoiar os meios de comunicação, universidades, políticos e intelectuais que falam abertamente contra o wokismo. Há que apoiá-los, porque pode ser-se corajoso, mas depois quando te atacam, é difícil. Eu já falei com pessoas que me disseram que se sentiam muito sozinhas por terem falado. Portanto, temos de dizer o que pensamos e, sobretudo, apoiar as pessoas com essa coragem. Há quem não tenha muita capacidade de influência, mas aquelas pessoas que têm, e que falam, devem ser apoiadas; escrevendo-lhes e mostrando-lhes o nosso apoio. Creio que tem de haver uma mobilização para que falemos. E, aliás, que se apoiem, por exemplo, os jornais que publicam entrevistas comigo [risos].

  • ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    A trágica história da jovem judia Anne Frank percorreu o Mundo e comoveu gerações. Contudo, o famoso Diário da jovem judia termina quando ela e a sua família – o pai, Otto, a mãe, Edith, e a irmã, Margot – e mais quatro clandestinos num “Anexo Secreto” são capturados no final de 1944. Por isso, nada ela escreveu sobre as suas experiências nos campos de concentração. Depois do Diário é a obra que, fruto da investigação de quatro historiadores da Casa de Anne Frank, em Amesterdão, revela os passos que se seguiram. Um dos seus autores, o holandês Bas Von Benda-Beckmann, esteve em Lisboa e conversou com o PÁGINA UM sobre estes oito seres humanos que caíram nas garras do Terceiro Reich.


    O Diário de Anne Frank vendeu mais de 30 milhões de cópias. Ainda havia algo mais para dizer?

    Boa pergunta. Eu escrevi o livro em conjunto com colegas da Casa de Anne Frank, e uma das nossas missões é contar a história de vida de Anne Frank tão integralmente quanto possível. E este livro foi, obviamente, uma parte muito importante dessa tarefa. O seu diário é muito famoso, e milhões de pessoas em todo o Mundo o leram, mas a história dela não termina aí, certo? E uma parte muito importante começa no momento em que o diário termina. É um período da sua história onde há muitas lacunas, porque já não temos o diário. Até à captura, conseguimos ver pelos nossos olhos o que lhe aconteceu, e a partir daí já não. Houve alguns jornalistas que exploraram este tema e que procuraram testemunhas oculares, e as entrevistaram, o que é significativo, mas mesmo assim não conta a história de forma tão completa como precisaríamos. Portanto, o que fizemos foi tentar reunir todas as fontes disponíveis, como relatos de testemunhas oculares, mas também pedaços de informação que a administração alemã mantém, bem como outros diários e cartas dessa época. Juntámos tudo isso e tentámos reconstruir de modo tão preciso quanto possível aquilo que realmente aconteceu. E perceber também o que é que aconteceu aos outros ocupantes do Anexo Secreto, quais eram as condições nos campos de concentração, e para onde foram levados. Porque assim também vemos a verdadeira importância da sua história, que não é só o diário, mas também o que aconteceu posteriormente, e onde, como e quando é que eles foram mortos.

    Bas Von Benda-Beckmann

    Nessa tarefa de reconstrução, quais foram os maiores desafios? No livro abordam os problemas que advêm das testemunhas oculares, que muitas vezes providenciam relatos contraditórios, para além do grau elevado de subjectividade.

    Sim, é complexo. Aquilo que tentámos fazer foi, entre nós, verificar as fontes. Se temos testemunhas oculares que estiveram juntas na mesma altura, as suas histórias complementam-se ou contradizem-se? E quando alguma coisa é contraditória, qual será a versão mais provável? Portanto, tentámos ser absolutamente transparentes. Há coisas sobre as quais temos a certeza, e aí dizemos “isto foi o que aconteceu”, e outras vezes expomos as diferentes versões do que poderá ter acontecido, de acordo com uma testemunha, e o que poderá ter acontecido, de acordo com outra. E salientamos os pontos em que os seus testemunhos se contradizem.

    Houve algum aspecto surpreendente no vosso trabalho de pesquisa? Descobriram algo que não estivessem à espera?

    Há um par de coisas muito importantes e inéditas que vieram à luz com esta pesquisa. Durante muito tempo pensámos que Anne e Margot Frank morreram no final de Março de 1945; e através de uma reconstrução cuidadosa do que lhes aconteceu, pelo que relataram as testemunhas que as viram pela última vez, e que falaram sobre as doenças e as mortes de que elas padeceram, conseguimos saber que, na verdade, faleceram mais cedo, no início de Fevereiro. E isto pode parecer um pequeno detalhe, mas eu penso que o simples facto de ser tão difícil reconstruir a vida de alguém nesta situação e descobrir coisas básicas como quando foi o momento da sua morte, torna importante tentar fazer precisamente isso. Houve uma tentativa deliberada de apagar a história destes seres humanos e dos factos sobre o que lhes aconteceu. Portanto, desfazer isso e tentar juntar os pontos é algo que considero muito importante, não apenas por eles mas por todas as vítimas do Holocausto.

    Também destacam que alguns sobreviventes mostraram um certo desconforto e ressentimento por a história de Anne Frank se ter tornado tão conhecida, receber tanta atenção, quando é apenas uma entre milhões de vítimas do Holocausto. Como interpreta isso?

    Em primeiro lugar, eu consigo compreender esse sentimento, porque é verdade que a história desta família é muito importante, e toda a gente a quer ouvir, mas há também muitas outras histórias que foram esquecidas. E esse ressentimento também existe porque essas testemunhas oculares são entrevistadas e os entrevistadores perguntam-lhes muito sobre Anne Frank e a sua família, quando elas próprias também viveram algo muito dramático e horrível. Mas interessante é observar que estas vítimas não mostram apenas ressentimento, mas também ambiguidade, porque reconhecem a importância de Anne Frank como um símbolo na transmissão destas histórias e como alguém que é importante para espalhar a palavra sobre o que lhes aconteceu.

    Quais os motivos, na sua opinião, para a história de Anne Frank, em particular, se ter tornado tão conhecida?

    De muitas formas, ainda é um mistério. Penso que ajudou ela escrever realmente bem; portanto, o diário, se o lermos agora, mostra-nos mesmo o crescimento de uma jovem, que escreve sobre as suas emoções de uma forma muito vívida, e acho que isso ressoa em muitas pessoas. A certa altura simplesmente se tornou algo grande, fez-se uma peça de teatro e um filme, e tudo isso contribuiu para tornar a sua história famosa. Mas a pergunta é legítima: porque é que acontece a uma história e não a outra? É sempre muito difícil de dizer, e eu penso que talvez, se falarmos dos anos 1940 e 1950, quando a história de Anne Frank começou a tornar-se conhecida, provavelmente ajudou o facto de o diário não ser sobre o Holocausto. O diário é sobre uma rapariga num esconderijo e sobre a perseguição aos judeus, mas termina no momento em que o nosso livro se inicia. Não só na Holanda, mas noutros países também, não havia muito espaço para contar histórias horríveis sobre as vítimas e sobre o Holocausto em si, logo a seguir ao fim da guerra. O Diário é sobre esperança, e transmite muita positividade, enquanto que, se lermos o que sucedeu depois da sua captura, não existe qualquer espaço para positividade. Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível.

    Aborda também as hierarquias que se estabeleciam dentro dos campos, e dos kapos, que eram prisioneiros, alguns deles judeus, que exerciam a função de guardas. Porque é que o regime nazi criou esta dinâmica, em que uns prisioneiros obtinham privilégios e podiam mandar nos outros?

