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  • ‘Para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante’

    ‘Para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante’

    Observar seres alados, alguns pequenos, assustadiços e irrequietos, que fogem à menor aproximação humana, talvez não pareça uma ideia aliciante para a maioria das pessoas, mas o ornitólogo Gonçalo Elias garante que há cada vez mais adeptos. E gente que quer saber mais. Por isso, em co-autoria com o fotógrafo José Frade, lançou o livro Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação, onde explica, passo a passo, como qualquer um pode “viciar-se”, primeiro à volta do quarteirão, ou até mesmo sem sequer sair de casa. Licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores, é hoje, aos 55 anos, um dos mais conhecedores especialistas em aves. E numa entrevista ao PÁGINA UM demonstra saber tanto que, na verdade, merecia talvez voar com(o) elas.


    Para si, que estuda aves há três décadas, que particularidade vê que as torna, para si, ainda fascinantes?

    Aquilo que nas aves mais fascinou as pessoas foi a sua capacidade de voar. Quase nenhum outro vertebrado consegue; os morcegos conseguem, mas são um pequeno grupo dos mamíferos. A esmagadora maioria dos outros vertebrados não consegue voar, mas com as aves é o contrário, quase todas as espécies conseguem. Isso fascinou muito as pessoas, e eu acho que até as inspirou no desejo de voar, que se concretizou através da construção dos aparelhos. E desde a Antiguidade que já se estudavam as aves e as diferentes espécies; e se percebeu que cada espécie tem as suas preferências, os seus hábitos, as suas características, a sua forma de comunicar. Por exemplo, Aristóteles é sobretudo conhecido por ser filósofo, mas também era um naturalista, muito interessado, e escreveu algumas obras, nomeadamente A história animal, que desenvolvia muito o conhecimento, já nessa altura, sobre as aves.

    Depois, com o avançar dos tempos e da Ciência, foram conhecidos mais aspectos muito peculiares, como as migrações. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com muitos mamíferos e répteis, as aves não hibernam. Em vez disso, fazem migrações, ou seja, movimentos periódicos de umas regiões para outras, de modo a conseguirem passar as várias épocas do ano nas melhores condições de sobrevivência. Nem todas as aves migram, algumas conseguem sobreviver o ano inteiro na mesma região; mas uma grande parte das espécies efectua migrações precisamente para tirar partido das melhores condições nas várias regiões, em função do ciclo das estações.

    A observação das aves é ou não uma actividade dispendiosa?

    Não tem de ser dispendiosa. Claro, há pessoas que investem muito, e vão dar a volta ao Mundo para ver aves. Obviamente, quando chegamos a esse nível, já terá outros custos. Mas para qualquer pessoa começar, na verdade, não precisa de gastar dinheiro quase nenhum.  O essencial para começar é um instrumento de observação; normalmente um binóculo. Há quem use a máquina fotográfica para fazer registos fotográficos, o que também é muito útil. Hoje, há máquinas compactas já com algum alcance que nem são demasiado caras.

    Os smartphones não serão suficientes?

    Acho que não, porque as aves são muito pequenas; esse é o principal problema a nível da observação. E, sendo aves selvagens, não se deixam aproximar, daí precisarmos de auxiliares de observação, sejam binóculos ou máquina fotográfica.  Embora as câmaras já tenham evoluído bastante, o problema dos smartphones é fazerem sobretudo zooms digitais, e não zooms ópticos.  E, portanto, quando estamos a falar de ampliações muito grandes, isso acaba por ter consequências ao nível da qualidade da imagem. Para objectos ou, neste caso, animais, que estejam muito distantes, já não se consegue ver bem o detalhe. O smartphone serve para fazer uma foto de registo, mas não é o instrumento de observação nem de fotografia ideal. O ideal é ter um binóculo para conseguir observar os detalhes, porque como eu disse, as aves selvagens não se deixam aproximar nem apanhar. Mas há binóculos por 100 ou 150 euros, não é necessariamente um equipamento muito caro. Há para vários preços, mas por 150 euros já se consegue um binóculo. A máquina fotográfica é opcional.

    Então, basta um binóculo e uma máquina fotográfica para se começar?

    É também necessário, ou conveniente, ter um guia de identificação, um livro que nos ajude a identificar as várias espécies. O principal desafio, quando estamos a observar aves, é identificá-las correctamente. Em Portugal, temos cerca de 300 espécies regulares, ou seja, aquelas que aparecem todos os anos, e o principal desafio para quem se lança nesta actividade é aprender a distinguir umas das outras. Porque se não soubermos distingui-las, são apenas aves, não é? Mas quem se envolve nesta actividade, rapidamente aprende que as espécies são diferentes e que há características para identificar. E há aqui um outro aspecto que também estimula muito as pessoas: há aves mais comuns e aves mais raras. E normalmente aquelas que são mais raras são percepcionadas como tendo mais valor, como em qualquer tipo de coleccionismo. Por exemplo, há selos muito comuns, que valem muito pouco no mercado de usados, e depois há selos que são raros, e por isso mais cobiçados e mais procurados. Da mesma forma, com as aves, alguns bichos são mais difíceis de encontrar, e há um desejo de quem vai vendo as diferentes espécies de conseguir ver também as mais raras.

    No Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação refere que podemos começar por ver aves ao pé de casa, e até mesmo dentro de casa…

    Sim. No livro, eu e o José Frade explicamos exactamente que qualquer pessoa, onde quer que more, pode ver aves. Obviamente, há sítios melhores que outros, porque depende da vegetação, da densidade de construção…  Já morei em sítios com características muito diferentes, incluindo em zonas densamente urbanizadas, e em qualquer sítio é possível encontrar aves selvagens. E não estou a falar só de pombos, porque os pombos nem sequer são realmente selvagens. Mesmo numa cidade, é possível encontrar zonas com água, com jardins, com terrenos baldios, e estruturas que servem de abrigo às aves. Só para dar um exemplo, na cidade de Lisboa já foram registadas mais de 200 espécies de aves selvagens. Isto inclui a zona ribeirinha do rio Tejo, e vários parques e jardins, mas a diversidade que podemos encontrar, até numa zona urbana, que é onde a maioria das pessoas mora, é absolutamente notável. Para observarmos ao pé de casa, podemos começar por ir dar uma volta a pé ao quarteirão. Eu também comecei assim. E isso não nos obriga sequer a ter custos de deslocação. Por isso, é uma actividade que pode ser praticada a custo reduzido.

    No livro, refere que uma das vantagens desta actividade é o maior contacto com a Natureza. A observação de aves leva a uma maior consciência ambiental e da importância da preservação da Natureza?

    Não gosto muito de generalizar, porque há diferentes tipos de atitudes e comportamentos. Penso que para entendermos o que é que leva as pessoas a ver aves, é importante clarificar que há diferentes motivações. Nem todas as pessoas vão ver aves pelos mesmos motivos. Grosso modo, podemos agrupá-las em cinco categorias diferentes. É uma classificação minha, não vi em lado nenhum, mas é a minha forma de ver isto. No primeiro grupo, temos aqueles que exploram mais a vertente científica, e cujo objectivo é escrever artigos científicos, seja em contexto académico ou outro. No segundo grupo, temos as pessoas que se dedicam a observar aves para a realização, por exemplo, de estudos de impacte ambiental. Até por normas da União Europeia, quando se constrói uma grande infraestrutura – como uma barragem, uma autoestrada, um parque solar, um aeroporto, ou um parque eólico –, é necessário fazer estudos de impacte e isso obriga a fazer determinados programas de monitorização; e, portanto, há pessoas, já com alguma experiência, que são recrutadas e vão para o terreno fazer estudos continuados para registar o que é que ali aparece. Depois há um terceiro grupo, as pessoas que se dedicam à Conservação. Muitas vezes estão ligadas a organizações não-governamentais, de Ambiente, e não só, e que vão observar as aves com o objectivo de recolher informações para tentar depois fazer a gestão do habitat e tomar as melhores decisões que favoreçam a conservação das espécies, nomeadamente as espécies que estão ameaçadas. Também há departamentos estatais que tratam dessa vertente, nomeadamente o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. No quarto grupo há uma vertente mais comercial ou turística, onde se incluem pessoas que se dedicam a observar aves para vender esse serviço, ou seja, para mostrar a outras, que normalmente vêm de fora… Isto existe um pouco por todo Mundo; quando vamos a outro país ver aves, muitas vezes a técnica para conseguir encontrar as espécies que lá ocorrem é contratar um guia local. E, finalmente, há um quinto grupo, que são as pessoas que se dedicam a observar aves por lazer, ou seja, pelo simples prazer de desfrutar da observação. Este é o grupo que profissionalmente não tem a ver com a observação de aves, mas é cada vez mais numeroso, com milhões de pessoas por todo o Mundo. E essas pessoas vão recolhendo observações também e partilhando em base dados.

    São, de facto, grupos com motivações bastante diversas…

    Precisamente. Daquilo que eu vejo nas pessoas que se dedicam à observação por lazer, há um pouco de tudo. Há aquelas pessoas que têm a preocupação de não perturbar as aves e que, portanto, procuram seguir determinadas práticas e códigos de conduta que ditam que o bem-estar das aves está em primeiro lugar. Mas, infelizmente, como em qualquer outra actividade, também há casos de pessoas que não respeitam determinados limites, e que se for preciso entram em propriedades privadas e perturbam as aves para obter uma boa fotografia. São práticas que não são aconselhadas. Enfim, uns por não terem consciência, outros por falta de cautelas, nem todos respeitam estes limites. É importante passar a mensagem de que as aves são selvagens, estão no seu espaço e também precisamos de lhes dar alguma distância para conseguirem levar a sua vida, porque assim é que contribuímos para a conservação.

    Na Europa, existem disparidades no desenvolvimento desta actividade, e sei que um dos países que se destaca é o Reino Unido, como também se salienta neste livro. Essas diferenças prendem-se com aspectos culturais?

    Há diferenças culturais e diferenças históricas. Efectivamente, esta actividade ganhou mais tradição nos países do Norte da Europa; portanto, incluindo o Reino Unido, como referiu, e também os Países Baixos e a Suécia. São países com bastante tradição da observação de aves. Nos Estados Unidos também já há uma tradição que vem de há mais de 100 anos. No Reino Unido, penso que o interesse pela observação de aves começou no final do século XVIII, mas é preciso ver que ao início, esta actividade era praticada por muito poucas pessoas, nomeadamente grupos com maior poder de compra, ou aquilo que às vezes se designa por aristocracia ou elites. Portanto, não era uma actividade praticada em larga escala. Penso que isso mudou, pelo menos no caso da Europa, mais ou menos a partir de 1950 ou 60. Houve uma figura muito importante, um britânico chamado John Gooders, que já faleceu em 2010, e que ainda tive o privilégio de conhecer. Ele escreveu um livro que se chamava Where to watch birds [Onde observar aves]. Nesse livro, ele sugeria roteiros de observação de aves no Reino Unido. Porque podemos começar por dar uma volta ao quarteirão, mas ao fim de algum tempo vai crescer o desejo de se ver espécies diferentes. Para isso, é preciso saber onde havemos de ir, e nem sempre existe essa informação. Agora, é mais fácil, graças à Internet, saber onde se pode encontrar determinadas espécies, mas há 50 ou 60 anos não era assim.

    Esse livro democratizou a prática da observação de aves?

    Sim, o livro teve enorme aceitação, e abriu, de certa maneira, as portas da observação de aves a um grande número de pessoas. É claro que entre as pessoas que já praticavam a actividade, houve quem não achasse muita piada, porque aquilo era uma actividade de elite, digamos, e algumas pessoas não viram com bons olhos a abertura à sociedade em geral. Depois, John Gooders escreveu sobre birdwatching não só para o Reino Unido, mas também para a Europa. Aliás, o primeiro livro que eu li seu foi o Where to watch birds in Europe, em que sugeria roteiros de observação em diferentes países, e foi publicado nos anos 1970. Hoje já existem roteiros para praticamente todos os países do Mundo, porque rapidamente se percebeu que havia muito interesse por parte das pessoas em ter livros que as direccionassem para os melhores locais onde encontrar espécies interessantes. Mas John Gooders foi um dos percursores da observação de aves; não sei se exactamente o primeiro a nível mundial, porque penso que já se tinha aberto caminho antes nos Estados Unidos. Mas efectivamente, a informação que ele trouxe permitiu abrir as portas, e tornar mais fácil o acesso à informação. Isto depois espalhou-se a outros países da Europa, mas neste ponto de vista, o Reino Unido foi um bocadinho o pioneiro a nível europeu, e talvez por isso a tradição tenha conseguido avançar mais depressa nesse país.

    Quais os países mais interessantes para a observação de aves, a nível de diversidade das espécies? Ou a resposta dependerá sempre dos propósitos e das preferências individuais?

    Em termos de diversidade, grosso modo, podemos dizer que todos os países do Mundo têm potencial. De uma forma geral, a diversidade de espécies aumenta à medida que nos aproximamos dos trópicos, das zonas equatoriais. Na América, destacam-se países como a Colômbia, o Equador e o Brasil. Em África, destacam-se países como o Quénia e a Tanzânia; e na Ásia, destacam-se países como a Índia ou a Indonésia. Só para referir alguns. A diversidade de espécies é mais elevada nos países de latitudes tropicais, mas claro que em latitudes superiores também aparecem espécies diferentes. Portanto, todos os países acabam por se complementar uns aos outros. Além disso, também é importante referir que há países e territórios que, por serem ilhas, estão isolados dos restantes, e por isso têm espécies que se chamam endémicas, ou seja, espécies que existem ali e não existem em mais lado nenhum do Mundo. Isto acontece mais com as plantas, porque as plantas não têm tanta mobilidade, mas também pode acontecer com aves. Temos algumas aves endémicas em Portugal, tanto nos Açores como na Madeira. Por exemplo, na Madeira temos o pombo-trocaz e a estrelinha, conhecida localmente como bis-bis; e nos Açores temos o priolo e o painho-de-monteiro. Todas as principais ilhas do Mundo têm um grande número de endemismos. Destaco a Austrália, Madagáscar, a Nova Zelândia, as Filipinas e certas ilhas da Indonésia. São locais ricos em endemismos. Portanto, a proximidade aos trópicos e a insularidade tornam certos locais muito interessantes.

    E, de um modo geral, que países oferecem condições mais favoráveis para esta actividade?

    Depende do grau de desenvolvimento. Há países que por terem um menor grau de desenvolvimento, ou por outro tipo de problemas, como a instabilidade dos regimes políticos, podem não ser muito seguros para a observação de aves. Destaco alguns país de África ou do Médio Oriente e certos países da Indochina. Pode até nem ser só por questões de segurança, mas por haver também muitas restrições à mobilidade das pessoas, que as impedem de ir observar para onde querem. Depois, há países com um bom grau de desenvolvimento, mas já foram transformados de tal forma em termos de intensificação agrícola, industrial ou de urbanização, que acabam por não ser tão interessantes, porque têm um grande grau de poluição e de alteração dos habitats. Portanto, varia muito, embora, na maioria dos países, mesmo naqueles que já estão transformados, existem áreas protegidas, classificadas, com boas condições de visitação e que funcionam como bons refúgios.

    Para a maioria dos países, agora mostra-se fácil encontrar informação online sobre quais são os melhores locais de observação de aves. E nos casos em que o acesso seja mais difícil, há empresas especializadas que vendem pacotes de birdwatching, ou seja, tours de 10, 15 ou 20 dias especificamente para observar aves. Aí, a pessoa já vai acompanhada com um guia especializado, vai directa ao local, e, portanto, não tem de preparar nada nem de se preocupar com alojamento nem com transporte. E existem pacotes desses em países tão variados como a Argentina, a Malásia, a África do Sul, os Camarões, Marrocos ou China. Esses são pacotes relativamente caros, por serem viagens bastante especializadas, mas que permitem um contacto com aves que, de outra forma, a pessoa dificilmente conseguiria. Portanto, a nível mundial, há toda uma indústria em torno desta actividade.

    Agora falando apenas de Portugal. Quais as regiões mais interessantes para a observação de aves?

    Também há diferenças entre regiões, naturalmente. Pela minha experiência, a nível da diversidade de espécies, as zonas mais ricas são as chamadas zonas de influência mediterrânica, a Sul do Tejo; portanto, o Alentejo e o Algarve. E também uma parte do Ribatejo, e ainda o interior Norte e interior Centro, ou seja, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa. O litoral Norte e Centro, em parte por causa da influência atlântica e das enormes transformações do uso do solo – com a intensificação agrícola em certas zonas e o grau de florestação intensiva e urbanização também de grande densidade –, é uma zona que está muito transformada. No entanto, no litoral existem locais de enorme interesse, que estão principalmente em torno das zonas húmidas. Falo, por exemplo, do estuário do Tejo, que é também um hotspot a nível nacional, do estuário do Mondego e de outros estuários que existem mais para Norte, como o do Minho, do Cávado e do Douro. E a Ria de Aveiro, naturalmente. Isto para citar alguns exemplos. Portanto, genericamente, no litoral Norte e Centro, as zonas húmidas são as mais interessantes, embora haja também outros spots em cidades e pequenas serras. No Interior e no Sul, os locais estão mais distribuídos e a riqueza específica tende a ser maior a nível de aves terrestres. No conjunto, o país tem uma boa diversidade de espécies, complementando o litoral com o interior. E depois, ainda temos, como referi, o caso dos Açores e da Madeira, onde apesar da diversidade de espécies global ser menor – porque as ilhas normalmente têm menos espécies –, há coisas diferentes. Portanto, as ilhas complementam um bocadinho o Continente.

    As regiões com menos diversidade em aves acabam por compensar na existência de outro tipo de espécies.

    Sim, as ilhas por norma têm menos, porque, tal como algumas espécies evoluíram isoladamente, as outras dos continentes também muitas vezes nem sequer conseguiram lá chegar. Portanto, as ilhas de uma forma geral têm menos diversidade do que as regiões dos continentes. Nos continentes há muito mais intercâmbio de umas regiões para outras. As ilhas estão isoladas, e quanto mais remotas são, menor a diversidade. Por isso, os Açores têm menos espécies do que a Madeira a nível de nidificantes, porque a Madeira, apesar de tudo, está mais perto do continente africano.

    Daquilo que tem visto, em que grau as aves têm sido afectadas com o problema dos plásticos nos oceanos?

    O plástico é um problema grande para as aves marinhas, porque acabam por ingerir micropartículas. Não são necessariamente aqueles plásticos grandes que nós vemos a flutuar. O plástico vai-se decompondo, e as micropartículas ficam lá durante muitos anos. E as aves podem ingeri-las; às vezes, também bocadinhos de plástico maiores, e já houve vários casos de aves marinhas que foram encontradas mortas com grandes quantidades de plástico ingeridos. Portanto, é evidente que em termos de saúde das aves, terá algum impacto. Não sei exactamente até onde isto já foi estudado, mas a poluição, nomeadamente por plásticos e por outros poluentes – porque também já houve casos de aves contaminadas por hidrocarbonetos, por exemplo, na sequência de desastres de petroleiros… Este tipo de poluição também pode afectar as aves e outros seres vivos. É evidente que devem ser tomadas medidas para reduzir a poluição dos oceanos, porque põe em causa o equilíbrio dos ecossistemas, e nomeadamente dos ecossistemas marinhos.

    E o impacto das alterações climáticas, também se tem revelado significativo?

    As alterações climáticas são um problema bastante vasto e abrangente, e, sem dúvida nenhuma, tem impacto nas aves selvagens. Este assunto está a ser estudado para se obter mais dados; no entanto, há um aspecto que eu gostava de salientar: para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante. Depende também das espécies. Há outros factores em jogo. Eu recordo-me que há uns dois anos, assisti à sessão de apresentação online do Novo Atlas Europeu, um projecto para estudar as circulações das aves a nível da Europa, e que comparava com outro que tinha sido feito há 25 anos. E analisaram-se as distribuições das espécies e compararam-se para saber se se tinham deslocado para Norte ou para Sul; porque, em relação às alterações climáticas, existe uma teoria, digamos assim, de que se a temperatura aumentar, as aves vão-se deslocar para Norte, porque as regiões do Norte ficam menos frias, a temperatura fica óptima, e as aves vão atrás dos gradientes de temperatura… Isto é o que diz a teoria. Na prática, verificou-se que houve tantas espécies a deslocar-se para Norte, como espécies a deslocar-se para Sul, ou seja, em sentido contrário àquele que era suposto deslocarem-se se o único factor fosse o aumento da temperatura. E os autores desse estudo disseram que se metade das espécies se deslocaram para Sul, podemos interpretar que há aqui outros factores a condicionar a distribuição das aves. Portanto, é algo que tem de ser estudado mais em profundidade.

    E que outros factores poderão ser?

    Nem sempre sabemos. Normalmente, estas equações são complexas, há vários factores em jogo simultaneamente, e não conseguimos isolar uns dos outros para medir o impacto de cada um. Eu diria, pela experiência que existe em Portugal e noutros países, que um dos principais factores que condicionam a distribuição das aves são as alterações de habitat; se quisermos, as alterações do uso do solo, nomeadamente devido à actividade agrícola. E eventualmente florestal, e também devido à urbanização, à construção de barragens. Tudo o que faz mexer no habitat causa impacte, e isso pode fazer as espécies colonizarem novas zonas ou desaparecerem. Esse é um factor muito importante, e que deve ser tido em conta, independentemente das alterações climáticas. Ou seja, temos de entrar com o “mix” todo. Ainda pode haver outras variáveis, como a perturbação causada seja por observadores e fotógrafos, como por pessoas que estejam a praticar actividades desportivas, ou qualquer outro tipo de acções humanas. Portanto, perturbação, perseguição directa, seja caça legal ou ilegal, e introdução de espécies exóticas ou invasoras, são tudo factores que podem concorrer para causar desequilíbrios e alterações em determinadas aves. Sem esquecermos a relevância das alterações climáticas, não devemos cair no erro, como às vezes vejo, de achar que tudo se deve às alterações climáticas, e esquecermos que há outros factores que também podem ser muito relevantes, nomeadamente as alterações de habitat.

    Em Portugal, as medidas de conservação das aves têm sido suficientes, ou poderia fazer-se mais?

    Acho que se poderia, e deveria, fazer muito mais. Há 50 anos, fizeram-se muitas coisas más, como drenagens de zonas húmidas, e outras coisas que alteravam o uso do solo, e não se tinha noção dos danos que aquilo causava. Hoje, há muita informação, nomeadamente sobre o que pode ser feito a nível de gestão do habitat para conservar as espécies, mas, apesar de tudo, muitas vezes não são tomadas medidas para evitar alterações. Aquilo que eu defendo, antes de mais, é que se invista mais a sério em programas de monitorização das espécies ameaçadas. Eu penso que é essencial monitorizar-se as espécies para se poder perceber o que é que está a acontecer, e depois se poder tomar as medidas consideradas relevantes.

    Há poucas semanas estive em Vila do Conde, num simpósio internacional sobre picanços, que é um grupo de passeriformes, e a certa altura assisti a uma apresentação de uma pessoa do Canadá, que disse que nos 1990, essa ave foi classificada como ameaçada. E o Governo federal canadiano imediatamente decidiu pôr em marcha um programa de monitorização. E eu gostaria que em Portugal acontecesse algo semelhante. Nós também temos um Livro Vermelho, que saiu em 2005, e sairá outro daqui a poucos meses, penso eu, e o Livro Vermelho classifica determinadas espécies como ameaçadas. E eu gostaria que tal como no Canadá, quando uma espécie é classificada como ameaçada, imediatamente tivesse início um programa de monitorização para o acompanhamento daquela espécie. Caso contrário, esses estatutos de ameaça acabam por servir de muito pouco, porque não se tomam medidas. E, no limite, a espécie pode desaparecer, como já aconteceu, infelizmente. Portanto, o apelo que eu deixo aqui é no sentido de se investir mais, desde logo, na monitorização.

  • Um conteúdo comercial escrito por jornalistas ‘destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade económica’

    Um conteúdo comercial escrito por jornalistas ‘destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade económica’

    Na segunda parte da sua entrevista ao PÁGINA UM, João Palmeiro, o histórico presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, aborda as polémicas parcerias entre os media e empresas e também entidades públicas, que têm colocado em causa a independência e credibilidade do jornalismo. Mas também há tempo para uma conversa sobre as maravilhas da imprensa e as suas histórias. Na verdade, a História da Imprensa é um mundo fascinante, que tem ainda muito para descobrir, e que levaria por certo a mais mil e uma conversas… Poder ler a primeira parte desta entrevista AQUI.


    Nos últimos anos, tem começado a aumentar de forma massiva os conteúdos comerciais ou patrocinados, e as parcerias comerciais que muitas vezes são apresentados ao leitor com apoio da empresa X ou Y. E muitas com a participação dos jornalistas, mesmo tendo um contrato comercial por trás. E tudo isto não é claro para o leitor . Como é que vê isto para o futuro da credibilidade da imprensa?

    Tenho uma visão muito clara sobre isso. Primeiro, é preciso, cada vez mais, haver provedores do leitor. Pessoalmente, tenho uma experiência de provedor do leitor. Aliás, eu não sou nem nunca fui jornalista, e aceitei ser durante 10 anos provedor de leitor do primeiro jornal regional digital que houve em Portugal, que foi o Setúbal na Rede. Exactamente para poder mostrar que se eu era capaz de o fazer, não sendo jornalista. Um jornalista fá-lo-ia com muito mais competência do que eu. Mas o provedor do leitor não tem que ser um provedor pela publicação. Quer dizer, tem que ser uma instituição a que as pessoas possam recorrer, e que, de uma forma rápida, possa esclarecer. E hoje, com o mundo digital, não há nenhuma razão para que não seja de forma rápida.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Qual modelo, em concreto, que defende?

    Aqui [na Associação Portuguesa de Imprensa] temos defendido um modelo de Conselho de Imprensa, que seja uma espécie de um corpo de provedores de leitor, à disposição para esclarecer as pessoas. E que têm também, entre si, o objectivo de ir sinalizando, chamando à atenção e comunicando publicamente os casos em que há desvios, como aquele que está a dizer. Não podemos ficar à espera, em sociedades muito garantistas como a portuguesa, por exemplo, de processos longuíssimos de averiguações disto e aqueloutro. E não é isso também que a maior parte dos consumidores de notícias querem. Os consumidores querem saber: é verdade ou não é? Foi bem feito ou não foi? Se depois disso há um castigo ou não há, isso é com outro agente. Já é com a verificação.

    Isso seria suficiente?

    Temos essa visão de que o jornalismo exige cada vez mais a intervenção de pessoas que estão à disposição para verificar, e hoje em dia, com os meios que existem, isso pode ser muito fácil de fazer. Segunda coisa: os estatutos editoriais são a garantia daquilo que eu estou a oferecer. São como, nos medicamentos, as bulas, que ninguém lê mas que toda a gente devia ler antes de tomar um remédio. Por exemplo, lemos muitos estatutos editoriais que dizem: “esta publicação defende a Lei de Imprensa”. Não é isso o estatuto editorial. O estatuto editorial é a minha promessa de como interpreto exactamente os conteúdos que vou dar. E é também sobre isso, quando eu falo nos provedores dos leitores: não fazem essa função de uma maneira cega; têm de ir ao estatuto editorial, e é sobre ele que dizem “sim” ou “não”. E a ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social], que de vez em quando anda atrás dos estatutos editoriais, bem podia fazer um trabalho mais decente do que aquele que faz em relação a isso.

    Falemos agora de contratos entre empresas de media. No PÁGINA UM temos revelado diversos casos envolvendo praticamente todos os grupos, envolvendo jornalistas e contrapartidas editoriais para execução de contratos de prestação de serviços. Alguns até incluem a possibilidade de pedir a substituição da equipa de jornalistas se as entidades não estiverem satisfeitas com os conteúdos. Ou então a definição de um número determinado de artigos sobre actividades de um centro de investigação universitário, como se viu num contrato com o Público. A questão é, garantimos que as notícias são verdadeiras, mas depois temos situações destas. E o leitor às vezes apercebe-se disso. Em que é que ficamos? Onde é que está a informação e a desinformação?

    Os jornais sempre tiveram um problema muito grande – que não é de agora, é de sempre: há os jornalistas, e os outros. Os outros [departamentos de marketing], em muitos casos são pessoas que fazem contratos desses; que ninguém vê, e que escrevem lá coisas que não estão autorizados a escrever. Porque acham que isso os ajuda a vender melhor. Já fui responsável por coisas dessas; não dessas em concreto, mas por coisas nessa área em algumas publicações, e tinha que firmemente dizer: “vocês não podem falar como jornalistas” às pessoas que vendem e que fazem negócios. E a resposta que me davam sempre era: “ah, mas isso é que vende”. Ou seja, se eu for falar com um comercial da não-sei-quê, nem me ouvem, mandam-me embora imediatamente. Se eu for sugerir que aquilo que eu estou a vender é uma coisa que vai ser feita por jornalistas, que vai ter esse retorno maravilhoso que é a aparência jornalística, aí eu vou fazer um negócio.

    E é isso que está ser vendido…

    Eu sei. Agora, isso não tem uma definição. Por exemplo, esse último caso que falou, das universidades, às vezes têm objectivos tão simples como este: existe uma regra europeia que determina que se forem publicados artigos sobre ambiente, tenho uma diminuição de X por cento na minha pegada de carbono. E, portanto, esse tipo de publicações são altamente apetecíveis, porque eu faço um relatório ao fim do ano, e no ano seguinte tenho X notícias no jornal. E isso é qualquer coisa que eu vou vender aos outros. E quando os outros dizem: “mas essas notícias vocês não podem publicar”; eles dizem; “podemos, podemos, porque isso diminui a nossa pegada de carbono”. Este princípio foi mal transposto em Portugal, e eu tenho alguns jornais em cima de mim a dizer que estão a perder negócio porque não estão a usar esse benefício; porque o princípio foi mal transposto e, aparentemente, os serviços públicos só os aplicam à publicidade. Só quando a publicidade é a favor do ambiente é que fazem as tais contas para descontar; se forem artigos não fazem. Noutros Estados-membros não é assim, e a própria directiva europeia incentivava a que se incluíssem também conteúdos informativos. Nunca se diz conteúdos jornalísticos, mas conteúdos informativos. Aqui em Portugal, eu não faço ideia [como foi], porque segui muito esse processo durante 10 ou 15 anos, e depois de repente, de um dia para o outro, isto apareceu feito sem nos terem dado cavaco. Portanto, isso leva-me, outra vez, à minha ideia cada vez mais alicerçada: a questão fundamental é o acto jornalístico; temos de ser capazes de definir o que é o acto jornalístico e de ensinar aos utilizadores, aos que acedem, que uma coisa é o acto jornalístico e outra coisa é mera informação, por muito bem escrita que esteja. E tem que ser o utilizador a estar também preparado para fazer isto. Vai levar anos. Talvez demasiados.

    Mas antigamente, sabíamos que havia apenas a publicidade, e depois passou a haver o conceito de publireportagem…

    Porque a publicidade também evoluiu.

    Sim, mas a publirreportagem era claramente a identificação. Não havia qualquer dúvida de ser publicidade escrito. Agora é uma ‘misturada’ enorme. Temos jornalistas a assinarem peças comerciais. E até há jornalistas que, de boa fé, fazem notícias sem saber que estão incluídas num contrato comercial.

    Isso eu acho insuportável, não posso dizer outra coisa. É uma prática que durante algum tempo pode ajudar à sustentabilidade, mas que no fim, vai destruir a sustentabilidade; destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade comercial. Mas querem ver também outra coisa? O Instituto Nacional de Estatística (INE) fala em investimento publicitário, mas não o que é declarado pelas publicações, mas sim aquele declarado pelos anunciantes. E tem lá várias rubricas: imprensa, rádio, televisão, internet, eventos, outdoors. E depois, de repente, tem “outros”. E nos “outros”, está o terceiro maior investimento. O maior investimento é naturalmente a televisão – quase 400 milhões de euros –, o segundo já é a internet, com 203 milhões de euros, e depois os “outros” são quase 150 milhões de euros.

    E o que é “outros”?

    Exactamente. Andamos aqui desesperadamente, numa investigação com o INE, a tentar perceber o que é “outros”, sobretudo porque isto vem do lado dos anunciantes; não vem do lado dos meios. Reparem: isto são dados públicos, portanto não tenho problema nenhum em falar nisto. Em 2022, aquilo que se chama “imprensa” recebeu, segundo o INE, recebeu 27 milhões de euros de investimento. Mas do lado da informação remetida pelas empresas diz-se que a imprensa recebeu 72 milhões de euros.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Não bate a bota com a perdigota.

