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  • ‘Portugal, a partir da descolonização, ficou uma potência europeia de terceira classe’

    ‘Portugal, a partir da descolonização, ficou uma potência europeia de terceira classe’

    O novo romance de Jaime Nogueira Pinto leva-nos até ao fim da Guerra Fria, nos anos 1980, para adentrarmos no empolgante e misterioso mundo dos operacionais da CIA. Os passageiros da Sombra é sobre um grupo de agentes que se vê, inesperadamente, numa delicada operação para descobrir os responsáveis pela morte de um representante da Agência na África do Sul, em pleno conflito entre as forças do MPLA e da UNITA. Aquilo que venham a desvendar poderá mesmo pôr em causa o apoio dos americanos aos rebeldes em Angola. Para montar o enredo, que passa também por cidades como Lisboa, Roma e Paris, o escritor, politólogo e historiador recorreu às suas próprias experiências, misturando-as, no entanto, com uma boa dose de imaginação. Afinal, trata-se de ficção. E é através da ficção, aliás, que prefere dar a conhecer o seu passado, já que se diz supersticioso em relação à escrita de memórias. O livro foi o pretexto para uma conversa com o PÁGINA UM, que desembocou num tema no qual é ‘especialista’: a direita, ou “as direitas”, o momento que atravessam em Portugal e na Europa, e o papel que poderão desempenhar em cenários políticos próximos.


    Para este seu segundo romance, porque optou por um enredo assim, envolvendo espiões da CIA?

    Por várias razões da minha vida, nos anos 1980-90, ainda antes do fim da Guerra Fria, com as questões todas ligadas às lutas em África… Aliás, o meu livro Jogos Africanos tem essas histórias todas que serviram um bocadinho de fundo a isto. E eu confesso que a ficção foi uma coisa que eu demorei muito tempo a arriscar-me a escrever, porque tinha a ideia de que a ficção, ou é, de facto, aqueles grandes escritores, como Tolstói, Dostoiévski, Dickens, Balzac, Scott Fitzgerald, Faulkner, enfim, todos esses “grandes”; ou, então, é estas coisas que às vezes vendem muitos livros, mas que a gente lê meia dúzia de linhas e põe de lado. E não me achava nem tão bom como uns, nem tão mau como outros, portanto, nunca me meti nisso. Mas depois, por circunstâncias da minha vida, de certo modo, precisei de escrever um bocado mais sobre a minha história. E escrevi o Novembro. Enfim, estas coisas da ficção… Enquanto nós, na História, na História das ideias e de Portugal – e eu já publiquei muita coisa sobre a História de Portugal do século XX –, temos um guião, e não temos de o inventar, apenas de dar-lhe forma e às vezes investigar alguns pontos; na ficção, somos livres, temos um poder quase divino porque podemos dar largas à imaginação. E este não é propriamente um livro só de imaginação, mas também, e sobretudo, um livro que tem algum conteúdo histórico internacional de todos aqueles finais da Guerra Fria em África, nomeadamente em Angola. E, portanto, a intriga anda toda muito centrada nisso. E a partir daí, falo de mundos, de pessoas, e lugares que eu conheci, e que para a ficção, reinventei. Como dizia Cervantes, do Dom Quixote, na poesia somos livres. Na História, não; temos de seguir os acontecimentos rigorosamente.

    E, portanto, isto é uma mistura, porque também há História, e há personagens aqui que são históricas. Aliás, algumas personagens são figuras públicas, da política. E que, em dadas alturas, ocupavam certos cargos, ou morreram, e por aí fora. Portanto, isso também é uma espécie de pano de fundo. E depois, a intriga, com aquelas cinco ou seis personagens principais, essas são inventadas por mim. São inspiradas, pelo menos em parte, em pessoas parecidas com aquilo; e em meios, ambientes, perfis…. Mas fui eu que as criei, sou eu que as ponho a falar e a pensar, dando-lhes depois uma coerência interna. Como viu, o sistema da divisão da história é assumindo cada uma dessas personagens, em diferentes momentos, e a pessoa sabe que a partir dali, é como se nós fôssemos essa personagem. Achei que era um material com algum interesse, embora eu já o tivesse tratado em livros anteriores, nomeadamente em Jogos africanos, que é um livro de História que vai desde esse período da Independência de Angola e Moçambique até ao fim da Guerra em Angola; portanto, cobre esses 20 anos.

    Mas as personagens também foram inspiradas em pessoas que conheceu?

    Sim, conheci pessoas assim. Depois, há sempre um “problema” para o autor, que acaba por estar um bocado “metido” nas personagens. É quase impossível desvincularmo-nos. Aliás, é aquela coisa que o Prémio Nobel Orhan Pamuk dizia: a ficção ou o romance têm a vantagem de podermos contar as histórias passadas connosco como se tivessem passado com outros, e as histórias passadas com os outros como se tivessem passado connosco. Eu comecei a escrever este livro há cerca de cinco anos, mas depois pelo meio escrevi e publiquei outras coisas; publiquei a biografia do António Champalimaud, um sobre as pestes na altura da covid-19…

    O Contágios.

    Sim. E escrevi um último chamado Hegemonia – 7 Duelos pelo Poder Global. E, portanto, interrompi a escrita deste livro, e entre o ano passado e este, acabei-o. E pronto, como se costuma dizer, está “a andar”.

    Os seus romances acabam por servir um pouco como “memórias”?

    Sim, eu tenho um bocadinho de superstição com as memórias. E acho que esta forma da ficção, que, aliás, já no Novembro usei, dá alguma defesa também. De certo modo, é uma forma de expormos mais facilmente os nossos pontos de vista sobre algumas coisas e de imaginar situações. E a ficção acaba por ser muito criativa. No fundo, cria mundos; o problema, depois, é encontrar essa coerência interna, com as personagens, que às vezes não é fácil. Mas de um modo geral, as coisas que contei, conheci os sítios, os países, conheci pessoas assim – não quer dizer que correspondam exactamente a estas personagens. As personagens juntam pessoas reais e depois acrescentam-se coisas, bem ou mal, piores ou melhores, porque há essa liberdade. Eu, por exemplo, para esta intriga, arranjei um fim que é completamente ficcionado; não aconteceu nada assim. Quer dizer, o livro começa com o aparecimento de um cadáver de um branco numa zona em que não era suposto aparecer, e depois vem-se a saber que ele era uma espécie de representante de uma agência americana de segurança e espionagem. E isso nunca aconteceu, não houve nenhuma pessoa morta nessas condições [risos]. Portanto, isso é completamente ficcionado.