    Essa era uma parte da perversão no sistema dos campos, em que se dava a alguns prisioneiros poder sobre os outros, estimulando também que se tratassem mal entre si. A maioria dos kapos em Auschwitz não eram prisioneiros judeus, eram polacos ou presos políticos ou criminosos de guerra. Mas no campo de Westerbork, por exemplo, que foi o primeiro em que os Frank estiveram, aí já eram judeus, porque a maioria dos prisioneiros eram judeus. Mas isto era parte de um sistema mais abrangente de hierarquias, em que eram concedidos “privilégios” a algumas pessoas, o que acabava por ajudá-los a sobreviver aos campos. E os restantes, que não tinham estes privilégios, tinham uma experiência muito mais dura e menores chances de sobreviver. Portanto, era uma parte da realidade da vida nos campos, e penso que também assumiu um papel muito importante nas vidas dos ocupantes do Anexo, porque no caso de Peter van Pels – o rapaz que tinha mais ou menos a idade de Anne –, quando ele foi enviado para Auschwitz, através de alguns contactos conseguiu um trabalho muito bom como carteiro. Portanto, ele não era um líder nem um kapo nem nada do género, mas também estava numa posição privilegiada, porque podia abrir encomendas e tinha de desempacotar a comida e levá-la para o staff da cozinha, e assim conseguia muito facilmente guardar algum alimento para si. E, além disso, estava em posição de ajudar Otto Frank, que ficou doente em Auschwitz e teve de ir para o hospital, onde não havia cuidados médicos, por isso ele foi apenas deixado lá. Otto ficou muito dependente de Peter, que tinha uma posição que lhe permitia andar pelo campo e visitá-lo e dar-lhe comida extra. E isto foi muito importante para a sobrevivência de Otto. Por isso, sim, a posição em que se era colocado e o trabalho que se conseguia tinham um papel preponderante nas hipóteses de se sobreviver.

    Também destaca aqueles que eram os primeiros a chegar aos campos, que se tornavam uma espécie de veteranos e podiam deter alguma vantagem sobre os que vinham depois.

    Sim, isso é verdade, sobretudo para o campo de Westerbork. Os kapos de lá eram quase exclusivamente refugiados judeus da Alemanha, enviados para este campo durante o final da década de 1930, portanto, antes da invasão da Polónia. Era um campo de refugiados antes de os alemães o tornarem num campo de trânsito para as deportações. Por isso, alguns destes judeus já lá estavam no campo e, quando se tornou num campo de trânsito, eram os prisioneiros mais antigos. E eles conseguiram esses trabalhos mais cobiçados, e como eram alemães, falavam a língua, por isso era mais fácil para os guardas da SS [abreviatura de Schutzstaffel, autoridades do regime nazi] – que eram muitos poucos nos campos –, e para os chefes, trabalhar com eles. Portanto, era muito claro que estes prisioneiros mais velhos se tornaram nesta espécie de classe mais alta, responsável por guardar os restantes prisioneiros.

    Portanto, todos esses factores aumentavam consideravelmente as hipóteses de sobrevivência.

    Exactamente. E vemos, de uma forma muito clara, no caso de Peter van Pels [um dos ocupantes do Anexo Secreto] que esses privilégios podiam perder-se muito abruptamente. Quando Auschwitz estava prestes a ser libertado, e todas as pessoas do campo foram evacuadas e postas em marchas de morte para os outros campos – Otto estava no hospital e, por isso, ficou para trás –, Peter foi levado para Mauthausen, e aí perdeu todos os privilégios. Passou a estar num novo campo, as regras eram diferentes, e voltou outra vez à estaca zero. E nós também utilizámos a entrevista de outro rapaz judeu da Holanda com o mesmo percurso e que teve o mesmo tipo de posição em Auschwitz, e ele explica o choque que foi perder a posição que tinha, e caminhar na marcha da morte, ser maltratado e agredido. Mal sobreviveu. Esse rapaz sobreviveu, mas Peter não aguentou. O mais trágico é ele ter sobrevivido até à libertação do campo, mas, poucos dias depois, faleceu.

    Campo de concentração de Bergen-Belsen, onde Anne Frank morreu em Fevereiro de 1945.

    Outra parte que chocou muitas pessoas foi a existência de guardas femininas nos campos, capazes de cometer actos de grande crueldade. Qual era o papel destas mulheres?

    Na maioria dos campos, os homens e as mulheres eram separados uns dos outros. Em muitos dos campos, as zonas onde as mulheres ficavam eram fiscalizadas por mulheres. Não eram guardadas apenas por mulheres, mas as mulheres desempenhavam um papel importante nessas áreas.

    Para o regime nazi era relevante serem mulheres a vigiar outras mulheres?

    Sim, mas não era algo exclusivo dos nazis; era algo bastante comum de se fazer, optar-se por ter guardas femininas a supervisionar prisioneiras. Essas guardas-mulheres foram criadas e treinadas entre os nacionais-socialistas nesta linha de tratamento duro e de radicalização, numa forma muito semelhante aos homens. Acho que esta perplexidade sobre o papel dessas mulheres talvez diga mais sobre o que nós pensamos que elas deveriam ser. Se pusermos pessoas – sejam homens ou mulheres – neste tipo de treino e de pensamento, que vêem os prisioneiros como não sendo humanos como nós, é algo que pode acontecer. De facto, creio que, depois da guerra, as guardas-mulheres em particular foram tratadas como se fossem loucas, enquanto que, relativamente aos homens, se esperava mais que eles fossem violentos sem que isso fosse visto como fruto de alguma perturbação mental. Nos processos em tribunal depois da guerra, vemos que estas mulheres foram frequentemente tratadas como sendo loucas.

    A proporção de guardas masculinos e femininos era semelhante?

    Não, não, havia muitos mais guardas masculinos do que femininos.

    Também é interessante que, como é referido várias vezes no livro, Otto Frank, e outros sobreviventes, não se tenham estendido muito nos seus depoimentos e não falaram sobre as suas experiências com detalhe…

    Sim, seria de pensar que Otto Frank providenciaria um depoimento mais extenso. E eu acho que isso de pedir-se às pessoas que nos contem as suas histórias de vida em grande detalhe é algo que nós, como sociedade, só começámos a fazer já depois de ele ter morrido. Portanto, nós vemos projectos como o USC Shoah Foundation, ou o History Project nos Estados Unidos, em que pedem às pessoas para testemunhar durante horas e horas sobre o que lhes aconteceu, mas isso só começou por volta dos anos de 1990. Então, nós vemos com frequência que estes testemunhos mais iniciais não são tão detalhados como os testemunhos posteriores. Creio também que Otto acreditava em contar o que lhe aconteceu, a ele e aos judeus em geral, utilizando o diário da filha. O Diário foi algo ao qual ele dedicou a sua vida. Ele estava disposto a falar um bocado sobre a sua experiência, mas o mais importante sempre foi o diário de Anne, a história dela. De resto, talvez se devesse também a razões psicológicas, e definitivamente terá que ver com o trauma por causa de tudo o que passaram.

    Isso obstaculizou de alguma forma a investigação do Holocausto?