    Só uma das empresas declara que, no sector de imprensa, recebeu 31 milhões de euros. Onde está? Quer dizer, eu confesso-vos – e peço desculpa de ser tão directo e tão bruto nisto – que estou muito menos preocupado com a transparência da propriedade do que em perceber isto. O que é isto? Quer dizer, eu vou a qualquer lado público e vejo as pessoas a olhar para mim: “coitado, lá vem ele, o presidente da API, os tipos estão quase a morrer, já quase não têm publicidade, aquilo é uma desgraça”… E realmente, quando eu olho, vejo 27 milhões de euros! Quando, há quatro anos, eram 54 ou 56 milhões de euros. Isto é uma catástrofe, é menos de metade. Mas depois, afinal do lado das empresas os números são outros…

    Se calhar são as tais parcerias de que falavamos…

    Estamos a tentar saber, porque achamos que a nossa obrigação compreender isto, porque só assim podemos contribuir para que as coisas melhorem.

    Vou fazer-lhe uma provocação: julgo que está na presidência da API formalmente indicado pela Impresa.

    Exactamente.

    Pronto. Verificámos que nos últimos três anos, o caderno principal começou a publicar uma página denominada “Projetos Expresso”. Sabemos que são parcerias comerciais, com conteúdos assinadas por jornalistas com carteira profissional. Só durante a pandemia, em três anos, houve mais de 80 conteúdos apoiados pelo sector farmacêutico. Quando estamos aqui a falar na informação falsa ou verdadeira, também é legítimo perguntar: sem estas parcerias, o jornal teria outra abertura editorial? E de que forma essas parcerias podem condicionar a linha editorial. É legítimo pensar que se alguns temas não saem nos jornais, não é por ser informação falsa, mas porque poderiam afastar parceiros comerciais. Não tenho dúvidas de que grande parte das notícias do PÁGINA UM estariam nos outros jornais, e agora nem sequer são temas abordados…

    Vamos ver. Eu não tenho grandes dúvidas de que a entidade que eu represento, no que diz respeito ao cumprimento das regras sobre a verdade, cumpre até à exaustão possível da capacidade humana. A outra questão está num problema que não é de hoje, que é a escolha daquilo que eu quero publicar ou não. Durante muitos anos, a escolha daquilo que se publicava ou não era a do director, que dizia porque não gostava ou não lhe interessava… Quer dizer, isto eram questões atendíveis, tendo em conta a forma como o director interpretava o seu papel com os seus leitores. Hoje, quer pela extensão possível do mundo digital, quer pelas dificuldades que o mundo do papel passou a sentir, tornou-se uma quadratura mais difícil de resolver. Naturalmente, acho que não devemos nunca tentar perceber aquilo que não foi publicado, temos de ter uma opinião com base naquilo que foi publicado. Porque aquilo que não foi publicado, sim, pode haver casos em que não foi publicado por pressões, mas a verdade é que numa sociedade plural e diversa, com vários órgãos de comunicação social, os interesses não podem ser todos tão coincidentes. Em Portugal, temos uma riqueza importantíssima, que são os jornais regionais e locais. Até temos um exemplo interessante, apesar de tudo, que é o da Igreja Católica: tem algumas posições claras, e que diz que disto não se fala, e que este caso não se publica.

    Mas já temos casos de queixas de leitores por os jornais não cobrirem determinado assunto. Ou a questionar determinada abordagem. No Público, por exemplo, á habitual o Provedor do Leitor tecer várias críticas…

    Mas o provedor está lá dentro do jornal, e portanto sabe, tem de saber, aquilo que é o objectivo e a disponibilidade do jornal. Uma das coisas com que me debato muito é olhar para a diminuição do número de páginas dos jornais. E digo sempre isto: “bom, eu ontem publicava 10 notícias, hoje só posso publicar cinco porque não tenho dinheiro para fazer mais, não é porque há uns senhores que me batem à porta”. Portanto, como é que eu, editor, estou preparado para dizer: “eu não quero publicar estas cinco, só vou publicar estas outras”? Ou “vou cortar todas a meio”?

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    A redução das notícias não é uma saída em desespero? Porque daqui a nada… Aliás, o PÁGINA UM nasce pela ideia de que as notícias vendem e podem fazer dinheiro, podem er valorizadas pelos leitores e não pelos anunciantes…

    Eu sei. Mas eu tenho que ter um espaço de publicação. O espaço digital veio tornar mais fácil resolver este problema. Mesmo assim, ainda há uma escolha sobre o que é que se põe ou não põe no papel. E esta escolha não é igual em todas as publicações e na cabeça de todos os directores. Daí o grande esforço que estamos a fazer na transição para o digital através do Aveiro Media Competence Center, onde o objectivo é ver o papel e o digital como um todo; como a sua relação com os seus públicos. E depois, têm de se saber que há públicos que não tem acesso ao digital, e há públicos que gostam de ter o acesso às duas coisas; e há públicos que só gostam do digital.

    A discussão entre o digital e o papel estará ao nível daquilo que a relaçao entre o diário, o semanário e o mensário, que se destinavam a leitores distintos. Até poderiam ser os mesmos, mas os jornalistas devem ser diferentes. O tempo de reflexão e de produção é completamente diferente. No início, as redacções do digital e do papel eram distintas. Hoje, um jornalista de um semanário em papel tem que fazer tudo a todas as horas, durante todos os dias. Portanto, a qualidade decai. O Público faz gáudio de fazer 150 notícias por dia no online. Não sei quantas delas são de agência ou quantas são de qualidade duvidosa. Mas o leitor apercebe-se disso.

    Mas pegando nessa sua ideia sobre os diários e os semanários, é verdade. Mas reparem. Se analisarmos a imprensa regional, vemos que temos casos muitos interessantes: os jornais saíam três dias por semana, depois passaram a dois, e depois uma vez por semana. E encontramos sempre o mesmo padrão: a evolução da necessidade de ter jornalistas em sítios onde os jornalistas não podiam estar. Primeiro ponto. Segundo padrão: o conflito latente entre a personalidade do dono ou do editor do jornal, e do presidente da Câmara ou da Junta. Quantos mais próximos estamos, mais importância as coisas têm. Ao longo do tempo fomos caminhando para um jornalismo que, em muitas vezes, está mais dependente de situações pessoais do que de situações de influência política, social ou de dinheiro. Claro que existem algumas, mas são mais de situações pessoais do que aquilo que foram no passado, porque efectivamente as instituições não foram capazes de se distanciarem o suficiente para perceberem qual era o papel de cada um. Recentemente, um pequeníssimo jornal dizia-me assim: “eu quero ter cá uma jornalista a tempo inteiro, mas não lhe posso pagar; ela tem de trabalhar noutro sítio para completar o salário, e eu não lhe consigo dar uma carteira profissional, digam-me lá como é que eu resolvo isto”! Em boa verdade, atendendo a todas as regras e princípios, aquilo que eu tinha de lhe dizer era: “feche o jornal”. Depois, claro, estamos aqui a inventar, e dizer: “porque é que não faz assim ou assado”… Mas se eu lhe dissesse para fechar o jornal, provavelmente haveria alguém na terra a esfregar as mãos para ocupar aquele lugar, e fazer cobras e lagartos. É muito difícil, percebem?

    Sobre o domínio da propriedade, que é controlada pela ERC, existe ou não necessidade de tornar essa informação mais transparente? E, já agora, como viu a novela da ERC sobre a nomeação do Conselho Regulador e do futuro presidente?

    Sabe, eu como já sou suficientemente idoso, posso dizer algumas coisas como esta: quando vemos que um modelo de funcionamento conduz sempre às mesmas coisas, então estamos petante um modelo que não está bem. Ou seja, a substituição da primeira ERC levou um ano e meio. A substituição do segundo Conselho Regulador levou quase dois anos, e a do terceiro já vai na mesma. Independentemente da novela, é porque há qualquer coisa no sistema que impede que funcione. A 1ª Comissão da Assembleia da República que tem de fazer a nomeação dos quatro membros da ERC chegou ao dia em que fazia os cinco anos e escreveu na sua agenda “eleição dos novos membros da ERC”. E depois ficou à espera que a 12ª Comissão, onde os partidos têm de fazer as propostas e ouvir os candidatos, ouvissem os candidatos. Então, é preciso ir ver onde as coisas não funcionam. E onde é? Os dois maiores partidos dividem entre si – eu acho isto uma coisa injustificada –, as nomeações. Penso que devia ter sido feito um regulamento; não é como isto agora, que toda a gente sabe que é assim, e que toda a gente diz que não devia ser assim. Mas o problema está no quinto membro [da ERC, cooptado pelos outros quatro, para presidir], que não é nomeado oficialmente pela Assembleia da República, mas que os partidos não avançam sem terem o acordo em relação ao seu nome. Portanto, isto não funciona. Então, é preferível dizer assim: numa legislatura, um nomeia três e outro nomeia dois; e na legislatura seguinte trocam. Podíamos dizer que na primeira vez, ninguém sabia bem como é que se fazia. Na segunda vez, podia dizer-se que ainda estávamos a experimentar… Agora, meu Deus, à terceira vez só come quem quer.

    Qual seria a solução? Vamos ter outra vez um sinal de estarmos perante uma decisão política?

    Eu até acho que nem é uma decisão assim tão política, nesse sentido de política partidária. Será política, mas depois os partidos ligam muito pouco à ERC. Depois, a ERC entrega os relatórios anuais, normalmente 10 meses depois do fim ano… Já alguma vez assistiram a alguma discussão na AR dos relatórios da ERC?

    Por acaso, tive curiosidade em ouvir a última, que foi há alguns poucos meses. A grande discussão foram questões laborais internas [risos].

    Claro. Se fosse membro da ERC, apresentava lá o primeiro relatório, e da segunda vez que ia lá dizia: “estes tipos não querem saber disto para nada; quer dizer, isto não vale a pena, portanto toma lá qualquer coisa…”. Agora estar a ter trabalho e chatice por causa de uma coisa destas… Todo o sistema enferma deste problema. E pergunta-se: “porque é que os deputados não discutem?” Porque sabem que, na verdade, essa discussão não tem nenhum impacto. Portanto vão às questões como essas [questões laborais], que podem trazer alguma notícia. Acho que vai ser a lei europeia que vai poder mudar alguma coisa neste aspecto, porque isto no futuro, em termos da Europa, será completamente inaceitável. Não vai ser possível.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas voltemos à questão da propriedade dos órgãos de comunicação social. Sente ser preciso maior transparência sobre quem são os verdadeiros donos? E, para além dos accionistas, deve continuar a saber-se as dependências que existem, em termos de passivo, e quem tem poder decisório?

    Para o bem e para o mal, só em 2019 ficou pronta a Plataforma [da Transparência dos Media]… Nem a Associação [Portuguesa de Imprensa], que convinha saber algumas coisas, conseguia antes saber algo sobre os accionistas e detentores do passivo. E na ERC, a Plataforma só em 2020 e 2021 começou a funcionar. À vossa pergunta, eu respondo que sim, tem de haver transparência. Não posso pedir um tratamento específico para este sector sem dar alguma coisa em troca. E o em troca é preciso dar informação aos cidadãos, a quem estou a pedir que me deem alguma coisa dos seus impostos, sobre quem, como, porquê e de que forma as coisas funcionam e são empregues. Em Portugal temos muito pouco o hábito de fazer isso, mas a transparência tem uma consequência. Não sei se se lembram, mas antes dessa Plataforma havia uma lista de umas 50 empresas de media que tinham de revelar alguma informação. E por que eram essas 50 e não eram outras? Em Portugal, no se gosta de discutir e analisar a regulação, e isso tem de ser feito. Acho que a confiança só existe quando há conhecimento, e às vezes para ter conhecimento, é preciso haver exposição. E essa exposição tem dee ser a mínima para que as pessoas possam ter confiança. Agora, quais são os limites dessa exposição?

    Para terminar, há quantos anos está aqui na Associação?

    Demasiados. Na direcção, estou há três décadas.

    Em 30 anos, mudou muita coisa na imprensa, o digital apareceu em força… A situação financeira mudou e as tiragens desceram muito. Como vê hoje o jornalismo em comparação com o que era há 30 anos, e como antevê o jornalismo daqui a trinta anos? Falar em “daqui a trinta anos” é para dar esperança… [risos].

    Olhe, vivi muitas vezes sem tempo para, verdadeiramente, ter uma percepção disso, mas julgo que vivi os anos mais interessantes e mais espantosos na mudança. Acredioto que daqui a 30 anos se dirá do que foi o jornalismo nesta nossa época. Por formação, e por uma quantidade de razões, fui habituado a dar um grande valor à visão histórica das coisas. E penso muitas vezes no jornalismo de há 100 anos, de como era o jornalismo nos outros séculos. Tenho a grande sorte do meu pai ter sido jornalista, entre o fim dos anos 20 e meados dos anos 40. Tenho memória daquilo que me contava, e da maneira como era o jornalismo; que eu consigo reconhecer hoje. Se o meu pai voltasse, veria que hoje o jornalismo em si não seria tão diferente como era na idade dele. Até porque, como foi um dos pioneiros da rádio em Portugal, eu vivi muito anos a ouvir muitas histórias sobre o jornalismo radiofónico, quando aquilo era tudo uma coisa que ninguém sabia muito bem para onde ia. Quando não havia dinheiro, quando era preciso inventar publicidade na rádio…

    ET: Eram outros tempos…

    No fim dos anos 1940, o meu pai escreveu uma das primeiras novelas radiofónicas comerciais em Portugal, em que Vasco Santana fazia de João Maria, que, na verdade, era eu. Eu sou o João Maria, era o João Maria na cabeça do meu pai. E o Vasco Santana fazia o papel principal, e a minha mãe fazia de cavalo. Relinchava e tudo – é verdade. Portanto, fui educado dentro desta visão, mas depois tomei uma decisão aos meus 14 ou 15 anos: “jornalista não serei nunca na minha vida”. Estava completamente bem informado, e era já nessa altura um leitor diário de jornais, o que era uma coisa única na minha idade. As pessoas hoje dizem: “os jovens hoje não leem”, e eu digo: “não sabe o que está a dizer”. Antigamente, os jovens não liam nada. Uma pessoa como eu era um caso único, extraordinário, resultante de uma educação em casa. Sou um ouvinte de rádio completamente compulsivo por causa disso. Mas praticamente não vejo televisão, e porquê? Porque a televisão só entrou na minha casa quando tinha 12, 13 ou 14 anos. Tenho um irmão 10 anos mais novo que fez tanto barulho que o meu pai lá comprou a televisão. Eu conto esta história para perceberem como olho para estas coisas, para trás e para a frente, nesta base.

    E então o que vê?

    Primeiro: acho que o jornalismo não vai acabar. Não se esqueçam que no fim da Primeira Guerra Mundial houve algumas tentativas de convenções internacionais para dizer o que era o jornalismo. No fim da Segunda Guerra Mundial houve a Declarações dos Direitos Humanos, que falavam do jornalismo, da liberdade de imprensa e de tudo mais. Estamos agora num momento em que é preciso fazer isso outra vez. Eu estive muito envolvido nas Nações Unidas, sobretudo em 2017 e 2018, numa tentativa de fazer crescer uma coisa destas, mas que acabou pura e simplesmente porque os russos não quiseram que fossem para a frente. Bloquearam a tentativa de lançar esta discussão de uma maneira diferente. Disseram-me também que os chineses tinham ido pela mesma linha, não tenho nenhumas evidências. Acho que, no jornalismo, vevemos reféns de práticas e de modelos que já não se adaptam mais àquilo que são os nossos dias… Se virem as leis de imprensa do fim do século XVIII, princípio do século XIX, percebem que o controlo do poder era feito através das gráficas. A propósito, neste momento, estou neste momento num trabalho que resulta de se ter descoberto, em três bibliotecas do Alentejo, jornais manuscritos. Quando fui ver a data desses jornais manuscritos, achava que eram de 1700. Mas não. São jornais entre 1889 e 1907, quando houve em Portugal as maiores leis de restrição da liberdade de imprensa, ainda no tempo da Monarquia. Portanto, aqueles jornais eram a forma de utrapassar essas restrições – eu, aliás, tenho chamado a esses jornais os blogues do século XIX…

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    E que passavam depois de mão em mão…

    E eram copiados! Eu recebia o jornal, copiava um para si, outro para outra pessoa; vocês copiavam outros dois… Agora, que informação é que existe sobre isto? Muito pouca, porque estes jornais chegaram às bibliotecas há 10 anos.

    E se calhar, nessa altura, esses jornais eram considerados desinformação… [risos]

    Provavelmente. Só chegaram há 10 anos às bibliotecas, porque pertenciam a pessoas que tinham uns exemplares nas gavetas. Encontrei três em Estremoz, um dos quais teve pelo menos 15 edições. Há um que até tem banda-desenhada! E até tem letra cursiva, e cabeçalho, director, editor, preço!

    Exisiam antes referências da existência de muitos desses jornais?

    Nunca conheci. Fizemos aqui uma pequena investigação, porque infelizmente tudo foi feito com o tempo que sobra, que é muito pouco. Mas enfim, como já cá estou há demasiados anos, quero que o meu contributo final seja este. E aquilo que descobrimos foi que o Partido Comunista Português e o Pacheco Pereira têm um acervo de jornais clandestinos. Mas desses, sabe-se tudo. Estes, de que vos falo, não. E se se for e ver a Lei de Imprensa então vigor, percebe que estes tipos não queriam ser apanhados.

    Ou seja, não havia referências da existência desses jornais da transição para o século XX na Biblioteca Nacional nem na Torre do Tombo…

    Eu descobri isto no Alentejo, porque fizemos uma exposição sobre jornais transtaganos, e andei a correr as bibliotecas elentejanas a ver o que se encontrava. E um dia disseram-me “venha cá, que temos uma coisa para lhe mostrar”. Eu vi bibliotecários quase a chorar. E eu dizia: “mas eu preciso disto digitalizado”. E eles sempre muito solícitos. Portanto, um amor, um carinho, uma devoção. Por exemplo, em Beja houve um jornal destes que se chama Violeta, que até tinha banda-desenhada. Violeta é o nome do café onde o Eça de Queirós escreveu quando viveu em Évora. Ainda existe o Café Violeta. Mas nõ sei se o Violeta foi de facto um jornal de Évora, porque osexemplares que noschegaram pertenciam a uma família de Beja. Mas há outras coisas intrigantes. Por que raio enconytrámos três jornais deste tipo em Estremoz? Três! E há mais, tem um em Portalegre, que se chama o “O Leão da Estrela”! E este, depois até passou a impresso, sócom o título de “O Leão”.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Esse mundo é maravilhoso. Num dos meus romances [PAV, Corja Maldita], fiz metaficção, e, às tantas, há uma cobertura noticiosa de uns motins verdadeiros em Madrid na década de 1750 [motim de Esquilache]. E então coloco um jornalista que faz a cobertura desses eventos para o Occulto Instruido, mas esse existe, está na Biblioteca Nacional. No século XIX, houe muito jornalismo, de pendor político, alguns muito efémeros…

    Encontrei um jornal em Alcácer, numa associação, escondido. E o jornal chama-se “Terra de Kant”. E eu olhei para o título e disse: “alto! isto não foi feito por um gráfico normal”. Depois estive a ver, tinha o número zero, e aquilo era do nosso fotógrafo principal, o José Manuel Rodrigues, que foi Prémio Pessoa [erm 1999].

    É de que ano?

    1981. Aquilo teve 10 ou 15 números, era mensal, e de repente passa a ser um jornal a cores, deixa de ser um jornal a preto e branco, e passa a ser um jornal a cores, igual a todos os jornais regionais que pode imaginar, e muda o título. O título passou a ser tipográfico e deixou de ser desenhado. E quem era o director do jornal? Era o Camilo Mortágua. Há uns tempos telefonei à Joana Mortágua, e disse-lhe que tinha de lhe pedir um favor. E ela: “então diga-me lá”. Eu disse-lhe que já tinha perguntado a toda a gente e ninguém se lembrava; “importa-se de perguntar ao seu pai?”. Ela disse que o pai já estava um bocado velhote, mas talvez a mãe se lembrasse. Era o fim-de-semana do primeiro de Maio, e ela ia passar o fim-de-semana com eles. E depois liguei-lhe na segunda-feira, e ela disse que nem um nem outro se lembrava. Acabou-se por descobrir que estes vonte e tal números tinham sido impressos numa tipografia no Porto chamada Aguadouro. Eu olhei para aquilo e disse, isto ou foi feito por uma criança num dia de inspiração total, ou então foi feito por uma pessoa que sabia o que queria transmitir. Isto é uma coisa que eu só sei que não é do Picasso, porque ele nunca fez uma coisa destas, e nunca tinha estado aqui, e não pode ter sido. Isto é verdadeiramente fascinante. Mas os jornais manuscritos, oiça… Eu agora tenho que ver outras bibliotecas ao longo do país.

    Essas histórias que nos está a contar, poderíamos imaginar isso num período anterior…

    Claro, mas não. São daquele período e a razão para mim é muito clara. Ando a chatear a Universidade de Évora, que estão sempre a dizer que querem escrever uma história do Alentejo, e u digo: têm aqui, vão aos jornais alentejanos, e a partir dos jornais do Alentejo escrevam pelo menos uma sinopse do que pode ser a história do Alentejo. Porque está aqui tudo o que é preciso.

    Portanto, estamos perante um maná…

    Sim, é fabuloso. Houve ao longo dos tempos, e ao mesmo tempo são jornais ondese vê que aquelas pessoas acreditavam mesmo que aquilo ia mesmo fazer alguma coisa para mudar…

    Fotografias: Júlia Oliveira

  • Na imprensa ‘há gente a perder muito dinheiro’

    Na imprensa ‘há gente a perder muito dinheiro’

    Nome incontornável da História das últimas três décadas da Imprensa em Portugal, João Palmeiro conhece o sector da comunicação social como a palma das mãos. Em vésperas de deixar a presidência da Associação Portuguesa de Imprensa, que representa 200 empresas de comunicação social cerca de 450 publicações, concedeu uma entrevista de fundo ao PÁGINA UM. O seu vasto currículo e experiência nacional e internacional, onde se destaca a liderança do Fundo ‘Digital Innovation Media’ da Google, permitem-lhe um conhecimento ímpar das potencialidades mas também fragilidades de um sector em contínua crise. Nesta primeira parte da longa entrevista ao PÁGINA UM, no seu último mês como presidente da API, Palmeiro mostra um olhar crítico à regulação dos media, tanto em relação ao funcionamento da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como face ao previsto regulamento europeu para os media, que está a ser finalizado. Mas a transparência das empresas de media, e o seu financiamento, bem como a problemática das fake news são temas que também aborda, sem fugir a qualquer questão.


    Numa associação de imprensa, que abrange tantos sectores e diferentes plataformas de várias dimensões, como se consegue conciliar este, chamemos-lhe assim, “saco de gatos”? Ou não estamos perante um “saco de gatos”?

    Primeiro, este é um sector altamente regulado, e isso ajuda a responder a algumas das questões, reconhecendo que, de outra maneira, seria praticamente ingerível. Se olharmos para os dados da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), existem cerca de 1.700 empresas inscritas como editores de imprensa. Dessas, existem 70 ou 80 que se chamam televisão de qualquer coisa, e, depois temos uns 50 que são uma espécie de serviços de programas. E, quando eu digo que este é um sector altamente regulado, quero dizer uma coisa que as pessoas se esquecem, muitas vezes: a liberdade de imprensa assenta nessa regulação. Por exemplo, a televisão não só é regulada, como é finita. Ou seja, não pode fazer televisão quem quer. Só faz televisão quem cumpre determinados parâmetros, quer em termos empresariais. Uma empresa deste sector é obrigada a ter 2,5 milhões de euros de capital social. E tem de haver disponibilidade por parte do Estado de dizer que existe uma ou mais frequências vagas, tem de se fazer um concurso onde aparecem outros concorrentes, e depois tem de se ganhar fazendo várias promessas de naturezas diferentes, desde informativa, cultural ou de entretenimento. Tal como a Constituição Portuguesa a descreve, a liberdade de imprensa é, assim, extraordinariamente difícil de ser reconhecida. Naquilo que estamos hoje a falar como imprensa – que é tudo o resto que não depende um alvará para ser utilizado –, esse é outro mundo todo, das cerca de duas mil empresas, da liberdade de se fazer uma empresa para editar qualquer coisa. Sendo que o editar pode ser digital, pode ser uma plataforma.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    De facto, é um sector muito regulado, porque temos a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Constituição. Temos, de facto, muitas leis. Mas, quando falamos da ERC ou da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), estas entidades têm instrumentos suficientes para dar garantias de que aquilo que está a ser-lhe transmitido é isento do ponto de vista da informação?

    São coisas diferentes. A CCPJ é uma entidade que está entre uma Ordem e uma direcção-geral. Não é uma Ordem, porque a actividade jornalística não é autónoma, ou seja, um jornalista não tem uma autonomia igual à de um médico, que diz: “não faço”, ou “não digo”.

    E devia ter essa autonomia?

    Na minha opinião, não pode ter. A autonomia do jornalista reside no estatuto editorial, e quem tem o direito de estabelecer o estatuto editorial, e de o alterar, é o proprietário da publicação, que pode não ser jornalista. Portanto, há aqui uma disfunção que, por vezes, se torna esquizofrénica, entre quem tem o direito de dizer qual é o enfoque, e de que maneira as peças devem ser preparadas, e de quem faz as notícias, e a liberdade para o fazer.

    Fazendo então um paralelismo com a Ordem dos Médicos: sabemos que um médico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ou mesmo do sector privado, tem uma autonomia. E a própria OM tem ingerência na gestão do sector da Saúde. Mas há uma legis artis que um médico tem de seguir, e se não o fizer é responsabilizado. Esse modelo não poderia aplicar-se também aos jornalistas?

    A primeira coisa que temos de perceber é que uma Ordem é uma associação profissional. A CCPJ não é uma associação profissional. E essa associação profissional [Ordem dos Médicos] resulta de uma decisão muito antiga, corporativa, do Estado Novo. Achou que, para não se meter em questões que tinham a ver com certas profissões, das quais precisava para sobreviver e continuar a implantar os seus pontos de vista. Assim, entregou a essas entidades profissionais a regulação das suas actividades. E a regulação dessa actividade começou, e ainda se mantém hoje em dia, na determinação de quem pode ensinar, quem pode fazer cursos, e como podem aceder. É, de facto, uma regulação total da profissão, mesmo sobre o elemento que estava a dizer: a autonomia ou a liberdade de um médico em ter a sua própria consciência.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Sim, mas, por exemplo, um pediatra, dentro destas regras da liberdade e da legis artis, não pode de repente decidir fazer uma operação ao coração.

    Não, não, esses são os casos mais simples de resolver, porque a questão que está aqui, na imprensa, é sobre o acto de publicar. Pessoalmente, defendo – e a minha tese de doutoramento debruça-se nisso – o conceito de acto jornalístico. Fui à procura da definição, e comparei o acto jornalístico com o acto médico, e com o acto jurídico. E há uma diferença fundamental: enquanto o acto médico é sobre mim ou sobre si, quando vamos ao médico, já o acto jornalístico não vive só por si, integra-se num conjunto, numa publicação, num noticiário de rádio ou de televisão, ou num blogue. Ou seja, só por si, uma notícia não vale. A notícia só vale integrada num fluxo, seja do semanário, diário, o que nós quisermos. Faz parte de um fluxo. Esse fluxo tem um referencial, que é um título ou o “bilhete de identidade” da publicação, e tem um suporte e um enquadramento, que é o estatuto editorial. Um jornalista tem toda a liberdade e autonomia, igual à do médico ou do advogado, mas só até ao momento em que diz: “isto está pronto para publicar”.

    Ou seja, a publicação não depende do jornalista…

    A publicação, o direito de publicar, até legalmente, já não lhe compete. Por isso é que há um problema, que não querem discutir nem debater – mas que eu passo a vida a chamar a atenção: quando o jornalista trabalha numa redação, para um editor, e depois chega ao fim do dia a casa e é editor do seu próprio blogue. O que é que pode acontecer? É uma de duas coisas. Eu tenho discutido muito isto com o Sindicato [dos Jornalistas]. No princípio, o Sindicato não gostava de discutir. Hoje já estamos mais abertos. O jornalista pode escrever no seu blogue sobre o mesmo tema que escreveu no jornal de manhã, ou coisas diametralmente opostas ou diferentes, porque é aquilo que ele acha. Só que de manhã não as pôde escrever, porque não cabiam dentro do estatuto editorial da publicação. Ou, fez uma entrevista e usou no jornal 30% dessa entrevista, e depois agarra nos outros 70% e coloca-os no seu blogue. A questão é: quando ele se apresentou perante si ou perante mim para a entrevista, disse: “eu sou o Manuel, jornalista, ponto”, ou disse “eu sou o jornalista que tem o blogue ‘Coitadinha da Ceguinha’”, ou disse “eu sou o Manuel jornalista que venho do Diário de Penacova? É isso completamente diferente para mim, que dou a entrevista, porque eu estou a colocar o jornalista, não só na sua capacidade de pessoa que faz notícias, mas também num sistema de difusão e de divulgação que está aferido a um estatuto editorial. E é tudo isso que o estatuto editorial representa.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    E como fica a CCPJ no meio disso?

    A CCPJ foi a solução menos má, que foi possível encontrar, para a evolução do sistema anterior – que as pessoas já não se lembram –, que era o Sindicato dos Jornalistas. Era o Sindicato dos Jornalistas que passava as carteiras profissionais, porque no sistema corporativo, os sindicatos passavam as carteiras profissionais das corporações a que pertenciam [durante o Estado Novo]. E estavam incluídas numa espécie de um conselho da corporação, que, no nosso caso, era a Corporação de Cultura e Artes gráficas. E esse Conselho da Corporação tinha representantes de impressores, artistas, cançonetistas… Também tinham uma carteira profissional. A carteira profissional destes todos, que estavam nesta corporação, como os outros que estavam nas outras corporações, eram, por lei, passadas pelos sindicatos.

    Isso mudou…

    Quando o sistema corporativo acabou, os sindicatos – entre os quais o Sindicato dos Jornalistas –, continuou a passar normalmente as carteiras. Simplesmente, neste sector houve uma alteração que não houve nos outros sectores. Tivemos uma Lei de Imprensa e a Constituição, depois, que veio dar a esta actividade uma protecção especial, e às carteiras um significado e uma responsabilidade na sociedade completamente diferente das outras. Em muitos casos, as carteiras das outras actividades serviam para as pessoas dizerem que estavam vacinadas; para se servir à mesa tinha de se ter uma carteira profissional para se dizer que se tinha feito a BCG [vacina do Bacilo Calmette–Guérin], era o que as carteiras diziam. Não podiam dizer muito mais do que isso. E esta evolução, que as pessoas naturalmente se esquecem, fez com que, quando Portugal entrou na União Europeia, tudo isto tivesse de ser reformulado. Mesmo assim, a actividade dos jornalistas ficou esquecida. Lembrem-se, por favor, que a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Jornalistas foi a última a terminar. Era como se os jornalistas estivessem fora da normal relação laboral.

    Consta que aí, o seu fim, teve a ver também com interesses dos grupos de media, porque a Caixa era financiado por uma pequena parcela da publicidade…

    Era também financiada por uma pequena parcela de publicidade, sim, que tinha a ver, sobretudo, com os anúncios nos jornais diários dos cinemas, e de outras coisas assim do género. Mas se houve algum interesse privado, não foi esse de certeza. [O adiamento na decisão de extinguir a Caixa, que ocorreu em 2012] terá sido uma boa vontade de respeito pela última presidente da Caixa dos Jornalistas, e terá sido isso que foi muito importante, com certeza, na época…

    Está a falar da mãe do primeiro-ministro [Maria Antónia Palla]?

    Se calhar, estou a falar da mãe do ministro da Justiça [António Costa], na altura…

    Mas a Caixa até tinha excedente…

    Sim. Aquilo que aconteceu foi uma coisa muito simples: a grande função social e de apoio que a Caixa dava foi substituída pela Casa da Imprensa, que teve um período muito difícil. Mas é muito interessante, porque é com o fim da Caixa de Previdência que a Casa da Imprensa se vê obrigada a tornar-se num verdadeiro apoio de solidariedade para os jornalistas: E hoje é uma instituição… Aliás, aqui na Associação Portuguesa de Imprensa temos um protocolo com a Casa da Imprensa, e todos os editores e suas famílias e seus empregados, sejam jornalistas ou não, beneficiam de todos os apoios que a Casa da Imprensa concede.