    Este livro também acaba por reflectir os jogos de poder dos bastidores, com os serviços secretos americanos. No fundo, as decisões que são tomadas nas sombras.

    É; sobretudo, as pessoas aqui têm a noção de que as conclusões a que eles cheguem, no fim, têm de as transmitir aos decisores políticos. No fundo, nesta história, vê-se que toda a equipa do Hector Gordon, a equipa que está a trabalhar neste inquérito, para saber o que se passou e perceber como é que lhes desapareceu o representante… Eles sabem que, depois, a decisão política – neste caso, se continuavam ou não o apoio aos rebeldes –, não vão ser eles que a vão tomar. Eles limitam-se a fazer uma investigação, a dar uma opinião, mas, em último caso, é o poder político que decide.

    Durante este período da Guerra Fria, tinha uma postura crítica sobre a política externa norte-americana?

    Vamos lá ver: é evidente que, na Guerra Fria, as pessoas que gostam de viver em liberdade, melhor ou pior, preferiam que acontecesse o que aconteceu, ou seja, que fossem os Estados Unidos a ganhar a Guerra, e não a União Soviética. Isso é uma motivação forte. Quer dizer, se estivéssemos num mundo dominado pela União Soviética, não era possível estar a escrever um livro com críticas à União Soviética [risos].

    Mas como defensor que sempre foi do Império português…

    Sim, isso está reflectido, mas pronto, desapareceu. Portanto, esse também é um ponto importante. Eu fui defensor de Ultramar e fiz questão de lá servir. Mas isso acabou, não vou ressuscitar o Império português. No livro, há uma personagem, o português da história, o Carlos, que de certo modo, claro, encarna alguns pontos de vista meus; alguns pontos de vista até críticos do anterior regime, e de várias coisas… Depois, há um luso-americano, o Frank, mas a personagem portuguesa é o Carlos, que é um conservador que esteve na Guerra do Ultramar, e que depois é apanhado nesta missão toda; está numa “prateleira”, num banco onde está bem, mas não tem nada que fazer. E também teve um problema na sua vida pessoal, portanto, está disponível para se meter nesta aventura. Depois, os outros são americanos, a maioria das personagens.

    E, por exemplo, no livro, quando Carlos critica o “discurso dominante” para o qual diz que os americanos contribuíram, com a exaltação do bloco central, e a “mediocridade” que aponta a esse paradigma… Isto reflecte o seu sentimento pessoal?

    Sim, nós sentimos isso, eu tenho isso até muito tratado, em ficção, no Novembro. A seguir ao 25 de Novembro, quer a Europa quer os Estados Unidos, o que queriam em Portugal era o que aqui está já há 50 anos: o bloco central. Não queriam outra coisa. Não queriam radicalismos, nem uma coisa que fosse para a direita nem para a esquerda, mas exactamente o bloco central, muito representado neste livro pelo doutor Mário Soares.

    E a sua discordância desse sistema não o fez ressentir os Estados Unidos?

    Quer dizer, para os interesses dos Estados Unidos, naturalmente, isso funciona, para o interesse dos portugueses não [risos]. Mas quem tinha o poder… Até porque Portugal, a partir da descolonização, fica uma potência europeia de terceira classe; nem é de segunda, é mesmo terceira classe. Portanto, já não tem capacidade para ter grandes independências nesse sentido. Na Guerra Fria, o dilema era entre os soviéticos e esta solução. Aos soviéticos, de facto, também não lhes interessava muito ter aqui uma espécie de Cuba na península, mas isso foi uma coisa que eu tratei longamente em ficção no Novembro. O Novembro é muito isso, mas aí as personagens são praticamente todas portuguesas. Mas há aqui uma referência, quando o Hector Gordon conheceu o Carlos, exactamente nessa altura em que ele esteve a servir em Espanha, onde coordenava as operações da Agência para Portugal. Foi uma altura em que houve aqui uma intervenção grande dos soviéticos, e dos americanos também; e, depois de outros países europeus, dos franceses, dos alemães. Portanto, andaram aqui muito em cima; a ajudar uns e a contrariar outros, mas foi uma altura muito internacionalizada.

    Agora, aliás, faleceu, Henry Kissinger, uma figura incontornável desta altura, e não só, e que também surge no livro…

    Certo. Eu estive com ele duas vezes em reuniões grandes, mas conheci bem foi o seu mentor, o Dr. Fritz Kraemer, nos anos 1980. É engraçado, escrevi também uma crónica no Observador sobre ele. É um personagem muito interessante, e foi o homem que, de certo modo, descobriu o Kissinger. Como sabe, o Kissinger era judeu alemão e foi com a família em 1938 para os Estados Unidos. E depois, durante a guerra, naturalizou-se americano, alistou-se no exército americano, e veio combater para a Europa. E o Fritz Kraemer, que também teve o mesmo percurso, também era judeu luterano, foi para os Estados Unidos em 1939. O Kraemer era superior do Kissinger, era mais velho, e disse, aliás, uma coisa muito engraçada sobre ele. Quando o conheceu – na altura o Kissinger tinha 19 anos e o Kraemer 36 –, disse que ele ainda não sabia nada e já percebia de tudo. É uma frase gira. E quando o Kraemer morreu, estavam de relações cortadas, mas o Kissinger fez-lhe uma grande homenagem.

    A opinião que tem do Kissinger é mais favorável ou desfavorável?

    É favorável, é um realista político, um teórico do realismo político. Talvez o livro mais interessante dele seja a sua tese de doutoramento, em que ele escreve sobre o Congresso de Viena: chama-se A world restored. E ele presta uma grande homenagem ao Metternich, naquele sentido de Estado. Portanto, no fundo, é um realista político. E tinha, digamos, a ‘carga’ e a tradição alemã, embora ele tivesse saído da Alemanha muito novo, com 15 anos, quando foi para os Estados Unidos com os pais e com o irmão. O Nixon ficou muito impressionado com um livro dele chamado Poder Nuclear e Política Externa, um dos primeiros livros do Kissinger. E o Nixon quis conhecê-lo, e depois quando foi para presidente, chamou-o para National Security Adviser. E já em 1973, passou a secretário de Estado. E serviu também com o Gerald Ford, que era o vice-presidente do Nixon, depois do Watergate; e foi quem ficou quando o Nixon saiu. O Kissinger teve coisas fundamentais, bem-sucedidas, como por exemplo aquela abertura à China. Depois teve também coisas mal-sucedidas, como os acordos de Paris e do Vietname. Passado um ano ou dois dos acordos, os norte-vietnamitas invadiram e conquistaram tudo, portanto… Ele teve êxito nalgumas coisas, noutras não teve, mas tinha de facto uma grande capacidade pensante. Isso também é importante, e actualmente não me parece que exista muito.