    Um obstáculo… Sim, por vezes queríamos falar mais sobre o que aconteceu. Felizmente, temos outras testemunhas que tiveram vidas longas e foram entrevistadas já após a morte de Otto, e que complementam a história contando as suas experiências. Alguns amigos de Otto deram testemunhos muito detalhados sobre como sobreviveram juntos a Auschwitz, e como tentaram não desistir. Portanto, sim, tivemos que olhar para outros depoimentos.

    Já se passaram quase 80 anos desde o fim da Guerra, e este livro ainda traz novos dados sobre esta já tão conhecida história. Ainda há margem para novas desenvolvimentos no futuro?

    É sempre difícil de dizer. Já percorremos um longo caminho, sobretudo quanto ao período nos campos. Surpreender-me-ia se descobríssemos algo completamente novo para acrescentar a esta história, até porque este livro não é apenas o resultado da nossa pesquisa para a Casa de Anne Frank, mas também reúne tudo o que fizemos e pesquisámos durante as últimas décadas. Portanto, seria surpreendente encontrar algo novo, mas nunca temos certeza na investigação histórica. É sempre possível que novas informações se revelem. Por outro lado, nas biografias destas pessoas, que terminam nos campos de concentração, penso que há mais terreno para desbravar relativamente às suas vidas na Alemanha antes de terem sido obrigadas a fugir para a Holanda, e ao período que antecede. Nunca se sabe. Da família Frank, claro, já sabemos bastante. Mas dos outros ocupantes do Anexo e dos ajudantes, acho que ainda haverá mais coisas para contar, sim.

  • ‘A independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa’

    ‘A independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa’

    Jornalista veterano, professor universitário – leccionando ética e deontologia no Jornalismo –, Paulo Martins é um nome incontornável na Imprensa em Portugal. É também o autor do livro “O Bairro dos Jornais”, que reúne o património histórico sobre a concentração da imprensa no Bairro Alto, em Lisboa, precisamente o local que é hoje a casa do PÁGINA UM. Numa entrevista, dada na redacção do PÁGINA UM, na véspera do primeiro aniversário do jornal, Paulo Martins fala da História do Jornalismo em Portugal, mas também partilha a sua visão sobre os actuais desafios da classe e a grave crise do sector. Defendendo a ideia do apoio público aos media, critica porém o “mimetismo” que grassa no sector, com os órgãos de comunicação social a fazerem todos as mesmas notícias, com o mesmo ponto de vista. E avisa que a pressa em publicar notícias pode contribuir para a desinformação. Sobre a dificuldade no acesso a informação pública, Paulo Martins ainda alerta: “fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos”. Pode ouvir a entrevista integral (não editada) no PODCAST do PÁGINA UM.


    Foi difícil preparar esta entrevista, porque temos tantos temas que poderíamos abordar. Mas começo por te perguntar: de facto, este património da História do jornalismo parece-te estar protegido hoje? Agregaste isso neste livro [O Bairro dos Jornais, publicado em 2018] mas, de resto, parece um pouco disperso e poucas pessoas sabem dele…

    Pois, eu acho que os poderes públicos esquecem-se que têm aqui um património importante, até do ponto de vista turístico. Porventura, noutro país em que a imprensa tivesse tido este significado num espaço que basicamente é o Bairro Alto e o Chiado, com uma enorme concentração de jornais, seguramente que já haveria visitas guiadas a antigos espaços. Não faltam aqui na zona edifícios que receberam gerações de jornais sucessivamente, desde o século XIX. Enfim, o Diário de Notícias, naturalmente, porque teve várias publicações, o Grupo do Século… mas outros edifícios, como por exemplo um que fica no Largo de Camões, recebeu pelo menos 20 jornais ao longo dos anos; de curta duração ou de maior duração. Eu acho que esse património devia ser transmitido, isto é, esta é a pátria da imprensa em Portugal. Não há outra, há pouco mais do que isto em termos de dimensão. Infelizmente, já estão poucos títulos aqui e felicito-vos por terem escolhido este espaço para reatar com a história tão nobre do jornalismo no Bairro Alto.

    Paulo Martins, anteontem, na Rua do Diário de Notícias, no coração do Bairro Alto, momentos antes de conceder entrevista ao PÁGINA UM

    E uma das questões que referes no teu livro, e que ressalta para quem é jornalista, é aquela ligação forte que existia entre política e jornais e jornalistas. Andavam de mão dada. Como é que era antes, e como é hoje?

    Há vários “antes”. Dois ou três dados sobre isso. No século XIX, um senhor que foi dos mais dinâmicos jornalistas desta zona, o Rodrigues Sampaio, que tinha o Revolução de Setembro, e depois criou outros jornais, andou com a imprensa de um lado para o outro, a fugir às autoridades e a escapar à censura… Quando teve ele próprio a oportunidade de ser ministro, impôs uma lei da rolha e passou a ser atacado pelos jornalistas, porque seguiu esse caminho. No tempo da ditadura fascista, aconteceu basicamente o mesmo, não é? Talvez seja importante nós percebermos o contexto geográfico. A minha ideia no livro foi partir da geografia para a ocupação do espaço pela imprensa. Estamos a falar de quase 600 jornais que eu identifiquei desde 1850, quando os jornais passaram a ter uma referência específica à redacção, porque até aí não tinham; tinham, eventualmente, a tipografia. E portanto, nesse período, todos os jornais vão-se concentrando aqui. Mas, por exemplo no Estado Novo, tinhas também a Casa da Imprensa, que é aqui na zona, existe ainda hoje, e ainda bem que existe; é uma associação mutualista da área da comunicação. O Sindicato dos Jornalistas, que não é muito longe, na Rua dos Duques de Bragança, portanto ao pé do Chiado. E os serviços de censura, que ficavam em frente do República, ao lado de onde é hoje a Associação 25 de Abril, que teve os jornais do regime – o Diário da Manhã e a Época –, e tinha tido antes um jornal ferozmente republicano chamado O Mundo, que os opositores monárquicos chamavam “imundo”, porque era de uma violência inaudita contra a monarquia. Portanto, há vários momentos de relação com a censura ou com a situação, não é? No pós 25 de Abril, juntaram-se aqui vários jornais, além dos jornais que já existiam, sobretudo vespertinos: O Diário de Lisboa, A Capital, O Diário Popular… foram criados aqui alguns jornais do “contra” no sentido de serem jornais saudosistas do anterior regime, no mesmo espaço onde estavam os jornais claramente colocados no lado oposto do espetro político. E o que mais me chamou a atenção, nesse período do Estado Novo, foi que as cumplicidades e a camaradagem entre jornalistas se sobrepunham às posições políticas. Quer dizer, ninguém aceitava a censura, mesmo os jornalistas que eram próximos do regime, mas havia jornalistas que eram próximos do regime e outros que não eram, e conviviam, passavam material uns aos outros. Isto é, a cooperação sobrepunha-se à competição, sendo que cada um tinha de competir. Posso contar-te, a esse propósito, um episódio muito interessante. Um administrador do Diário da Manhã, que era um jornal financiado pelo Governo do Salazar – portanto, era financiado pelo Estado –, mandou uma carta precisamente a Salazar a dizer que estava com problemas financeiros, porque ninguém comprava o jornal e os poucos que compravam escondiam-no, e que até já tinha tido necessidade de pedir papel ao República, que ficava do outro lado, na rua da Misericórdia, e que era da oposição. E o jornal República fornecia o papel, porque era necessário [risos]. Isto é uma coisa difícil de compreender fora desse contexto, da tal partilha do mesmo espaço. E isso é nítido nas memórias dos jornalistas que eu usei como fonte neste livro, porque não havia nada sistematizado, e o que há é sobretudo livros de memórias dos vários jornalistas.