    Regressemos à CCPJ…

    A CCPJ é uma cooperação bipartida, mas em que o Estado não tem hoje nenhuma intervenção. Houve, durante alguns anos, a obrigação do seu presidente ser um juiz indicado pelo Conselho Superior da Magistratura. Agora, os quatro elementos que representam os editores são obrigatoriamente jornalistas. E há outros quatro que são eleitos pelos jornalistas.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas antes podiam ter carteira profissional, mas nem todos os que eram indicados pelas empresas do sector tinham de ser jornalistas, podiam ser colaboradores ou equiparados.

    De acordo com a lei, as carteiras profissionais, desde que válidas, são todas iguais. E isto é uma matéria que está em cima da mesa: Mas isso é a minha opinião, pessoal, que não é trazida para aqui. Mas todas as carteiras que são emitidas pela CCPJ valem exactamente a mesma coisa.

    Falemos agora da ERC. Por vezes, é criticada por ter uma postura demasiado hostil para com a imprensa; outras vezes por ser demasiado benevolente.

    Primeiro, não podemos olhar para a ERC sem olhar para aquilo que veio antes. A ideia da [concepção] da ERC era que fosse disruptiva em relação ao modelo da Alta Autoridade [para a Comunicação Social], que era um modelo de representatividade: os editores nomeavam duas pessoas, o Sindicato nomeava duas pessoas e os partidos políticos com assento na Assembleia da República nomeavam, cada um deles, um representante. E, depois, no fim disto tudo, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) nomeava um juiz para presidir. Reparem: os juízes nomeados para aqui foram quase sempre juízes que vieram dos tribunais administrativos. Porquê? Porque, do ponto de vista do CSM, estas entidades são entidades administrativas independentes. Não são entidades para dirimir questões como a liberdade da imprensa, que não tem nada a ver com a Administração; são regras que têm a ver com direitos, liberdades e garantias, portanto, com a Constituição. Qual é a parte do direito administrativo que estão nestas entidades? São os registos e toda essa parte. E, portanto, nisso, essas entidades, melhor ou pior, sempre funcionaram.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas há um outro lado importante, o da regulação.

    Como eu costumo dizer, há um pecado original, que temos de ir vê-lo, lá atrás. E o “lá atrás” é: estas entidades são a consequência da nacionalização da maior parte dos meios de comunicação social em Portugal em 1975. A seguir ao 11 de Março de 1975, houve uma nacionalização geral, da qual só escapou a imprensa regional, para além de um ou outro de âmbito nacional. Tirando isso, houve uma nacionalização total. Esta primeira matriz, da qual a maioria das empresas grandes em Portugal faziam parte, daquilo que era a coisa pública, eram geridas pelo Código Administrativo. Mas, na verdade, não eram, porque uma coisa que as pessoas nunca se lembram é do Contrato Colectivo de Trabalho dos jornalistas, em 1978-1980. Era igual, na estrutura, ao Contrato Colectivo de trabalho que foi feito para a Administração Pública. A mesma coisa, o mesmo tipo de carreiras e de jornalistas, de primeira, de segunda, de terceira. Onde é que vocês encontram isso? Na Administração Pública, onde há um técnico de primeira e de segunda. Portanto, é a mesma lógica. Os contratos colectivos que não eram de jornalistas, mas que eram dos outros trabalhadores, chegavam a ter 80 categorias diferentes, porque era o cozinheiro de primeira, de segunda, de terceira, o motorista de pesados… Há 10 anos tivemos de acabar com isso tudo, porque não fazia sentido, não tinha nada a ver connosco.

    Houve que mudar isso.

    Temos de ver que, nessa altura, o Conselho de Comunicação Social – que é o avô ou o bisavô destas entidades – convivia com o Conselho de Imprensa, que era uma entidade de autorregulação do sector, e convivia com uma coisa que eram os Conselhos de Informação, uma espécie daquilo que é, agora, o Conselho de Opinião da RTP e da RDP. E havia um Conselho de Informação para a imprensa, que tratava dos jornais do Estado, um para rádio e outro para a televisão. E, se formos ver o funcionamento e a matriz do funcionamento destas entidades, vai tudo parar ao Direito Administrativo. Em 2005 e 2006 – primeiro com o Governo do Durão Barroso e, depois, do Santana Lopes, quando era ministro o Nuno Morais Sarmento –, fez-se uma primeira tentativa de um novo tipo de contrato de concessão para a rádio e para a televisão, em consequência da directiva AVMS [Audiovisual Media Services], do sistema audiovisual e dos serviços multimédia. Por causa dessa directiva tiveram de fazer alterações na Lei da Rádio e da Televisão, e ao fazer essas alterações, tinham de atribuir à então Alta Autoridade para a Comunicação Social competências que, com a estrutura que detinha, dificilmente conseguiria cumprir. Então, foi criada a ERC na base de os ‘regulados’ não terem nada a ver com a regulação; estão fora. Abandona-se o sistema anterior, a representatividade dos sindicatos e das associações empresariais. Esses ficam de fora. E reduz-se a representatividade dos partidos com assento na AR a quatro representantes. E, depois, esses representantes deviam cooptar, entre si, uma quinta pessoa, que era o presidente. Este foi um sistema que derivava de estudos avançados na Europa sobre o que devia ser a regulação, e como se deveria organizar – não especialmente deste sector, mas em geral. Aplicado num país que tinha detrás toda esta tradição, resultou que, no fundo, os reguladores foram, uma vez mais, vistos como funcionários para executar tarefas administrativas.

    De qualquer modo, a ERC já existe há muitos anos. É efectivamente um regulador sem os regulados, e tem sobretudo um peso político-partidário muito forte…

    A que se junta uma outra coisa, que é um sistema de financiamento completamente idiota. Idiota é a palavra. É idiota, porque é um sistema de financiamento tríplice, que faz com que os únicos que pagam, verdadeiramente, são os regulados. E que faz com que – voltamos à matriz administrativa –, muitas vezes, a ERC está mais preocupada em sobreviver, arranjando maneira de aplicar as taxas; e nós aqui percebemos isso…

    PAV: Está a falar também das multas?

    Não, primeiro fazer receber as taxas, e depois as multas. Percebemos isso quando temos aqui entidades reguladas com reclamações sobre: “ah, estão-me a dizer que o título que eu estou a imprimir agora é amarelo e antes era azul”. Ou: “Ah, e que o título no telemóvel sai mais apertado do que aquilo que está lá no não-sei-quê”. Mas em que mundo é que nós estamos? Mas isto é o Direito Administrativo a funcionar, é a deriva administrativa, com a falta de dinheiro. Porque o único sistema que funciona, de facto, no financiamento da ERC, são as taxas que pagam os regulados. A parte do Orçamento do Estado está sempre sujeita a tranches e a duodécimos, e até antes da troika já era assim. E há a outra parte da ANACOM, que está sempre guardada pelo ministro das Finanças. Na verdade, a maior influência político-partidária que existe em relação à ERC é no financiamento, porque é onde o político Governo tem, de facto, uma arma para encostar à parede a independência e a autonomia das pessoas que estão no Conselho Regulador. Se não têm para pagar aos seus funcionários, o que é que lá estão a fazer? A ERC nunca foi capaz de estabelecer os mercados preferenciais, porque não consegue pagar os estudos indispensáveis para estabelecer os mercados preferenciais. Ao não os estabelecer, tudo o que tem a ver com questões de posição dominante, de concentrar muita publicidade, etc., pode ser o que eles dizem; como pode ser o contrário.

    Aliás, há pouco tempo, a ERC fez uma análise sobre a distribuição dos montantes da publicidade institucional do Estado no âmbito da pandemia, e chegou uma vez mais à conclusão de que os órgãos de comunicação social regionais estavam a ser preteridos em relação aos nacionais, e de que as televisões estavam a receber mais do que deviam. Mas detectam isso, e depois não acontece nada. As situações repetem-se passado uns tempos, não é?

    Existe um relatório que fizemos aqui na Associação, nessa altura, para a ERC, que permitia que pudesse ter dito coisas muito concretas e precisas… Poderia ter tomado uma iniciativa no sentido de melhorar a lei da publicidade institucional do Estado. Não o faz porquê? A ERC não faz supervisão.

    Ainda sobre a ERC. Faz sentido haver uma Lei da Transparência dos Media, com um portal gerido pela ERC, e depois haver a possibilidade de pedir confidencialidade dos dados financeiros e económicos?

    Quando era presidente da Confederação de Meios, quando foi a transição para a TDT [Televisão Digital Terrestre], fui nomeado, pelas três televisões, o negociador da TDT com a ANACOM. E, a certa altura, na história do concurso – que foi ganho na altura pela PT para os sistemas radiantes para a TDT, etc., –punham-se algumas questões sobre os preços, e sobre a forma como a própria PT queria tratar de elementos que achávamos que eram fundamentais para o negócio, como as boxes e outras coisas do género. E fizemos um requerimento à ANACOM sobre esses dados, e quisemos ver os relatórios que a PT tinha feito. Recebemos 30 dossiês, dos quais 29 tinham as páginas em branco. Diziam “informação não disponível na base dos princípios do sigilo”. A mesma coisa aconteceu-nos com os CTT, quando a ANACOM determinou, talvez há 10 anos, que passasse a haver uma avaliação da qualidade da distribuição postal, e que os CTT tinham de contratar uma empresa independente, que todos os anos fazia a avaliação do serviço. Nós sabíamos que as empresas que contratavam eram de antigos funcionários dos CTT. Também dissemos que queríamos ver os relatórios. Não era 90% que veio em branco, mas cerca de 70% veio em branco.

    Mas insisto na questão: há uma legislação sobre a Transparência dos Media e depois pode haver partes confidenciais?

    Tenho, como se diz, “mixed feelings”. Porque a Lei da Transparência portuguesa é mais exigente que a lei da CMVM para as empresas. Ou seja, exige mais informação e informação mais detalhada do que a CMVM exige às empresas que estão em bolsa. Portanto, é de facto uma lei muito detalhada do ponto de vista da informação para o cidadão.

    Mas por que motivo se fazem leis fantásticas ou exigentes, ou demasiado exigentes, e depois, de uma forma administrativa, porque foi a ERC que fez um regulamento, se criam excepções?

    Não, não, não é a ERC que faz o regulamento. O regulamento vem do Direito Administrativo.

    Está previsto na lei que cabe à ERC fazer o regulamento sobre os indicadores financeiros e a possibilidade de confidencialidade [Regulamento nº 835/2020]. Às tantas, com as excepções aniquila-se o princípio da lei…

    Eu entendo a ERC, na sua recente proposta, que esteve em consulta pública, quando diz que as empresas cuja actividade principal não é a de editor, só têm de dar informação quando a actividade jornalística pesa mais do que 10% da sua actividade. Acho que isto é injusto, por uma razão simples: até 2000, 2001, a Lei de Imprensa, e o regulamento dos registos, dizia que qualquer empresa se podia inscrever como empresa editorial. Qualquer empresa. Portanto, nós tivemos aqui associados como a Siemens, a Ordem dos Advogados. Edita uma revista, inscreve-se na ERC e depois é nosso [associado da API]. A partir de 2000 ou 2001, houve uma alteração aos registos, e os registos dizem que caducam todas empresas que não têm como actividade principal a de editor, mas, no entanto, os registos das publicações continuam válidos. E as empresas proprietárias continuam a ser consideradas empresas editoriais.

    Ainda têm os registos das publicações válidos.

    Isto quer dizer – e temos tido aqui vários casos – que uma empresa que estava registada e tinha uma publicação periódica, à qual lhe foi cancelado o registo, continua a sê-la, do ponto de vista da edição da publicação… Essa mesma empresa, no entanto, se depois quer editar outra publicação, tem de criar uma empresa à parte para a publicação nova. Aquilo que respondemos foi que as empresas que estavam registadas antes da alteração devem ter um tratamento diferente daquelas que se registaram depois. Porque depois da alteração, não é possível haver empresas editoras que não tenham como actividade principal a edição. Portanto, faz todo o sentido dizer que só se tiver um peso ínfimo não indicam os dados. Enfim este é um sector muito regulado, mas mal regulado. Mal no sentido em que a regulação foi sempre feita para resolver ou problemas que nos foram postos por fora, ou problemas de evolução tecnológica.

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    Mas quando estávamos a falar na confidencialidade dos dados ou de terem de indicar, não nos referíamos a entidades que claramente não têm actividade jornalística, como, por exemplo, as Ordens profissionais ou os partidos que têm publicações, e que estão no Portal da Transparência. Estávamos a pensar em grupos de media – e houve casos polémicos abordados pelo PÁGINA UM –, que tentam esconder algumas dependências externas ou dívidas. Aí, qual deveria de ser o critério? Um critério em termos de dimensão do volume de negócios ou algo do género, ou deve ser o tal critério de 10% acima disto ou 10% acima daquilo?

    A dimensão das empresas que estão inscritas na ERC é um dos maiores problemas para a subsistência do sector, para o desenvolvimento e a transição para o digital e, do meu ponto de vista, para a organização da regulação. De acordo com os dados da Europa e a classificação das empresas pelo INE [Instituto Nacional de Estatística], temos uma grande empresa de media… Uma, neste sector da imprensa. Depois, temos 54 ou 56 médias empresas. E depois, todas as outras mil e não sei quantas são pequenas ou microempresas.

    A grande, será a Cofina, e depois o grupo Impresa?

    Sim, mas a Impresa, não a holding, porque a SIC é uma empresa separada. A TVI não tem imprensa, portanto não entra nesta linha. O maior drama deste sector é que, neste momento, cerca de 25% das suas empresas não perde dinheiro e há 75% que perde. Mas os 25% que não perde dinheiro, não perde porque está ali nos 0%, 0,1%, 0,2% [de rentabilidade]. E nos 75% em que se perde dinheiro, há gente a perder muito dinheiro.

    É normal que grande parte do sector esteja em constante crise e em constante défice?

    A maior parte das empresas são pequenas ou microempresas, e para essas as regras são completamente diferentes, quer na gestão quer na forma como estão no mercado. O resultado é, depois feito a partir dos papéis que dão; e os papéis não têm lá essas minudências de relação. Por exemplo, uma das coisas que nos preocupa muito, neste momento, é o projecto europeu de regulação para a área dos media, que prevê, desde o início, que as microempresas não sejam reguladas. Portanto, isto quer dizer que 80% das empresas que estavam na ERC, desapareceriam da ERC. Depois, como é que isso se compagina com a lei portuguesa, com estes anos todos em que estiveram na ERC a pagar uma taxa. Quer dizer, enfim… Este é o primeiro aspecto. Segundo aspecto: há um movimento muito forte europeu de colegas de outras associações que querem também tirar as pequenas empresas. Isso, de repente, faria com que em Portugal haveria, para regular, menos de 100 empresas neste sector. Se calhar, era aquilo que um sector desta dimensão em Portugal deveria ter. Só que não pode perder a riqueza que é a diversidade e o pluralismo de todos os outros. Não sei como é que isto vai acabar. As microempresas estão, desde o princípio, na proposta da Comissão.

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    Mas essa regulamentação comunitária está concluída?

    Não está ainda concluída. Já está muito avançada nas votações no Parlamento Europeu e, quer a Presidência [do Conselho Europeu] sueca, em curso, quer a presidência espanhola – que vem a seguir –, querem fechar estes processos antes de entrar no ano eleitoral, em 2023. Ainda por cima é um regulamento, portanto não tem a mesma latitude de uma transposição, que poderia determinar que as microempresas ficavam excluídas nos próximos 10 anos.

    Será a ERC que terá de tomar conta de uma série de novas regras que estão previstas?

    Não é só isso. A ERC vai ser integrada num regulador europeu. Quer dizer, é uma coisa completamente diferente que se vai passar.

    Um bocado como o Infarmed [em relação à Agência Europeia do Medicamento]?

    Sim, e com a ANACOM, e com todos os reguladores. Vão ser integrados num regulador europeu, que já existe, que se chama a ERGA [European Regulators Group for Audiovisual Media Regulators], e que já existe como associação de reguladores deste sector. Habituaram-se a trabalhar uns com os outros, mas vai ser uma mudança imensa. Agora, a questão é se ficam de fora uma quantidade de microempresas e se vingar a ideia das pequenas empresas… Eu até admito que estamos num movimento em Portugal de médias empresas se tornarem pequenas ou microempresas, para fugirem à regulação.

    E quais serão as consequências disso? Fala-se muito na desinformação, no rigor informativo e na forma como agora começam a aparecer conteúdos que estão ali num misto entre comercial e jornalístico. Como é que depois isso vai funcionar em termos de regulação? Qual será a entidade externa que estará ali a proteger o leitor?

    Teoricamente, as microempresas deixam de ser consideradas como empresas que podem editar uma publicação periódica, seja digital, papel ou o que for. Isto contraria a Constituição Portuguesa, que diz que ninguém pode ser impedido, por razões administrativas, desde que cumpra com os registos necessários. Por outro lado, toda a História da legislação portuguesa sobre comunicação social, desde os anos 1820, teve sempre como principal objectivo determinar como é que era feito e verificado o registo. E depois, quem é que decidia…

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas num cenário de uma empresa deixar de estar sob regulação, significará que deixa de poder editar?

    Não. Pode editar, mas vale é a mesma coisa que um boletim [risos], ou qualquer coisa que é distribuída. Quer dizer, não tem protecção específica.

    Quer queiramos quer não, o facto de um órgão de comunicação social estar registado na ERC, de certa forma dá um estatuto diferente…

    Dá uma responsabilidade, e dá uma obrigação de cumprimento de regras deontológicas. Cumpra-se ou não.

    Se há então esse “risco” de pequenos órgãos de comunicação social poderem ficar desobrigados das regras da ERC, mas também ficam sem o seu cunho. Porque, na verdade, o facto de um jornal poder ser alvo de uma entidade com poder regulador, dá-lhe também uma responsabilidade…

    Exactamente, e permite-lhe exigir um respeito de determinados princípios que têm como base a liberdade de imprensa

    Portanto, não vê que este novo regulamento seja favorável para o sector.

    Acho que o regulamento, da maneira como está, foi muito feito em cima do joelho em Bruxelas, e de modo a ficar pronto a tempo antes das eleições. Não se pensou, não se maturou o suficiente. Nós, em Portugal, temos este problema, mas a Espanha tem um problema completamente diferente. A regulação em Espanha pertence às regiões autonómicas, e não têm regulador nenhum. Zero regulador. Vão ficar dependentes do regulador de Bruxelas de um dia para o outro. Ainda é mais complexo. Agora, o problema deste tipo de coisas é não olharmos para o que ele significa realmente. E esta mudança, que a Europa está a fazer, tem uma base. E foi dita logo pela Comissão desde que tomou posse: temos de estruturar os media europeus de uma maneira forte, organizada, e para que possam concorrer no Mundo inteiro, transmitindo os pontos de vista e as visões europeias sobre os temas mais importantes e mais profundos. Quer dizer que quem tem uma dimensão hiper local, não faz parte deste discurso.

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    Prevalece o europeu, deixa de lado o local…

    E, na maior parte dos países da Europa, porque houve guerra, destruição e fronteiras que foram deslocadas, é muito recente a organização e a implantação dos órgãos de comunicação social. Portanto, já é feita numa perspectiva de uma certa dimensão. Em Portugal, não estamos tal e qual como estávamos em meados do século XIX, porque não tivemos guerra, nem cataclismos… Neste momento, o que pode acontecer é haver um empurrão para um crescimento do acordo do tamanho das empresas. Convencidos de que isto era um benefício, por volta de 2006 e 2007, pedimos ao Governo, e o Governo criou, um apoio à cooperação e ao desenvolvimento empresarial. Mas fica quase sempre deserto. Ninguém concorre a isso, quase. Depois, há muitas razões, na CCDR [ Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] do Norte pedem isto, e na do Sul já pedem aquilo… Há razões dessas que nós conhecemos. Mas, na verdade, não podemos dizer que haja um fluxo das empresas a dizer: “vamos lá aproveitar isto, que o Estado vai pagar aqui alguma coisa para nós aprenderemos a cooperar e a viver uns com os outros”.

    Fala-se muito da questão do serviço público da imprensa. Ou seja, como o mercado não consegue ou não quer pagar esses serviços que a comunicação social dá, o Estado deve apoiar. Recentemente, por causa da pandemia, houve critérios um pouco estranhos na atribuição de verbas à comunicação social. Concorda com um modelo de financiamento por parte do Estado? E se sim, esse financiamento deveria ser regular ou apenas pontual, e com que critérios?

    Para o bem e para o mal, a Constituição diz assim: serviço público é rádio e televisão, ponto. Por aí, não vamos lá. No entanto, a Lei de Imprensa diz que compete ao Governo acompanhar e verificar as condições económicas do sector, por forma a que essas condições económicas não possam pôr em causa o pluralismo e a diversidade. Portanto, não é pela evocação de que é um serviço público, mas é pela obrigação do Estado, e isso leva-nos aos apoios. É isso que permite os apoios, quando a Europa [União Europeia] impede apoios estatais em sectores.

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    Quando falo de serviço público, estava mais a pensar no conceito de bem público do ponto de vista da teoria económica. Ou seja, o Estado intervir quando um bem não é suficientemente valorado pelo mercado, mas que é fundamental…

    Sim, eu sei, eu sei. Eu digo sempre que se a Constituição não dissesse “serviço público é este”, poderíamos falar assim. Acho que uma vez que a Constituição diz isto, para não haver confusões, é melhor não falarmos de serviço público nem de serviço ao público, porque são coisas confusas. Agora, por outro lado, como a Lei da Imprensa diz isto, e a própria Constituição também reconhece, o Estado tem de se preocupar com esse lado; é isso que permite ajudas do Estado em Portugal. Mesmo assim, ainda temos aí muitos problemas e muitas questões. Agora, a Comissão e o Parlamento Europeu, nos últimos anos, têm recomendado aos Estados que apoiem a imprensa, através da publicidade institucional. Mas o problema da publicidade institucional do Estado é que não tem um significado igual em todos os Estados-membros da União Europeia.

    Varia de país para país…

    O Estado que tinha este conceito mais avançado era a França, depois a Itália e a Inglaterra. O Governo português seguiu sempre um modelo muito próximo do modelo francês, e portanto, há um sistema de apoio. Depois, criou-se um sistema da publicidade institucional do Estado. Esta publicidade representa, em globo, que o Estado seria o maior investidor publicitário em Portugal. Seria, não: é o maior investidor publicitário em Portugal. E não estou a falar de uma outra coisa, que são as publicações obrigatórias e os anúncios. Isso é algo que, para algumas publicações, conta muito. Quer dizer que vivem com base nisso e têm imensos problemas por causa do código das aquisições públicas [Código dos Contratos Públicos], porque estabelece limites que muito depressa são ultrapassados. A publicidade institucional do Estado, se se cumprissem as regras todas que estão na legislação, deveria funcionar de uma maneira equilibrada. Qual é o problema? A lei foi feita numa altura, na década de 1980, em que eram as agências de publicidade que compravam o espaço para as campanhas que produzia. Não havia centrais de compras.

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    E as coisas mudaram..

    Hoje, os departamentos de Estado têm toda a liberdade de fazer concursos, na base da lei da publicidade institucional, ou só para a criatividade, ou para a campanha completa. Aqueles que fazem só para a criatividade, depois vão ter de fazer outro concurso para comprar o espaço para aquela campanha. E a este concurso, só concorrem as centrais de compras. Os que fazem para uma empresa que oferece tudo, essas empresas, na maior parte dos casos, vão comprar o espaço às centrais de compras. Isto quer dizer que é muito difícil, no procedimento administrativo da compra, distinguir a forma como essa compra influencia, de facto, a distribuição da publicidade do Estado. Os franceses, no fim do tempo do Mitterrand, inventaram uma lei – que deu pelo nome do então ministro das Finanças, o senhor [Michel] Sapin – que obrigava a que, quando o Estado comprava publicidade, as facturas dessa publicidade obedecessem a um descritivo específico, em que havia o preço da publicidade, que é o preço que está na tabela de publicidade, e depois tinha descontos. Toda a gente é livre de fazer os descontos que quer, mas os descontos estão lá. E depois dizia uma coisa: tudo paga IVA. Ou seja, o desconto paga IVA? Paga, sim senhor. Portanto, o desconto pode ser feito, mas tem de ficar claro e tem de se saber a razão desse desconto, e, em última análise, constitui fiscalmente um crime não mostrar os descontos. Bom, isso depois caiu em desuso, e já num dos Governos de Macron, que chamou outra vez o senhor Sapin para ministro das Finanças, repôs-se a lei, há três ou quatro anos. É evidente que não foi tal e qual, como no final dos anos de 1980, com o Mitterrand, mas repô-la em vigor já com adaptações actuais. Portanto, há formas, e há formas actuais – não me venham dizer que são só antigas – de tornar mais transparente as compras da publicidade institucional do Estado.

    Mas o apoio do Estado deve ser só através da publicidade, ou pode haver mesmo um mecanismo de apoio automático?

    Olhe, nós aqui na Associação temos estudado isso até à exaustão, quer comparando com outros países, quer comparando com a realidade portuguesa. E vou dizer-vos: o mecanismo que salvou a imprensa portuguesa, entre 1983 e 1985, quando houve o primeiro default, em que esteve cá o FMI, foi o subsídio ao papel, que é um subsídio de que toda a gente diz mal. Toda a gente diz que havia aldrabices, roubalheiras e 30 por uma linha. Mas se olharmos efectivamente para a situação, e para o que aconteceu a partir daí, nos anos de 1987 a 1989, que foram anos equilibrados para a imprensa, foi isso que a salvou naquela altura. Portanto, a partir daí, na Associação estabelecemos um programa que se chama PECSIR [Plano de Emergência para a Comunicação Social, Imprensa e Rádio], e já vamos para aí no PECSIR 4 ou 5, porque o vamos adaptando. O modelo era um pouco o mesmo, só que o subsídio não era dado ao papel, era dado às leituras ou às vendas.

    Até porque agora praticamente já nem temos imprensa em papel. Aliás, por exemplo, o Público já é maioritariamente um jornal digital, e até o próprio Expresso está nos 50-50 entre papel e digital…

    Sim, tem havido uma adaptação, claro.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Através da contabilização da assinatura digital…

    Eu costumo sempre dizer que as assinaturas em digital – a palavra “assinatura” – são a prova de que este sector pensa muito pouco e investe muito pouco na universidade ou nos estudos sobre esse tema. Porque eu não compro assinaturas nenhumas, eu compro acessos. E é isso que nós devíamos dizer. Os acessos é que contam, não são as assinaturas. As assinaturas era uma coisa que havia no tempo do papel, não é? Em que nós transferimos, em termos de vocabulário, a palavra “assinatura” de outras actividades que tínhamos.

    Em todo o caso, continua-se a falar e a contabilizar as assinaturas. Ainda há tempos, no Portal Base surgia certa Câmara Municipal a comprar umas centenas de assinaturas digitais, durante seis meses, ao Público.

    Pois, eu não sei o que isso é. Eu luto sempre. E em situações como estas, digo sempre: não há assinaturas, aquilo que há são acessos. Até porque aquilo que o Governo é obrigado a preocupar-se, face à Constituição, é do acesso dos cidadãos à informação. É isso que lá está escrito! Portanto, são acessos pagos, mas são acessos. Temos na Associação acompanhado alguns projectos que têm tentado resolver isto. Um projecto, não sei se já ouviram falar, o Pay per View, que era um projecto em que existe uma transacção de acessos, e depois quem tem o acesso só tem de determinar o tempo em quer o acesso. Nesse tempo tem a faculdade de dizer: “eu pago”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que gosto”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que leio”, ou mesmo “eu só pago quando tenho um artigo que vou distribuir aos meus amigos”. E então isto obriga-me a pagar. Portanto, tem estas possibilidades todas. Em qualquer circunstância, são acessos. Quer dizer, a pessoa inscreveu-se, digamos assim, para através de uma aplicação poder ter acesso a publicações e, depois, a publicação é que determina: “não, eu só dou acesso se me pagares tanto”, ou “eu dou acesso desde que dês qualquer coisa”. Mas tem o acesso.

    Regresso à pergunta inicial: advoga que se adoptem modelos de financiamento mais constantes por parte do Estado?

    Se calhar estou há demasiados anos nesta cadeira, e, portanto, é o que os meus filhos me dizem quando discuto isto com eles… Por vezes, o facto de já ter tentado tantas vezes determinadas soluções, leva-me a dizer: “essa já não vale a pena”. Todas as soluções que se baseiam no princípio de dizer às pessoas: “olhe que a liberdade de imprensa não é uma coisa adquirida, é preciso fazer alguma”, batem sempre na parede. Sobretudo as gerações mais novas, acham que a liberdade de imprensa é como o ar, quer dizer, está aí, portanto, porque é que eu tenho de me preocupar com isso? Isto depois tem a ver com a desinformação e todas essas coisas: não tem havido maneira suficientemente forte de chamar a atenção para isso. Portanto, tenho defendido que, de um lado, temos a publicidade institucional do Estado, e do outro lado, isenções fiscais. Estas são as ferramentas seguras para que não haja no meio disto uma tentativa de “eu dou mais a este do que dou àquele”, e de começarmos a discutir coisas intermináveis. Como, por exemplo, estamos agora a discutir por causa da transposição da directiva dos direitos de autor, que é: “como meço aquilo que eu ganho ou não ganho?”. Eu não meço nada, quer dizer, não tenho capacidade para medir nem para analisar. Mas se me perguntarem, eu também não tenho dados para lhes dar [risos]!

    Vemos, por exemplo, casos de relações de empresas de media com autarquias, como se viu recentemente com a Câmara de Gaia… Não era melhor haver uma forma de financiamento e apoio ao sector que não passasse por estas “parcerias comerciais”, que acabam sempre por beneficiar os mesmos, os grandes grupos?

    Sim. A publicidade institucional do Estado, de um lado, que é investimento, e é investimento que tem a ver com o mérito de quem tem ou não tem leitores, de quem tem ou não tem pessoas que vão ver. E, do outro lado, isenções fiscais, que essa é igual para todos; os que têm mais negócio têm mais, e os que têm menos negócio têm menos.

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    Mas através do IRC, essa vantagem é quase irrelevante, porque grande parte das empresas paga pouco ou nem paga, quando tem prejuízo…

    Não, mas há isenções fiscais em relação à publicidade. Por exemplo, a majoração da publicidade, em relação aos investidores de publicidade. Não estou a falar do Estado, estou a falar dos privados. Quer dizer, você investe 100; no entanto, nas suas contas põe lá que investiu 150 em publicidade.

    No caso da imprensa, porque não haver um apoio em função do número de jornalistas ou de notícias? Mas notícias produzidas em exclusivo, ou seja, não é aquilo que acontece agora, que é uma notícia feita por uma agência, e depois temos o churnalism

    Não sou muito fã dessa ideia, por causa da contratação colectiva de trabalho. Só por isso, não sou muito fã dessa ideia. Eu sou um defensor – vencido neste sector, porque a maior parte das pessoas não pensa como eu, e ainda bem – de que não é possível avaliar jornalistas como se avalia outro tipo de trabalhadores. Não é possível. Como é que eu avalio os jornalistas? É que esse modelo levaria a isso. Estamos a seguir há alguns anos, com muito interesse, uma situação que existe na Madeira, que resultou de uma luta que tivemos durante anos contra o Alberto João Jardim [presidente do Governo Regional da Madeira entre 1978 e 2015] por causa do Jornal da Madeira, que era subsidiado pelo Governo Regional. Tivemos uma luta que meteu Presidentes da República, quase secretários-gerais das Nações Unidas da época. Mexemos tudo e mais alguma coisa, e já no fim ele [Alberto João Jardim] lá mudou. E em consequência disso, hoje existe um sistema de apoio da Madeira, que se chama o MediaRam: o Governo Regional paga uma parte do salário de cada jornalista, que cada publicação emprega, mais os custos sociais. E isto tem funcionado sem problemas. Temos falado disto muitas vezes aqui no Governo central, e dizem: “é impossível, não podemos fazer, porque a Comissão Europeia cai em cima de nós”. E nós dizemos: “mas na Madeira fazem”. Temos a certeza que não tiveram que pedir o estatuto de região ultra-periférica para poderem fazer isso. Portanto, fazem. E posso-lhe dizer mais: muito recentemente estivemos com o Governo Regional dos Açores, que também está a estudar a possibilidade de passar a fazer isso nesse arquipélago. Portanto, eu penso que sim. Todas essas soluções são possíveis. E volto a dizer: em Portugal esta [solução] está na Madeira.