    Mas merecia, por exemplo, ter recebido o Nobel da Paz, como recebeu?

    Ele ganhou o Nobel da Paz, mas não só a guerra continuou, como os americanos perderam. Recebeu-o juntamente com o colega dele norte-vietnamita, só que os norte-vietnamitas ganharam a guerra pouco tempo depois. Enfim, eu pensei sempre que este era um mundo bastante interessante, e que eu por várias razões tive oportunidade de conhecer bem.

    Agora estou a escrever um livro sobre os valores europeus, e é uma espécie de cartilha, ao longo da história, da literatura, da política; tenho um guião, não vou inventar. A ficção, claro que também parte sempre da nossa experiência do mundo, quer aquela que é directa, como aquela que é a experiência dos outros, através da leitura, do cinema, do teatro, através de tudo.

    Falemos agora da direita, e do momento que atravessa, começando pela Europa.   

    Hoje, na Europa, há fundamentalmente duas famílias de direita. Ambas são nacionalistas, no sentido em que o valor nação e a independência nacional são denominadores comuns de todas as direitas. E, portanto, até em contraponto com uma certa tendência ou vocação “federalizante” da União Europeia. Esse aspecto nacional é importante. E, depois, acho que há essencialmente duas linhas bastante marcadas nessas direitas. Uma que eu chamaria nacional conservadora, e está mais ligada a valores religiosos, o conceito de família, e é mais tradicionalista. É, por exemplo, o caso dos polacos, que estão muito nessa linha. Portanto, têm muito essa preocupação com esses valores de família, a não permissão do aborto, e da eutanásia, o casamento ser entre um homem e uma mulher, e não ser dois homens ou duas mulheres. Essas coisas tradicionais.

    E depois, há uma direita mais popular, ou populista, se quiser, que está mais preocupada, por exemplo, com questões de imigração e de segurança. É uma direita que eu vejo muito aparecer com estes partidos que têm ganho agora eleições, como o Partido da Liberdade na Holanda, do Geert Wilders, os democratas suecos, ou até mesmo o Rassemblement National, da Le Pen. Esta direita não está muito preocupada com as questões mais tradicionais. Para mim, são estas duas as famílias significativas que aparecem. A grande diferença destas direitas em relação às direitas tradicionais, é que as direitas tradicionais eram muito cépticas e críticas da democracia partidária. E estas não são, pelo contrário. Estas, estão muito preocupadas em dizer que são elas, essencialmente, que representam o povo e o voto popular.

    Mas são acusadas de fascismo.

    Ah, isso os inimigos chamam-lhes de tudo. Mas a direita já há muito tempo que faz parte de governos, nomeadamente na Hungria e na Polónia, e nunca acabou com as eleições. Tanto que na Polónia, agora, perderam as eleições e vão sair. Portanto, isso é uma treta. Os movimentos fascistas tinham a preocupação exactamente de dizer que eram contra a democracia, porque a democracia não era uma expressão da vontade popular, mas sim de grupos de interesses, de oligarquias, e das oligarquias do poder. E as de hoje não, e têm cumprido. Nos Estados Unidos, o Trump esteve quatro anos no poder e não acabou com a democracia. Perderam as eleições e saíram. Podem ter protestado, enfim, alegadamente, que houve fraude, mas na hora de sair, saíram. Portanto, não me parece que essa agenda anti-democrática esteja de pé.

    Quais considera serem os principais factores que explicam este crescimento da direita?

    Este crescimento da direita tem essencialmente a ver com o facto de os partidos tradicionais, e até os partidos conservadores tradicionais, incluindo os democratas-cristãos, não se terem adaptado nem encontrado respostas para problemas novos. E, na Europa, há dois problemas muito fortes – um deles é a desindustrialização, com o fim da Guerra Fria, e a migração praticamente das indústrias todas para fora da Europa, algo que se deu em quase todos os países, com a Alemanha a ser uma das excepções, porque ainda guardou uma certa capacidade industrial, nomeadamente no ramo automóvel. Mas de um modo geral, o aparecimento e o sucesso de novos partidos repousa essencialmente, sobretudo hoje, que não há propriamente grandes influências internacionais… Não há União Soviética, e os Estados Unidos continuam a existir, mas não estão propriamente a fazer partidos onde não faz sentido existirem. Portanto, a força dos novos partidos resulta essencialmente de um vazio criado anteriormente. E aqui em Portugal, lá está, as pessoas também estão um bocado fartas do centrão. Quer dizer, já há 50 anos que o poder tem sido ou dos socialistas, ou do PSD, e a situação também não é brilhante. Se formos ver, há 50 anos, a ordem, até do ponto de vista económico… Nós hoje estamos muito mais para trás. Já fomos ultrapassados por quase todos os países que estavam no âmbito soviético. Portanto, não podemos dizer que toda esta governação tenha sido brilhante. Assim, não é de estranhar que surjam novas forças. Aliás, embora nós não tenhamos em Portugal, pelo menos por enquanto, aqueles problemas que na Europa geraram essa grande força dos novos partidos, como o problema de uma imigração massiva.

    Mesmo assim, a imigração não pára de aumentar…

    Começa a estar um bocadinho, mas ainda estamos muito longe disso. Não temos os problemas de uma imigração, culturalmente, de difícil integração, como a França tem, ou os suecos têm. Não temos isso, e também não temos um problema, por exemplo, de separatismo como tem a Espanha, que dá origem ao Vox. O Vox é exactamente uma resposta dos espanhóis, digamos, “zangados” com o separatismo catalão e achando que o Partido Popular não está a defender capazmente essa unidade da Espanha.

    E em Portugal, o Chega surgiu também como uma forma de a direita se afirmar, depois de décadas de “timidez”?

    É curioso, porque o partido Vox em Espanha nasceu essencialmente de políticos e quadros médios do Partido Popular, e que saíram por não estarem contentes. E aqui, o doutor Ventura vem do PSD. Nestas coisas da política, vai-se também buscar exactamente onde há vazios e, de facto, em Portugal havia um vazio à direita muito grande, que vinha já desde há quase 50 anos. Portanto, nesse aspecto o Chega foi pegar numa série de questões… Enfim, também são partidos de protesto. Às vezes, pode até nem ser tanto o que eles significam do ponto de vista do que querem fazer, mas que aparecem como protesto ao que está. E, portanto, à medida que a situação se agrava, normalmente esses partidos também vão crescendo. É natural, é o que está a acontecer na Europa toda.