    Paulo Martins, e o seu livro O Bairro dos Jornais, na redacção do PÁGINA UM, com os jornalistas Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira

    E escreves também sobre jornais que nasceram com propósitos políticos, digamos assim.

    Claro, claro. Sobretudo no século XIX… E já não falo sequer dos jornais da chamada propaganda republicana, que a partir do ultimato de 1880 passaram a ser ferozmente anti-regime de uma forma que nós hoje ficaríamos impressionados com a ética que poderiam ter, se é que tinham alguma [risos]. Portanto, eram de uma violência enorme contra a monarquia; espalhavam boatos e aquilo a que nós hoje chamaríamos “desinformação”, que sempre existiu. Mas os jornais nessa época, no século XIX, eram, em grande parte, jornais criados por partidos ou por tendências dentro dos partidos, que muitas vezes eram criados para conduzir um deputado ao poder, por exemplo, e depois desapareciam. Há um episódio que me contam, em que o jornalista em causa, que se chamava Alberto Bramão, confessa nas suas memórias que a certa altura lhe mandaram escrever um texto violento contra um político, que era director de outro jornal. E ele escreveu, e nem sequer assinou, porque na altura não se assinava. Depois descobriu que era mentira, e ficou revoltado por ter escrito uma coisa que lhe encomendaram e que era mentira, e então demitiu-se do jornal. É uma coisa espantosa, porque ele não tinha sequer de assumir aquilo, não assinou, não é? Mas, a certa altura, ele dizia uma frase fantástica sobre o episódio, que era: “o capitão manda e o marinheiro obedece”. Portanto, ele estava disponível para escrever por conta de qualquer tendência política, era o ganha-pão dele.

    Mas há uma ideia, se calhar, em algumas pessoas, de que, antigamente, havia um jornalismo puro, e que hoje é que está muito diferente… Só lendo o teu livro e a história do jornalismo se percebe que não era assim. O jornalismo caminhou muito e hoje tem qualidade [em comparação].

    Não era assim nem tem de ser. Eu acho que a discussão é um bocadinho diferente. Eu costumo defender, até do ponto de vista académico, que a independência do jornalismo não é todos fazermos de conta que não temos partido nenhum. É assumirmos as nossas posições, e sermos julgados com base no conhecimento público dessas posições.

    Aliás, há jornais que editorialmente se assumem…

    Exactamente, e assumindo-se editorialmente como sendo de uma área política ou de outra, não significa que sejam menos profissionais. Podem seguir as mesmas regras, e devem seguir as mesmas regras. O jornalismo é, basicamente, como dizem dois autores americanos, uma disciplina de verificação. É um método, e se cumprimos todos o método havemos de chegar a resultados semelhantes, não iguais, porque isto não é matemática. Felizmente, não é? [risos] Mas não tem nada a ver com o posicionamento político; quer dizer, a ideia de que somos muito independentes e, portanto, não tomamos posição nenhuma… O facto de não tomarmos posição é, em si, uma posição. Portanto, não faz sentido fazermos de conta que somos independentes. O que é que eu quero dizer com isto? Que, basicamente, eu prefiro os poucos jornais que na fase democrática da nossa História, desde 1974, assumiram posições [políticas], claramente do ponto de vista editorial; por exemplo O Independente. Era claramente um jornal à direita e assumia-o. Eu trabalhei n’O Independente e sempre fui de esquerda e nunca me ocultei, e ninguém me obrigou a ser diferente. Do ponto de vista editorial, seguia a sua linha, e os jornalistas faziam o seu trabalho. E depois O Diário, que era próximo do Partido Comunista e assumia essa condição. E as pessoas compram, ou lêem, e acreditam… Ninguém é independente, ninguém está “de fora”… Nós somos cidadãos também. Em tempos, um jornalista chegou a dizer que era tão independente que nem sequer votava. Isso é um disparate absoluto, não é? Eu prefiro os jornalistas que assumem a sua posição, clubística, política, partidária, se a têm. E depois nós julgamos em função disso; não vale a pena fazermos de conta. E nessa altura ninguém fazia de conta, porque todos tinham essas posições mais ou menos marcadas.

    E contas também como havia todo um rol de publicações satíricas e de crítica, ou seja, havia uma multiplicidade de exemplos que não têm muito a ver com aquela ideia de jornalismo puro e objectivo, que se calhar existe numa camada da população que não conhece a História do Jornalismo.

    Não, os jornais muito cedo se estratificaram internamente. O repórter era o coitado que estava à porta da esquadra a ver se conseguia alguma coisa, e que tinha uma arte específica para isso, que não era a mesma que a do redactor. Ele levava o material e o redactor escrevia em português. Ou seja, basicamente dava forma jornalística às informações dispersas. Mas há outro aspecto muito interessante, do qual eu tomei consciência quando investiguei para o livro, e eu digo isto um bocado na brincadeira, mas é verdade: só mais tarde é que surgiram os vespertinos, mas, logo no século XIX, os escritores trabalhavam nos jornais para ganhar dinheiro à tarde, e de manhã escreviam contra os jornais [risos]. Por exemplo, Eça de Queiroz tem belas peças contra os jornalistas, pelos quais ele não tinha grande consideração, mas ele escrevia para os jornais para ganhar dinheiro. Sei lá, o [historiador e político do século XIX] Oliveira Martins foi director de um jornal… Repare, o caso do Oliveira Martins é muito interessante, porque o jornal estava no edifício onde fica hoje uma seguradora, no Chiado, em frente à boca do metro, do outro lado. E eu tive muita dificuldade em perceber onde é que, afinal, era o jornal, porque na época, toda aquela rua era a Rua Garrett. E agora aquela parte é o Chiado, não é? E esse jornal tem uma história giríssima, precisamente no período em que Oliveira Martins era director e acontece o Ultimato inglês, e os jornais todos – monárquicos e republicanos – tomam posição contra o Governo por se ter posto de cócoras perante a Inglaterra. E o jornal chamava-se Repórter. Então, eles decidem que o jornal deixa de chamar-se Repórter, porque não pode ter um nome inglês [risos]. E muda de nome, e muda-se para o Bairro Alto. E o jornal era muito afirmativo em termos políticos. Montes de escritores de renome escreveram nos jornais. Depois, mais tarde, na fase do Estado Novo e da Primeira República, foi a mesma coisa. Por exemplo, uma grande figura do Estado Novo, que é aliás o ideólogo do ponto de vista cultural, que é o António Ferro, escreveu em vários jornais, incluindo O Diário de Lisboa. A memória que temos d’O Diário de Lisboa é que era um jornal contra o regime, mas nos primórdios tinha o António Ferro entre os seus colaboradores. O Almada Negreiros… enfim, essa é outra vertente, que é, tínhamos muitos jornais humorísticos, como O Sempre Fixe, O António Maria. Os jornais do Bordalo Pinheiro foram quase todos no Bairro Alto. Ele escreveu, fundou e fechou vários. O António Maria era do nome António Maria de Fontes Pereira de Melo, que era o ministro, que queriam criticar e militantemente criticavam sempre nos seus desenhos. Mas depois tinhas os jornais sindicais, por exemplo. Entre os jornais humorísticos, O Sempre Fixe, que era propriedade d’O Diário de Lisboa, era desse pequeno grupo, onde o Stuart Carvalhais foi dos mais geniais a escrever, e depois, mais tarde, o João Abel Manta. Portanto, também temos uma geração de caricaturistas que eram jornalistas, não eram uns tipos que sabiam umas coisas de desenho. Eram jornalistas que se exprimiam de outra forma. Uma das coisas mais fantásticas que descobri foi sobre a Rua da Barroca. A certa altura, no início da República, havia dois jornais anarquistas, que se digladiavam entre si a propósito das linhas do anarquismo. Eu não consegui perceber qual era a diferença, mas eles percebiam [risos]. E eram muito violentos nos editoriais, um contra o outro. A certa altura, os dois directores tornaram-se amigos, porque A República, como definitivamente rompeu com o movimento operário, meteu os dois na prisão do Limoeiro; e eles tornaram-se amigos, depois de terem sido presos [risos]. Portanto, há esses episódios interessantes que mostram como as coisas foram evoluindo nesse sentido… Por exemplo, um jornal que existia mesmo no largo do Chiado, chamado A Verdade, era assumidamente salazarista, o director era salazarista, mas onde escreveu, ainda bastante tempo, um senhor chamado Humberto Delgado, na fase em que ele próprio era salazarista. Nesse mesmo edifício, entre 1918 e 1922 ou 1923, existia um jornal chamado Imprensa da Manhã, que militantemente incentivou a Noite Sangrenta de 1921. Claro que não tinha a noção de que ia dar no que deu, mas incentivou, fez reportagens juntamente com os assassinos, uma coisa inacreditável. E, como as coisas correram mal, no fim os assassinos foram à redacção do jornal dizer: “então, como é que é agora?”. E eles tentaram tirar-se de fora, mas tinham escrito várias reportagens, não só a incentivar, como a acompanhar a Noite Sangrenta. O redactor-chefe, como se chamava na altura, desse jornal era o Esculápio, que ficou conhecido como um dos grandes repórteres. E era, de facto, um grande repórter, mas foi quem incentivou aquilo tudo. Era uma história que não se conhecia. Eu é que, digamos, juntei peças, e é um caso em que um jornal activamente tem uma posição política, que dá em sangue; claro que eles não previam isso. Imagina o que é fazeres uma volta com um side-car a acompanhar as pessoas que estão a apanhar os políticos que estão à mão, na casa deles. É uma coisa terrível.