    Selective Focus Photography of Magazines

    Estamos a centrar a entrevista muito na parte financeira e de sustentabilidade dos jornais, mas apontam-se muitas culpas às novas plataformas e ao desinteresses dos jovens, e fala-se pouco na qualidade da imprensa. Esse modelo não valorizaria o jornalista?

    Daquilo que sabemos das publicações fora de Portugal, as que têm êxito são as que apostaram na qualidade do jornalismo, embora a qualidade do jornalismo seja muito difícil definir – eu passo a vida a dizer isso. No entanto, aquilo que eu digo sempre é que a qualidade do jornalismo é o cumprimento das regras de informação em relação ao assunto que se está a tratar. Não posso deixar o assunto a meio porque ouvi dizer que o meu concorrente está a… Não posso. Portanto, estes elementos de facto só se fazem com jornalistas e com pessoas que sabem o que é que estão a fazer. Além disso, há uma posição muito pouco popular que temos aqui na Associação: entendemos que o salário dos jornalistas não pode ser igual ao salário dos caixas de supermercado ou igual ao salário mínimo nacional.

    Mas isso acontece hoje, não é? Há já bastante tempo, aliás…

    Sim. Temos a tabela do contrato de 2010, que se aplica às publicações com uma facturação anual inferior a 2 milhões euros; dos valores dessa tabela, metade já foram comidos com o salário mínimo nacional. Portanto, temos esta situação estranhíssima: um estagiário pode ganhar mais do que uma pessoa que entrou para o jornal há dois ou três anos.

    No mundo digital é importante não esquecermos as questões de desigualdade de informação e de acesso. Além disso, a difusão nas grandes plataformas seguem critérios próprios sobre desinformação ou fake news. Mas há uma dificuldade de os leitores acederem a informação sobre uma panóplia de temas. Como vê isto no âmbito da liberdade de imprensa?

    Primeiro: a liberdade de imprensa, de que estamos a falar, não é a mesma que está nas leis. A liberdade de imprensa que estava nas leis é a do mundo analógico, em que eu posso verificar em determinados tempos – no tempo da notícia –, e posso actuar. A liberdade de imprensa hoje é também a do tempo da tecnologia. Se eu não tiver isso em consideração, seguramente que todos os anos vamos ter uma baixa global – não é só em relação a Portugal –, na percepção que as pessoas têm em relação aos acessos. Portanto, o primeiro problema é esse. Mas depois há um segundo problema, quando eu obrigo as plataformas a serem responsáveis pelos conteúdos que distribuem. Eu digo: “se esses conteúdos forem contra aquilo ou contra aqueloutro, não pode ter”. Essas plataformas não têm como negócio ganhar dinheiro connosco. Sim, nós somos importantes para elas ganharem negócio, mas não é com conteúdos específicos, é com o fluxo geral dos conteúdos. Portanto, essas plataformas não querem arriscar. Preferem ter sistemas automáticos que vão através de leitura de palavras, e cortam.

    Mas aí não estamos a assistir a uma crescente erosão da qualidade da informação?

    Daí uma velha visão que temos aqui na Associação, e pela qual eu já penei muito, na Europa e até no Mundo: então, eu tenho que estar junto com a plataforma a olhar para isso.

    Mas como, se as plataformas são inalcançáveis?

    Não; elas são alcançáveis.

    Tem conseguido resolver algumas situações?

    Sim, temos conseguido resolver algumas situações. Claro que depende muito ainda das relações pessoais, ou seja, de conhecer a pessoa, de falar com ela. É tudo uma questão de organização.

    Photo of Hand Holding a Black Smartphone

    Na sua opinião, o que devem ser conteúdos não autorizados? Isso tem a ver com questões da sustentabilidade também da liberdade de imprensa.

    Conteúdos não autorizados são aqueles que são genericamente proibidos pelas convenções internacionais ou pelas leis nacionais, nos casos em que as leis nacionais sejam mais fechadas, como o incitamento ao ódio.

    Mas aí estamos a falar de um crime.

    Não. O problema é que a plataforma é única, mas as leis não são iguais. Portanto, na dúvida, eu elimino tudo.

    Por exemplo, questão da identificação de fake news, há uma questão que salta como argumento: “nunca foi publicado por nenhum jornal, rádio ou tv”. Como jornalista, observo que alguns temas não são noticiados não por serem fake news mas por questões de pressão política ou outra. Não faz com que a história não seja verídica.

    Há um estudo anual que devem conhecer, do The Reuters Institute, que faz, há já 13 anos, perguntas sempre sobre essa matéria, nomeadamente sobre o que é qualidade e tudo mais. Os dois temas que os portugueses elegem sempre como pontos críticos são os erros de português e as trocas de referências. Por exemplo, escrever 1495 em lugar de escrever 1945. Ora bem, eu só estou a dizer isto porque os leitores, ou os que acedem à informação, também têm de ser formados. Quer dizer, isto já não é como antigamente que, eu porque sabia ler um jornal, ganhava uma certa cultura. E essa cultura, tornava-me um especialista de leitura de jornal, digamos assim. E, portanto, eu sabia distinguir, sabia ver, sabia analisar o que era um jornal. Hoje, a maior parte das pessoas que lêem notícias, não distinguem. Por exemplo, uma das minhas lutas, muito grandes, com a CCPJ, é esta: a informação não-jornalística tem o mesmo direito da informação jornalística, tem de ser bem escrita, bem tratada e bem-apresentada. Tem é de ser separada da informação jornalística.

    Fotografias de João Palmeiro por Júlia Oliveira

  • ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    É já um fenómeno da literatura brasileira, embora ainda com uma carreira literária curta. O primeiro romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, arrecadou o Prémio Leya 2018 (e depois o Prémio Oceanos e também o Jabuti), foi aclamado pelo público e pela crítica, já vendeu mais de 750 mil exemplares, foi traduzido em 24 línguas e será adaptado ao pequeno écrã. Formado em Geografia e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, este baiano transporta para a sua arte os universos com os quais se cruzou desde a infância – primeiro através das suas raízes familiares, e até dos seus antepassados, e depois pelo trabalho que exerceu para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O colonialismo, que diz ainda existir no Brasil, as desigualdades e as injustiças sociais são temas omnipresentes na sua escrita. O seu segundo romance, Salvar o Fogo, dá novo corpo à realidade dos que não podem falar por si. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o autor critica as grandes tecnológicas, pelo seu papel na crescente polarização da sociedade, que vê como uma ameaça à democracia, e reforça a importância de se saber conviver com a diferença.


    Na sua escrita, há uma tónica muito forte de intensidade, de vivacidade nas palavras e num modo emotivo de contar a história. Essa intensidade vem das suas experiências de vida mais marcantes?

    Sim, acho que tem uma relação com isso que você disse, eu até falava mais cedo. Esse mundo da leitura… Tem uma história de Moisés em Salvar o Fogo, quando ele fala da descoberta da leitura, acho que nesse ponto a minha vida se aproxima da história da personagem. Porque de facto, a minha rotina e o meu quotidiano, transformaram-se. Quando eu descobri a leitura, eu tenho a impressão de que a minha vida ficou maior, que ela não se restringe apenas a este espaço que nós chamamos de real. Há todo um mundo imaginário onde eu habito também, e onde as minhas personagens habitam, e que me dão histórias e narrativas que tornam a minha vida maior do que ela é. Então, eu tenho uma sensação de que eu habito estes dois planos – o que nós convencionamos chamar de real –, mas eu também habito a minha imaginação, este plano imaginário. E daí, imaginar que as histórias dessas personagens foram sentidas de uma maneira literal por mim neste plano e transmutar tudo isso em narrativas; transmutar tudo isso para a literatura. O meu interesse pela literatura, e acho que a maior parte do interesse dos autores, no fundo é a gente estar se debruçando sobre a nossa condição humana. Daí a importância de compreendermos as histórias, os sentimentos, e tudo aquilo que faz parte de uma narrativa literária.

    Além da imaginação, também o seu percurso profissional e académico permitiu que tivesse um contacto muito próximo com a realidade do Brasil profundo, onde há extrema pobreza e comunidades carenciadas. Que bagagem é que o seu trabalho lhe deu para escrever as histórias? Seria capaz de retratar estas personagens sem essas vivências?

    Olha, acho que talvez eu conseguisse escrever, mas não estas histórias e estas narrativas que eu tenho escrito. Vou dar o exemplo de Torto Arado, que é uma história que surgiu para mim muito cedo, na adolescência. Eu era muito influenciado por uma literatura brasileira que tinha sido escrita na primeira metade do século XX, que era uma literatura plural e que dava conta da nossa diversidade étnica e cultural; e depois, o Brasil perdeu-se um pouco neste caminho. Então, eu gostava muito dessa literatura e já foi algo que despertou a escrita de Torto Arado. Mas eu era muito novo, tinha 16 anos, não tinha metade das experiências da vida que eu tive, e que conquistei depois… E aí quando eu fui trabalhar como servidor público no campo brasileiro, há mais de 17 anos, aquela história que já existia em mim cresceu e eu pude contá-la com a densidade e a profundidade com que foi narrada. Então, eu sinto todas essas experiências profissionais que eu tive – e não só profissionais, mas do ponto de vista académico. Eu terminei o curso fazendo graduação em Geografia, fiz mestrado em Geografia e depois um doutoramento no campo da Antropologia e Estudos Étnicos. Toda essa formação me deu um repertório de vida e social que termina reverberando naquilo que eu escrevo. Não existe, nem é dissociável o Itamar que foi pesquisador e cientista e o Itamar escritor; o Itamar servidor público e o Itamar escritor. Eu sou apenas uma pessoa, e tudo aquilo que eu experimentei e vivi termina reverberando naquilo que eu narro e escrevo também.

    A pobreza, as desigualdades, o colonialismo e o racismo são temas que não só estão presentes na sua obra, como também os tem abordado publicamente. Considera que um artista deve usar a sua visibilidade para se tornar também, de certa forma, um activista?

    Eu gostaria de não ser lido e não ser visto como um activista. Mas eu acho que todos nós criadores que trabalhamos com arte – não só na literatura, mas num contexto geral – estamos reflectindo sobre o nosso tempo, não é? A arte termina sendo um testemunho que temos a compartilhar com o outro da nossa vida, do meio onde vivemos, daquilo que é relevante para nós, daquilo que precisamos pensar e reflectir no nosso tempo. Então, eu acho que é inevitável que coisas que fazem parte do nosso mundo hoje, ou que fazem parte das nossas preocupações hoje, surjam naquilo que nós escrevemos. E claro, depois que me tornei autor e conquistei leitores, eventualmente eu precisei me manifestar como pessoa pública, como cidadão, sobre temas relevantes para o Brasil. Não gostaria de fazer isso com frequência, e tento não fazer com frequência, mas, por exemplo nas últimas eleições presidenciais, eu percebia que o país estava em risco. Então, não havia possibilidade de permanecermos neutros, até porque a neutralidade é uma conduta e uma opção política, não é? E eu disse: não, eu preciso me manifestar.

    Torto Arado, romance inédito vencedor do Prémio Leya 2018, arrecadou depois, no Brasil os prémios Oceanos e Jabuti.

    Sentiu como se fosse quase uma obrigação?

    Eu me engajei mesmo naquele momento, porque achava que nossa democracia e a sociedade brasileira estavam em risco se optassem pela continuidade do governo anterior. Mas eu procuro não participar tão activamente de tudo. Claro que como cidadão eu quero partilhar muitas coisas, mas é porque eu acho que a Literatura já revela e já diz muito sobre mim. Já diz muito do que eu penso sobre o mundo. Então, eu gostaria, de facto, que a literatura bastasse. Que eu nem precisasse falar sobre as histórias, sobre os livros, que elas por si bastassem. Mas como eu sei que não é possível, às vezes eu tento me manifestar e, enfim, ocupar o espaço que os leitores me destinaram para que eu possa de facto fazer valer essa consciência também.

    Os seus livros também mostram o poder e a influência da Igreja Católica, nomeadamente como detentora de propriedades e, em certa medida, do domínio que exerce sobre as populações carenciadas. O Brasil é um país muito religioso, onde o Cristianismo tem um peso considerável. A forma como fala da Igreja em Salvar o Fogo pode ser lida como uma crítica directa a esta instituição? Acha que o cristianismo devia ser menos importante para o povo brasileiro?

    Eu acho que a História do Cristianismo no continente americano é uma história de grande violência. E neste caso, por acaso, é a Igreja Católica, mas poderia ser uma Igreja Evangélica, e a violência ainda assim seria a mesma. Então, na História da América e de quando o continente foi ocupado pelos europeus – estou pensando nos espanhóis, nos portugueses, nos ingleses, nos franceses –, as sociedades que lá estavam no continente americano foram subalternizadas. Estes europeus que chegaram à América, a primeira coisa que colocaram não foi um tijolo para construir a parede de uma casa. A primeira coisa que se colocou foi uma cruz cristã nestes territórios. E esta cruz foi símbolo de muitos apagamentos de saberes, crenças e filosofias que existiam antes. Então, a história da Igreja Católica em Salvar o Fogo é a história de uma personagem, que é esta instituição, e que nos atravessa ao longo da História. Nos atravessa de maneira definitiva. Durante muito tempo, o empreendimento colonial escravista só teve êxito porque tinha o apoio decisivo da Igreja. Se pensarmos no Brasil, em particular, a Igreja era e ainda é uma grande detentora de fracções de terra. Até hoje, a Igreja em alguns lugares tem conflito com pequenos produtores. A Igreja foi a maior detentora de escravizados no Brasil, se considerarmos a instituição. As fazendas que ela detinha… O maior proprietário, digamos assim, de pessoas escravizadas, era a Igreja Católica.

    E é importante para si salientar isso?

    Sim, é uma história que não pode ser esquecida, que deve ser lembrada. Que, por fim, fala muito do nosso mundo e da nossa vida hoje. Hoje no Brasil, a Igreja Católica cada vez perde mais espaço institucional na sociedade, mas, em contrapartida, não quer dizer que a nossa vida seja diferente. A Igreja Evangélica assume tudo isso, e ela tem uma grande bancada na Câmara dos Deputados; ela participa de tudo na nossa vida pública. E interferiram sobremaneira nas últimas eleições, fazendo campanha para o presidente que foi derrotado no pleito. Ou seja, o Estado deveria ser laico, mas praticamente não é laico ainda, porque tem uma grande participação dos religiosos na Igreja no nosso quotidiano. As mulheres são as maiores vítimas de tudo isso, porque quando a gente fala de interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, no Brasil não se pode nem falar isso. Isso não é um direito. Acho que em Portugal, claro, não deve ser uma coisa pacificada, mas ainda assim, a mulher que precisa não vai morrer na fila da Saúde Pública, porque é reconhecido como um direito. Ela tem o direito sobre o seu próprio corpo. Afinal, o Estado português é um estado laico.

    No Brasil, a religião continua ainda muito entranhada na política?

    No Brasil, embora o Estado laico seja propagado, na prática ele não é. Porque a nossa vida ainda tem grande interferência da religião e do Cristianismo. Sem contar que o Brasil, como é um país plural, temos outras práticas religiosas, práticas indígenas, práticas afro-brasileiras, e essas práticas religiosas sofrem imensa violência dos cristãos no Brasil. Eu vivo numa cidade que tem um grande número de templos, que são os terreiros de Candomblé, templos afro-brasileiros. E é muito comum invadirem esses templos, quebrarem as coisas que estão lá. Eu vivi durante um tempo no final de uma avenida chamada Mãe Stella de Oxóssi, porque homenageava essa sacerdotisa e a yalorixá de Candomblé, importante para a cidade. E na entrada da avenida tinha uma estátua dessa mulher, como tem uma estátua aqui do Marquês de Pombal. Colocaram essa estátua de um grande escultor baiano que até já morreu, o Tatti Moreno, foi uma das últimas coisas que ele realizou… E incendiaram essa estátua um ano depois, e foi incendiada por cristãos evangélicos. Ou seja, a liberdade religiosa deveria ser garantida a todos, não apenas aos cristãos. Mas essas pessoas que praticam outras religiosidades, como a Luzia em Salvar o Fogo, que tem essa relação com o fogo e com o sobrenatural, é tida como feiticeira, como bruxa. A estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi queimada como se ela fosse uma bruxa, não é? Enfim, mostra um pouco dessa violência religiosa que ainda está muito presente no Brasil.

    Numa entrevista, afirmou que o Brasil, apesar de se ter tornado independente há 200 anos, ainda funciona numa lógica muito colonialista, e que agora os brasileiros são colonizadores de si mesmos. De que forma é que isso se manifesta, concretamente?

    Sim, eu acho que no período das grandes navegações – não estou falando só do Brasil e de Portugal, estou envolvendo os europeus e estou pensando no continente americano e no continente africano –, se inaugurou uma maneira de viver que ainda é determinante para os nossos dias. Que é este modo de habitar o mundo que é colonial, e que é baseado na exploração e na destruição das pessoas e dos meios. Quando eu falo em colonialismo, nesse habitat colonial, eu não estou apontando o dedo para ninguém. É apenas o reconhecimento de uma maneira de viver o mundo que está impregnada – não só no Brasil, mas na Colômbia e creio que em Portugal também, se a gente pensar no contexto da União Europeia. Portugal não é um país decisivo para a União Europeia, e fica muitas vezes a reboque daqueles que podem exercer a sua vontade. Estou pensando em países como a Alemanha, a França. Ou seja, esta relação entre opressores e oprimidos é uma coisa que se reproduz em muitas partes do mundo. Estou pensando na Palestina, em tantos lugares, não é? E o Brasil já poderia ter trilhado outro caminho; afinal, a independência do país foi declarada há 200 anos. Em 200 anos dá para acontecer muita coisa. Mas o Brasil, mesmo depois da Independência, optou por manter a escravidão em território brasileiro. Foi o último país do Mundo a abolir a escravidão. É um país onde essa estrutura do habitat colonial está impregnada em todos os contextos, porque é um país que tem uma classe que tem sobrenome, e que tem uma ascendência, muitas vezes europeia, que está dominando e domina as populações que não fazem parte deste grupo; que são subalternizadas.

    Segundo romance de Itamar Vieira Junior foi lançado em final de Abril em Portugal.

    Ainda há um caminho a percorrer…

    Exactamente. O Brasil continua a colonizar a si mesmo. Mas esta é uma constatação apenas, porque esta é a história do capitalismo. O capitalismo vive essa relação de explorador e explorados, de opressores e oprimidos. E inclusive, essa construção do que é ser branco, do que é ser negro, do que é ser indígena, não é algo natural nosso. Em algum momento da história, principalmente quando o capitalismo cresce assente nas grandes navegações, o ser negro e ser branco é uma construção social. E isto ainda está impregnado no nosso quotidiano, na nossa vida. São rankings de vida e valor construídas naquele tempo, que precisam ser descontruídas. Então, ainda vamos falar sobre isso durante muito tempo, não é? [risos]

    As mulheres assumem uma preponderância nos seus romances, são personagens de grande força, o feminino está muito exaltado. No seu crescimento, as mulheres da sua família tiveram um papel primordial? Foram, também, elas que o influenciaram e contribuíram para que desenvolvesse a sua sensibilidade artística?

    Com certeza. Eu acho que, embora talvez as feministas até contestem, há atributos que as mulheres carregam na sua maneira de ser, no seu corpo, na maneira como se relacionam com o mundo, com a História… E eu cresci numa casa atravessada pelo patriarcado, pelo machismo, mas com estas personagens que me intrigavam muito quando eu era criança. Porque eu observava elas serem vítimas de violência, às vezes vítimas de violência doméstica. Elas eram vítimas da sociedade que as tinham como pessoas inferiores com saberes inferiores, mas elas nunca se conformaram com isso e elas sempre contestaram. E o que é curioso é que não eram mulheres escolarizadas, letradas. Porque se fosse uma mulher que frequentasse a universidade, poderia ter contacto com escritos da Simone de Beauvoir e de tantas outras feministas, e construíam um repertório intelectual para combater tudo aquilo. Mas elas eram mulheres simples, pouco escolarizadas, e que ainda assim contestavam tudo aquilo. Isso se impregnou de tal maneira no meu imaginário, que sempre que eu escrevo, elas chegam inevitáveis com a força que essas mulheres – mãe, tias, avós, primas – tinham na minha família, não é? Então, para mim essa leitura de mundo, que às vezes caminha neste sentido que também é um sentido decolonial, vamos dizer assim, de desconstruir esse modo de viver a vida que foi construído no passado. Porque se a gente pensar no projecto colonial escravista, ele foi imaginado, projectado e executado por homens. Ou seja, é um projecto patriarcal.

    E trazer as mulheres para uma história que é desconstruir tudo isso, é devolver uma narrativa que lhes foi roubada, usurpada em algum momento. De que elas eram bruxas, feiticeiras, que eram personagens inferiores. Em Torto Arado, tem um personagem, o Zeca Chapéu Grande, que é um curador, uma espécie de feiticeiro, mas aquilo nunca é questionado. Claro que há racismo, mas nunca é questionado pelas pessoas do seu grupo. No caso da Luzia, ela é tida – eu não sei se sim, os leitores vão descobrir ao longo da leitura – como uma personagem que guarda poderes sobrenaturais. Mas ela, por ser mulher, é estigmatizada como bruxa, como feiticeira, como alguém que deve ser destruída, exterminada. Ou seja, estas duas histórias já dizem muito do lugar que a mulher ocupa na sociedade. E daí, essas mulheres incríveis que fizeram parte do meu imaginário e da minha educação, invadiram essas histórias com força também.

    Actualmente, a polarização da sociedade parece ser crescente, e o Itamar já criticou esta onda de cancelamentos a que assistimos. Como artista, naturalmente, valoriza a liberdade de expressão. Acha que a arte e a literatura podem ter um papel importante para combater esta intolerância?

    Eu não sei se a literatura tem feito isso com frequência, mas eu acho que é um excelente instrumento para que a gente desconstrua, para que devolvamos a ideia de sermos humanos – de que nós podemos acertar, mas também podemos errar. Parece que em nosso tempo a gente perdeu um pouco o sentido da nossa humanidade. Se a gente for olhar as redes sociais, é um massacre, é um discurso de ódio. Estou pensando principalmente no Twitter, eu nem tenho Twitter por causa disso. Eu brinco que o Twitter é o… Não sei se você já leu o 1984 de George Orwell, mas o Twitter é aqueles dois minutos de ódio. Quando tocava o sino naquela cidade, e as pessoas iam para a frente de uma tela – e é uma obra publicada em 1948, ainda não existia nada nisso, nem telemóveis nem Twitter –, e lá vociferam tudo o que sentem de ódio e exercitam o ódio para se manterem vivas. E as redes sociais virou essa teletela do 1984. Eu não sei como está traduzida no português de Portugal, mas no português do Brasil chamamos teletela. E, de facto, criaram-se ali ambientes onde as pessoas só aceitam conversar com quem concorda com elas, ambientes polarizados. E isso tem posto a democracia em risco. Porque se você olhar, o Partido Republicano nos Estados Unidos, que até há 20 ou 30 anos era um partido de centro-direita, tem caminhado para a extrema-direita. No Brasil, existia um partido de centro-direita, que era o PSDB, que governou com Fernando Henrique Cardoso, e durante muitos anos governou estados no Brasil. E ele deixou de existir praticamente, quase não existe mais; e quem ganha espaço é a extrema-direita.

    Os próprios algoritmos das redes sociais foram feitos de modo a fomentar a discórdia e a polarização…

    Exactamente. E pensamos que as Big Tech, as tecnológicas, são inocentes, não é? Que só estão ali para reunir as pessoas, mas não, elas têm trazido uma crise para a democracia no Mundo. E a gente perdeu o sentido de que nós somos humanos, de que nós erramos, de que as pessoas pensam de forma diferente, mas ainda assim isso não quer dizer que nós não possamos coexistir, não possamos conviver. E esse altericídio das redes sociais – porque é um altericídio, a morte da alteridade –, a Literatura pode nos devolver essa alteridade. Porque quando lemos uma história, nós aprendemos a gostar das personagens, mesmo que elas errem, mesmo que elas falhem. E reconhecemos nelas a Humanidade que também é nossa, porque nós somos isso. Nós falhamos, nós erramos, não é? Nós tentamos acertar, nós sonhamos. Ou seja, penso que em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver, de exercitar a alteridade também. Com muito menos polarização, porque não é algo saudável.

  • ‘A tecnologia nunca substitui o carácter humano da Educação’

    ‘A tecnologia nunca substitui o carácter humano da Educação’

    Autor bestseller, Jorge Rio Cardoso capturou a atenção de milhares de leitores que procuram as suas dicas sobre como maximizar o aproveitamento escolar de crianças e jovens. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Aveiro, é professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA), em Santarém. É também reformado do Banco de Portugal, onde exerceu funções como técnico superior. A sua carreira bem-sucedida como perito em Educação e motivação dos estudantes, começou com a conquista de um obstáculo: Jorge Rio Cardoso foi um aluno “sofrível”. Mas afinal o seu calcanhar de Aquiles transformou-se em força, depois de ter descoberto o atletismo, que lhe infundiu de autoestima e confiança. Hoje, ensina educadores e pais a ajudar os mais novos a serem bons alunos e o seu método Ser Bom Aluno – ‘Bora lá’? revelou-se eficaz a melhorar os resultados escolares. A pretexto do seu novo livro Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, o PÁGINA UM entrevistou este professor e investigador que acredita que o foco da Educação não deve estar apenas nas classificações, e que os pais devem fomentar a alegria, a iniciativa e uma autoestima saudável nos filhos, para a sua formação como seres humanos.


    Tornou-se especialista em sucesso escolar, mas nos seus tempos de escola nem sempre foi um bom aluno, e só quando começou a praticar atletismo é que se deu uma viragem no seu aproveitamento. Até que ponto é que atividades extracurriculares, como o desporto ou as artes, podem contribuir para a motivação das crianças e dos jovens nos estudos?

    Eu diria que é essencial. Ou seja, não há ninguém que consiga aprender se estiver triste ou desmotivado. A motivação é fundamental, sobretudo aquela que nós chamamos de motivação intrínseca, aquela que vem de dentro de nós. Essa é a que é capaz de nos transcender. Realmente, eu era um miúdo com baixa autoestima, desmotivado, não via interesse na escola. Aliás, a escola não me identificava nada de bom. E as coisas mudaram quando apareceu na minha vida o atletismo. O atletismo deu-me alegria, regras, disciplina e, depois, essa alegria, eu passei-a também para os estudos. Comecei a perceber que quando me esforçava mais no atletismo, quando treinava mais, os resultados melhoravam, e comecei a perceber que com o estudo também era assim. Porque eu estava convencido de que uns tinham nascido bons alunos e outros maus alunos, e eu, logo por azar, estava nos segundos. Tinha nascido mau aluno, e estava mais ou menos conformado. Depois, comecei a perceber que realmente o problema era que estava desmotivado, não sabia muito bem o que era isso de estudar. Às vezes, os pais põem esta questão: como é que eu motivo o meu filho ou a minha filha para a escola? E eu digo sempre que a questão está mal colocada. É: como é que eu motivo o meu filho, ou a minha filha, para a vida? Ele tem que estar motivado para a vida. Dentro da vida há a escola e um conjunto de outras actividades. Quando eu confronto alguém, pode ser uma criança ou não, com duas actividades; uma de que ela gosta muito, de grande probabilidade, como jogar à bola, por exemplo, ou ballet, e outra de pouca probabilidade, que ela não gosta muito, como estudar, geralmente há ali fases comunicantes. Para ela merecer a primeira, geralmente vai apostar – serviços mínimos, pelo menos – naquilo que é estudar. No meu caso, foi um desporto que mudou as coisas, mas poderia ter sido, por exemplo, uma actividade que é essencial na concentração e na motivação, que é a música. Seja praticar um instrumento, seja cantar, tudo isso é muito importante do ponto de vista educacional. Também as neurociêncais dizem que há uma alteração profunda em termos cerebrais. Podia ter falado, como disse muito bem, nas artes, no teatro, na dança… Há imensas actividades que, para além das competências naturais que trazem, conferem também a alegria de viver, e isso depois propaga-se a tudo, nomeadamente num aspecto essencial, que é estudar.

    Também fala neste livro, Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, da importância de fomentar uma autoestima saudável e dos afectos. Como é que os pais podem encontrar esse equilíbrio entre elogiar e reforçar a confiança das crianças, e ao mesmo tempo impôrem regras e disciplina?

    A questão está muito bem posta, porque temos que arranjar um equilíbrio. Os jovens terem autoestima é fundamental. No livro, dou até uma regra que acho importante, que é para cada crítica haver cinco elogios. Claro que às vezes os pais dizem que não têm muito para elogiar, porque se baseiam apenas nas notas, e então quando as notas não são boas, acham que não têm nada para elogiar. Mas, por exemplo, o esforço que o jovem está a fazer, ou encontrar qualquer coisa que não era dele e ir entregar, ou alguém que se aleijou e ele foi ajudar nos curativos… Tudo isso são motivos de elogio, e a sua atitude para com os outros. Porque, digamos, a Educação não é apenas passar conhecimento. Hoje, o conhecimento está na ponta dos dedos. E, portanto, aquilo que mais quero de um filho ou de uma filha, não é propriamente que ele seja doutor, engenheiro ou professor catedrático.  Mas sim que um seja um bom pai uma boa mãe, que viva a cidadania, tenha respeito pelos outros, isso é fundamental. E hoje em dia, na forma como a escola está, o ser solidário, o ter valores de honestidade, não é pontuado, não é? Não é assim que eu vou entrar em Medicina. Portanto, não é o tema deste livro, mas penso que a escola terá que mudar no sentido de treinar esses mesmos valores fundamentais para o cidadão de amanhã. Porque sabemos que os países mais ricos não são propriamente aqueles que têm mais metais preciosos ou mais petróleo. Nada disso. São aqueles que têm mais capital humano, e o capital humano não é apenas no sentido de saberem muitas coisas, mas precisamente porque são sociedades em que esse capital humano – que inclui vários aspectos, além de criar empatia com os outros, saber trabalhar em equipa, e saber ouvir os outros. Todos esses aspectos podem ser treinados naquilo que é a Educação.

    Referiu que a ambição dos pais não deve ser que os filhos sejam engenheiros ou médicos, por exemplo. No seu livro realça a importância de se detectar e potenciar os talentos das crianças e dos jovens. Como é que os pais podem fazer isso? Estando atentos às pré-disposições e às preferências das crianças?

    Sim. Hoje em dia, o ensino em Portugal já está muito voltado para isso. Até porque conhecemos o relatório do Professor Guilherme de Oliveira Martins. As competências essenciais à saída da escolaridade obrigatória… Aliás, num dos meus livros, foi ele que fez o prefácio exactamente por causa disso. Há um conjunto de competências, que muitas vezes vão muito para além daquilo que a escola valoriza, que é linguística e a lógico-matemática, mas há muitas outras, nomeadamente, por exemplo, criar empatia com os outros. Há aquelas pessoas que nos deixam bem dispostos, e não é propriamente a contarem piadas, mas a forma de elas estarem, a escuta activa. Tudo isso são aspectos muito importantes. E na sociedade nós notamos, há aquelas pessoas mais extrovertidas, ou mais exuberantes. Se estivéssemos a falar de uma casa, eu diria que isso seriam os tijolos, mas, às vezes, esquecemo-nos de uma parte, que é o cimento que une esses tijolos, e que não se dá por eles mas que são essenciais para a solidez desse edifício. E eu comparo esse cimento a essas pessoas que unem pontos e arranjam consensos. E portanto, estas pessoas são essenciais. É um talento realmente muito importante. Ser capaz de se ver o ponto de vista do outro, e no fundo, talvez a coisa mais importante, que é a inteligência emocional.

    Pois, dessa inteligência não se fala tanto.