    Mas acha que as propostas que apresentam podem realmente solucionar os problemas?

    As propostas são mais ou menos todas iguais. Se for ver o que os partidos dizem que vão fazer, a parte técnica de soluções é mais ou menos igual. O que interessa aqui, acima de tudo, para fazer a distinção da política, são os valores e princípios políticos. Portanto, por exemplo, se é mais partidário da independência nacional ou é mais europeísta, ou se aceita a eutanásia ou se é contra. São essas questões, umas de costumes, outras de política. Porque hoje, há duas coisas que não estão muito em questão, e uma delas é o modelo democrático. Aliás, é muito engraçado, porque os partidos de esquerda, o Bloco e o Partido Comunista, cujas ideias já foram várias vezes postas em prática, não têm essas acusações. Quer dizer, o comunismo teve 70 anos na União Soviética, e não fez grande coisa. Mas aparecem, de certo modo, como se nunca tivessem sido experimentadas. E os partidos que aparecem à direita com alguma radicalidade são imediatamente acusados de fascistas ou de nazis, ou reacionários, extrema-direita. É engraçado, porque não há direita, só extrema-direita, passa-se do centro para a extrema-direita…

    [risos] E parece-lhe que essa retórica, que tem predominado, vai acabar?

    Já acabou. E como vamos ter no próximo ano o aniversário dos 50 anos do 25 de Abril numa situação pós-eleitoral que deve ser relativamente complicada, pode ser uma situação interessante.

    Tem algum palpite em relação ao resultado das legislativas?

    Eu não tenho muitos palpites [risos]. Não, não tenho. Essas sondagens que aparecem valem o que valem, mas não me parece também que sejam absurdas. Ter os dois partidos principais, PSD e PS, mais ou menos empatados, haver uma subida forte do Chega e uma quebra do Partido Comunista, uma manutenção, mais ou menos, dos outros… Parece-me relativamente normal que sejam essas as posições.

    Se Portugal seguisse a tendência da Europa, o Chega talvez acabasse por formar governo… 

    Não sei não, porque na Europa, governos dessa linha da direita só há na Itália, na Hungria… Na Holanda ainda não fizeram Governo, mas é natural que consigam também, têm 37 deputados mais ou menos.  

    E na Alemanha, a direita também está a crescer…

    Sim, na Alemanha o AfD também subiu bastante. O que vamos assistir é uma coisa muito interessante, que é: fora da esquerda, não se poderá fazer governos sem esses partidos de direita entrarem ou a apoiarem. Essa é que será a situação. Não quer dizer que eles sejam Governo, mas não se vai governar sem eles, e isso é um ponto interessante. Essa é que é será a novidade.

    As fotografias são da autoria de Rui Ochoa

  • ‘Precisamos de uma solução política! Uma solução de dois Estados’

    ‘Precisamos de uma solução política! Uma solução de dois Estados’

    Yehuda Shaul é, aos 41 anos, uma das vozes críticas mais reconhecidas da sociedade israelita. Como soldado e comandante, passou uma parte da segunda intifada palestiniana na Cisjordânia ocupada e ficou a conhecer o funcionamento interno das forças de ocupação israelitas e o cerne do conflito israelo-palestiniano. Juntamente com alguns colegas que partilham as mesmas ideias, fundou a organização não-governamental Breaking the Silence (BTS) em 2005 e começou a sensibilizar o público israelita e internacional para a ocupação israelita dos territórios palestinianos e para a realidade de viver em enclaves palestinianos. Em 2020, juntamente com Dana Golan (também da BTS), fundou o Ofek: The Israeli Center for Public Affairs, que defende uma solução política para a questão israelo-palestiniana. Na sua opinião, a única solução é uma solução de dois Estados. A criação de um Estado palestiniano independente ao lado de Israel. A voz de Shaul é ainda mais importante no rescaldo das atrocidades cometidas pelo Hamas, seguindo-se a brutal operação militar israelita na Faixa de Gaza e a quase unanimidade da violência.


    Qual é o clima actual em Israel? Como pode alguém que pensa diferente da linha dura do poder operar nestas semanas caóticas e trágicas?

    Quando a sociedade experiencia o trauma do horrível massacre perpetrado pelo Hamas no sul de Israel, uma pessoa – e a sociedade como um todo – pode reagir de duas maneiras. A primeira maneira é um desejo de vingança movido pela raiva e zanga. A segunda é uma resposta impulsionada pela humanidade e compaixão. Infelizmente, os corações da maioria dos israelitas nos dias de hoje estão cheios de raiva e vingança.

    Na nossa organização, tentamos falar e agir de forma sensata. É claro que a nossa voz está agora marginalizada. Mas temos de ser activos, barulhentos. A política não deve ser feita quando o sangue está a ferver. A política não deve ser movida pela emoção. A política deve ser clara, ponderada e coerente. São tempos muito difíceis. Só posso esperar que, quando a poeira assentar no dia seguinte ao fim da guerra, haja muitas perguntas difíceis a fazer.

    Yehuda Shaul (Foto: Quiqe Kierszenbaum)

    O que aconteceu no sul de Israel é um resultado directo da política de quinze anos de Benjamin Netanyahu. Esta baseava-se na procura de uma cisão entre os palestinianos, no enfraquecimento da Autoridade Palestiniana (AP) e no reforço do Hamas, e o seu objectivo era impedir a criação de um Estado palestiniano e uma solução diplomática para o conflito. Netanyahu estava ocupado a alimentar o monstro, e o monstro veio até nós e mordeu-nos.

    Espero vivamente que, depois de feitas as perguntas difíceis, as pessoas vão deixar de ignorar que existe apenas uma solução político-diplomática para o conflito israelo-palestiniano. Uma solução que aborde as causas profundas da violência. 75 anos de deslocação palestiniana. 56 anos de ocupação. 16 anos de cerco à Faixa de Gaza. Ao mesmo tempo, sublinho que nada, absolutamente nada, pode justificar o terrível massacre que o Hamas levou a cabo no sul do país. Mas acho que o contexto é importante. Explicar, não entender. Temos de dar um passo em frente. A menos que abordemos os factores subjacentes ao conflito que enumerei, não seremos capazes de parar a violência.