    Era, nesse sentido, a minha pergunta. Porque hoje há qualidade, na medida em que há regulação, cursos universitários para jornalistas. Estamos num mundo completamente diferente desse jornalismo, e existe um código deontológico. Há aqui uma série de travões, digamos assim, para que algumas coisas não possam voltar a acontecer?

    Há, mas vamos lá ver: o código deontológico é de adesão voluntária, não há sanções, aparentemente. Eu gostava de chamar a atenção para isso, porque ouço muitas pessoas das ordens profissionais… Ou seja, melhor dizendo: em regra, as ordens profissionais – não estou a generalizar, porque seria injusto –, quando actuam do ponto de vista disciplinar por razões deontológicas, é porque já houve notícias sobre os casos, o que eu acho gravíssimo, porque têm condições para serem transparentes, e dizerem que estão a investigar este médico ou este advogado. E ninguém sabe. Eu posso ir a um médico que está a ser punido pela Ordem, e não sei, não é? Sabem eles, entre eles. No jornalismo não há uma Ordem, felizmente; eu fui dos que batalhei contra a Ordem. Não há nenhuma sanção directa sobre o exercício profissional, sobre o salário, não se pagam multas. Mas se eu, enquanto jornalista, for objecto de uma queixa ao conselho deontológico do sindicato, e o conselho deontológico apreciar e confirmar que eu violei uma norma, publica no site do sindicato: “o Paulo Martins violou o código”.

    E isso afecta a credibilidade.

    Isso é pior do que uma multa! Porque uma multa, eu pago e ninguém sabe; ali, o meu nome profissional fica marcado e ninguém sabe. Portanto, eu gostava que esse exemplo fosse seguido por outras entidades que tanto falam. Não é de originalidade portuguesa, é assim em vários países. A maior parte dos sindicatos tem instrumentos deste género. Depois, há a lei, mas a lei precisa de alguns aperfeiçoamentos. Mas também é preciso termos em conta uma coisa que “baliza” a intervenção regulatória: nós estamos a falar de um campo muito sensível. Não é a entidade reguladora do sector eléctrico, não é? Qualquer intervenção de uma entidade reguladora na área da comunicação pode ser sempre encarada como uma intervenção censória, mesmo que não queira ser. Portanto, é mais delicado, é mais difícil intervir. Ou então acontecem coisas como este absurdo da decisão sobre o Ricardo Araújo Pereira, que não tem o mais pequeno sentido. Primeiro, o Ricardo Araújo Pereira convida para o programa dele quem ele quiser. Segundo, a SIC não tem que andar à procura de quem aceite entrevistar alguém, porque as pessoas têm autonomia para o fazer, não é? Eu acho que o Ricardo Araújo Pereira respondeu bem, se ele fosse jornalista tinha o dever de ouvir todos e de falar com todas as áreas; para aquilo convida quem ele quer. E tem esse direito, aquilo é um programa de entretenimento. Portanto, isto para dizer que é fácil intervir em programas de entretenimento, dizendo estas coisas sem jeito [risos]. Intervir nos conteúdos, obviamente que não pode acontecer. Ou seja, há aqui sempre alguma limitação.

    Tu és um jornalista com muita experiência, um veterano que conhece o sector por dentro na sua versão moderna e pós-democrática, e também tens muita experiência no jornalismo desportivo, que se calhar ainda é o que agrega muito do que era o jornalismo de uma certa época...

    Isso tive há 30 anos [risos].

    Mas, hoje há, de facto, uma globalização; há esta força que é a Internet, as redes sociais, e a forma como as agências de notícias tiveram de se adaptar. E surge o churnalism, ou a reciclagem de notícias, com o risco de uma notícia não rigorosa, de repente, ser espalhada por todo o lado. Uma vez que também és professor investigador, o que te surge quando vês a forma como tudo isto funciona, sem haver balizas? Porque todos os dias nós vemos notícias replicadas assim…