    Há um estudo que eu gosto sempre de referir, que responde a esta pergunta: porque é que as pessoas têm sucesso? Sucesso, enfim, esta palavra tem muito que se lhe diga. Não é apenas no campo das notas; é, digamos, de singrar em instituições e serem respeitadas. E havia a ideia de que podia ser do chamado QI, que hoje está um bocadinho em desuso. E, curiosamente, o QI só explica 20% do sucesso das pessoas. Então, onde é que estão os outros 80%? Estão precisamente em aspectos ligados à inteligência emocional. E a boa notícia é que, enquanto a inteligência emocional é qualquer coisa que pode ser trabalhável, ou seja, nós conseguimos mudar as nossas atitudes, a maneira de ver os outros. É algo em que nós podemos evoluir. E com o QI já não é bem assim. O QI, seja alto ou baixo, é praticamente o mesmo ao longo da nossa vida, não há forma o mudarmos. E depois, também há outra coisa: às vezes, aquelas pessoas muito inteligentes são pessoas um bocadinho inadaptadas e que se isolam. Às vezes não são as pessoas mais felizes. E esta nossa capacidade de ser feliz, às vezes passa por viver aquilo que é a cidadania, mas com solidariedade perante aqueles que não tiveram uma vida tão simpática ou que à partida têm alguma deficiência. Aliás, quando há uma criança com necessidades especiais de Educação numa turma, é claro que é muito bom para a criança, porque vai ser estimulada, mas também é muito importante para todos os elementos da turma, porque o cuidado e a solidariedade vão ser ensinados e trabalhados. Embora, eu aqui gosto sempre de referir um aspecto: a integração é diferente da inclusão. Porque inclusão é a criança estar lá na turma. A integração é o que acontece depois nos intervalos: se ela fica a um canto, então não está integrada. Para as estatísticas, ela está lá, mas depois é preciso sensibilizar e promover valores, e isso é que é educar.

    E onde é que traça a linha entre aquele que deve ser o papel dos pais na educação de jovens e crianças, e aquele que deve ser o da escola?

    Há claramente uma linha de separação, embora a presença dos pais na escola seja muito importante. Eu tenho um filho pequeno, e a escola dele, que é uma escola pública, promove por exemplo grupos interactivos, e os pais são convidados a estarem na escola uma vez por semana. A presença dos pais na escola previne muito insucesso escolar. Sempre que há um problema, o acompanhamento próximo faz com que se detecte o problema que o aluno está a viver e resolve-se logo ali à partida.  A sintonia entre pais e escola é absolutamente fundamental. Às vezes, os pais, com a melhor das intenções, querem explicar ainda melhor aquilo que foi feito na escola. Acho isso bastante errado, porque nós às vezes estamos a explicar como nos ensinaram há 20 anos ou há 30, e não como são os modernos conceitos hoje. E isso pode provocar na cabeça do aluno alguma confusão. Agora, os pais têm de ir para além da escola. Há um conjunto de várias actividades que trazem competência, regras e alegria, e essas sim, é que os pais devem pôr à disposição. Os pais devem ajudar os filhos a ser. Ou seja, a outra parte que vai para além da escola. Diria que pais e escola estão em sintonia, digamos que cada um tem a sua área privilegiada, o que não quer dizer que não haja ali uma zona cinzenta, comum aos dois. O que os pais devem fazer é valorizar a escola, e o trabalho dos professores. É essencial, porque o jovem não vai investir o seu tempo, a sua paciência e a sua atenção numa coisa que os pais desvalorizam.

    Outra questão que gera alguma controvérsia tem a ver com os rankings e as classificações. Há quem considere que se tem baixado um bocado a exigência nas escolas, nos últimos anos, nomeadamente com as medidas relativas às reprovações. É, no entanto, possível defender-se que não se coloque demasiada ênfase nas notas, mas ao mesmo tempo, reconhecer-se que deve haver uma certa exigência. Qual é a sua visão sobre isto?

    Sim, percebo a sua questão. O facto de não haver reprovações, assim no sentido clássico, aquilo que estávamos habituados, não quer dizer que tenhamos baixado a exigência. Se calhar até é mais exigente. Não vou deixar ninguém para trás, mas se calhar vou ter que ter pedagogias alternativas, e vou ter que experimentar outras formas de fazer chegar o conhecimento aos alunos. Se eles tiverem que ficar mais um mês porque ainda não adquiriram as competências, se calhar, isso é um grande incentivo para trabalharem mais e esforçarem-se mais. Realmente, nós falamos de uma avaliação somativa, as notas clássicas. Mas há uma outra avaliação que é muito importante, .que é a avaliação formativa. Ele sabe trabalhar em grupo? Sabe arranjar consensos? A liderança, o empreendedorismo, são tudo coisas que se trabalham, não é? E, portanto, aquela ideia do sentido prático da vida também é fundamental. E aqui, falo da escolaridade obrigatória; claro que no ensino universitário as notas vão ser muito importantes. Mas às vezes há muito a cultura da nota, sacrifica-se tudo pela nota. E até se chega ao exagero de dizer uma coisa que é mais do que evidente, que é, os meninos e as meninas são diferentes uns dos outros… E sabemos que no plano teórico, se houvesse uma turma só de raparigas e outra só de rapazes, e houvesse um tipo de ensino de acordo com as características, e outro para eles, é claro que as notas subiriam, não tenho dúvidas nenhumas disso. E há quem defenda esta segregação, diria eu. Mas nós queremos é educar, e que os meninos e as meninas se conheçam. Que tenham os naturais conflitos, e os saibam resolver. Se calhar, assim estamos a prevenir violência doméstica, por exemplo. Também já houve a ideia de separar os alunos muito bons daqueles que são maus. Também sou completamente contra isto. Agora, o que acho que é o grande problema, e que mais tarde ou mais cedo vai ter que ser resolvido, é a forma como os alunos entram nas universidades. E ainda entram com as notas, hipervaloriza-se as notas. Se fossem as universidades a escolher… Com um médico, não são só as hard skills que importam, por exemplo, mas também a forma como comunica. Por isso, se as várias áreas do saber, as várias universidades escolhessem também os alunos, poderia haver também essa componente, para além da nota. Porque eu lido com muitos directores de agrupamentos de escolas, e eles dizem que essa parte dos valores realmente é muito, mas que têm que prestar contas perante o Ministério da Educação. E o Ministério da Educação olha para os rankings, vê em que lugar é que está a escola, no sentido de eles cumprirem as metas curriculares e os programas. Portanto, mesmo achando interessante esta história dos valores, não é por aí que estão a ser avaliados. Para que isto possa mudar, a forma como os alunos entram nas universidades pode ser uma parte da mudança.  

    Portanto, acha que se devia valorizar menos as notas e os rankings.

    Sim, claramente, porque, às vezes, estamos a comparar coisas que não são comparáveis. Agora, também não desvalorizo totalmente os rankings, atenção. Não vou dizer que eles não servem para nada, mas numa imagem, para se perceber o meu pensamento, é como um termómetro. Vejo a temperatura, e se for mais de 38 graus, há aqui qualquer coisa. Mas, dizer que só quero saber da temperatura corporal, não me leva nada. Se calhar, pode ser um problema grave ou pode acabar por não ser, pode ser uma pequena gripe, etc. Depois, há outros instrumentos que tenho que usar, e também na Educação é a mesma coisa. Os rankings dão-nos informação, mas há muitos outros indicadores. Temos que ver as coisas de um ponto de vista objectivo.

    Ia perguntar-lhe precisamente qual era a sua opinião em relação à segmentação do ensino de rapazes e raparigas, mas já respondeu.

    Sim, sou completamente contra, porque a sociedade é diversa. Aliás, nós até devemos, às vezes, colher os exemplos que saem da natureza. Sou a favor de todo o tipo de diversidade, seja ao nível da diversidade intelectual, ou de opiniões. Podemos não ter exactamente a mesma opinião, mas temos é que respeitar a opinião do outro, desde que seja, evidentemente, fundamentada. Sou contra essa segregação. Dir-me-ão que as notas subiriam. Não tenho dúvidas disso. Porque realmente, nós professores, quando estamos a ensinar, é para o aluno médio. Não é para um rapaz nem para uma rapariga, é para o que chamamos um aluno médio. Mas é muito importante que, nisto que é educar, os rapazes e as raparigas partilhem o mesmo espaço. Claro, não vai ser tudo um mar de rosas. Eles têm as suas diferenças, mas há com certeza uma interacção e coisas que eles começam a perceber, como a necessidade de respeitar o outro. O bullying trata-se disso, não conseguir respeitar uma pessoa que é diferente, seja por que motivo for.

    Sabemos o estado em que se encontra a Educação, e da desmotivação que muitos professores e alunos sentem. Acha que este modelo universal da escola pública está a atravessar uma crise? Ou, por outro lado, não vê o panorama actual de forma assim tão negativa?

    Ao longo da História da Educação, verificamos sempre que ninguém está contente. Ou seja, daqui a 30 anos ou 100 anos, evidentemente que as pessoas dirão que é possível fazer melhor. Acho que se tem caminhado na direcção certa. Para explicar um bocadinho aquilo que será o futuro da escola, tenho que falar em três modelos. Nisto, que é a Educação na escola, há sempre três elementos fundamentais: o professor, o aluno e um elo privilegiado entre o professor e o tal conhecimento ou competências; e aqui o aluno tem um papel passivo de ouvinte. Porque a ideia de ensinar é “eu ensino e tu aprendes”. E vais aprender o quê? O que eu acho que devo ensinar, porque o inteligente aqui sou eu. Ou seja, o aluno não participa na construção do seu conhecimento. Ele pode estar com uma grande curiosidade – e para aprender, a curiosidade é fundamental – sobre vulcões e, mas no programa os vulcões é só daqui a dois anos. E o professor: “olha, pena, não te vou ensinar”. Isto é evidentemente pouco simpático. Depois, há um segundo modelo, menos mau, digamos assim, que é um privilegiado entre o aluno e as tais competências. Ou seja, o aluno acede ao conhecimento fazendo umas leituras prévias antes de ir para a aula, e o professor é um elemento facilitador. Se o aluno não percebe alguma coisa, o professor ajuda. E isto é um bocadinho aquilo que nós chamamos a aula invertida; o aluno chega à aula e já tem algum conhecimento. O modelo de Bolonha de que hoje em dia tanto se fala, no fundo, privilegia este modelo. Agora, aquilo que eu acho que é o futuro é um elo privilegiado entre professor e aluno. O conhecimento e as competências ficam, digamos, para um segundo plano, porque muitos do conhecimentos que nós falamos, às vezes, ficam desactualizados.

    Não parece um contrasenso colocar os conhecimentos em segundo plano na escola?

    Lembro-me de conhecimentos que me passaram no primeiro ciclo – já foi há muitos anos –, que eram os caminhos-de-ferro de Angola, coisas assim desse género. Hoje em dia, podemos dizer que é um conhecimento inútil, porque alguns desses caminhos, se calhar, já nem existem. Quando pretendemos passar valores, esta proximidade entre professor e aluno é muito importante.  O peso das disciplinas – português, inglês, matemática –, como as conhecemos, vão perdendo peso, em benefício daquilo que chamamos uma lógica de projecto. Porque, quando estamos, por exemplo, a trabalhar numa aprendizagem relativamente às alterações climáticas ou outra coisa qualquer, geralmente há um conhecimento multidisciplinar. Portanto, vou buscar os conhecimentos de várias das tais disciplinas tradicionais. Podemos pensar em criar um evento, uma conferência final, e em quem é que vamos convidar para falar sobre isso. Pôr os alunos a pensar, a decidir e a trabalharem é muito importante, porque, às vezes, o output que dali sai tanto pode ser um vídeo, como um áudio… O que leva à indisciplina é o aluno estar sossegado na cadeira, porque nem todos estão. Por isso, gera-se barulho, os professores ficam enervados. Aqui, deixe-me dizer-lhe uma coisa que acho que vai ser o futuro da escola, e que é fundamental: a educação emocional. Porque só consigo estudar se estiver equilibrado emocionalmente. E, portanto, o yoga, a meditação e o mindfulness são absolutamente fundamentais.

    E vê isso a ser aplicado hoje, ou ainda está longe de serem práticas generalizadas?

    Hoje, ainda há escolas que passam completamente ao lado disto. E, hoje em dia, é mais difícil de estudar do que era no passado, porque há milhentos canais de televisão, redes sociais, há 1001 coisas que não havia, por exemplo, no meu tempo. As crianças hoje não são estimuladas, são hiperestimuladas. Depois, para eu treinar as aprendizagens, tenho que pôr água na fervura e voltar à minha calma. Tenho que saber identificar as minhas emoções e saber geri-las, e, às vezes, eles não têm esse instrumental. Nesse sentido, o yoga ajuda bastante, é científico. Por vezes, até estamos tristes e pode ser por pequenas coisas e não ter acontecido nada de especial. Se tivermos um instrumento como a meditação, aquilo imediatamente desvanece. Portanto, nas escolas – e agora as escolas podem escolher uma parte do seu currículo –, a educação emocional é absolutamente determinante no que vai ser o futuro daquele ser humano. É muito importante no sentido de eu saber resolver conflitos.

    Então, há mudanças a empreender e o momento actual pode ser uma oportunidade nesse sentido?

    Sim. O modelo que acho fundamental, e que será um bocadinho um guia na escola, é de um elo privilegiado entre o professor e o aluno. O conhecimentos ficam para depois.  Juntando isto a aulas mais atractivas, em que se põe o aluno a fazer, a trabalhar, a criar – seja um vídeo, um powerpoint, uma entrevista –, enfim, à procura do conhecimento. Havia um pedagogo que dizia que, mais do que uma cabeça cheia – de conhecimentos –, interessa-me uma cabeça que saiba pensar. Acho isto fundamental. Porque, hoje em dia, vivemos numa sociedade em que as pessoas, às vezes, não querem decidir, porque têm receio de ter alguém contra si. Então, vão passando nos intervalos da chuva. Por isso, não digo de que clube é que sou, ou de que partido é que sou. Não quero opinar porque, logicamente, terei pessoas contra mim e outras que, se calhar, até concordam com a minha posição. Mas esta ideia de educar passa muito por aspectos desta natureza.

    O uso da tecnologia para fins educativos é hoje um tema incontornável. Por um lado, há quem preveja modelos de ensino com amplo recurso à tecnologia, mas há também quem receie os seus perigos. Neste livro, fala dos limites que considera que os pais devem aplicar aos filhos na utilização dos aparelhos tecnológicos. Acredita que o ensino vai ser feito cada vez mais com a ajuda destes instrumentos?

    Sim. Acho que, às vezes, na Educação – e em muitas outras áreas do conhecimento –,  queremos transformar as coisas numa questão binária. Por exemplo, trabalhos de casa: é a favor ou contra? Na questão que me está a pôr, é exactamente a mesma coisa. Acho que tem sempre que haver uma coisa que é fundamental, na Educação e em tudo na vida, que é bom senso. A tecnologia veio para ficar, não a podemos ignorar. A tecnologia dentro da sala de aula, pois eu acho muitíssimo bem. Só que não vamos agora cair no exagero de dizer que é tudo tecnológico, e desprezo o papel, desprezo a escrita… Nada disso. A nossa ideia será um equilíbrio. Na sala de aula, aquilo que eu defendo é a tecnologia igual para todos e todos terem o mesmo acesso, porque isso é muito importante. Há pouco tempo, até dava este exemplo numa entrevista, do estudo de Os Lusíadas, que é uma coisa evidentemente difícil de trabalhar. Como nós sabemos, Os Lusíadas evocam um bocadinho a epopeia marítima portuguesa. É, no fundo, o percurso de Portugal até ao Extremo Oriente. E pergunto não seria tão mais fácil sensibilizarmos o aluno na sala de aula através do Google Maps, e mostrarmos exactamente o local que serviu de inspiração para o Camões escrever aquela estrofe. Evidentemente que sim. E, depois, até dei outro exemplo para pôr os alunos a pensar, que isso é que eu acho que é fundamental, e treinar a criatividade, que se chama o pensar fora da caixa. Então, e se Camões tivesse nascido hoje, em 2023, o que é que ele teria para elogiar do que é ser português? Já não seria a epopeia marítima. Não seria a epopeia marítima, então o que é que seria? E isto é uma coisa para pôr os alunos a pensar. Será o Ronaldo, a nossa simpatia? Portanto, a tecnologia dentro da sala de aula, acho que é muito importante. Porque hoje em dia, em face das fake news, é preciso que treinemos o sentido crítico de toda a gente, a começar pelas escolas.  E agora, com a inteligência artificial, ainda vai ser pior. Consegue-se pôr políticos a dizer coisas exactamente ao contrário daquilo que eles pensam! Portanto, as potencialidades são enormes, tanto para o lado positivo, como pelo lado negativo. Então, como é que nós fazemos isto? Podemos criar uma “polícia”, mas temos que desenvolver este espírito crítico, confrontar fontes, ver se são credíveis ou não. Isso é muito importante.

    E quando é que o uso da tecnologia deixa de ser saudável?

    Há um conselho que eu dou aos pais e que também falo neste livro: como é que devo tirar a tecnologia, ou não, das mãos do aluno? Há alguns sinais de alerta. Se aquilo está a virar obsessão e ele não passa sem aquilo, claro que eu tenho de corrigir. Se aquilo lhe está a tirar o sono. A forma dos pais lidarem com isto é regras de utilização. Portanto, ele tem direito, imagine, a uma hora por dia. Se continuam os sinais, então essa hora vai ter que ser reduzida. Se ele já mostra sinais de responsabilidade e de saber gerir os seus impulsos – a tal inteligência emocional –, então vamos alargar o período, porque ele merece. Enfim, isto funciona não só com a tecnologia, mas também, por exemplo, com as saídas à noite. Se ele se mostra responsável, podemos passar para o patamar seguinte. Educar passa muito por este aspecto gradual. Mas não sou a favor de um modelo de Educação em que é só com o papel e acaba-se com a tecnologia, nem só tecnologia e o papel é inimigo. Podemos arranjar um modelo equilibrado, em que a tecnologia vai auxiliar, mas nunca substitui o carácter humano da Educação.

  • ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A Arte de driblar destinos’: o título do romance de estreia de Celso Costa, com o qual venceu o Prémio LeYa aos 73 anos – e que recebe em mãos este sábado na Feira do Livro de Lisboa – ilustra na perfeição a vida do matemático, professor e estreante autor brasileiro. Nascido no Paraná, de uma família com escassos recursos financeiros e com morada numa propriedade remota chamada Ribeirão do Engano, o romancista teve um percurso inusitado: para além de fintar a pobreza, a sua paixão pelos números levou-o a estudar Engenharia e Medicina, desistindo de ambas antes de, finalmente, encontrar a sua vocação no prestigiado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde se focou na Geometria Diferencial. A partir daí, não houve mais recuos. Com o seu doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, solucionando assim um problema matemático com mais de dois séculos. Por esse motivo, a “Superfície Costa” foi baptizada em sua homenagem. Agora, chegada a altura de abandonar o papel de professor universitário, Celso Costa brincou novamente com o destino e abraçou as Letras. Algo que, afinal de contas, não era assim tão improvável: como confessou ao PÁGINA UM, apesar de seguir a sua amante Matemática, a Literatura sempre esteve ali, num lugar especial, no seu coração.


    A Arte de driblar destinos é um romance de autoficção, muito inspirado na sua própria vida e nas suas experiências pessoais. Como surgiu esta vontade de escrever e de contar a sua história?

    Essa vontade de fazer uma narrativa acontece num momento da minha vida em que estou na iminência de me aposentar da Universidade. Eu sou professor universitário, e ainda continuo a dar aulas, mas actualmente estou aposentado. E mais ou menos uns seis anos antes de me aposentar, como sou um leitor compulsivo… eu leio muito desde sempre, assim mais intensivamente desde os 14 anos. Mas quando eu comecei a ter mais acesso a literatura, comecei a ler muito. Então, com 18 anos eu conheci Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, o nosso Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas, Clarice Lispector, Machado de Assis. Já nessa idade, eu tinha uma certa amplitude de leituras. Lia os sonhos que os outros tiveram. E aí, segui uma carreira de matemático, e na iminência da minha aposentadoria, não sei se foi muito bem calculado, porque geralmente a gente não calcula muito o que acontece. Acho que as oportunidades e os desejos de repente eclodem, e você vai atrás daquele desejo.

    E foi o que fez?

    Sim, aí surgiu um desejo de escrever uma narrativa ficcional que se passaria num ambiente mágico chamado Aleph, pegando no O Aleph do Jorge Luís Borges, e que pudesse fazer um panorama da história da Matemática, mas focado através das lendas. Por exemplo, qual é a veracidade da lenda da maçã que caiu na cabeça do Newton? Será que lhe caiu mesmo essa maçã na cabeça? Arquimedes, quando descobriu a lei de flutuação dos corpos em líquido, ele saiu nu pela rua de Siracusa porque ele descobriu essa lei quando estava imerso numa banheira, lá nuns banhos gregos. Os gregos tinham muito a questão dos banhos, aqueles grandes banhos colectivos. Quer dizer, colectivos só para a alta classe do poder. Então, Arquimedes estava lá, e de repente teve aquela epifania, e descobriu uma lei física que diz que o volume de água deslocado é igual ao peso do corpo que está em flutuação. É uma lei simples no fundo, mas só é simples depois de se saber. Eu escrevi, então, sobre esse ambiente mágico colocando as lendas. Esse livro teve uma boa aceitação do público que orbita em torno da Matemática, e que é muito, porque são os professores da escola básica, os alunos universitários, os professores; é um público grande.

    Refere-se ao primeiro livro que publicou, A Vida misteriosa dos matemáticos, em 2018.

    Sim, foi o primeiro livro que eu escrevi, e teve uma repercussão muito boa que me animou. E falei: então porque não ficcionar as minhas memórias? Também têm o seu valor dramático. O seu valor pícaro, como disse o Manuel Alegre, do júri da LeYa. Então, resolvi escrever as memórias ficcionadas. E essas memórias, tal como A vida misteriosa dos matemáticos, demoraram-me cerca de quatro anos a escrever. Até chegar o momento em que eu coloquei o manuscrito no correio e mandei para a LeYa, que também foi um momento importante. E esse primeiro impulso que eu tive com o meu primeiro livro, levou-me a fazer essa ficção, que evidentemente vai ter uma continuidade, porque ainda há mais um livro pela frente. E outros tantos projectos que eu tenho sobre ficção, tenho muitos projectos iniciados. Então, eu vejo o Prémio Leya com um significado que o próprio nome diz: um prémio. E esse prémio certamente vai impulsionar-me, trouxe ventos de incentivo para que eu continue a escrever.

    Caminhou sempre nos campos das ciências exactas. Estudou Engenharia, Medicina e Matemática, áreas que são geralmente vistas como antagónicas à Literatura e às Artes. Como alguém que se movimenta tanto nos números como nas letras, como é que percepciona as diferenças entre estes dois domínios?

    Ambas são linguagens. Então, nós temos a linguagem da Matemática e temos a linguagem da narrativa. E quando eu falo em linguagem, falo numa coisa um pouco mais ampla, porque a linguagem matemática tem regras muito fixas. É como jogar xadrez. Quer dizer, você tem que seguir as regras para chegar a um resultado. Então, a Matemática tem as suas regras lógicas, já desde Aristóteles, mas evidentemente que foram aperfeiçoadas com o passar do tempo pela Humanidade. Então, desse ponto de vista, os preceitos para se fazer Matemática é você aprender truques para usar essas regras. Por exemplo, a gente tem livros de xadrez, que explicam as inúmeras aberturas possíveis. Porquê? Porque o jogo do xadrez é infinito, assim como o jogo da Matemática também. Na verdade, é mais infinito ainda, porque o jogo da Matemática está num degrau acima do xadrez, evidentemente. Então, se você de repente tem essa capacidade, que é uma coisa também um pouco inexplicável, evidentemente que todos podem caminhar na Matemática. Alexandre Alekhine, que foi talvez o maior jogador russo de xadrez, foi preso durante a época dos czares russos e colocado numa prisão, e jogava xadrez com ele mesmo. Mas o xadrez era um xadrez imaginário no tecto da prisão. Eu vejo que a Literatura também tem as suas regras; a narrativa tem as suas regras, que vão-se moldando ao tempo, vão-se desdobrando e reinventando. E é preciso também aprender essas técnicas, e eu dediquei-me muito a aprendê-las. A técnica do gancho; de atirar alguma coisa na narrativa e não contar tudo exactamente, para depois recuperá-la mais à frente. O pai dos contos russos, um dos maiores contistas que a Humanidade teve, que é Tchekov, dizia que se num conto, você coloca uma espingarda, essa espingarda tem de atirar nalgum capítulo. Ou se apresentar um doente de tuberculose no capítulo 50, ele tem que dar uma tossidinha no capítulo 5. Então, existem regras. Por exemplo, em A Arte de driblar destinos, o primeiro capítulo é uma tourada. E do ponto de vista da sequência cronológica, não é a primeira memória do narrador, porque a história vai desde que o narrador tem três anos, até aos 19. Mas o episódio da tourada acontece quando ele tem cinco anos. Não estou dando spoiler, porque o primeiro capítulo não é considerado spoiler [risos].

    Então, começar o livro com o episódio da tourada foi uma questão técnica?

    Sim, comecei pela tourada porque a narrativa pede isso. Uma narrativa é um compromisso que você faz com o leitor, e que é: “vamos viver o mesmo sonho”. E você não pode perder o leitor por um escorregão com a verossimilhança, não. Mas se esse contrato com o leitor é um contrato que se estabelece e é cumprido, então o leitor e o narrador vão até ao fim da situação. Então, pelo menos este é o meu ponto de vista, é preciso iniciar a narrativa lá no alto da chamada às emoções. Eu creio que essa tourada, esse pequeno espetáculo que se instala nessa pequena cidadezinha de mil habitantes… Uma cidade que não tem televisão, no tempo de 1960. Aliás, também não tinha geladeira, porque as geladeiras eram para os mais abastados que podiam ter. Mas tinha electricidade, que já era um grande avanço, e as vitrolas. Então, nessa pequena cidade, os grandes movimentos, as turbulências que aconteciam, era quando vinha uma tourada, um circo, ou um rodeo. Eu comecei com a tourada no sentido de ser um momento festivo, em que as emoções estão lá no alto.

    Se sempre teve uma paixão tão forte pelas letras, por que esperou tantos anos para começar a escrever

    Porque, de alguma maneira, a Matemática é uma amante muito exigente. E é muito divertido também, sempre foi muito divertido. Eu sempre trabalhei desde pequeno, desde os meus onze anos, que a minha família tem as suas precariedades. Vem de uma fazenda que se chama Ribeirão do Engano, e a cidade de onde a minha família toda veio chama-se Cinzas. Então, pais analfabetos, e eu sempre trabalhando em tudo quanto era ofício desde muito jovem. E depois numa cidade um pouco maior, já trabalhava numa oficina mecânica. E eu entregava as chaves para os mecânicos trabalharem lá nos carros, e ficava num pequeno escritoriozinho que tinha uma bancada. Aí chegava um mecânico, e falava “me dá uma chave de boca três quartos”. Eu apontava, e quando ele devolvia eu dava baixa. Mas enquanto isso, eu fazia divisões mentais no papel. Mas você pensa que eram umas divisões quaisquer? Não, eu dividia um polinómio por outro polinómio. Eu brincava com divisões de polinómio. Então, apesar de eu estar sempre trabalhando, a Matemática era essa amante exigente. Eu ficava mais ou menos quatro, cinco horas por dia ininterruptamente. E aí, comecei a impressionar os professores. E logo no final da minha escola secundária, antes de ir para a capital e ingressar na universidade, eu apaixonei-me por uma garota da minha classe, mas ela não me dava muita bola… E aí, eu escrevi um caderno inteiro de versos para ela. Dei-lhe e, felizmente, o caderno desapareceu. Aliás, ainda temos um grupo de WhatsApp da nossa turma, que eram 17 pessoas, e ela felizmente perdeu o caderno. Nunca mais vou ver esse caderno [risos].

    Portanto, não resultou? [risos]

    Não, não resultou nada, não me quis. Eu fui embora para Curitiba e as nossas vidas separaram-se durante muito tempo. E aí, temos esse grupo de Whatsapp das 17 pessoas que se formaram lá naquela cidadezinha do interior, e que depois cada um foi para o seu canto para fazer a universidade.

    (Foto: Luís Breda)

    Ainda a propósito da exigência da Matemática, numa entrevista recente chegou a dizer que alguns matemáticos proeminentes tinham terminado os seus casamentos com a obsessão de resolver certos problemas. Na sua tese de doutoramento, o Celso fez uma descoberta que resolveu um problema matemático com mais de 200 anos. No seu caso, houve algum momento em que a matemática lhe tenha roubado espaço para a vida pessoal?

    Não, acho que não. Nesse caso da vida pessoal, não foi afectada pela minha dedicação à Matemática, mas geralmente afecta um pouco. Fica muito obsessivo. E na verdade, quando eu fui para o Rio de Janeiro para frequentar um mestrado e um doutoramento na área da Matemática, num centro chamado IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que é certamente o mais importante centro de matemática da América Latina. Mas nessa época eu morava em Santa Teresa, que é um lugar que lembra muito Lisboa, porque é cheio de ladeiras. E os meus colegas na república que nós tínhamos lá, onde morávamos todos, tinham um conjunto de rock chamado O Bando da Santa, tinha um grupo de teatro infantil também, e mais eu e um amigo, que éramos matemáticos. A gente vivia todos ali na mesma comunidade. Então, foi nesse ambiente que eu continuei os meus estudos. E na minha tese de doutoramento eu resolvi esse problema antigo, e a Superfície Costa, que o mundo da Matemática denominou assim, passou a ser a terceira superfície no elenco das superfícies com as qualidades que ela tem, que é uma superfície mínima e mergulhada no espaço. Tem uma característica, um registo de propriedades que a fazem muito especial. Antes dela, existiu o catenóide, descoberto pelo Euler, um matemático suíço, em 1740, e o helicóide, que 150 anos depois, serviu para modelar a molécula do ADN. A molécula do ADN consiste em duplos helicoides que são unidos por pontes de proteínas. E a Superfície Costa surgiu como uma terceira superfície nessa galeria.

    E que impacte é que teve essa descoberta na sua vida profissional?

    Teve uma repercussão internacional muito grande e colocou-me na Academia Brasileira de Ciências do Brasil. O presidente da República na época, logo depois, condecorou-me com a medalha de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essas honrarias, o reconhecimento…

    (Foto: Luís Breda)

    E agora, é novamente distinguido, mas desta vez pela arte literária…

    É, aí eu um dia estou deitado porque ainda não me tinha levantado, porque lá é quatro horas a menos que em Portugal, e eu durmo tarde; às sete e meia da manhã, e o Manuel Alegre – eu vejo aquele número imenso com 55, internacional –, me ligando dizendo que eu tinha ganhado o Prémio LeYa. Fui apanhado de surpresa, de maneira realmente muito genuína, porque eu nem conseguia dizer-lhe nada. Eu só disse três palavras: poxa, poxa, poxa! [risos] E ele disse para eu me preparar, porque ia ter os jornalistas a ligarem-me. Mas ainda deu tempo de eu avisar a minha esposa, os meus filhos e os amigos mais próximos que eu tinha ganhado o prémio. Que coisa fantástica [risos]. Inacreditável, como é que pode, não é? Os meus amigos diziam, “o que é isso, mas você é um matemático e ganhou o Prémio LeYa, que história é essa”?

    Tendo em conta o seu percurso, seria um cenário improvável.

    É, muito improvável. Acho que talvez seja o único caso da História [risos]. Bom, do Prémio LeYa certamente. Nós temos psicólogos que escrevem literatura de alto nível, e médicos também. Eu tenho uma filha médica, começou na Medicina há uns três anos. E eu quase fui médico, não é? [risos]. Quando a gente estava numa mesa um dia, uma pessoa perguntou se eu gostaria de ter tido outro destino. E eu disse que talvez gostaria de ser médico. Porque acho que um médico tem uma experiência com a realidade que é muito contundente. A vida dele, o ambiente onde ele observa, de momentos muito delicados da existência humana. Então, tem muito médico que faz boa literatura, porque ele tem uma massa de observação muito importante.

    Mas quando estudou Medicina, acabou por desistir do curso. Mesmo assim, olhando para trás, pensa que gostaria de ter enveredado por esse caminho?