    Se os líderes europeus e mundiais se preocupam com a paz nos territórios judaicos e palestinianos, têm de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para encontrar uma solução viável que aborde as causas profundas do conflito. No centro da solução está a criação de um Estado palestiniano soberano que existirá ao lado de Israel. Esta é a única saída possível. Tudo o resto são apenas palavras, declarações…

    Soldados israelitas numa operação em Gaza. (D.R.)

    Considera que existe um interesse sério em algo deste tipo na chamada comunidade internacional?

    Considero encorajador que tanto Washington como Bruxelas estejam a falar de uma solução assente na coexistência de dois Estados. Mas aprendemos que as palavras não chegam.

    Há alguma consideração sobre como deve ser o dia seguinte à guerra na sociedade – e na política – israelitas, neste preciso momento?

    A ideia de que utilizaremos a violência para erradicar o Hamas, que actualmente domina Israel, é extremamente problemática. Não porque o Hamas não deva ser erradicado, mas porque não acredito que se possa matar uma ideia pela força. A única forma de derrotar verdadeiramente o Hamas é devolver a esperança aos palestinianos. Isto só é possível através da criação de um Estado palestiniano e, como disse anteriormente, eliminando as causas profundas da violência. É claro que isso também não matará a ideia, mas ela será muito enfraquecida.

    a person wearing a hat
    (Foto: Levi Meir Clancy)

    Mas para algo tão copernicano, teria de haver uma enorme mudança política e social em Israel. E não só em Israel?

    Seria uma mudança drástica; um evento drástico. Não esqueçamos que o actual governo israelita não é o único culpado pela situação actual. Muitos governos israelitas impediram continuamente a criação de um Estado palestiniano durante muitos anos. Esta foi a razão de ser de parte da política de Israel. O único governo israelita que realmente trabalhou para a criação de um Estado palestiniano independente foi o segundo governo de Yitzhak Rabin (1992-1995), que foi assassinado.

    O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um evento drástico. Tivemos de lhe responder de forma drástica. Não há saída fácil para a situação actual. Mas Israel já experienciou uma surpresa semelhante na sua história, uma situação drástica semelhante, quando o seu próprio conceito explode no seu rosto. Esta foi a Guerra do Yom Kippur em outubro de 1973. Alguns elementos desta guerra levaram a um acordo de paz entre Israel e o Egito alguns anos mais tarde (1979).

    A ideia de que se pode gerir conflitos é equivocada. A ideia de que na normalização da situação na região – por exemplo, nos acordos com os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita – se pode deixar os palestinianos irem embora, também. O conflito tem de ser resolvido e não gerido. A única forma moral e pacífica de resolver o conflito é, como já foi dito, a criação de um Estado palestiniano. Eu e as pessoas que pensam da mesma forma faremos de tudo para que esta ideia volte a ganhar força. Penso que, após o fim da guerra, os protestos antigovernamentais que tiveram lugar em toda a Israel durante vários meses antes de 7 de outubro devido à reforma do sistema judicial, serão muito, muito mais massivos. Isso será algo que Israel nunca teve antes. Estas questões terão também de fazer parte de um debate mais alargado.

    Que questões – a par da necessidade de estabelecer um Estado palestiniano?

    Digamos – como é possível que na manhã de 7 de outubro houvesse 23 batalhões do exército israelita na Cisjordânia, mas apenas três na fronteira com Gaza? Isto mostra claramente quais eram as prioridades deste governo. E países. Ao mesmo tempo, o conceito não só deste governo ruiu, que se baseava na ideia de que, com superioridade militar e tecnológica, se pode ficar no pescoço de milhões de pessoas para sempre e negar-lhes direitos e dignidade e, desta forma, alcançar a paz e a estabilidade. Não, não, não… Não funciona assim. Algo assim nunca funcionou na história. Toda a ideia israelita – conceito político, estratégia – de enfraquecer a Autoridade Palestiniana e fortalecer o Hamas explodiu a 7 de outubro.

    Esta estratégia baseava-se na ocupação permanente e na fragmentação dos palestinianos – política e territorial. Israel criou enclaves palestinianos desconexos onde manteve a supremacia. Israel espremeu a crescente demografia palestiniana para uma geografia cada vez menor. Esta não é uma receita para a estabilidade. Esta é uma receita para a instabilidade. Devemos acrescentar também o projeto colonial dos colonos judeus na Cisjordânia, que está em constante expansão. Isso criou ainda mais pressão sobre os enclaves palestinos, trouxe ainda mais instabilidade. Por conseguinte, espero sinceramente que compreendamos que a única solução para o conflito só pode ser política.

    Durante as sete semanas de bombardeamentos brutais de Gaza, poder-se-ia ter a sensação de que o Estado israelita – o mesmo se aplica ao exército – está, pela primeira vez na história, disposto a sacrificar muitas vidas civis israelitas para atingir o seu objectivo – estou a falar dos quase 240 reféns que se encontram em Gaza? (A conversa teve lugar pouco antes de se chegar a um acordo sobre a troca de reféns israelitas por prisioneiros palestinianos) Ao mesmo tempo, a política israelita está extremamente radicalizada. Então, onde e como procurar soluções?

    Se até agora a comunidade internacional não estava interessada em pôr fim ao conflito israelo-palestiniano, porque não lidava muito com a moralidade e o respeito pelo direito humanitário internacional, espero sinceramente que agora seja diferente. Para o mundo ver os perigos desta parte do mundo e deste conflito. Que está ciente de que este conflito pode muito rapidamente transformar-se numa guerra regional. E que, por conseguinte, existe vontade política suficiente nos Estados Unidos e na União Europeia para fazer o que é necessário fazer.

    A prioridade para nós deve ser o regresso dos reféns. Mas receio que esta não seja a primeira prioridade do Governo israelita. O Estado falhou moralmente com as pessoas que vivem nos locais próximos da fronteira com a Faixa de Gaza e, por conseguinte, tem de fazer tudo para devolver as pessoas raptadas a casa com vida. Tudo o resto deve ser secundário, neste momento. A única vitória israelita nesta guerra só é possível sob a forma do regresso dos reféns.

    pray, peace, israel
    (Foto: Heather Truett)

    Isso exigiria muita coragem política?

    Logo se vê. Alguma coisa está a acontecer.

    Uma ligeira digressão. Qual foi a primeira coisa que sentiu e pensou na manhã de 7 de outubro? Como percebeu as atrocidades cometidas pelo Hamas e o facto de algo tão inimaginável poder acontecer à sociedade israelita?