    [pausa] Os jornalistas, se continuarem a privilegiar a rapidez na difusão da informação em vez do rigor, vão sempre contribuir para a desinformação, ainda que involuntariamente. Eu acho que, ao contrário do que acontecia, se calhar há 20 anos, não há nenhuma justificação para nós sermos rápidos a transmitir. Repara: uma coisa é teres uma grande investigação e quereres divulgá-la. É a tua investigação, promoves, muito bem. Outra coisa é eu ter uma notícia e querer transmiti-la a correr, e não sei se ela está confirmada. Isto não faz nenhum sentido, porque tu hoje tens muitos mais meios de acesso à informação. Hoje não falta informação; falta é garantir que é verdadeira. E, portanto, a nossa preocupação deve ser transmitir só quando tivermos a garantia de que posso “dar a cara” por esta informação. Os jornalistas que ficaram na História por causa do caso Watergate têm um princípio muito interessante: o jornalista deve apresentar a verdade disponível no momento – que é: o que hoje é verdade, e eu tenho condições para dizer e pude chegar a esta conclusão, amanhã pode não ser, porque houve uma evolução ou há um dado que eu não conhecia. Mas eu tenho é de ter a honestidade de dizer: até aqui é isto que eu sei. E não tenho nenhuma necessidade de correr. Para que é que eu corro? Para escrever que uma pessoa morreu, e afinal não morreu, como ainda recentemente aconteceu? Isso não tem nenhum sentido. Antes, nós dizíamos “li no Diário de Notícias”, ou “vi na RTP” ou na TSF, seja o que for. Hoje dizemos “vi na Internet”. E isto é destruidor para o jornalismo. Repara, eu não tenho nada contra as pessoas hoje se informarem de outra maneira, o papel está em desaparecimento, temos outros meios de transmitir a informação.  Mas o único antídoto que eu conheço para a desinformação não é de quem emite, é de quem recebe. O destinatário é que tem de confirmar, ver outros sites, porque mesmo os órgãos de comunicação mais prestigiados também estão vulneráveis à desinformação. Hoje, para se fazer desinformação eficaz usa-se precisamente o órgão prestigiado, porque as pessoas acreditam. Eu costumo usar este exemplo quando falo com os meus alunos, para se perceber que este fenómeno não é novo, só ganhou volume. Quando as forças da chamada coligação internacional invadiram o Afeganistão, o The Guardian, prestigiado jornal inglês, publicou na primeira página uma fotografia de um soldado inglês no Afeganistão que tinha sido enviada por um leitor benemérito. A fotografia era fortíssima, fantástica. Então, descobriu-se que tinha sido propositadamente enviada, que era um Action Man, e que a fotografia tinha sido tirada em cima de uma mesa com um bocadinho de musgo à volta para fazer de conta que estava num cenário de guerra. E o jornal desfez-se em desculpas. Porque é que se vai atrás do leitor que enviou? Hoje todos vão. O dito jornalismo do cidadão. Tu publicas fotos das cheias, mas não tens a certeza se as fotos são de hoje ou de há 10 anos, mas é o contributo do leitor. Então, e se a coisa der para o torto? É o jornal que divulga, e é o leitor que é responsável? Se calhar o leitor usa um pseudónimo [risos].

    Agora, todos os meios de comunicação social replicam notícias de agências, que podem até conter incorreções graves, mas também “lavam as mãos”; dizem que isto é da agência, que não lhes cabe confirmar, só replicam. Como investigador, vês uma forma de sair deste modo de fazer jornalismo? O jornalismo passa por verificar, não?

    Estamos a falar de duas realidades diferentes. Uma agência tem como missão enviar informação para os seus clientes, que são os órgãos de comunicação. E, portanto, se os órgãos de comunicação cumprem o seu dever de dizer: “isto é uma informação que veio da agência”, estão a imputar a uma fonte que consideram credível. O problema é quando usam material da agência sem o citar, e se a coisa dá para o torto dizem que foram os outros. Como aconteceu precisamente com a notícia da morte do historiador José-Augusto França, em que órgãos de comunicação, que foram atrás do que o Público escreveu – e antes de o Público ter pedido desculpa, e bem, pelo erro que tinha cometido –, não o citaram, e depois disseram “nós dissemos o que o Público disse”. Isto não é aceitável. Mas o problema de fundo é que os órgãos de comunicação estão a atravessar uma crise financeira, de tal modo, que têm de inventar receitas. E convencionou-se a ideia de que um título muito chamativo é mais replicado… e infelizmente nós estamos a contribuir para as pessoas terem como actividade replicar títulos, em vez de lerem notícias. Nós, jornalistas, contribuímos para isso, e contribuímos há muitos anos. A certa altura começou a dizer-se, e bem, que se escrevia imenso e que as pessoas não tinham tempo para ler tanta coisa, que tinha que se procurar escrever menos, sintetizar. Muito bem. A certa altura, sintetizamos tanto que já não dizemos nada que possa ser mais do que hard news.

    E visões diferentes. Hoje sente-se falta de visões diferentes. Tirando algumas excepções, há uma sensação de que é tudo muito parecido?

    É mimetismo. Mimetismo que, infelizmente, se incentiva os jovens a jornalistas a terem, porque os órgãos de comunicação criaram um sistema, e não é só cá, que é: “estamos todos a marchar no mesmo sentido”. Se um marchar fora da linha estabelecida vai ter de justificar por que não está a marchar como os outros. E, portanto, o mais cómodo é: “eu vou atrás”. E estamos todos a contribuir para visões uniformes da realidade; se cometermos um erro, os outros também cometem, porque estamos a caminhar no mesmo sentido… aquilo que mais me preocupa é isso. Talvez fosse a hora dos poderes públicos perceberem que nós temos que olhar para o jornalismo como um bem público. De cada vez que se fala em apoio público, é do Estado, mas não é do Governo. Há sistemas de apoio à imprensa na Europa que são completamente transparentes. Por exemplo, na Áustria é em função do número de jornalistas, ninguém pergunta qual é o partido ou a área política do jornal. Mas nós temos essa relutância, não queremos apoios do Estado, a começar pelos directores. Mas porquê, se o Estado apoia tanta coisa? Se apoia a Web Summit, e áreas da Economia que entende que são importantes, porque não apoiar a imprensa? Isso está mais do que assumido, por exemplo, naquilo que nós tanto queremos seguir, que são os países nórdicos. Todos os países nórdicos têm modelos de apoio à imprensa, porque entendem que é um bem público e portanto tem que ser apoiado.

    Se calhar há aquele receio da politização, mas que acontece na mesma, sem os fundos [risos].

    Acontece, por exemplo, com a publicidade institucional que é distribuída, aí sim, arbitrariamente pelos Governos. Que pode haver – não digo que haja – a suspeita de que beneficiam quem é benigno para o Governo, e prejudicam quem não é benigno. Estas acusações não são novas, são muito velhas [risos].

    Era melhor haver algo que tornasse mais transparente, digamos assim…

    A transparência é sempre a melhor receita. Qual é o problema de um jornal dizer “nós recebemos do Estado este dinheiro”? Toda a gente fica a saber, e se eu, enquanto consumidor da informação, achar que o facto de receber do Estado torna o jornal menos sério ou menos independente, o que é que hei-de fazer? Não compro. Eu costumo dizer que a independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa, porque no limite sou eu que vou a tribunal se as coisas correrem mal, não é o director nem o proprietário. Porque se eu não dependo do Estado, eu dependo do anunciante. Em que medida é que o anunciante influencia o meu trabalho? Pode não influenciar directamente, mas o jornalista pode não ter consciência de que está a fazer um trabalho que foi previamente encomendado por alguém.