    Eu gostaria de ter sido médico porque agora quando eu peguei na literatura, eu pensei, poxa, se eu tivesse a observação de um médico [risos]… Acho que poderia beneficiar disso. Mas na época em que eu estudei medicina, na verdade eu queria ser professor do cursinho. Aqui em Portugal não tem essa questão do cursinho, porque se entra na universidade através de uma prova.

    (Foto: Luís Breda)

    Sim, em Portugal a média dos exames soma à média do ensino secundário. No Brasil têm que ter aulas de preparação para o exame que concede o acesso ao ensino superior, o vestibular, certo?

    Sim, no Brasil zerou o jogo, só a prova é que conta, e essa prova é para as universidades federais e é igual no país inteiro. Então, são milhões de estudantes fazendo aquela mesma prova, e tem uma que é de redacção, de Física, Química, essas coisas. Dependendo da sua classificação, você pode pedir uma primeira carreira ou uma segunda carreira. É evidente que, por exemplo, na área da Medicina, a pessoa pede Medicina ou depois pede Odontologia ou Veterinária, que são profissões em que a concorrência não é tão alta. Então, você pode optar por uma segunda carreira que não é aquela que você vislumbrava. Na época em que eu estava em Curitiba, que é a capital do Estado [do Paraná], e que eu estudava Engenharia, estava um pouco desgostoso porque eu gostava mesmo era da Matemática. Mas enquanto estava a estudar Engenharia, eu estava a morar numa casa de estudantes universitários e estava sem dinheiro também. Eu só consegui ir para Curitiba porque ganhei um prémio com dinheiro dos professores lá do meu colégio. Eles enviaram-me para lá, e comecei Engenharia. Entrei naquela casa com 400 estudantes universitários, em que você tinha alimentação, roupa lavada, cama, tudo o que você necessitava. No primeiro ano você tinha que trabalhar para poder pagar a casa: trabalhar no restaurante, na lavandaria, na fazenda, enfim. E depois no segundo ano já não precisava mais de trabalhar porque já era morador efectivo, se tivesse cumprido uma boa tarefa, não é? Mas pagava-se uma coisa mínima, eram 50 euros por mês para ter tudo isso. Aí, um dia eu estava no meu quarto, e algum estudante que estava atendendo na portaria a chamar-me, porque tinha um telefonema do interior do Paraná.

    Sim, e até pensou que o telefonema trazia uma má notícia…

    Eu já fiquei em sobressalto, porque podia ser notícias ruins da família. E cheguei lá, era o director do meu colégio falando: “Celso, o prefeito da cidade passou na câmara de vereadores uma lei em que vão pagar a casa de estudantes universitários até ao final do seu curso”. Não precisava de pagar mais a casa de estudantes. Mas estava sem dinheiro, não tinha dinheiro. E aí, resolvi ir lá pedir ao dono do cursinho para me deixar fazer um super-intensivo de dois meses, porque eu iria fazer o vestibular de Medicina, com a tentativa de ficar nos dois primeiros lugares e ganhar a posição de professor. Era assim que os professores entravam no cursinho. Aí, entrei na Medicina e me transformei em professor de Física do cursinho, e no primeiro ano, dissecação de cadáveres… Cadáver em cima da mesa, todo estraçalhado porque já tinha servido os estudantes dos outros anos. O livro ali para identificarmos os músculos, e aquilo começou a me desgostar, aquela coisa de você decorar os 206 ossos do corpo humano… O próprio professor lá, que era uma sumidade; era um fenómeno, porque ele era um ortopedista famosíssimo, cirurgião. Tinha o seu carro, mas ele não conduzia; tinha um motorista, porque aquelas ruas de paralelepípedo na direcção, podia afectar a sensibilidade das mãos dele. Folclore, não é? E aí, com o esqueleto lá na frente, ia identificando os 206 ossos do corpo humano. E eu decidi desistir dos dois. Achava que iria para São Paulo fazer Física na USP.

    Foi depois disso que surgiu a oportunidade de estudar Matemática?

    É, nesse momento eu tive que sofrer uma arguição da minha mãe, ela chamou-me lá para o interior. Perguntou porque é que eu estava a desistir, disse que eu estava a rasgar dois bilhetes de lotaria. Foi um drama na família. Mas aí, um professor me convidou para eu ir para o Rio de Janeiro, para fazer um curso curto de dois meses. Eu fui e tive um desempenho que impressionou os directores do curso, e pediram-me para eu voltar no próximo ano, que eu não precisava de Faculdade nenhuma e poderia entrar directamente no mestrado. Pulei a Faculdade, fui para o mestrado e para o doutoramento, fiquei sete anos lá, fiz a tal descoberta, entrei como profissional da universidade. Agora, pensando em me aposentar, sempre com a leitura actualizada, enveredei pela Literatura, pela escrita, pela narrativa.

    Uma das principais mensagens de A Arte de driblar destinos é a importância da educação e do conhecimento para conseguir ir-se mais longe. No Brasil, as pessoas que nascem em meios mais desfavorecidos têm essa oportunidade de vingar, ou as possibilidades são muito desiguais?

    As oportunidades são muito desiguais, porque a gente tem um sistema público e um sistema privado. É interessante, porque na época em que eu fiz os meus primeiros aprendizados, o sistema público era muito bom. Teve uma certa deterioração, actualmente o sistema público brasileiro está muito fraco. O sistema privado está muito forte, acontece inclusive uma inversão, porque o sistema público antes da universidade é fraco e o sistema privado é forte. Aí, quando vai concorrer na universidade que é pública, entram os estudantes do privado porque eles são mais fortes. Então, quer dizer, o sistema público é fraco no começo e depois é forte porque a universidade brasileira é bastante forte na pesquisa, no ensino, nessas coisas todas. Mas a questão, primeiro, é a do acesso à escola, não é? O acesso é muito desigual.

    Nem toda a gente consegue ter as mesmas oportunidades…

    Exactamente. Mas antigamente a situação era pior, porque actualmente a gente tem um programa que ajuda as pessoas em condições de pobreza extrema. Chama-se Bolsa Família, que dá 120 euros por mês para as famílias mais pobres, e dá mais 30 euros para cada criança, até três crianças com menos de cinco anos. Então, há um programa que é um combate à pobreza. Em 1960, nenhum desses programas existia. Era uma coisa muito difícil você ter as classes desfavorecidas na universidade.

    E prosseguiu os estudos muito por causa da importância que a sua família dava à Educação?

    Exacto, quer dizer, é também outra obsessão da família. O meu pai admirava muito as pessoas letradas, e os advogados. Porque tem essa cidadezinha pequena, mas tinha outra maior do lado, onde era a Comarca. Então, a Comarca era onde tinha o juiz, o delegado. Porque nesses lugarzinhos pequenos não tinha nem delegado; o delegado era um sujeito que recebia uma incumbência de cuidar da ordem. Mas ele admirava muito aquele júri, sabe, aquele jurizinho que uns advogados se batem, um acusando e outro defendendo o réu de um assassinato. Toda aquela cena, tem todo aquele drama que é contado ali. Ele gostava muito desse teatro. Então, queria muito que eu fosse advogado. Filho advogado seria bom [risos].

    [risos] Mas não quis ir por aí…

    Não, por falta de vocação também. Na época em que eu estive diante da universidade, as três carreiras mais importantes eram Engenharia, Medicina e Direito. Então, quem gostava de números iria para Engenharia, quem gostasse de saúde iria para Medicina, e quem gostava das letras e do social, iria para Direito. Eram as três carreiras nobres.

    Já que o título do seu romance fala em destinos, pergunto-lhe se, ao longo da sua vida, com todas as vitórias improváveis, reveses e reviravoltas que vivenciou, alguma vez sentiu que tudo acontecia de uma forma quase predestinada? Como se o destino tivesse um peso na forma como tudo se foi desenrolando? Bem sei que, por norma, os homens da Ciência não acreditam nestas coisas [risos]…

    Eu acho que existe uma transcendência que nós não sabemos explicar, mas que podemos apenas perceber e sentir, não é? Então, do lugar de onde eu vim, essas coisas eram muito fortes. Existiam pessoas de “poder”.  Num certo sentido, eu acho que a nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder, que não tem explicação, mas que é simplesmente um poder, de comunicar com a Natureza. A gente sabe que os indígenas, por exemplo, quando morre um companheiro, sabem que ele morreu naquele momento. Então, nesse lugar onde eu vivi, existia pessoas que tinham também essa capacidade de sentir as coisas dessa maneira. Por exemplo, geralmente os animais, quando se machucavam por algum problema, a ferida infectava e criava bicho; os bichos habitavam lá e começavam a comer aquela carne em putrefacção… E tinha pessoas que eram os benzedores. E eles chegavam lá e benziam os animais, e aquelas bicheiras todas caíam no chão sem nenhum remédio. E outro personagem – que eu não usei porque senão o livro teriam sido 500 páginas –, era uma pessoa que conversava com as cobras.

    Conversava com as cobras?

    É, ele pegava a cobra, botava no embornal e levava para casa. O meu avô tinha uma certa extensão de terra onde tinha uns boizinhos e eles começaram a morrer, porque a cobra picava no focinho. Se a cobra picar na perna, o animal não morre porque tem muito sangue para diluir o veneno; mas se pica no focinho, é uma zona muito irrigada, então espalha-se muito rapidamente e o animal morre, especialmente se for um animal jovem. E estavam morrendo. Aí, ele chamou o compadre dele, o nome dele era Dentinho Queijo, não sei porquê. O Dentinho Queijo chegou lá e o meu avô explicou-lhe o que estava a acontecer, e depois foram andando pelo terreno e chegaram onde morava a cobra. Ele ficou ali um bocado a fazer as rezas dele e depois saiu uma imensa cascavel lá de dentro. Ele começa a fazer as rezas, a cascavel se enrodilhou. E ele disse ao meu avô: “Seu Pedro, podemos ir tomar café agora”. Aí, ele foi lá na casa, que ficava perto, foi conversar, colocar os assuntos em dia… Era assim que se vivia, porque havia um rádio a pilhas mas não tinha muitas comunicações do exterior. Aí, eles fizeram todos aquela sociabilidade, voltaram lá para o lugar onde estava a cobra, botou no embornal e foi embora.

    Era uma espécie de encantador de cobras [risos].

    Era. Assim como também havia um sujeito que ficava em cima da água, esse cara também existia.

    [risos]  Passou por algumas experiências quase sobrenaturais…

    É. São experiências muito marcantes na infância e em parte da juventude. Existe um imaginário que eu – e isto já é uma teoria –, acho que esse avanço em direcção à tecnologia vai nos afastando dessa outra comunicação com a Natureza que a gente vai perdendo. Então, o Dentinho Queijo, no ADN dele, tinha a cobra. Porque nós somos animais, somos as árvores, somos os outros animais… Sei lá, eu por exemplo gosto muito de entrar de baixo de cavernas e buracos; talvez eu tenha um ADN também de lagarto, coisas desse tipo [risos]. É uma conexão com a Natureza, que é muito importante.

  • ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    Jornalista norte-americano de investigação, premiado, Paul D. Thacker não se acanha quando fala sobre a corrupção na indústria farmacêutica. Vive em Espanha há sete anos e é do país vizinho que conduz hoje as suas investigações, mantendo um acompanhamento próximo da actualidade nos Estados Unidos. Há mais de 20 anos que investiga as campanhas que visam distorcer a Ciência. Em 2021, recebeu o prémio de jornalismo British Journalism Award pela publicação de uma série de artigos que denunciavam os interesses financeiros de especialistas médicos que aconselharam os Governos dos Estados Unidos e do Reino Unido durante a pandemia de covid-19. Nos Estados Unidos, foi um dos investigadores principais na comissão de Finanças no Senado que investigou as ligações entre médicos e a indústria farmacêutica, e as suas revelações contribuíram para a produção de nova legislação sobre o tema. É um forte crítico da censura que se instalou com a pandemia de 2020, e os seus trabalhos têm alertado para os perigos da indústria farmacêutica. Mais recentemente colaborou nos Twitter Files. Presente no recente Congresso Internacional de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, Paul D. Thacker concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, onde também aborda a forma como as empresas de relações públicas “mandam” agora nas narrativas e nos media.


    Como é que um jornalista norte-americano acaba a viver em Espanha?

    Faço investigação, e a minha mulher é uma médica espanhola, e só pode trabalhar na Europa.

    Quando veio para Espanha? Planeia ficar?

    Há sete anos. Oh, sim. Vou ficar aqui. Adoro Espanha, é óptima. É um grande país. Cresci na Califórnia e no Texas. Sempre ouvi espanhol. Sempre gostei. E Espanha lembra-me muito a Califórnia. Quando vim aqui pela primeira vez de visita (estávamos a namorar), estávamos no comboio de Madrid para Pamplona e pensei: isto é parecido com a Califórnia. Ah, sim, Espanha parece-se muito com a Califórnia!

    Portanto, planeia ficar, então. Com a Internet consegue-se trabalhar em qualquer lado?

    O único problema é, por vezes, o fuso horário. Escrevo sobre temas norte-americanos. Como o Glenn Greenwald, que está no Brasil, eu estou um pouco distante dos Estados Unidos. Então, tenho uma capacidade de ter um olhar um pouco mais objetivo do país e do que está a acontecer lá. Mas, às vezes, o fuso horário é mau. Como no caso de uma palestra que dei este ano na Brown University, e que começou por volta das 4:00 horas da tarde. Eram 11:00 horas da noite aqui!

    Antes de 2020, já investigava a indústria farmacêutica e os escândalos nessa indústria, a corrupção, as ligações a políticos e organizações. O que mudou na investigação da indústria farmacêutica após a covid-19? Parece que investigar agora as farmacêuticas e a corrupção no sector se tornou em blasfémia. Ainda se pode investigar as farmacêuticas?

    As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção. Se entrarmos em qualquer livraria encontramos livros sobre o historial de corrupção na indústria farmacêutica; é a indústria que mais multas pagou na História dos Estados Unidos. Mas, a partir de 2015, todas as pessoas que faziam perguntas sobre o sector começaram a ser chamadas de “anti-vacinas”.  Eu estava a investigar uma empresa chamada Monsanto, que era uma empresa tão corrupta que quando compraram a empresa [a Bayer, em 2018] descartaram a marca. Foi a única maneira da Monsanto existir hoje. Foi uma empresa apanhada a mentir vezes sem conta. Por volta de 2015, houve um evento no Clube Nacional de Imprensa para falar sobre algo como desinformação na Ciência ou semelhante. Foi aí que começou a surgir todo este tema da “desinformação”, como se tivéssemos um problema com desinformação.

    É então algo que já vem detrás.

    Temos jornais e outros meios para que as pessoas possam estar informadas, mas esse tema da “desinformação” passou a ser algo único. De alguma forma, é algo único agora. Tão único neste ponto da História da Humanidade que precisamos realmente de ter especialistas em “desinformação”, verificadores. Mas nós já tivemos isso. Durante a Inquisição, na Europa, na Idade Média, tivemos isso, e a Igreja era o verificador de factos. O árbitro das verdades.

    Sim, exactamente…

    Então, esse novo tema surgiu, e foi muito estranho. Escrevi um artigo para o Huffington Post sobre o facto de ter havido essa conferência, que foi, curiosamente, liderada pela empresa de relações públicas que trabalha para a indústria agroquímica, para a Monsanto, e tudo mais, para empresas que mentem sobre os produtos químicos agrícolas. Achei bizarro. Era uma empresa de relações públicas [Ketchum PR] que, na verdade, também representou Putin e a empresa petrolífera russa [Gazprom], tem um longo historial na divulgação de desinformação. Quer dizer, isso é relações públicas! E foi assim que este tema [desinformação na Ciência] foi implantado – por uma empresa de relações públicas.

    Esse tipo de empresas tem muita influência.

    Num painel, havia um participante que foi lá para falar sobre alterações climáticas; e a sua solução para as alterações climáticas era a energia nuclear. Estava lá outro participante a falar sobre organismos geneticamente modificados (OGMs), e de como “são seguros”. E estava lá outra pessoa para falar sobre vacinas, e de como são seguras. E assim foi todo o resumo da conferência: se acreditam nas alterações climáticas, então a solução é a energia nuclear; e os OGM são seguros, e as vacinas são seguras. E eu estava lá e o primeiro pensamento que tive foi: de que vacina estão a falar?

    Falava-se genericamente que todas as vacinas são seguras…

    Ninguém jamais diria que todos os produtos farmacêuticos e medicamentos são seguros, porque a primeira questão que surgiria seria: de que medicamento está a falar? Na indústria de dispositivos médicos, ninguém diria que todos são seguros, porque você questionaria: qual dispositivo médico? Eu investiguei alguns deles [dispositivos médicos]. Investiguei os produtos da Medtronic. Foram retirados do mercado, porque eram perigosos, estavam a ser colocados em pessoas e eram perigosos. Estavam a ferir as pessoas e a prejudicá-las. Foi muito claro que houve o arranque de uma campanha de relações públicas que deu o pontapé inicial… Logo naquela altura fui chamado pela primeira vez de “anti-vacinas”, o que foi bizarro. Eu nunca tinha escrito ou até mesmo pensado alguma coisa sobre vacinas! Como é que eu podia ser “anti-vacinas” se eu nunca escrevi, nem twittei, nem disse nada sobre vacinas?

    Isso é típico em campanhas de comunicação…

    Passei muito tempo a olhar para a história da indústria de relações públicas. A história da desinformação na Ciência remonta à indústria de relações públicas nos Estados Unidos, e tem a ver com a empresa de relações públicas chamada Hill+Knowlton, que na década de 1950 começou a trabalhar com a indústria do tabaco para criar a maior conspiração da História dos Estados Unidos. Que conspiração foi essa? A conspiração de que os cigarros eram seguros, que não se sabia se eram perigosos. E foi brilhante! E o que fizeram? Para fazer isso, basicamente tomaram conta de universidades e começaram a trabalhar com os professores universitários para criar essa realidade alternativa, de que não se sabia se o tabaco era perigoso ou não. Ou de que talvez fosse seguro! A narrativa era: tem a certeza de que o fumo passivo é mau? Quais são as suas provas? Mas isso é que ressoa com a realidade que temos visto com a covid-19. Temos também esse envolvimento com as universidades.

    Paul D. Thacker, no Congresso de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, que decorreu nos dias 20 e 21 de Maio, em Fátima.

    Aquilo que está a dizer é que essa questão de desinformação começou muito antes da covid-19, e que começou a ser criada e a crescer antes desta pandemia?

    Penso que estava a acontecer muito antes. E há uma coisa muito óbvia que se tornou muito clara para mim, nos últimos dois anos. Se um produto era aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), se esse produto fosse um produto farmacêutico ou um dispositivo médico, você podia fazer as perguntas básicas que qualquer pessoa que entende de Medicina faria: qual é a sua eficácia, como funciona, quais são os efeitos secundários. Mas hoje, assim que um produto é aprovado pela FDA, já não se pode fazer nenhuma dessas perguntas. Essas perguntas não são permitidas. Não se pode fazer perguntas quando é uma vacina, porque as vacinas são “Ciência”. Não se pode questionar sobre corrupção envolvendo vacinas ou sobre quão bem funcionam, ou quais os seus efeitos colaterais. Hoje, as pessoas que fazem essas perguntas são chamadas de “anti-vacinas”. As farmacêuticas ainda não criaram uma campanha de relações públicas que rotulasse as pessoas como “anti-farmacêuticas”. Não dizem que alguém é um “anti-remdesivir”, por exemplo, porque as pessoas iriam rir. Mas conseguiram safar-se com a narrativa de chamar a todos de “anti-vacinas”, porque é cativante. É como uma campanha feita por uma empresa de relações públicas muito boa. Tal como acontece com a indústria do tabaco. É cativante chamar de “anti-vacinas”, você pode ficar obcecado com isso.  É assim, como uma lavagem cerebral em torno deste assunto. É uma religião. Não podemos tocar nisso.

    Mas isso é uma forma de censura…

    Escrevi um artigo sobre o facto de não se poder fazer, quando se trata de uma vacina, as perguntas normais que se fazem para qualquer outro produto aprovado pela FDA. Assim, as vacinas são mágicas. Ao contrário de todas as outras terapêuticas que se conhecem, as vacinas são mágicas. Você não pode fazer perguntas. São apenas vacinas e “funcionam”. Mas havia outras questões relativas, por exemplo, aos ventiladores, que foram usados em pessoas com covid-19. E há alguns estudos que concluíram que as pessoas realmente morreram por causa do protocolo que foi implementado em hospitais, usando os ventiladores. Então, também não podíamos falar sobre isso. Não podíamos questionar o protocolo médico. Eu nunca prestei atenção a este tema, o que captou a minha atenção desde o início [da pandemia] foi o professor John Ioannidis, da Universidade de Stanford. Começou a publicar algumas declarações e alguns estudos sobre o vírus e foi muito criticado.  Depois começaram a censurar o que dizia. O YouTube eliminou declarações suas a uma televisão por ser “desinformação”.

    pile of blister packs of colorful medicine tablets

    Foi absurdo…

    E eu pensei como era estranho, nem sequer era permitido ter-se uma opinião! Pensei: o que está a acontecer? Não fazia sentido. E outra coisa que me impressionou também foi, logo no início, quando as vacinas foram lançadas… Primeiro, essas vacinas foram lançadas à pressa no mercado, nem sequer foram aprovadas, apenas foram autorizadas [para uso de emergência]. No New York Times, lia-se que a Pfizer indicava que tinham 95% de eficácia. E esta é uma grande manchete, certo? Porque todos estavam preocupados com o vírus. Então, se alguém lê “95% de eficácia”… Mas depois, alguns parágrafos abaixo no texto percebia-se que aquele número não vinha de um estudo; era de um comunicado de imprensa! Ninguém viu esses dados, excepto a empresa, e a empresa divulgou um comunicado à imprensa. E um comunicado de imprensa acabou como manchete no New York Times! E essa publicação foi planeada para quê? Eu sei, porque investiguei, e na verdade serviu para pressionar a aprovação pela FDA. Para pressionar toda a comunidade biomédica. Foi tudo relações públicas. E o New York Times, e esses outros meios de comunicação social, foram cúmplices disso.

    Mais uma vez, o papel de influência da comunicação empresarial e das relações públicas…

    Então, as coisas realmente mudaram [na pandemia de covid-19]. Havia algo realmente chocante na censura. Sabe, censura de cientistas, e também o comportamento dos grandes órgãos de comunicação social. O ambiente mediático fragmentou-se, porque agora temos a Internet, e pessoas como eu podem publicar uma newsletter. Há o Twitter, para que as pessoas possam ver coisas que não conseguiam ver [nos media nem em outras redes sociais]. O que está a acontecer é que agora há essa necessidade de fechar isso [esse acesso livre a informação independente]. Então, há a mensagem dos grandes media, e há os documentos e informações que pessoas como eu divulgam. E as pessoas estão a ler. Como se fecha isso? Tinham de erodir isso, e criaram o tema da “desinformação”, e uma infraestrutura para ir atrás de pessoas independentes e fechar esse acesso a informação. Essa infraestrutura envolve agências governamentais e estranhas organizações sem fins lucrativos, que muitas vezes são financiadas pelo Governo e em colaboração com esses centros de investigação académica. E estão em pânico, porque estão a perder poder.

    3 clear glass bottles on table

    Algo que me impressionou é que, antes da covid-19, víamos os liberais, os comentadores de esquerda, a criticar os capitalistas e o capitalismo e os mercados financeiros, as grandes empresas. E agora é chocante ver que a esquerda e os chamados “liberais” são aliados do grande capital. São aliados das Big Tech, das grandes farmacêuticas, e apoiam, por exemplo, medidas como o dinheiro digital de bancos centrais. O mundo parece estar de cabeça para baixo. O que está a acontecer?

    Não faço ideia do que se passa. Há oito anos, as pessoas que mais criticavam a indústria farmacêutica eram liberais, de esquerda. Agora, estão todos “na cama” com a Pfizer. Será que se esqueceram que essas pessoas querem apenas lucros, que trabalham para obter lucros? Aquilo que penso é que as mensagens da indústria foram planeadas para atrair pessoas que são de centro-esquerda. Em relações públicas, fazem grupos de foco. Pensam sobre as mensagens que querem passar, e para quem as querem passar. É preciso entender como funciona a indústria farmacêutica e como os fármacos são colocados no mercado. A indústria farmacêutica não faz investigação, não faz pesquisa. Quem faz pesquisa são pequenas empresas, pequenas empresas de desenvolvimento normalmente associadas às universidades. As farmacêuticas colocam os medicamentos no mercado. Agora, toda a pesquisa de biomedicina está a ocorrer principalmente em torno de universidades, que, nos Estados Unidos, são como distritos do Partido Democrata. Penso que há muito dinheiro a entrar nessas áreas, muita convergência entre a biomedicina e o Partido Democrata. O Partido Democrata é agora o círculo eleitoral da biomedicina.

    Por exemplo, em Portugal, podemos ver neste momento um forte movimento nos media para pressionar o Governo a comprar medicamentos relativos ao vírus sincicial respiratório [denunciado pelo PÁGINA UM]. Vemos médicos que são consultores de farmacêuticas, as quais vendem medicamentos para esse vírus, a falarem a jornais para pressionar o Governo a comprar, mas sem revelarem as suas ligações ao vendedor do medicamento…

    Não há indústria por aí que seja mais corrupta… Eles têm muito dinheiro para gastar, e o que fazem é muito sofisticado. Há muitos médicos, muitas escolas médicas, grandes revistas de Medicina, que estão comprados pela indústria farmacêutica: O nível de sofisticação e a quantidade de dinheiro são provavelmente inigualáveis no planeta. Eles conseguem o que querem.

    woman wearing white lab coat holding brown bottle and glass tube

    Ficou surpreendido com este tipo de pressão? E com a censura e as ligações entre Governo, redes sociais e a comunicação social?

    Nos Estados Unidos, o Governo não pode dizer directamente a um meio de comunicação social que não pode publicar algo. Isso é inconstitucional. O que está a fazer é pressionar. O mesmo está a ser feito com as empresas que operam as redes sociais. Quando comecei a publicar sobre haver censura, tive jornalistas, amigos jornalistas, a dizerem que não era possível estar a acontecer aquela censura. Vi jornalistas a fazer campanha a favor do Governo. Eram avessos à possibilidade de estar a haver censura com intervenção do Governo. Quando os documentos [do Twitter Files] começaram a sair, ainda se via essa negação de que isso estava a acontecer. Ainda há essa negação. Um jornalista do Washington Post, por exemplo, escreveu um artigo com um balanço de seis meses sobre Elon Musk. No artigo não tem nem uma referência aos Twitter Files. Como se faz um balanço de seis meses da actuação de Elon Musk e não se menciona os Twitter Files? Como se faz isso e se chama a si próprio jornalista? Não faz sentido, e não é jornalismo. E é por isso que olhei para esses documentos e divulguei essas duas histórias. Elas ajudam a explicar como e por que isso está a acontecer. O que está a acontecer é que muitos desses jornalistas tinham elos de ligação muito próximos com o Twitter, e esses laços evaporaram-se quando Elon Musk o comprou. Eles perderam o acesso especial que tinham, perderam os seus privilégios especiais.

    Qual é a sua opinião sobre o facto de um candidato à presidência dos Estados Unidos, Ron DeSantis, ter feito o seu anúncio no Twitter. Eu ouvi o anúncio no Twitter Spaces e era como ver a história acontecer em directo.

    Bem, quero dizer, essa é uma maneira de olhar. Mas então veja-se os media norte-americanos. Não fizeram nada mais além de criticar o que aconteceu, como se fosse a pior coisa de todos os tempos. Só falavam das falhas técnicas e de como o anúncio correu mal… Essa é a forma como os media caracterizam Elon Musk e DeSantis… Depois, há a sondagem de Harvard que apontou que, na política, Elon Musk é o mais popular agora na América. DeSantis é o número três. Isso é incrível. E depois questionamos: porque é que os meios de comunicação social são assim tão desconectados com o resto do público americano. Os media começam a mostrar que têm vivido numa espécie de bolha. E vivem numa bolha há muito tempo. Os media agora são amigos do Governo. Isso começou basicamente na época de Trump. Sinto muito, estou descendo um elevador. Pode estar cortando essa mudança. Há muitas coisas que não gosto em Trump. Mas, ao mesmo tempo, eu podia ver que muitas das notícias sobre ele não eram justas. Eu disse a um amigo meu jornalista: era preciso inventar tudo isso sobre Putin [de uma alegada ligação a Trump]? O que temos agora nos media norte-americanos é esta história básica: pega-se em Trump, Elon Musk e Ron DeSantis e coloca-se na coluna A, e na coluna B coloca-se Q, antissemitismo, extrema-direita, supremacia branca, anti-ciência, anti-vacina. Depois, tira um da coluna A e mistura com algo da coluna B. E essa é a sua história. Apenas mistura e combina, e isso são os media de hoje. Não é jornalismo, é apenas isso. Como se escrevessem em pânico. E a questão é que eles pensam que estão a ser inteligentes. Mas o público americano vê isso. É por isso que o número de americanos que confia nos media nunca foi tão baixo.

    Tem a sua própria página, a sua newsletter, publica em jornais e escreve sobre os Twitter Files. Como vê a mudança na maneira como as pessoas consomem notícias e informações? Porque hoje podemos ler notícias e grandes peças de investigação fora dos grandes órgãos de comunicação social mainstream. Mas também vemos o aumento do poder das redes sociais e das grandes plataformas de tecnologia no controlo do acesso a informação. Como vê a evolução destas questões? Pensa que vai haver um movimento para travar esta tendência e tentar tornar as coisas impossíveis para jornalistas como você?

    Realmente, não sei. A maioria dos americanos ainda está a receber a maior parte da informação pela televisão. A televisão ainda tem muito poder. Muitos desses jornais, desses meios de comunicação tradicionais, ainda têm muito poder. Eu estou a aproximar-me dos 20.000 assinantes. Estou muito longe do Washington Post. Mas é ótimo, é um óptimo número. Mas eu não estou a competir directamente com esses grandes meios de comunicação social. Há cerca de um mês, vi que o New York Times escreveu algo sobre Anthony Fauci e descobri que havia duas coisas que eles relatavam que eu tinha relatado em Dezembro! Mas é claro que não havia menção ao facto de eu ter relatado essas coisas primeiro. Aquilo que os media fazem é ou negar informação que você escreve, dizendo que é um absurdo, que é desinformação, ou então vão lê-la secretamente e vão roubar a informação. Sei quem são os meus subscritores. Posso ver quando eles se inscrevem, e eu conheço os meus assinantes. Há lá muitos jornalistas de investigação. Há muitos deputados, membros do Congresso, funcionários do Congresso. Eu não tenho muitos assinantes, mas tenho muitos assinantes da elite, leitores da elite. Então, talvez eu tenha mais impacto. Tenho leitores da elite que estão a vir e a ler o que eu tenho para dizer, ou porque estão a tentar estar bem informados, ou porque se trata de um jornalista em algum lugar a tentar descobrir como roubar algo e usar sem me mencionar.

    Jeremy Vine e a jurada Janet Kersnar, editora executiva do Business of Fashion, entregam o prémio de Jornalismo Especializado no British Journalism Awards 2021 a uma colega de Paul Thacker no BMJ.

    No outro dia, ao entrevistar Andrew Lowenthal, ele falava sobre o Complexo Industrial de Censura. Como podemos quebrar isso, e como podemos garantir que no futuro não iremos viver numa ditadura, onde não existe liberdade, incluindo liberdade de imprensa e de expressão?

    Bem, eu não posso falar a partir de uma perspetiva portuguesa porque eu não sei como os media portugueses funcionam ou o Governo português. Posso falar do ponto de vista norte-americano e dessas histórias sobre o que está a acontecer, com as pessoas a serem censuradas, a serem expulsas das redes sociais, a ser-lhes negado o direito a ter uma voz e uma perspectiva. Penso que foi isso que chamou definitivamente a atenção. Esses repórteres do Post e do New York Times estão a negar o que está a acontecer. Mas todos, todos os seus leitores, sabem o que está a acontecer. Eles estão a ler e não são estúpidos. Eles estão a ver os documentos [Twitter Files]. Membros do Congresso também estão a ver. Funcionários do Congresso também. Ligam-me e perguntam-me sobre o que está a acontecer. E eu penso que mais relatórios sobre o que está a acontecer, e como isso está a afectar a nossa capacidade de ter uma democracia decente e uma política decente. Eu penso que são importantes os processos [judiciais] que estão a avançar nos Estados Unidos para expor e impedir que isso suceda novamente. Penso que, no Congresso, podemos começar a retirar financiamento às organizações que estão envolvidas nesse tipo de comportamento contra os americanos. Quando um Governo começa a fazer censura com seus próprios cidadãos, é assustador. E a incrível magnitude de influência e envolvimento nesta área, da censura, por parte das universidades… As universidades estão muito envolvidas na censura; criaram esses centros académicos sobre desinformação, especialistas em desinformação.