    Você não vai acreditar, mas eu não estava em Israel. Eu estava a caminhar nos Himalaias, no Nepal. Vi a notícia e regressei imediatamente. Em três dias eu já estava em Israel. Nos dias seguintes, fiquei horrorizado a assistir a imagens dos kibutzim e dos locais atacados no sul de Israel. O nível de brutalidade e desumanização paralisou-me… Depois soube que dois membros do movimento BTS também tinham sido mortos em confrontos com o Hamas. Um deles era meu grande amigo. Durante sete horas, como parte das unidades de proteção locais no kibutz, ele persistiu na luta contra os agressores. Até que ficou sem munições. Eu nem consigo imaginar o que eles tiveram de passar. Seguiram-se funerais, luto, visitas familiares, … Tudo o que isso significa. Foi uma semana terrível. Demorei algum tempo até começar a funcionar.

    Soldados israelitas numa operação em Gaza (D.R.)

    Esperava, intimamente, uma resposta tão brutal das autoridades israelitas sob a forma de punição colectiva dos palestinianos em Gaza?

    O sangue em Israel ferveu e ainda está a ferver. Como nunca antes na minha vida. E, provavelmente, nunca antes. Deve ficar claro que Israel tem o direito de se defender. E não só o direito – também tem a obrigação de se defender. Mas, ao defender-se, é importante respeitar o Direito Internacional Humanitário. O Direito Internacional Humanitário não foi escrito para tempos de paz. Foi escrito para um tempo de guerra, de conflito; para o momento em que o sangue ferve. Um cerco negando o acesso à água potável, por exemplo, é ilegal. As imagens que saem de Gaza criam muitas dúvidas e lançam uma grande sombra sobre o respeito de Israel pelo Direito Humanitário Internacional. Ainda não sabemos quais são as regras de combate. Levará algum tempo a saber o que está a acontecer, a medi-lo e a avaliá-lo. Mas o que vemos, sem dúvida, lança uma grande sombra.

    É um soldado experiente, foi comandante na Cisjordânia durante a segunda intifada. Conhece todos os detalhes do exército israelense e sua doutrina. O que vê em Gaza? Quais poderiam ser os objetivos do exército israelita?

    Precisamente porque esta é a minha profissão, prefiro não especular muito até saber todos os pormenores. Não é a primeira vez que o exército israelita invade Gaza. Lembremo-nos das operações militares em 2008/2009, 2012, 2014, … Até agora, é óbvio que o exército israelita continua com a doutrina do risco zero para os seus soldados. E a qualquer custo. Assistimos a um enorme uso da força para reduzir as perdas do lado israelita, o que transfere a ameaça para o lado palestiniano. Isso significa bombardeamento aéreo em massa com o objectivo de suavizar o terreno, uso maciço de artilharia, morteiros, bombardeamento em massa com tanques, … Foi assim que se combateu no antigo e convencional campo de batalha. Digamos, em outubro de 1973, no meio da Península do Sinai, com o exército egípcio. Mas não no meio de uma das áreas mais povoadas do mundo. Mais cedo, o exército israelita alertou as pessoas para deixarem suas casas – deu-lhes um ultimato. Mas depois transformou bairros e cidades inteiras em campos de batalha da velha escola. Agora é ainda mais explícito. Dizem às pessoas que quem ficar será tratado como colaborador de terroristas; como suspeitos.

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    Estará o Governo israelita – pela primeira vez desde 2005 – a planear recuperar o controlo da Faixa de Gaza? Muitas vozes no gabinete do governo já expressaram claramente essa intenção. Isso significaria uma nova Nakba para os palestinos?

    Sabemos com certeza que há elementos no nosso governo para quem recuperar o controlo de Gaza é uma missão de vida. Há indivíduos messiânicos e extremistas no governo que não estavam satisfeitos com o status quo. Queriam o caos. Porque você pode implementar políticas ainda mais radicais dentro do caos. É triste dizer, mas para eles, o horrível ataque do Hamas pode até ter sido visto como uma oportunidade de atacar com força total e implementar sua agenda messiânica. A sua retórica, as suas reações e as suas opiniões são verdadeiramente incríveis.

    Mas não esqueçamos que Israel não estava segura mesmo antes de 2005, quando Gaza estava sob o nosso controlo. Atacantes suicidas chegavam a Israel vindos de Gaza – inclusive através dos túneis. Milhares de rockets voaram contra Israel. Muitos soldados israelitas morreram em Gaza antes de 2005 devido a bombas colocadas pelo Hamas. Quero dizer: este não é o caminho a seguir. Precisamos de uma solução política! Uma solução de dois Estados. E espero que a comunidade internacional faça tudo para impedir que se mate esta ideia, de que Israel precisa de recuperar o controlo de Gaza.

    Path to Peace graffiti
    (Foto: Cole Keister)

    Outra coisa de que se fala muito na política israelita é a possibilidade de uma reinstalação forçada de palestinianos de Gaza noo Sinai. Fazer isso realmente causaria a segunda nakba [catástrofe]. Para alguns membros do governo, esta é a direcção que querem seguir. De uma vez por todas, a chave é que os líderes mundiais matem esta ideia criminosa. E o mais rápido possível. Não devem permitir isso.

    O que essas pessoas estão a pensar? A primeira Nakba palestiniana de 1948 trouxe-nos paz e estabilidade? Não! Foi – e continua a ser – parte das razões subjacentes ao conflito. Até por tudo o que está a acontecer hoje. Por que diabos eles pensam que, se fizermos isso novamente, será diferente desta vez? Não é apenas uma ideia criminosa, é ilegal, é uma ideia estúpida.

    Quão forte é a sociedade civil israelita neste momento? Pode ser levantado? E – podem os familiares dos raptados, que têm sido os opositores mais vocais de Benjamin Netanyahu e do seu governo de extrema-direita durante várias semanas, tornar-se uma força política, uma força de mudança?

    Antes de 7 de outubro, vimos a ressurreição da sociedade civil israelita. Espero que esta energia seja agora redirecionada primeiro para trazer os nossos irmãos e irmãs para casa, o mais rapidamente possível. Ainda não chegámos lá, mas a sociedade civil israelita está a ganhar ímpeto ao apoiar as famílias dos raptados. Espero que isso obrigue o governo a fazer do resgate dos reféns uma prioridade.

    man waving flag
    (Foto: Ahmed Abu Hameeda)

    Acha que Netanyahu, o grande maquiavélico, tem, no entanto, a capacidade de fazer sacrifícios políticos – em nome da resolução desta enorme crise? Ou será que já não é capaz de agir racionalmente?