    E sobretudo quando há jornalistas cada vez mais jovens nas redações; aquele jornalista veterano já é uma espécie rara…

    Sim, isso desapareceu… Voltando ao livro O Bairro dos Jornais, porque é que havia relativamente pouca concorrência na altura do Estado Novo? Porque os jornalistas tinham, do ponto de vista laboral, obrigação de trabalhar cinco horas para poderem trabalhar no Jornal da Tarde e no Jornal da Manhã ao mesmo tempo. Isto é, de manhã trabalhavam para o da tarde, e à tarde trabalhavam para o da manhã, cinco horas em cada sítio para terem um salário minimamente digno. Depois as coisas evoluíram. Nos anos 1970 já os salários tinham evoluído positivamente e avançaram bastante. Mas, nessa altura, era assim. O grupo dos jornalistas não era assim tão numeroso. Aliás, há uma história que eu não resisto a contar e que tem a ver com essa cumplicidade que se criava nos jornais. A certa altura, no tempo do Estado Novo, há um caso ou outro de jornalistas que foram punidos ou presos pelo que escreveram. Regra geral, não era por isso, mas porque estavam envolvidos em actividades consideradas subversivas e tinham problemas com a polícia por causa disso. Então, um dia, a PIDE foi buscar ao Diário Popular o Mário Ventura Henriques, que era da oposição, do Partido Comunista. Portanto, levou-o preso, e o administrador do jornal chamou um outro jornalista e disse-lhe: “vais à secretária do Mário Ventura Henriques e tiras tudo o que possa comprometê-lo, e levas tudo para o Diário da Manhã, que aí a PIDE não vai porque é do regime”. Isto foi o administrador que disse! Ou seja, isto é a solidariedade que se sobrepõe ao resto. Os jornalistas que foram presos por razões políticas, foram libertados, voltaram aos jornais, e durante o período de ausência os jornais continuavam a pagar-lhes os salários. O que era mal visto pelo regime, mas continuavam. E era assim, naturalmente. Portanto, as solidariedades sobrepunham-se às divisões políticas. Por exemplo, um jornalista que era o Félix Correia, que era admirador do Hitler, e era do regime naturalmente, tem dois episódios interessantes. Um é no dia em que um jornalista n’O Diário de Lisboa tinha acabado de ser libertado, no tempo do fascismo; e, quando chega ao jornal, a primeira pessoa que lhe vai dar um grande abraço é o Felix Correia, que era do regime. Então, o Félix Correia escreveu vários textos apologéticos do nazismo, do Hitler e do Mussolini n’O Diário de Lisboa, antes da guerra. Depois da guerra, o regime quis distanciar-se, naturalmente, do nazismo e do fascismo italiano. E resolveu compilar em livro as crónicas que tinha publicado n’O Diário de Lisboa e a censura disse: “não dá”. E ele disse: “mas eu já publiquei isto e agora foi à censura?”; e disseram-lhe: “sim, mas as coisas mudaram, portanto agora não podes publicar o livro” [risos]. Eu acho uma coisa muito curiosa. No pós-guerra, o regime quis aproximar-se dos Aliados, e, portanto, não dava jeito nenhum.

    Voltando à memória nas redações. Eu tive a sorte de trabalhar com jornalistas que cobriram a passagem para a democracia, o que é de uma riqueza incrível. Tu também conheces bem as redações de hoje, que são muito diferentes. E os jovens jornalistas encontram hoje pouca memória. E, mesmo pesquisando no Google, não se encontra toda a informação e não se vai aos centros de documentação onde antes tínhamos que ir buscar a informação.

    O problema é que os jornalistas jovens chegam à redacção e não só não têm a memória dos mais velhos como não têm quem os apoie. São logo atirados às feras. Passam logo a ter que escrever várias notícias por dia sem apoio nenhum. Eu sou membro da direcção editorial da revista Jornalismo & Jornalistas, que está disponível online, e na edição que está mesmo prestes a ser disponibilizada, nós entrevistamos o Fernando Dacosta, que é este ano o Prémio Gazeta do Jornalismo. E ele conta como lhe dava prazer ser orientador dos estagiários, porque achava que aprendia sempre qualquer coisa nova com a malta que aparecia. Isso já não existe. Quem é que ajuda um estagiário hoje em dia? Quer dizer, aquele estagiário passa por ali, depois vem outro também muito barato, e o que interessa é encher páginas. Isso é muito preocupante para a democracia, porque nós precisamos de jornalismo interventivo e que ajuda à reflexão. Jornalismo que trabalhe para o interesse público e que satisfaça o direito de todos nós à informação, que no fundo é, basicamente, ajudar-me a tomar decisões. Ora, eu não consigo ser ajudado a tomar decisões quando as notícias são feitas sem contemplarem várias vertentes e visões, que, aliás, é uma exigência deontológica, tal como o rigor, já agora. O Código Deontológico fala em rigor, e convinha que fosse preservado. E, portanto, nós estamos, de facto, a alimentar um negócio que obviamente está em crise. E eu não estou a defender que os jornais não devessem dar lucro, claro que têm de dar lucro, não é? Ter um jornal como o Público, que é alimentado por um grupo e que dá sempre prejuízo, é inédito e não acontece com frequência. Felizmente, tem um mecenas, enfim. O Fernando Dacosta, já agora, também conta nessa entrevista – ele foi um dos fundadores do Público, também – uma história. Numa reunião, num espaço público, ou seja estavam várias pessoas, questionaram o Belmiro de Azevedo, o líder histórico da Sonae, proprietária [do Público], sobre o dinheiro que ele estava a gastar ali, e ele respondeu qualquer coisa como: “antes de eu ter um jornal, eu era conhecido pelo Belmiro dos supermercados, agora, com o jornal, eu sou convidado para as universidades e passei a ser uma pessoa importante. Ora isso também custa dinheiro!”. Portanto, para ele era um investimento social, sem precisar de meter a unha no jornal, de fazer censura. Repare, o jornal diz, sempre que escreve sobre a Sonae, que é proprietária do Público, e muito bem! Sempre a transparência, lá está.

    Temos tido dificuldade, como jornalistas no PÁGINA UM, em encontrar, sim, transparência em algumas entidades, até da Administração Pública. Era expectável que no século XXI, quando deveríamos poder ter acesso a mais informação, houvesse este fechar do acesso de jornalistas a informação por parte de entidades públicas?

    Não é só os jornalistas, é também os cidadãos. Os jornalistas, pela sua função, têm de ter. Nós, em Portugal, temos uma tradição de fechamento, de ocultação, da ideia de que a Administração Pública não tem de divulgar informação. E, do ponto de vista legislativo, fomos caminhando, felizmente no sentido contrário: tudo é público, excepto aquilo que não pode ser divulgado por razões de privacidade, segurança nacional. O problema é que, na prática, a teoria é outra, como alguém dizia. Por exemplo, o meu querido amigo José António Cerejo, um extraordinário jornalista de investigação, já teve problemas, várias vezes, em ter os documentos que formalmente deveriam estar no Portal Base, mas depois está rasurado aquilo que importa. Ele chegou ao ponto de ter, por exemplo, um contrato de uma Câmara Municipal com uma empresa e o que estava rasurado era o nome da presidente da Câmara e o nome da empresa. Portanto, isto não é nenhuma transparência, isto não é divulgar informação; é escondê-la. Mas a União Europeia fez a mesma coisa, quando forçada a divulgar informação sobre os contratos de compra das vacinas [contra a covid-19] e a quem tinha comprado as vacinas, divulgou o contrato menos o valor. Ou seja, o valor ficou apagado! Ou seja, nós gostamos muito da transparência, mas é quando é com os outros, connosco não dá. Eu acho isso preocupante. Repara: hoje, nós podemos fazer extraordinários trabalhos jornalísticos, apenas com dados públicos, que são cruzados. Não estamos a ir por debaixo da mesa, nem às escondidas, não, são dados públicos. Nós sistematizamos porque é esse o nosso trabalho, enquanto jornalistas. Se alguém percebeu que, quantos mais dados públicos tem, mais prejudicado pode ser, isto é preocupante. Porque é para o cidadão! O Portal Base existe para todos nós, incluindo os jornalistas, mas não só.

    E no Portal Base é muito comum estarem os contratos, mas sem os respectivos cadernos de encargos. Ou seja, o contrato remete mais informação para o caderno de encargos, o qual não está acessível.