    E na Europa, temos a Comissão Europeia com novas leis, novos regulamentos para os meios de comunicação social e também para as redes sociais, e aplicará multas enormes se as redes sociais permitirem aquilo a que chamam desinformação e discurso de ódio. E isso incluirá o Twitter. Está preocupado com o facto de, na Europa, o Twitter poder estar condicionado por este novo regulamento, porque vimos o que aconteceu na Turquia.

    Quer dizer, estou preocupado com um continente que tem um historial forte de fascismo. Em Espanha, temos o caso do jogador de futebol do Real Madrid que foi alvo de comentários racistas. Em Portugal, provavelmente também há quem chame nomes racistas a jogadores negros. E não podemos permitir isso e precisamos fazer algo para limitar a capacidade de pessoas fazerem isso. E isso todos percebem. O problema é o que está a acontecer nos bastidores com vista a limitar a capacidade de as pessoas terem debates abertos e opinião.


    N.D. Leia, sobre esta entrevista, o editorial de Pedro Almeida Vieira intitulado “O venenoso abraço das farmacêuticas à imprensa“.

  • ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    Andrew Lowenthal tem uma vasta carreira na defesa dos direitos humanos no mundo digital e na defesa da privacidade online, tendo sido co-fundador da EngageMedia, uma organização sem fins lucrativos. O autor e investigador australiano tem colaborado na divulgação dos ‘Twitter Files’. O seu trabalho está focado no estudo e denúncia do crescente autoritarismo digital. É investigador no Institute for Network Cultures da Universidade de Amesterdão e escreve na sua página Network Affects, na plataforma Substack. Lowenthal foi um dos oradores presentes na Conferência Internacional “Saúde Mental e Propaganda”, que decorreu em Fátima, no passado fim-de-semana. Em entrevista ao PÁGINA UM, o investigador falou sobre o “Complexo Industrial de Censura”, o qual se tem vindo a formar a nível global, e que tem vindo a investigar junto com o jornalista Matt Taibbi, entre outros. Sobre os ‘Twitter Files’, revelou que Elon Musk “não está a dar acesso a novos documentos” à equipa de jornalistas e escritores que têm estado a conduzir a investigação aos documentos internos daquela rede social. Mas a investigação prossegue aos documentos já disponibilizados e vão surgir mais revelações. Os ‘Twiter Files’ – que pode acompanhar AQUI no PÁGINA UM – têm vindo a revelar a sinistra máquina de censura instalada no Twitter – e que abrange também outras redes sociais e Big Techs – no tempo da anterior gestão do Twitter.


    Tem uma longa carreira na defesa da privacidade digital, liberdade de expressão e direitos humanos em plataformas online, mas vejo que também foi um pouco apanhado de surpresa com o que se passou nos últimos anos, com o forte aumento da censura. Durante o seu percurso, alguma vez esperou que chegássemos a este ponto, com toda a censura que tem existido?

    Não, não esperava. É interessante porque, de certo modo, todo o trabalho que eu fazia era sustentado na ideia de que não actuavamos, particularmente, em relação ao poder corporativo e aos media e à tecnologia, e que podíamos acabar numa situação muito má. Mas, na verdade, nunca imaginei que essa situação pudesse ser assim tão má. Algo fez com que isto se desenvolvesse de uma forma muito mais autoritária do que eu alguma vez poderia imaginar, portanto, não, de facto nunca esperei. Eu receava que, de forma geral, as coisas piorassem, mas não radicalmente, como aconteceu desde a covid.

    Escreveu sobre a existência de um “Complexo Industrial de Censura”, que tem mobilizado milhares de milhões de dólares e de euros. Afinal, em que é que consiste este ‘complexo’, quem é que o detém? E como é que se chegou até aqui?

    Bem, é um conjunto de vários grupos com diferentes interesses. Este sistema ao qual chamamos “Complexo Industrial de Censura” envolve associações filantrópicas, financiamento governamental e organizações governamentais, académicos, think-tanks (grupos de reflexão), organizações não-governamentais, e os media. E, portanto, há diferentes áreas onde existe uma grande coordenação. Sabemos que há um projecto intitulado Virality Project, que estava a controlar a informação que circulava sobre a vacinação contra a covid, e que admitiu explicitamente visar também histórias verdadeiras que encorajassem hesitação vacinal. E eles colaboravam de perto com o Facebook, o Twitter, o TikTok, e outros. Por isso, eu não penso que haja uma única entidade central neste complexo, mas há, sem dúvida, vários núcleos que têm procurado exercer muita influência na forma como as pessoas percepcionam o mundo.

    E há muito dinheiro envolvido nessa indústria…

    Sim, muito dinheiro. Dinheiro que vem de associações filantrópicas privadas, de entidades governamentais… Nalguns casos, há fortes ligações a serviços de informação e às Forças Armadas, algo que ficou claro com os ‘Twitter Files’, que não é uma teoria da conspiração que as pessoas imaginam, acontece mesmo na realidade. Então, sim, em certos casos, há contractos como aquele que foi feito com a Peraton, na ordem dos mil milhões de dólares. Muitos dos grupos que vimos são mais de dimensão pequena a média – bem, e grande também –  como académicos e think-tanks, mas os seus orçamentos variam entre 3, 4 ou 5 milhões e 40, 50 milhões de dólares. O Instituto Aspen em particular coloca muito dinheiro neste tipo de “trabalho”, dezenas de milhões de dólares. Portanto, sim, é mesmo um projecto com um financiamento massivo, tudo sob o pretexto da “desinformação”. E a desinformação existe, mas a ameaça que representa foi exagerada essencialmente para servir de justificação para a censura.

    Então, a desinformação foi vista como uma oportunidade para se censurar?

    Sim, sim. De forma geral, esse é também o meu pensamento em relação à pandemia; é que há pessoas espertas que veem certas oportunidades e agarram-nas, a não ser que estejamos particularmente vigilantes.

    E falamos de algumas empresas, como as grandes farmacêuticas que, depois da pandemia, têm agora ainda mais dinheiro para patrocinar os media e muitas destas entidades que actuam sobre a “desinformação”. Portanto, é um problema que está em crescimento?

    Sim.

    E como é que vê a sua evolução? Porque o problema está a crescer, as entidades por detrás deste complexo industrial de censura estão a tornar-se maiores, é uma indústria gigante… Por isso, como é que nós enquanto cidadãos podemos desmantelar isto, o que é que podemos fazer?

    Acho que a primeira coisa é mostrar às pessoas que existe, e que há ainda muita coisa que nós não sabemos também sobre o nível de censura que os sistemas de controlo de informação criaram. Outro passo é lutar contra muita da legislação recente que tem sido aprovada, na União Europeia, e a nível nacional, no Reino Unido, na Austrália, nos Estados Unidos, e por aí fora, e que está realmente a tentar institucionalizar a censura com o pretexto da desinformação e do discurso de ódio. E acho que criar órgãos de comunicação social independentes é fundamental, porque alguns canais de media foram tão “capturados”, e o debate é tão abafado… A democracia significa as pessoas dizerem o que pensam e a pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas, porque havia um custo social por dizerem aquilo que pensavam. Eu também estive calado durante algum tempo, acho que a maior parte das pessoas esteve, mas é crucial que deixem de estar.

    Para nós europeus, o que vimos passar-se na Austrália durante a pandemia foi um choque total e um horror. Como é que foi para si ver o que se estava a passar na Austrália, e na Nova Zelândia?

    Acho que muitas das pessoas na Austrália não faziam ideia que estavam assim tão fora do que era o “normal” das coisas… E, também, muitas das pessoas lá não tinham grande contacto com o exterior. Para quem não estivesse, por exemplo, em Melbourne, a vida era bastante normal em muitos sítios. Não se podia sair do país e talvez do Estado, mas, na verdade, não se sentia que fosse assim tão diferente. Penso que as pessoas em Melbourne e Sydney tiveram uma experiência muito distinta. E o facto de estarem muito desconectados do resto do mundo, por estarem muito longe, faz com que não se perceba bem o quão autoritárias as coisas se estão a tornar. E isso ainda acontece. Quando eu falo com os meus amigos, acho que eles não veem o quanto a Austrália se afastou das normas ocidentais. Claro que foi mau em Portugal, Espanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas a Austrália e a Nova Zelândia levaram mesmo a coisa a outro nível. Acho que há cada vez mais quem queira sair da Austrália e comparar as realidades, mas a Austrália é uma sociedade muito orientada para a segurança, por isso procura sempre minimizar riscos. É um país que não lutou pela sua independência para se tornar numa nação, por isso a maioria da população, pelo menos, não sabe o que é tomar grandes riscos ou lidar com grandes ameaças.

    Mencionou o autoritarismo e, nos últimos anos, temos vindo a seguir esse caminho, com uma nova ideologia nesse sentido a capturar o Ocidente. E isto pode ser algo cíclico, tal como já aconteceu no passado. Acredita que é possível que passemos mesmo a viver numa sociedade autoritária e que se perca a democracia?

    Sim, quer dizer, isso cabe às pessoas decidir. Infelizmente, parece que, neste momento, há muita gente que está bastante feliz a viver numa sociedade autoritária. Acho que muito poucos diriam que não desejam uma democracia, mas em muitos casos penso que o disseram, na verdade. Porque muitas destas insistências vieram do espectro “liberal” progressista da esquerda – que foi onde eu me inseri duas décadas da minha vida –, e acho que eles não o veem como autoritarismo, mas como um acto de consideração pelos outros, e cuidar dos outros com um sacrifício necessário em prol dos mais vulneráveis. Portanto, acho que eles não veem o autoritarismo, e isso é assustador. Eles acreditam mesmo nisso. E talvez também tenha sido assim comigo durante algum tempo. Mas, convencer as pessoas que existe um custo-benefício nestas coisas, e que perder liberdades e até segurança ao ceder demasiado poder ao Governo e às empresas, que essas mesmas pessoas de esquerda costumavam pôr em causa…

    Sim, e isso é muito estranho. Porque, do ponto de vista da esquerda, dos liberais, há uma década ver-se-iam estas grandes empresas – Big Pharma, Big Tech, os bancos – como egoístas e sedentos de lucro, capitalistas. Portanto, o que é que mudou, o que é que aconteceu à esquerda? Já não acham que estas instituições querem lucro e guerras?

    Sim, eu sei, esta é a pergunta de um milhão de dólares que toda a gente quer descortinar. Eu acho que, essencialmente, as pessoas trocaram liberdade por segurança.

    Mas não é uma segurança real. É uma grande farsa.

    Não, eu concordo, não é segurança, verdadeiramente. Mas acho que devido a esta troca de prioridades, decidiram que valia a pena fazer este “pacto com o diabo”, com as pessoas mais poderosas da sociedade. E creio que o crescimento do populismo de direita e esta polarização, retirou, essencialmente, a nuance e a sofisticação à crítica. Ou se formavam alianças com o poder corporativo liberal, ou sofria-se as consequências do populismo de direita. Portanto, penso que algumas pessoas se colocaram dentro destas opções limitadas, e decidiram escolher ou uma ou outra, em vez do que deveriam ter feito, que era criar mais opções.

    E há uma terceira opção, que é a dos cidadãos e da sociedade civil, com pensamento crítico. Não temos de estar divididos apenas em duas fações. Há uma terceira alternativa…

    Sim, há uma terceira alternativa, que é não escolher nenhuma das duas opções. Mas sim, penso que obviamente tem a ver também com as redes sociais e o medo da exclusão social. Mas este tribalismo, a limitação do espaço político e a polarização contribuíram para este fenómeno, e é por isso que acho que a existência de mais espaços heterodoxos e diferentes é algo fundamental nesta altura, em vez de se aderir a uma das duas “tribos”.

    A sua vida, trabalho e finanças melhoraram ou pioraram nestes últimos anos? Porque mencionou que durante muitos anos, tinha amigos mais conectados com o espectro liberal, de esquerda… De repente, está rodeado de pessoas que não concordam consigo e que o veem como uma possível ameaça. Isso afectou-o pessoal, profissional ou financeiramente?

    Sim, sem dúvida, mas talvez de uma forma diferente em comparação com outros activistas. Eu “liderei” devagar, não fui cancelado nem fiz nada abruptamente. Também porque eu queria, pelo menos, manter-me em contacto com as pessoas de mente mais aberta no espaço da esquerda ‘liberal’. Sem dúvida que houve pessoas durante a pandemia que não queriam falar comigo, porque eu tinha opiniões “erradas”. Financeiramente, tive sorte, de certa forma, porque há uma espécie de nicho e um espaço – embora não muito grande – para pessoas com ideias mais heterodoxas. Mas certamente que já não estou como estava quando conduzia uma ONG e em que tinha um excelente financiamento. Poderia lá ter continuado e estaria numa posição muito confortável. Portanto, sem dúvida que, voluntariamente, escolhi uma situação financeiramente mais precária, porque senti que estava a fazer parte de uma coisa que, não é que fosse totalmente desonesta, mas que certamente pactuava com desonestidades, com uma mentalidade cada vez mais autoritária.

    E qual é a sua visão relativamente ao Twitter e aos ‘Twitter Files’, que têm sido um marco em termos de mudar algumas opiniões em torno da censura. E o que é que pensa sobre a contratação da nova CEO do Twitter, que é uma executiva do World Economic Forum?

    Pois, não posso dizer que esteja entusiasmado, não é a escolha que eu gostaria de ter visto. Quer dizer, ainda não vi muita coisa sobre ela, mas pelo que vi, não é o que eu esperava que acontecesse. Parece que estamos a voltar ao ponto em que estávamos antes. Talvez possa ajudar a equilibrar as coisas, porque o Elon Musk parece muito errático e não um decisor consistente, o que talvez não seja um problema quando se constrói carros. Mas quando se está a dirigir uma rede social, as pessoas precisam de saber mais claramente quais são as regras. E não se pode saltitar de um lado para o outro e mudar as coisas, porque confunde muito as pessoas. Na construção de carros, um pode ser amarelo e o outro vermelho, e o público não participa nessas decisões, por isso não o confunde… Enfim, não sei, mas não é a escolha que eu teria esperado.

    E ainda está a trabalhar com os ‘Twitter Files’, ainda poderemos esperar novas histórias suas sobre o Twitter?

    Sim. Musk já não está a dar acesso a novos documentos, mas temos outros documentos sobre os quais ainda não se escreveu, por isso haverá mais.

    Participou numa conferência em Portugal sobre a pandemia e toda a propaganda a que assistimos. Qual é a sua visão sobre o que se tem passado na comunicação social e a propaganda à volta dos temas relacionados com a pandemia? Porque há alguns temas que são nocivos para as pessoas, pela forma como os media os têm transmitido…

    Sim, essencialmente, acho que houve uma quantidade enorme de propaganda. Por vezes, é difícil para as pessoas utilizarem esta palavra, porque fá-las pensarem nos anos 20 ou 30 do século passado, e talvez não seja a palavra mais adequada para os dias de hoje…

    Qual é a palavra que escolheria?

    Não sei, quer dizer, trata-se de controlo de percepção da informação. São campanhas de relações públicas muito sofisticadas. Penso que as pessoas entendem melhor assim. Se falarmos em propaganda, acho que corresponde mais à verdade, é factualmente correcto. Agora, se é ou não a palavra que fará as pessoas que estão mais à margem passarem para o nosso lado, é outra questão… Mas acho que houve claramente imensa propaganda. Foi altamente sofisticada, foi de um outro nível. Estávamos mais seguros no caso da guerra no Iraque. Porque, na altura, acho que as pessoas conseguiram perceber a manipulação, e foi por isso que houve muita contestação. Enquanto que, no caso da pandemia, acho que eles aprenderam muitas lições com a guerra no Iraque, sobre a necessidade de uma maior sofisticação na forma como os governos ou as empresas passam a sua mensagem à população. Precisa de ser muito mais social. Tínhamos Internet em 2003, mas era algo mais aberto e livre. Mais uma vez, acho que o Virality Project nos mostra quanta manipulação se engendrava e como se coordenavam os governos e as grandes tecnológicas e, infelizmente, a sociedade civil [na pandemia]. Muitos deles pensavam que estavam a fazer a coisa certa, e que estavam preocupados com a sociedade… Quando pensavam na vacina [contra a covid-19], imaginavam uma vacina tradicional – e eu ainda sou defensor das antigas vacinas – mas isto era outra coisa, e é muito difícil convencer as pessoas disso. Muitas pessoas ainda não se convenceram. No geral, as pessoas estão a tornar-se mais cépticas. Quase ninguém se tornou menos céptico ou mais crente de que o Governo fez a coisa certa. Portanto, isso dá-me alguma esperança de que as coisas estão a direcionar-se para um maior cepticismo, e acho que eventualmente uma massa crítica se irá formar.

    glass, hands, palm

    Está, então, esperançoso num despertar da população em relação a estas campanhas de “relações públicas”, e espera que estejam mais atentos e vigilantes quanto a este “Complexo Industrial de Censura”…

    Bem, estou esperançoso, mas com cautela, porque definitivamente que não está a acontecer tão depressa como seria necessário.

    E, quanto ao trabalho: quais são os seus planos para um futuro próximo? Porque agora está a escrever mais sobre outros assuntos, e a Humanidade enfrenta outros desafios, como o dinheiro digital centralizado que está a chegar, e as cidades dos 15 minutos que estão a começar a ser testadas… São muitos os desafios. Quais são os seus projectos para o futuro?

    Está em desenvolvimento.. Uma das coisas é que continuo a trabalhar com Matt Taibbi nos ‘Twitter Files’. E, depois, estou no processo de estabelecer uma nova iniciativa que aborda os totalitarismos digitais, portanto, trata de censura, moedas programáveis, privacidade, este tipo de questões. E, na verdade, alguém está a trabalhar no lugar em que eu estava, no âmbito dos direitos humanos digitais que, de certa forma, colapsou porque foi [uma área] cooptada pela Big Tech. Por isso, estamos a tentar perceber como é que podemos reconstruir ou renovar este papel [da defesa dos direitos humanos online] que perdemos na sociedade civil.

    Isso dá-nos esperança, porque vimos, com choque, algumas ONGs no campo dos direitos humanos e das liberdades civis em conluio com os governos e com todo o autoritarismo a que assistimos. Portanto, está a dar-nos esperança.

    Farei o meu melhor.

  • ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    Spoiler: esta é uma entrevista imperdível para os amantes de cinema. Mário Dorminsky tem um extenso currículo, de muitas valências, mas um dos seus papéis principais é o de co-fundador do Fantasporto, considerado o maior festival português de cinema. A sua 43.ª Edição decorreu de 24 de Fevereiro a 4 de Março passado, pela primeira vez no histórico Cinema Batalha, reabilitado pela Câmara Municipal do Porto. Em conversa com o jornalista Frederico Duarte Carvalho, em exclusivo para o PÁGINA UM, Dorminsky fala da estreia do festival no Batalha e do estado actual da indústria cinematográfica, relembrando com nostalgia a “época áurea” do cinema em Portugal e as dificuldades actuais de promover a Cultura e os espaços culturais.


    Este ano, o Fantasporto esteve pela primeira vez no Cinema Batalha. Como foi a experiência neste Batalha renovado, e agora “casa” do Fantasporto?

    Honestamente?

    Talvez seja preferível então uma resposta politicamente correcta…

    Politicamente correcto, muito bem. Acho que já dei a entender… Penso que há duas valências, uma delas é aquela que o Batalha oferece a quem o visita. E, como aliás já vem sendo habitual, mas neste ano em particular, a nossa imagem internacional é muito mais forte do que a imagem nacional. E daí que todos os estrangeiros que nos visitaram – e que, pelo que se pode contabilizar, são cerca de 170, a não ser que haja outros espectadores que nós desconhecemos… Acho que eles gostam muito do espaço. E, de facto, o espaço é, à primeira vista, muito agradável. Depois, tem algo de muito particular, que é um painel do [Júlio] Pomar, que ocupa toda a altura do edifício, a nível interior, e mantém-se outro alto relevo no exterior. Em 2012, o edifício foi considerado de interesse municipal. E nesse ano, aliás, com a minha intervenção – e também na altura da Paula Silva, do IGESPAR –, resolvemos fazer um projecto para considerar este espaço como um edifício de interesse nacional. Entretanto, a terminologia mudou, e passou-se a usar o termo “monumento de interesse nacional”. Assim, há dois monumentos, neste momento, dentro deste espaço: um é o Fantasporto, e o outro é, concretamente, o edifício em si do Cinema Batalha, actualmente chamado de Centro de Cinema.

    Como potenciar isso?

    A lógica que eu veria, em termos de funcionamento desta sala, seria próxima de uma programação de uma Cinemateca. Por isso, com parâmetros de programação que seriam de maior abertura conceptual e, também, por outro lado, de uma linha mais autoral. E haver um certo equilíbrio. O problema é que, aparentemente, chegou-se à conclusão… Independentemente, de eu ter excelentes relações com o director desta casa, Guilherme Blanc, acho que há uma política erradíssima em termos da programação do espaço. Não é que não conheça, já ouvi falar, mas nunca tive coragem de ver 99,8% dos filmes que eles exibiram até agora, e que vão exibir até Julho. A programação é extremamente fechada, e acho que não atrai públicos. Atrair públicos será feito provavelmente através de convites à borla, algo que, estranhamente, nos edifícios da Câmara parece algo que acontece. Tivemos pedidos de borlas para o Fantasporto deste ano como nunca. Quer dizer, as pessoas acham que não há, de facto, bilheteiras para comprar a porcaria de um bilhete a cinco euros. Ou a dois euros e meio, que é possível se tiverem um cartão oferecido gratuitamente pela municipalidade do Porto.

    Achas que é devido à falta de valorização da cultura, que as pessoas pensam que a cultura é de borla? O valor de cinco ou de dois euros e meio é quase simbólico. E mesmo assim as pessoas não querem pagar…

    Não, não… Quer dizer, na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga.

    Ou seja, as pessoas pensam que já pagam a Cultura com os seus impostos.

    Exactamente. Eu também gosto, quando me oferecem a possibilidade de ir, sei lá, a um festival de rock; e ir de borla em vez de ter de pagar os 170 ou 200 euros pelos três dias, e até me oferecem, inclusivamente, um espaço VIP, onde posso beber, e vou mostrar-me. Aliás, o que acontece aqui, é a tal “quequice” de vir a um espaço como é, neste caso, o Batalha. Isto é, o Batalha antes de o ser, já é um espaço “queque”. No fundo, repete, aliás, aquilo que aconteceu com a Casa da Música no Porto, em que as pessoas iam ver determinado tipo de programação, que era uma programação hiper-elitista. Não acredito que as 700 pessoas dentro da sala fossem capazes de ter conhecimentos e gosto em termos musicais para poder sair de lá e dizer “magnífico”, “fantástico”, “genial”. E aqui, provavelmente acontecerá a mesma coisa no Cinema Batalha em muitos projectos que vão ser exibidos.

    Que cinema há no Porto no resto do ano, quando não há Fantasporto? Tirando o cinema comercial, obviamente… Em Lisboa, por exemplo, há a Cinemateca. No Porto, ainda está em funcionamento o Cineclube?

    O Cineclube do Porto fez uma sessão aqui e estava cheio. Uma sala pequena, tinha 120 pessoas. Mas, de qualquer forma, o que me parece é que este espaço, para conseguir conquistar público – porque ainda não conquistou –, vai acontecer o que já está a acontecer. Eu recebi já um convite para a próxima semana, à borla, para ver um filme e um ciclo que vai começar agora aqui.

    E vale a pena esse ciclo, ou não pagavas para ver?

    Não, eu nem de borla. Agora, a questão é que nem sequer aí há o factor de descoberta. Porque eu conheço o realizador, já vi um filme dele, e já disse que nunca mais vou ver nenhum.

    É uma questão pessoal?

    Não, é uma questão de gosto, e de aquilo que eu acho que é cinema e aquilo que eu acho que é instalação cinematográfica. É a mesma coisa que a exposição que nós temos aqui nesta casa, e que não nos permite colocar nada junto das paredes, nem podemos fazer sequer a exposição que estava prevista, do José Emídio, nos 60 anos do aniversário de uma das maiores estruturas culturais em termos de artes plásticas do país, que é a Cooperativa Árvore. De qualquer forma, o que acontece é que isso limitou-nos.

    E não houve cartazes dos filmes em exposição.

    Não tivemos hipótese de meter cartazes dos filmes, nem bandeiras dos países..! Uma vez, metemos bandeiras dos países à frente do Teatro Rivoli [risos]. Porque havia lá muitos buraquinhos, e disseram “ah, porque é que não põem bandeiras dos países?”, e pusemos. Pronto. Mas aquilo que costumamos pôr, que é billboards, cartazes dos filmes, que até são pagos; quer dizer, até as empresas pagam para ter os cartazes em destaque. Isso não, não pudemos pôr uma passadeira para fazer uma espécie de passadeira vermelha, pelo menos na abertura e no encerramento. Não pudemos fazer rigorosamente nada que tenha a ver com o festival. Para conseguir pôr um painel para tirar fotografias na entrada do espaço – aliás, não é bem na entrada, no lado esquerdo –, foi preciso ser o director a dizer que podíamos pôr ali. Eu acho que é do conhecimento geral, de toda a gente que vá à borla ao Fantasporto e participe no festival [risos], e que vê as condições de trabalho que a equipa tem… Quer dizer, tem um barraco que eu acho que aparece nas imagens. E ao mesmo tempo, tem um buraco por onde passam as pessoas que vão aquecer a comida no micro-ondas. E é isso o nosso espaço. O bar seria um espaço importante para nós, para que as pessoas se pudessem reunir, encontrar, beber uns copos. Aliás, os estrangeiros, em particular, gostam bastante de beber a nossa cerveja. E nem faço publicidade à cerveja que ainda apoia, ao fim de 42 anos, o Fantasporto, que aliás é a Superbock, precisamente [risos].

    Uma cerveja do Norte, pode-se mencionar como sendo um facto.

    Não, a Sagres também se bebe cá. Mas não interessa. Afinal, chegámos à conclusão que o bar fechava às 20 horas, o que quer dizer que abre às 15h e fecha às 20h. As pessoas não podiam sequer utilizar o bar. O único momento em que eu senti que houve alguma animação e gozo entre as pessoas, foi em certo dia ao fim da tarde, juntaram-se umas 30 pessoas, e o bar a fechar e as senhoras com vontade de ir embora porque já estava a chegar às 20 horas.

    Não lhes pagam horas extra… Mesmo havendo um festival internacional, não há horas extra e fecha tudo às 20 horas?

    Se houver, somos nós que pagamos, atenção, está contratualizado. Tudo o que sejam horas-extra, somos nós que pagamos, em qualquer das áreas. Inclusivamente na segurança.

    Mas o apoio da Câmara, ainda assim, é de salutar ou é apenas o possível?

    Não, não é só o que é possível. O problema é que o apoio da Câmara incorpora o espaço, que é algo fundamental. O Teatro Sá da Bandeira é o espaço que eu continuo a ter, no meu imaginário para fazer o Fantasporto à moda do Teatro Carlos Alberto, mas teríamos de ter dinheiro para o alugar.

    Achas que o Sá da Bandeira é que seria o sítio do Fantasporto?

    O Sá da Bandeira é o novo Carlos Alberto. Ou melhor, era um renovado Carlos Alberto.

    Tem condições?

    Tem, e a nível de estrutura e da engenharia, há 10 anos que estava garantida. E eu admito que ainda esteja, porque toda a estrutura de sustentação dos vários pisos é feita com grandes pilares de ferro, se é que se pode dizer assim. O que quer dizer que não há grandes problemas, excepto, dizem eles, nos camarotes mais elevados do espaço. De qualquer forma, é uma sala que é verdadeiramente gótica [risos]. E permite fazer, não só em termos de fachada como de entrada e de tudo, um espaço que não é fantasmagórico, mas visualmente atractivo.

    city buildings near body of water during daytime

    O Sá da Bandeira é privado…

    É privado, sim, e eles pedem um bocado de dinheiro por aquilo. Aliás, nós fazíamos lá o Baile dos Vampiros até determinada altura, só que depois os preços aumentaram substancialmente. Chegámos a fazer espectáculos musicais em paralelo com o próprio festival, com bandas de vários tipos, e lembro-me, por exemplo, de um momento interessante do Claudio Simonetti, que é o autor das bandas sonoras dos filmes do Dario Argento. Estavam lá os dois… E a adesão das pessoas a projectos desse género também é interessante, à parte do Fantasporto.

    Bom, não me mentiste, porque eu pedi-te só uma opinião sobre o Fantasporto aqui na Batalha, e nós já falámos de várias coisas.

    Mas há mais aspectos…

    Há mais aspectos de que possas falar? Então pronto, continua…

    Toda a área circundante. Isto é, toda a área circundante é bonita. É uma zona turística.

    É, temos o Teatro de São João…

    Exactamente. Só que, primeiro, não há parques de estacionamento. As pessoas perguntavam: “onde é que eu ponho o carro?”. Segundo, havia uma frequência de manhã muito magrebina. Pronto, não interessa estar a definir. Não tenho nada contra eles, mas a determinada altura… Aliás, até brinquei com uma realizadora turca e com o marido, e estava-lhe a dizer “opá, isto de manhã parece a Turquia, parece Istambul” [risos]. E, depois, ao fim da tarde, começa a ser uma coisa mais complicada. Além de uma coisa que me surpreendeu negativamente, e que eu aparentemente consegui resolver falando com o presidente da Câmara, que é a sopa dos pobres mesmo em frente ao Batalha. Tudo isso cria uma sensação de mal-estar. As pessoas diziam-me para olhar para dentro do Batalha.

    As sessões depois da meia-noite sempre foram uma marca do Fantasporto.

    Sim, foram uma marca, e até às duas e três da manhã, e por aí fora [risos]. E aqui não pudemos fazer. Aliás, viu-se pelo número de pessoas que estavam na sala.

    E a sala deste ano não foi muito grande, tem metade do tamanho daquela que tinham.

    Eu não queria falar nisso, porque isso é uma história que, então, estávamos aqui muito mais tempo a falar…

    Mudemos agora um pouco de prisma. Como é que está o audiovisual nacional, actualmente?

    Está excelente, nunca se viu tanto cinema como agora.

    Mas as pessoas vêem em plataformas, em casa…

    Estás a dizer o que eu ia dizer. Podemos falar claramente de tudo o que é streaming, logo aí, dos grandes, acho que são sete canais. As pessoas têm acesso a esses canais, e já estamos a falar aí das primeiras gerações de ‘fantas’. Porque as primeiras gerações de ‘fantas’ já foi há quarenta e poucos anos, não é? As duas últimas gerações já são a malta dos ipads, dos computadores, da piratagem [risos]. Das televisões que já começaram há uns anos a ter 30 ou 40 filmes quando entrou o cabo… Começaram a entrar 30, 40 ou 50 filmes diferentes por dia. Claro que depois repetem. Mas, lá está, as alternativas aí são tantas. Aliás, quando foi o período da covid-19, as pessoas mais jovens não sentiram nada [risos]. Já estavam habituadas a ver cinema em casa, já tinham com que se entreter à vontade.

    Aliás, diz-se que as restrições da pandemia só funcionaram mesmo porque as pessoas já estavam pré-habituadas a estar em casa. Foram elas que pediram para ficar em casa antes de o próprio Governo o decretar. Um grande exemplo de civismo, não é verdade? [risos]

    [risos] Exactamente. Os números são claros, muita gente já falou sobre esse tema. E vamos falar naquilo que é a única multinacional em Portugal, e que toma conta de 96% do mercado de distribuição e de exibição em Portugal, que é a NOS. E são nossos patrocinadores também, através da TV Cine. O cinema teve uma quebra, há dez anos, de 70%. Os dados do Instituto de Cinema, há dois anos, eram de uma quebra de mais 20%. Temos 10% do que era normal, o que é uma coisa absurda. A grande excepção, por exemplo, no ano passado, a nível de espectadores, foi o Top Gun – Maverick, que fez um número muito significativo de espectadores, e aparentemente, segundo o que foi dito, equilibrou um bocadinho as contas.