    Quanto à culpabilidade do nosso governo pelo que aconteceu a 7 de outubro, por todos os erros, não há dúvida de que recai primeiro sobre Benjamin Netanyahu. Isto não justifica de forma alguma o horrível ataque do Hamas – o assassínio em massa de crianças, mulheres, idosos, famílias inteiras… Do lado israelita, sim, a culpa foi de Netanyahu. Espero que tenhamos um novo governo o mais rapidamente possível, que procure uma solução diplomática.

    Passou a maior parte da sua carreira militar na Cisjordânia ocupada, onde a situação – à sombra do que está a acontecer em Gaza – está a piorar de dia para dia. O pior desde o final da segunda intifada. O que vai acontecer?

    Alguns elementos do movimento migratório estão a fazer tudo para abrir uma nova frente na Cisjordânia. Como se Gaza e a ameaça de abrir uma frente norte com o Hezbollah não bastassem. A violência dos imigrantes está a aumentar. Os ataques a aldeias palestinianas estão a aumentar. Segundo as Nações Unidas, até 7 de outubro, houve uma média de três ataques de imigrantes contra palestinos todos os dias na Cisjordânia. Agora, a média já é de seis ataques por dia. O número de ataques está a aumentar principalmente na chamada Área C, que representa 60% da Cisjordânia e está sob controlo israelita. Há uma deslocação forçada maciça de palestinianos das suas terras. Há décadas que não víamos nada assim na Cisjordânia. São comunidades que sobreviveram à segunda intifada, mas não conseguem sobreviver à violência dos colonos.

    Por vezes, os soldados israelitas ficavam de braços cruzados quando os colonos atacavam os palestinianos. Não fizeram nada para parar a violência. Nos últimos dois ou três anos, houve alguns casos em que soldados se juntaram a colonos em ataques contra palestinianos. Hoje, os colonos na Cisjordânia são o exército israelita e o exército israelita na Cisjordânia são – os colonos. Porquê? Porque estamos em guerra. Recrutas e soldados profissionais estão estacionados nas linhas de frente – ao longo e em Gaza e na fronteira norte com o Líbano. É por isso que agora há agora principalmente reservistas na Cisjordânia. Muitos deles vêm de unidades chamadas “defesa regional”. Estas são unidades de reserva compostas por colonos locais! Os mesmos bandidos de rua que atacaram os palestinianos e os expulsaram da sua terra há dois meses estão agora fardados, em pleno equipamento de combate e com toda a força. Não há mais zona tampão.

    Quanto espaço público, está atualmente disponível para pessoas que pensam diferente em Israel?

    Permitam-me que comece por dizer que há muitas detenções de cidadãos árabes de Israel, para as quais não existe uma razão única. Quanto a nós, defensores dos direitos humanos e ativistas, permitam-me que diga que alguns dos meus amigos já não vivem em casa. Alguns chegaram mesmo a deslocar-se ao estrangeiro nas últimas semanas. Grupos de direita começaram a publicar os nossos endereços online e pediram ataques. Bandos de fascistas…

  • ‘Todos os romances são um bocado autobiográficos’

    ‘Todos os romances são um bocado autobiográficos’

    Pode dizer-se que o Jornalismo e a Literatura lhe está no sangue e no ar que respira: filho da premiada escritora e jornalista Helena Marques, e do jornalista Rui Camacho, e irmão de Paulo Camacho (antigo pivot da SIC), e de Pedro Camacho, que foi director da Lusa e da Visão. Fazendo assim jus ao provérbio “filho de peixe sabe nadar”, Francisco Camacho também teve uma auspiciosa carreira como jornalista, passando por cargos de chefia n’O Independente, Grande Reportagem, Sábado e jornal I, do qual foi cofundador. Mas em 2010 trocou os jornais pelos livros e tornou-se editor no grupo LeYa o que não surpreende, já que a sua paixão sempre foram as letras. Como confessa, só enveredou pelo jornalismo porque era foi a única forma que encontrou de ser pago para contar histórias. E é isso que continua agora fazer, através dos romances. Vai agora noseu terceiro romance, depois de um interregno de 10 anos. A pretexto de O monte do silêncio, escrito num estilo de thriller psicológico, o PÁGINA UM fala com Francisco Camacho numa entrevista onde inevitavelmente, se aborda o seu passado jornalístico e a sua visão sobre o estado actual da comunicação social portuguesa.


    O monte do silêncio é o teu terceiro romance e chega com uma década de distância desde o último; um intervalo ainda maior do que os sete anos que separam a publicação dos teus dois primeiros livros. Foi por falta de tempo ou de inspiração?

    Sim; eu larguei o jornalismo em 2010, e quando tive o convite para ser editor na LeYa, já tinha publicado o Niassa em 2007. E em 2010 já estava com vontade de escrever outro livro. E na altura pensei: agora que vou trabalhar no mundo dos livros, vou-me sentir mais estimulado para escrever o próximo.

    E não foi assim?

    Aconteceu-me o contrário. A verdade é que eu também não sou aquele autor que tem uma necessidade absolutamente compulsiva de escrever livros. Gosto de viver, sobretudo, e se possível, nos intervalos, escrevo.

    Mas já chegaste a dizer que sempre quiseste ser escritor e que só foste para jornalismo porque era uma profissão em que eras pago para escrever.

    Sim, mas é impossível, na verdade, porque há muito pouca gente que vive da escrita em Portugal; se é que há alguém que vive. Mas, nessa altura em que comecei a trabalhar como editor, estava tão rodeado de livros e de vozes de autores, que se tornou muito mais difícil escrever o segundo livro, A Última Canção da Noite. Acabei por escrevê-lo em 2013, ou seja, três anos depois de começar na edição. E, depois, este hiato gigantesco de 10 anos também se deve um bocado a isso; porque, às tantas, estás tão dentro das vozes dos autores que editas, que tens mais dificuldade em encontrar a tua própria voz. Por outro lado, há uma coisa muito mais prosaica: estás o dia todo agarrado ao computador a ler manuscritos, e a última coisa que te apetece quando chegas a casa, que é o tempo que tens para escrever os teus próprios livros, é sentares-te ao computador a escrever mais ainda. Portanto, isto demorou algum tempo, mas fui fazendo esse trabalho vagaroso de escrever o terceiro romance.