    Exactamente. Nós fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos. Não temos, de todo. E, pior do que isso: depois, mesmo quando os tribunais decidem num determinado sentido, as entidades continuam a ignorar, continuam a fazer de conta.

    E recorrem das sentenças.

    Recorrem e desrespeitam mesmo, no limite.

    E recorrem usando dinheiros públicos. Como é um jornal pode ir continuando a gastar…

    Essa é a maior arma do poder, seja ele qual for, pode, o poder económico, político, clubístico, já agora – têm muito poder. Essa é a maior arma: processos por difamação, a pedirem 20 milhões de euros de indemnização.

    Para silenciar.

    Para silenciar. Isso rebenta com um jornal. Nós, felizmente não temos jornalistas presos por difamação como até há pouco tempo até na União Europeia existia. Até na União Europeia, casos desses existiam. Nós não temos casos desses. Mas depois temos essa arma: eu meto um processo de 20 milhões de euros, obrigo o órgão de comunicação social a contratar uma equipa de advogados caríssima sem garantias de sucesso. É muito complicado.

    É o chamado SLAPP [Strategic Lawsuit Against Public Participation].

    É uma forma de pressão como outra qualquer. E é normalmente de pressão mais silenciosa. Eu gosto de ouvir quando há uma reportagem, alguém vir anunciar que vai processar porque é sinal de que não vai processar coisa nenhuma. Anunciou e depois não processa coisa nenhuma, não há processo judicial. Os que ficam calados e vão fazer esses pedidos de indemnização brutais é que sabem que estão a… Aliás, convém dizer que um antigo presidente do Supremo Tribunal defendia abertamente isso: “vão onde lhes doem”, disse uma vez publicamente. Quando se sentirem afectados pela comunicação social, peçam indemnizações brutais que aí é que lhes dói – para destruir a comunicação social, objectivamente.

    Falando de silenciamento, de repente muitos jornalistas descobriram que existe censura nas redes sociais. Houve agora o caso no Twitter mas também há casos no Facebook. Eu, por exemplo, tive a minha conta bloqueada durante um dia e agora está escondida durante um mês por partilhar uma notícia de um jornal português sobre uma sentença de um Tribunal em Portugal. É uma forma das “big techs” destruírem a reputação de um jornalista ou de um órgão de comunicação.

    Elisabete, isso dava outra entrevista. Faço um ponto prévio, que é uma declaração de interesses: não faço parte de nenhum desses clubes, não sou do Facebook, nem do Twitter. Porque não resistiria a não participar em debates, a responder, e depois não fazia mais nada na vida, portanto, não faço parte. Mas salvaguardo o seguinte: o Twitter, o Facebook – agora, a Meta -, são empresas privadas. Na casa dos privados entra quem os privados querem. É o mesmo princípio do Ricardo Araújo Pereira. Eu percebo o desconforto de jornalistas que escreveram contra o Elon Musk – e independente do que penso do que Elon Musk possa estar a fazer ou não no Twitter, não é isso que está em causa  –  o Twitter tem o direito de dizer que só queremos estes sócios. Não é uma entidade pública, é uma entidade privada. Tinha acontecido o mesmo com Trump. Têm todo o direito de fechar. Se quisessem, podia fechar a porta a Ronaldo ou a outro qualquer. Nós não podemos exigir liberdade de expressão a uma empresa privada. Quer dizer, não se trata sequer de ter liberdade de expressão ou não. Trata-se de fornecer um dispositivo tecnológico para tu te expressares. Esse é que é para mim o problema de fundo, que é quem fornece a plataforma para tu te expressares não tem nenhuma responsabilidade sobre o que tu publicas. Tu, eu. Como é que podes responsabilizar alguém que transmitiu discurso de ódio, desinformação – desinformação já matou gente, como sabemos. Como é que podes responsabilizar se as plataformas que dão a bicicleta para pedalares, dizem: dou a bicicleta, mas não tenho nada a ver com o pedal. Isto não pode ser. Em algum grau – e estão a discutir isso nos Estados Unidos – as plataformas têm de ser responsabilizadas porque senão, no limite, nós não conseguimos responsabilizar ninguém porque vamos descobrir um perfil falso, uma pessoa que usou um pseudónimo,… não vale a pena. As redes sociais, genericamente, essas plataformas, nasceram com aquela ideia muito nobre de que “agora temos aqui uma plataforma de opinião e de participação cívica e de participação cidadã”. E hoje têm a participação cidadã, o discurso de ódio, a mentira. Incluindo, por exemplo, nos comentários dos órgãos de comunicação – a mesma coisa. O jornal Público criou um novo sistema de moderação dos comentários em que primeiro as pessoas são testadas. Rapidamente se percebeu – e eu gostaria que o Público reponderasse isso – que aquele espaço já esta lixo como os outros todos. Porque quem quem fazer isso, primeiro porta-se bem, e durante algum tempo, para depois fazer o que lhe apetece: racismo, xenofobia, discurso de ódio, tudo passa por ali. O Público pode dizer: “não tenho nada ver com isso, é de quem comenta”. Eu olhos para aquilo e a maior parte não são nomes verdadeiros, são nomes inventados para participar, vou responsabilizar quem?

    Já para não falar dos bots que é um dos grandes problemas das redes sociais…

    Pois, isso já é mais complicado.

    Aí já estamos a falar de máquinas, de uma indústria totalmente diferente.

    E o que isso causa. Eu, numa das disciplinas de que sou responsável, no segundo semestre, vou começar a dar agora em fevereiro, que é precisamente “Fundamentos do Jornalismo”, eu começo por mostrar um vídeo de “deep fakes”, ou seja, estás a ver uma pessoa que está a dizer aquilo que nunca disse. Como é que a maior parte das pessoas, que não tem o mínimo conhecimento tecnológico, já não é literacia mediática sequer, mas conhecimento tecnológico, pode perceber que aquilo não é verdade. “Não é verdade? Eu vi a pessoa a mexer o lábio, como não é verdade?”.

    Até mesmo jornalistas que vejam um…

    Vi uma giríssima que era Trump a falar açoreano, português dos Açores. É fantástico, como brincadeira. Agora, como é que a maior parte das pessoas olha para aquilo? Olha como sendo autêntico. Pode pôr na boca de quem quer que seja uma mentira descarada e acreditas. Estás a ver um vídeo.

    E com a inteligência artificial, que pode inclusive substituir jornalistas – daria para outra entrevista -, o Chat GPT…

    Vivemos tempos muito desafiantes. Depois, não é só a sociedade que está à mercê disto, são os próprios políticos das varias áreas que hoje vulgarizam o uso das redes sociais para transmitir opinião, para transmitir decisões.

    Para fazerem anúncios. Eu aderi as redes sociais porque políticos estavam a fazer anúncios nas redes sociais.

    É muito difícil tu travares isso. Claro que não travas, a Internet é, por natureza, libertária. Não dá. Só dá para nós nos protegermos enquanto cidadãos. Eu tenho é que desconfiar daquilo que me estão a dar. Agora terminas a entrevista e tu pões aqui, com a minha voz, eu a dizer mais não sei quantas coisas que eu não disse, não é.

    Poderia, mas não vou fazer [risos]…

    As pessoas têm que estar alertadas para esta possibilidade, isto pode acontecer. Não é só a reportagem escrita que dizem umas mentiras, é um vídeo em que as pessoas estão a dizer aquilo que nunca disseram e isso é preocupante.

    Fotografias: André Carvalho

    Transcrição: Maria Afonso Peixoto


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