    E mesmo esse filme talvez tenha resultado porque era a continuação de um filme dos anos 1980. A geração que viu o Top Gun em 1986 quis agora vê-lo de novo no grande ecrã…

    Exacto, e tem uma banda sonora muito boa; já a do outro também era excelente. Ou melhor, é aquela que se adapta ao gosto da maioria das pessoas. E isso também levou a que o filme fosse, de facto, um sucesso.

    Sim, agora não é normal os filmes ficarem mais do que duas semanas nas salas, não é?

    E para fazer isso… Mas isso também é culpa da própria distribuição. Eu tentei manter a distribuição que fazia antes, mas só que a partir do momento em que passou a haver o domínio total – com a excepção concretamente das salas do El Corte Inglês, a UCI… Tirando essas salas, e outra meia dúzia que o Paulo Branco tem em Lisboa, se é que é meia dúzia, mais uma que existe no Porto e mais dois estúdios que fazem parte da estrutura de equipamentos municipais da Câmara…

    Voltando ao Batalha. Conseguias fazer alguma coisa com o actual Batalha?

    Tinha de ter uma programação completamente diferente. Estou-me a lembrar de duas salas no centro de Londres, com uma programação de filmes de culto, que é uma coisa que chama muita gente, e cada vez mais. No outro dia estava a falar com um distribuidor, e ele disse-me que agora ia comprar clássicos, que é o que está a dar. Quando ele fala em clássicos, eu depois cheguei à conclusão. era algo, sei lá, do tipo Streets of fire [risos].

    Todos os filmes que fizeram sucesso nos anos 1970 e 1980.

    Já são clássicos. E um gajo começa a pensar… Aliás, temos uma área chamada Fantasclassics, que este ano não fizemos. Quando começamos a pensar em clássicos… “Clássicos, mas este filme nós passamos. Já tem quarenta anos”.

    Na minha e na tua geração, quando pensamos em clássicos, estamos a pensar em filmes a preto e branco, até aos anos 1940-50, ou 60, no máximo. A partir dos anos 70 já são quase uns contemporâneos. Mas para muita gente até os filmes dos anos 90 já são clássicos.

    O próprio cinema americano altera o cinema mundial, e o cinema europeu se altera com o cinema novo.

    Se calhar há muitos filmes que estão clássicos porque só existem em DVD e VHS, e muita gente não os viu hoje, e outros já os viram há muito tempo.

    Aliás, se vamos pensar numa coisa que chegou a existir e que as pessoas nem sabem, que é uma coisa chamada 70 milímetros [risos]. E ver o Lawrence da Arábia em 70 milímetros, uma pessoa até fica com sede [risos]. Enorme filme, mas pronto. Estou a brincar com a areia porque se passa, de facto, no deserto.

    Mas estás a imaginar um Lawrence da Arábia no Batalha?

    Não dá, não dá, isto é miserável. Este ecrã é pequeníssimo. Quer dizer, para o tamanho da sala, o ecrã até dá mais ou menos neste momento.

    O IMAX também é o que faz sucesso.

    Eu pessoalmente não sou fã.

    Na indústria, parece que se está a privilegiar mais técnicas do que histórias. O que vês daquilo que te vai chegando?

    Ora bem, temos de dividir cinema em duas áreas completamente diferentes. As multinacionais, que continuam a ter produção própria; uma produção que, teoricamente, é feita para chegar ao mercado das salas de cinema. Quando eu falo em multinacional, pode-se pensar que são filmes que qualquer um pode exibir, mas não é verdade. Os distribuidores em cada país têm os direitos de uma determinada multinacional. Cá em Portugal, os direitos são todos da mesma empresa. Têm três nomes diferentes, mas é a mesma empresa e os sócios são praticamente os mesmos. Mas isso leva a que haja esse cinema, dos super-heróis e das “Ressacas”.

    E do outro lado tens um cinema de descoberta, daquelas cinematografias que normalmente não entram num país como Portugal. Daí que haja uma diversidade de países no caso do Fantasporto, que é brutal. Quer dizer, nós recebemos filmes de 60 e tal países, e temos filmes de 30 países a ser exibidos – que não entram em Portugal de maneira alguma, nem nas televisões nem em lado nenhum, já não há hipótese. Entravam no passado, no pós-25 de Abril de 1974. Estamos a falar já dos clássicos [risos]. Nem há cá, como em Espanha, alguns serviços de streaming que têm clássicos e filmes que, de alguma forma, foram fazendo a História do Cinema, e que raramente entram no circuito comercial. Nós cá somos extremamente radicais nesse aspecto. São raros os projectos que são organizados por institutos de vários países europeus, e que criam Festas de Cinema. Então, viramo-nos muito para a Ásia, onde de facto, o festival tem um peso muito forte.

    Há uns anos deram um prémio ao primeiro filme de ficção científica chinês.

    Sim. No próximo ano, a China vai estar presente em força no Fantasporto. Não só através da China mainland como através de Hong Kong e da Formosa. E depois, há países que ninguém liga e que têm coisas notáveis. A cinematografia do Cazaquistão é absolutamente brutal! Não exibimos nada este ano porque um amigo nosso, que é distribuidor, e por sugestão minha, vai fazer precisamente um pack de filmes do Cazaquistão para começar a divulgar através dos festivais. E, recebe também, logicamente, um fee de aluguer por esse núcleo de filmes que, entretanto, conseguir. Essas cinematografias são êxitos grandes em vários países. No ano passado, umas quatro dezenas de ante-estreias mundiais. Isso só mostra o peso do festival em certos países onde os portugueses não ligam ao cinema que lá se produz.

    Sim, somos mais bem tratados lá de fora para dentro…

    Eles sabem que o Fantasporto tem um impacto que lhes permite depois lançar o filme a nível internacional. Uma senhora que trabalha com festivais no Hungary Film Institute disse-me que para muitos o Fantasporto é um espaço de lançamento do cinema húngaro. Agora, há outros detalhes. Este ano tivemos cá 170 estrangeiros, dos quais 80% são realizadores de filmes que estiveram aqui presentes. E tivemos os realizadores desses países, aqui, sem pagar uma única viagem.

    Quer dizer que que o Fantasporto está bem de saúde, recomenda-se, e vai continuar no Batalha, enquanto não conseguires o sonho do Sá da Bandeira [risos].

    O sonho do Sá da Bandeira… Atenção, a minha equipa acha que é genial, mas eu preciso de ter o dobro ou o triplo do público que tenho neste momento. E para isso preciso de outro espaço, de estar noutra área da cidade.

    Mas o Fantasporto pode ser um espaço para que esta zona chame mais pessoas.

    A programação deste ano foi pensada para o Batalha, que é uma coisa que não é tão fácil quanto isso.

    Explica-me lá então como é isso…

    Nem os filmes que passámos à noite são tão para o grande público como era habitual no Fantasporto. Mas os filmes que passaram no Fantasporto são filmes de qualidade, ponto final. Goste-se ou não se goste.

    Aliás, o Fantasporto dava qualidade a filmes sem qualidade. Mas este ano não houve tanto disso…

    Não. Aliás, o filme mais maluco de todos é o Life of Mariko in Kabukicho, um filme japonês. Digo “maluco” no sentido de ser fora da caixa. Agora, o resto são filmes dentro da caixa.

    Uma coisa que acontece muito, quando os realizadores vêm ao Fantasporto, é que ficam com vontade de fazer filmes no Porto, ou em Portugal.

    E de vir outra vez ao Porto. Aliás, não quero mentir, mas recebi entre 10 a 12 mensagens, e as pessoas adoraram estar cá. E dizem logo: “o meu próximo filme vai ter de estrear aí”. Claro que é sempre uma forma simpática de…

    Não, mas eu estou mesmo a falar de pessoas que querem vir filmar ao Porto.

    Sim, isso tem acontecido. Aliás, o Shape of water [A forma da água, em português, vencedor de quatro Óscares em 2018, incluindo melhor filme e melhor realizador] do Guillermo del Toro, foi escrito cá, no Rivoli. O Argento também esteve cá a escrever um dos seus filmes. Há um espaço que desapareceu, quer dizer, não há a vivência de relacionamento entre os convidados, e que é fundamental. Não há esse espaço. Não é por acaso que as pessoas ficaram afastadas, quando há hotéis à volta da Batalha [risos]. Não é por acaso que as pessoas ficaram num hotel junto do Rivoli. Foram para lá porque eu quis que saíssem daqui e mudassem de zona. Sobretudo à noite, e que não acordassem nesta zona. Os nossos participantes reduziram de 100 para 25. Onde é que punham o carro? Pura e simplesmente perdemos participantes, perdemos público ao vir para o Batalha, e público tradicional do Fantasporto. Ganhámos um espaço que é bonito, agora se funciona…

    Quem escolhe os filmes são vocês os dois, tu e a Beatriz [Pacheco Pereira]?

    Sim, mas isso tem a ver também com a nossa formação, que curiosamente é muito semelhante.

    Beatriz Pacheco Pereira e Mário Dorminsky.

    Sempre funcionaram por serem um casal?

    Sim, mas por sermos muito diferentes, por vezes, nas escolhas. E isso é bom. Eu ainda no outro dia tinha saudades, e estava a dizer que era fantástico nós durante três anos enchermos, todas as semanas, o Coliseu do Porto com filmes que estávamos a exibir nas chamadas noites duplas do Coliseu. São 3.300 lugares, e enchíamos. Pá, onde é que isso é possível hoje? Não é.

    O Festival continuou a ser eclético, com a semana dos realizadores, o fantástico, terror, séries e documentários…

    Esse conceito foi muito interessante para a evolução do Festival. Mas, das duas uma: ou nos definimos como um festival de cinema fantástico, ou como um festival de cinema geral. E isso é uma coisa que, passados estes anos todos, eu acho que cria um bocado de confusão às pessoas. Por acaso, este ano, fizemos um acordo, digamos assim, para que a maior parte dos filmes da semana dos realizadores fossem thrillers. Quer dizer que encaixa mais ou menos…

    No fantástico…

    Não encaixa no fantástico, porque os filmes são realistas. O fantástico tem uma certa loucura, e nós este ano cortámos com essa loucura de uma forma mais ou menos radical. Loucura no sentido de serem, como dizíamos, filmes fora da caixa. Cortámos porque deixou de fazer sentido. Faz sentido se calhar no MOTELX, mas aqui não faz, porque isto é um festival generalista quase.

    Pois, então se calhar aquele público que havia nas sessões da meia-noite…

    Não gostou, mas não gostou já logo na altura da passagem do Carlos Alberto para o Rivoli. E houve ali logo um choque, mas nós não perdemos público. Fomos ganhar público, porque conseguimos conquistar não só o público do fantástico, como o do generalista. O problema é que as salas estão carregadas de DC Comics, Marvel, e super-heróis, e isso é o que agrada, neste momento, à geração que vai às salas de cinema. Porque os pais já ficam em casa… Isto é igual à música, atenção, com a música é a mesma coisa.

    brown bridge with light

    Eu conhecia o tempo do Carlos Alberto e agora está muito mais higienizado aqui. No Carlos Alberto uma pessoa pode fumar, comia-se dentro da sala se fosse preciso…

    Sim, sim, tomava-se o pequeno-almoço ao sair da sala, às 6 e às 7 da manhã.

    Sim, e agora está muito mais asséptico.

    E, nessa altura, os filmes não eram legendados, e tínhamos lá o homem do talho, da padaria… E no outro dia, uns tipos que me foram levar umas bebidas ao escritório, disseram: “epá, o Fantasporto no Carlos Alberto é que era”. E lá está, este público… Eu disse-lhe assim: “mas você não percebe de filmes”. E ele disse: “mas visualmente era uma coisa espectacular”. E pronto [risos]. A partir daí está explicado uma coisa que é inexplicável. Eu acho que as pessoas continuam a ouvir falar no Fantasporto. Agora, a forma como os media têm funcionado nos últimos dez anos, os jornais foram desaparecendo, e as televisões repetem as mesmas notícias 56 vezes… Não pegam em cultura. Pegam em música, alguns canais. Porquê? Porque os organizadores dos festivais conseguem fazer contratos com as bandas garantindo que a televisão A ou B vai poder exibir o vídeo XPTO.

    Uma das coisas que não quiseste nos últimos anos foi ter uma grande estrela mundial, uma carpete vermelha…

    Sempre quis a carpete vermelha. O problema é que, não tendo carpete vermelha, tenho de dizer aos tipos que, afinal, a roupa na noite de abertura é normal. Eles perguntam sempre qual é o dress code. Nos 25 anos do Fantasporto, montámos uma tenda gigante transparente na Praça D. João I, fizemos uma ligação de passadeira vermelha entre o Rivoli e a tenda. Foi no ano em que a Toyota chegou a fazer um carro Fantasporto, o I Go Fantas. E a Diesel fazia relógios especiais para o Fantasporto… As empresas participavam no Fantasporto de uma forma muito forte. E isso desapareceu.

    Porquê?

    Porque as pessoas começaram a não investir em publicidade. A Diesel, por exemplo, achou que bastava Espanha, não precisava de Portugal. E isso foi acontecendo em contínuo. Com os carros é uma questão diferente, detalhes. Mas pronto, fazer uma coisa glamorosa é perfeitamente possível, e eu aliás ando a chatear o Turismo do Porto e Norte de Portugal; é ridículo que não nos apoiem. Ou melhor, que não apoiem os nossos convidados, para que eles possam sentir algum glamour aqui. Quando vais nos autocarros de turismo, passam à frente do Rivoli e dizem: “aqui é que se realiza o Fantasporto”. Sente-se que há uma ligação directa da cidade com o Fantasporto, mas não é o Futebol Clube do Porto.

    Falta recuperar aqui uma simbiose… É possível recuperá-la?

    Recuperar a simbiose implica que haja um processo tipo Cannes. É ridículo estar a comparar, porque Cannes é Cannes, e aqui não há mercado.

    O nosso small is beautiful.

    Isso é perfeitamente possível criar. Agora, podes ter cânones importantes. Pode haver essa lógica da passadeira vermelha, só que eu tenho de pensar que, para trazer qualquer americano de Los Angeles, só um custa-me uns cinco mil euros. Mas eles não vêm sozinhos, vêm logo com não sei quantos guarda-costas.

    E estão a perder dinheiro ao estar aqui…

    A questão é um bocado essa, eles podem vir cá. Só nos 25 anos, tivemos cá, à vontade, 10 grandes nomes do cinema, dos quais dois oscarizados.

    Qual foi o que te deu mais prazer ter cá?

    O Guillermo del Toro, é evidente, porque já era amigo no passado. O Peter Jackson, por exemplo, nunca veio cá, mas é outro que tal. Nós tivemos patuscadas em vários sítios, os três. Três de barba, três gordos. Agora já emagreceram os outros dois [risos].

    Já estiveste tu, o Guillermo del Toro e o Jackson?

    Ui, umas quatro ou cinco vezes. Queres que eu te conte a história?

    Quero!

    Uma vez fomos a um boteco, daqueles que se comem tapas, só que o homem disse: “ah, ainda não abrimos”. E nós: “não se preocupe, que nós comemos tudo e limpamos tudo”. E o Guillermo, quando chegou cá, disse que não podia comer porque estava a emagrecer. Foi comigo à Brasileira, aquilo eram pratos atrás de pratos. E depois ainda comeu tripas à moda do Porto. E mais sobremesas… Opá, pronto. É malta porreira.

    Só para concluir, gostava de explorar a ideia das salas de culto, que eu acho que isso é parte do futuro. Explica-me lá como isso é.

    Eu e a Beatriz temos falado muito sobre que espaço é que poderíamos eventualmente ocupar, ou recuperar, para poder fazer uma sala de culto. O Cine-Teatro Vale Formoso é um dos projectos que nós temos, mas é um problema, porque é muito grande também. Não exageremos [risos]. Das duas uma, ou tenho parceiros para poder fazer outras coisas do Vale Formoso… Como está agora, para além da sala que tem, dá para fazer mais 10 salas! Cada andar dá para fazer à vontade quatro salas de cada lado. Aquilo é enorme, gigantesco. E tem uma piscina, porque aquilo era da IURD.

    Eu quero explorar mais o conceito em si…

    O conceito é Fight Club; é, sei lá, filmes de Tim Burton, que funcionam sempre. Danny Boyle, irmãos Cohen… Quer dizer, há todo um conjunto de cineastas e de gente que apela à atenção de quem gosta de Cinema, e já não vai ao cinema… [risos] Mas apela à atenção, e isso é fundamental. E eu acho que isso implica o espaço em si; e o que nós temos minimamente disponível são dois em centros comerciais, e eu não quero. Aliás, há três. E depois a montagem das salas, neste momento já é um bocado caro.

    Pena foi quando há 13 anos, a dona Margarida, dona deste espaço, não aceitou o contrato preparado pelo sobrinho dela, que é advogado, com que nós discutimos a possibilidade de vir para o Batalha. Era um projecto total, far-se-ia uma renovação do Batalha, que estava mais degradado. Mas nós não tínhamos na altura um valor de 800 mil euros para a renovação do espaço. E também tínhamos a certeza, e constava no acordo, que daríamos 30% das receitas após a recuperação do investimento feito. Portanto, não era um problema de ter ou não ter dinheiro, só que era uma lógica completamente diferente. A entrada, as bilheteiras, também seriam diferentes. Isto tinha um potencial, de cruzar inclusivamente música com artes performativas e Cinema, o que era excelente. Falhou, porque a dona Margarida decidiu não assinar o contrato, porque foi no período de pré-campanha eleitoral. E já tinha havido contactos, e houve promessas de que a Câmara compraria o espaço. Fez negócio com o Rui Moreira, que foi eleito, e fizeram um acordo. Por isso, quanto pensamos em espaços, é complicado. Há outros espaços, mas não foram cinemas; e os que existem, neste momento são escritórios.

  • ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    De onde surgiu o denominado wokismo e a cultura do cancelamento? Jorge Soley, economista espanhol e professor universitário, acredita que o movimento remonta à Revolução Francesa, mas que bebeu muito do regime comunista de Mao Tsé-Tung. Em O manual do bom cidadão, editado em Portugal pela Dom Quixote, Jorge Soley explica as estratégias e mecanismos que os “zelotes wokes” utilizam para silenciar os “hereges” do século XXI, proibindo o debate, humilhando os “transgressores” e impondo a auto-censura. Evocando diversos casos de palavras, livros, estátuas, e pessoas “canceladas”, em Espanha e no mundo, apela para a resistência à ditadura do politicamente correcto, porque “a neutralidade já não é uma opção”. Em entrevista ao PÁGINA UM, Soley disseca este fenómeno, transversal a todo o Ocidente, não esquecendo de falar sobre os “cancelamentos” durante a pandemia.


    Há quem critique aqueles que falam do ‘wokismo’ por não definirem, propriamente, o termo. Como deve ser definido?

    Não é fácil defini-lo numa frase, porque creio que não seja um movimento unívoco, já que agrega diferentes influências. Mas se tivesse mesmo de o definir, diria que é a crença de que o mundo em que vivemos é estruturalmente horroroso e que temos de o transformar todo desde a raiz. E que quem quer que se oponha é má pessoa. Penso que há muitos aspectos da questão, mas um aspecto comum em todo o mundo ‘woke’ e politicamente correcto é não quererem discutir. Querem cancelar o debate. Eu tenho as minhas ideias, e há pessoas com ideias muito diferentes das minhas, e podemos falar e trocar argumentos; poderão até convencer-me que algumas das ideias que tenho são equivocadas e incompletas, e vice-versa. Mas, no mundo woke, algo muito característico é a eliminação do debate. Porque dizem: “não, se tu não estás de acordo com isto, és má pessoa, és a favor do racismo estrutural, das fobias, da homofobia estrutural, e contigo não se pode falar porque estás do lado errado da barricada”.

    No seu livro fala das origens do movimento woke, defendendo não ser fenómeno de agora. Como surgiu?

    Creio que é uma confluência de muitos factores e alguns, inclusivamente, contraditórios. Detecto na Revolução Francesa alguns elementos, por exemplo, com o que se passou durante o Terror. É a tal ideia de que todos os que não estão de acordo comigo são inimigos da Humanidade; foi o que aconteceu com Robespierre. Nos dois séculos que se seguiram, foram-se somando novos contornos e, no meu livro, falo da influência da Escola de Frankfurt, de Antonio Gramsci, de Mao. Mais do que Marx, de Mao. Acredito que Mao, Gramsci, e a Escola de Frankfurt são muito importantes para a visão ideológica do mundo woke.

    De um modo geral, as pessoas ficam surpreendidas com a comparação que estabelece entre o Maoismo e o wokismo? Acham exagerado…

    Bem, sim… O que é que eu encontrei em Mao? Encontrei vários elementos que me parece que são semelhantes ao que estamos a viver agora. Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o facto de haver certas ideias não permitidas. Depois, outro paralelismo tem a ver com a Revolução Cultural. E também os fenómenos através dos quais, de repente, as massas se lançam sobre uma pessoa e a destroem. Evidentemente, na altura de Mao isso fazia-se com paus e afastando os professores que supostamente não compartilhavam do movimento maoista. Muitas vezes, havia castigos físicos. Hoje, evidentemente, o linchamento é feito nas redes sociais. Outro aspecto da Revolução Cultural é o exigir que os dissidentes, aqueles que não estão de acordo, se humilhem publicamente. E, para além disso, não basta humilharem-se, ficam estigmatizados para sempre. A escritora J. K. Rowling será para sempre uma “transfóbica”, porque já a rotularam assim. Mesmo que agora se arrependesse, seria igual, não valeria a pena, porque se pedir perdão é uma prova de que estava errado. Se eu cometo um erro, não tenho nenhum problema em pedir desculpa. Mas o que não vale a pena é desculpares-te numa tentativa de que te “salvem a vida”, ou que te perdoem, porque não te vão perdoar. Nem Mao, tão pouco, perdoava. A pessoa ficava marcada para sempre.

    Também é professor universitário, e as universidades, no mundo ocidental, têm tido um papel significativo na difusão do “politicamente correcto”. Em Espanha, como é a realidade nas universidades?

    Creio que em Espanha, como em todo o mundo ocidental, há alguns casos de professores submetidos a pressões, inclusive sob risco de perder o emprego, por dizerem o que teoricamente não se pode dizer: por exemplo, que há apenas dois sexos, e que a biologia não depende do que alguém pensa, é o que é. No entanto, penso que sobretudo o que procura a ideologia woke não é tanto castigar aqueles que dizem o que é supostamente incorrecto, mas sim a autocensura. E acho que em Espanha há muito medo e autocensura. Com a maior parte dos professores universitários vê-se uma grande diferença entre o que te podem dizer em privado e o que dizem publicamente. Ninguém quer problemas. Então, em privado diz-se algumas coisas, e depois, em público, sobre as “questões problemáticas”, fala-se de uma forma muito cuidadosa, e autocensuras-te. E penso que isso é um empobrecimento enorme para a dimensão intelectual. A meu ver, temos de dizer o que pensamos e argumentá-lo; a autocensura é sempre má. E, nas universidades, a autocensura está muito presente.

    Teve algum tipo de represálias ou reprimendas, no seu círculo profissional, por se insurgir contra o politicamente correcto?

    Na verdade, não tive problemas graves. Pode haver sempre alguém que te critica ou que te insulte, mas pessoalmente não me aconteceu nada de grave. E também é verdade que, onde estou, quem me rodeia até concorda mais ou menos com o que eu digo. Além disso, digamos, já tenho mais de 50 anos; se fosse um jovem universitário, com 25, 30 anos, teria mais cuidado e iria exercer uma maior autocensura sobre mim mesmo. Com a minha idade, já me autocensuro pouco.

    No livro, utiliza o termo “patologização do dissidente”, que consiste em, além de se acusar os críticos das pautas woke de “discurso de ódio”, atribuir-lhes fobias várias, o que permite cancelar o debate de uma forma até paternalista ou condescendente…

    Sim, parece-me que são tentativas de cancelar o debate, rotulam qualquer coisa de “discurso de ódio”, ou dizem que és louco e que padeces daquelas fobias. Por este caminho, acaba-se com a liberdade de pensamento e com a liberdade de expressão. Acho que é muito perigoso, e que se deve restringir o consenso do que é convencionado como discurso de ódio. Estritamente, deve ser algo que cause um dano real a outras pessoas. Tudo o resto tem de ser legítimo, numa sociedade democrática, e tem de se poder falar sobre. Na minha opinião, ninguém tem o direito a não ser ofendido. O problema da ofensa é determinar se houve ou não ofensa; é subjectivo, é da própria pessoa. Então, qualquer coisa, até uma pergunta, pode subjectivamente considerar-se ofensiva. Se aplicássemos esse critério, num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar. Então, acredito que temos que nos poder expressar em liberdade, e isso significará que haverá coisas que ofenderão as pessoas. Têm que se assumir isso nas democracias ocidentais, faz parte do debate poder ser ofensivo. A mim, há coisas que me dizem que me ofendem, mas eu, diante disso, em vez de “cancelar” quem o disse, tento dar-lhe argumentos para fazer a pessoa ver que aquilo que disse é um disparate. Se, ainda assim, a pessoa me quiser ofender, bom, é um problema seu. Mas, enfim, creio que é algo que faz parte da nossa vida em comum, da nossa civilização.

    green and white braille typewriter

    Há um apelo à vitimização?

    Sim, agora, parece que o segredo para prosperar nesta sociedade é encontrar um grupo ao qual possas aderir, e onde possas dizer que te vitimizaram, que és uma vítima. Houve um momento em que fazíamos piadas sobre “vitimizar” os gordos, os condutores de camiões, os comedores de pizza. E, o que era uma piada, entre amigos, agora, há quem o reivindique, dizendo que existe uma pizzafobia e que os comedores de pizza – que não comem saudavelmente – são vítimas de uma sociedade que os obriga a consumir. Ou seja, no movimento woke, perante qualquer disparate que te ocorra, é muito provável que se torne realidade – é apenas uma questão de sentar e esperar; se esperares algum tempo torna-se realidade.

    Fala também sobre como os “desejos” de certos grupos se transformaram em clamores por direitos. Acha que os wokes instrumentalizam a narrativa dos direitos humanos para conseguirem o que querem?

    Sim, eu creio que sim, existem direitos, que são universais e são para todos os Homens. Quando se fala nos direitos das minorias… quer dizer, são os direitos de todos, todos temos direitos! Aqui, o problema desta transformação do conceito de direito, é quando aquilo que eu desejo tem de se converter num direito. Se eu desejo, por exemplo, ter um filho, tenho o direito de o ter. E tenho de o ter, porque se é a minha vontade, então é o meu direito. Quando algo se transforma num direito desta forma… Um direito implica sempre um dever: o dever da sociedade e do Estado de garantir esse direito. Para mim, cada um tem o direito a tentar levar a vida que quiser. Mas não tem o direito a que esse direito lhe seja mesmo garantido, se por si mesmo não o consegue. Porque se o modo de vida a que aspiro envolve ter filhos, mas não os posso ter, eu não tenho nenhum direito a reclamar que, por exemplo, o Estado me pague um ventre de aluguer. O problema dessa inflação de direitos é que, no final, se gera uma inflação de deveres e isso parece-me muito perigoso, porque então, estamos a desvirtuar o que é a sociedade e o Estado para assegurar qualquer capricho de uma pessoa.

    Há quem argumente que ser contra o wokismo é ser contra a igualdade de oportunidades. Como responde a esta crítica?

    Acho que é o contrário. Opormo-nos ao wokismo é, precisamente, garantir igualdade de oportunidades para toda gente, independentemente do seu sexo, da sua raça, do que for. Nos Estados Unidos, a denominada política de identidade consiste em negar a igualdade para criar os novos privilegiados. Estes privilegiados são os grupos vitimizados. São os novos reis, os “aristocratas” que têm, por exemplo, ajudas do Estado, a quem se reservam lugares nas universidades e postos de trabalho. Os opositores do wokismo estão contra esta nova “artistocracia”; são a favor da igualdade de oportunidades para todos. Para grupos, minorias, todos. É um pouco aquilo que disse Martin Luther King, que sonhava com uma sociedade em que a cor da pele não tivesse importância. Eu creio que Martin Luther King, nisto, tinha razão. Hoje em dia, todos os defensores da Teoria Crítica da Raça, dizem que Martin Luther King era racista. Era um racista branco. Porque, afirmam, a sua visão, em defesa de uma sociedade em que ninguém é discriminado pela cor da pele, é, ao fim e ao cabo, consolidar o racismo estrutural branco. Mas eu acho que estão errados, e estou do lado de Martin Luther King.

    Sim, segundo esses teóricos, é possível que um negro demonstre “branquitude”, ao ser bem-sucedido e não se mostrar oprimido, por exemplo. Também alegam que todos os brancos são inerentemente racistas, sem excepção. Trata-se de argumentos circulares e, por isso, de falácias?

    Sim; não são, verdadeiramente, argumentos. Como são circulares, no final, digamos, são apenas dogmas de fé. Face a isso, não pode haver um debate racional, porque qualquer coisa que digas, para eles, demonstra precisamente que és um defensor do racismo estrutural. É igual. Não há debate, porque são afirmações dogmáticas e circulares.

    Cita vários exemplos de “cancelamentos”, nomeadamente sobre transsexualidade, orientação sexual e racismo. Também houve, recentemente, o tema da pandemia, que mereceu muitos cancelamentos e rótulos, a médicos e investigadores reputados. No seu livro, contudo, acaba por não abordar muito esta questão…

    Não sou cientista, por isso, na verdade, nunca me considerei negacionista nem nada, porque não tenho capacidade para julgar. Mas houve de tudo. Houve pessoas que disseram coisas que não se podiam comprovar; mas, depois, havia gente que dizia coisas pelas quais, num certo momento, foram canceladas porque se considerou que o que diziam era uma barbaridade, e que depois se viu que até tinham razão. Portanto, houve esse mecanismo de eliminar o debate com o rótulo de “negacionista”. Algumas pessoas, foram censuradas nas redes socais. E nas televisões públicas de Espanha foram excluídas porque expressaram dúvidas sobre o que dizia o Governo num dado momento. Coisas que, passado um ano, já se podia dizer e estava tudo bem, já não se era considerado negacionista por causa disso. Percebo que há momentos, como os que vivemos com a pandemia, em que havia muita incerteza e ignorância, não sabíamos o que enfrentávamos. Mas, apesar de tudo, há que assumir sempre riscos, é bom que as pessoas possam dar a sua opinião; e que possa haver um debate sobre as medidas, sobre as vacinas, os confinamentos e o seu impacto. Houve, por exemplo, uma pessoa que alertou para os confinamentos, porque poderiam ter um impacto muito negativo entre os adolescentes. E chamaram-no de tudo, disseram que não devia participar nos debates televisivos. E, agora, em Espanha, estamos a viver uma epidemia de suicídios adolescentes como nunca houve. Deveríamos tê-lo tomado em conta. Gostaria de pensar que, no futuro, se tivermos de enfrentar situações parecidas, possa haver mais debate e mais discussão civilizada, e ninguém seja destruído por dizer coisas diferentes das que diz, a cada momento, o Governo e o Ministério da Saúde.

    three wise monkeys

    Este livro tem como subtítulo “para compreender e resistir à cultura do cancelamento”. Como podemos, então, resistir e combater este fenómeno?

    Devemos combatê-lo de todas as formas. Podemos combatê-lo na nossa vida quotidiana, não cedendo, tendo a coragem de falar com naturalidade e dizer o que pensamos. Acredito que isso é muito importante, que cada um de nós possa dizer aquilo que quiser, e que o diga em público sem ter problemas. Se toda a gente fizer isso, é difícil que nos detenham. E, por outro lado, digo sempre, também, que temos de apoiar os meios de comunicação, universidades, políticos e intelectuais que falam abertamente contra o wokismo. Há que apoiá-los, porque pode ser-se corajoso, mas depois quando te atacam, é difícil. Eu já falei com pessoas que me disseram que se sentiam muito sozinhas por terem falado. Portanto, temos de dizer o que pensamos e, sobretudo, apoiar as pessoas com essa coragem. Há quem não tenha muita capacidade de influência, mas aquelas pessoas que têm, e que falam, devem ser apoiadas; escrevendo-lhes e mostrando-lhes o nosso apoio. Creio que tem de haver uma mobilização para que falemos. E, aliás, que se apoiem, por exemplo, os jornais que publicam entrevistas comigo [risos].