    Para o Niassa, utilizaste muita da tua bagagem e experiência jornalísticas. Depois, o segundo livro já foi menos inspirado em histórias verídicas. Este, que conta uma história mais “mundana” sobre um jovem atormentado, é o mais ficcionado dos três?

    Eu fiz três exercícios diferentes, mas todos muito conscientes. O primeiro é nitidamente um livro muito inspirado em reportagens que eu tinha feito em África, nomeadamente uma em particular, e é escrito na primeira pessoa. Com o segundo, quis fazer um romance na terceira pessoa; submeter-me a esse teste. E de todos, talvez seja o mais ficcionado, no sentido em que é menos assente na minha experiência de vida. Este, é um pouco um livro que acumula uma série de vivências que eu fui tendo desde muito novo, mas que evidentemente, muitas dessas experiências são ficcionadas. Mas acho que é o que tem mais de mim; não tem nada de jornalismo… Quer dizer, tem sempre, porque na verdade, há algumas passagens que eu só saberia escrever pela experiência que tive em termos jornalísticos. Nomeadamente, uma parte sobre um bairro muito pobre em Lisboa, Marvila, vem de uma reportagem que eu fiz para a Grande Reportagem. E essa veracidade que eu acho que consigo transmitir, vem do facto de eu ter estado lá. Portanto, o jornalismo está sempre presente; acho que vai estando cada vez menos, mas está sempre. Eu sou de um tempo em que… Esta frase até me custa dizer, porque acho que o jornalismo se transformou muito. Mas nos anos 1990, se eras jornalista e tinhas apetência para ser repórter, ias mesmo aos sítios; não havia essa coisa de fazer jornalismo de secretária. Havia os que eram repórteres, e os que não eram. Aqueles que iam atrás da notícia, e que no limite, não precisavam de sair da redação. Mas havia também o estímulo das chefias para perceber quem eram os repórteres e os tipos que eram bons para ir para o terreno e trazer histórias. E eu apanhei ainda muito isso. Acho que foi sempre aquilo em que fui melhor. Tive cargos de chefia ainda muito novo, e nessa altura passei a sair menos da redacção. Mas até então, fiz imensas reportagens e estive em sítios incríveis. Nem era preciso ir muito longe de Lisboa. Esse exemplo do bairro de Marvila fez-me conhecer uma realidade que eu achava que era impossível existir.

    Este é o livro que tem mais de ti, mas não no sentido de ser autobiográfico?

    Eu acho que todos os romances são um bocado autobiográficos; uns mais descaradamente que outros. Agora, há este estilo da autoficção, que está muito em voga. Mas há no livro coisas que eu trouxe ao de cima que têm um bocadinho a ver com a minha experiência, sim, como ex-adolescente, ex-muitas coisas; têm muito a ver com o meu passado. Há uma coisa engraçada sobre este livro, que é explorar muito os contrastes da sociedade portuguesa. Acho que isso é uma coisa muito relevante neste livro. Explora muito os contrastes entre as pessoas com muito poder económico, e as pessoas que não têm poder económico nenhum; as que têm a sorte de ter uma família boa, e as pessoas que têm a sorte ou o azar de terem nascido numa família disfuncional. E muitas vezes isso não tem nada a ver com o facto de teres nascido na classe alta ou na classe menos alta.

    Uma das coisas que me ocorreu foi a clivagem que por vezes existe entre as aparências e o que realmente se passa na esfera privada, porque esta família é abastada, mas guarda muitos “podres” e segredos… Isso foi algo em que pensaste?

    Isso é daquelas coisas em que tenho mais a resposta pronta. Eu tive a sorte de ter tido uns pais espectaculares, portanto, esse aspecto da “família disfuncional” talvez seja o menos autobiográfico. Eu sou filho de um casal de namorados até ao fim da vida, e foram uns pais fabulosos. Desse ponto de vista, o livro não tem nada a ver comigo. Mas cresci rodeado de muita gente que não teve a vida mais equilibrada, porque nasceu em famílias muito disfuncionais, e isso sempre me interessou muito: encontras estas pessoas em todas as classes sociais. E, às vezes, até acho que nas classes ditas mais privilegiadas, isto ainda tem um impacto maior, porque as coisas parecem fazer menos sentido. Se és filho de alguém que está desempregado, ou que se sente explorado no trabalho, ao fim de 20 ou 30 anos de profissão, tens uma capacidade maior de compreender eventuais comportamentos menos aceitáveis. Mas, de facto, pessoas que não tratam bem os filhos encontram-se em todas as classes sociais. Neste caso, do livro, ele não é filho; é uma mistura estranha entre sobrinho e enteado. Mas sempre me fascinou o facto de não haver nenhuma correspondência entre pessoas ou famílias financeiramente prósperas, e a felicidade e o equilíbrio. Portanto, esse falso arquétipo cai por terra. Da mesma maneira, conheço pessoas filhas de gente muito pobre que foram criadas num equilíbrio fantástico. E isto é uma coisa que está muito à vista em Portugal, só quem não quer é que não vê. Nós somos um país de contrastes sociais gigantescos. Tem uma coisa boa; se tu fores para a América do Sul, o México ou o Brasil, as classes sociais não se tocam, e aqui tocam-se. Em Portugal, estes mundos diferentes tocam-se com alguma facilidade e regularidade, e o mesmo não acontece na América Latina, onde as pessoas vivem em condomínios com metralhadoras à porta. E eu acho isso muito interessante em Portugal.

    E esses contrastes e “podres” de famílias mais prósperas, foi algo que o teu trabalho como jornalista te permitiu conhecer de forma mais profunda? Porque um jornalista pode ter acesso a segredos ou dados que não estão, por vezes, tão ao alcance da população em geral…

    Não; eu acho que há aqui uma parte que tem a ver com os contrastes que vi na minha adolescência. Porque eu mudei de casa muitas vezes, e ainda que nunca tenha saído do distrito de Lisboa, lidei com realidades muito diferentes entre os meus 12, 13 e os meus 18, 19 anos. É engraçado, porque eu vivi na Linha – onde hoje vivo –, mas depois fui viver para uma aldeia ao pé de Sintra, e depois fui para um sítio menos simpático de Lisboa. São apenas quatro ou cinco anos, mas são anos muito importantes na tua vida, e para mim foi muito impactante. De repente, eu estava confrontado com realidades completamente diferentes. E o narrador diz isso, aliás, é a parte em que eu mais me identifico com ele, quando diz que andou sempre com um pé em cada realidade, e que está grato porque cresceu muito por causa disso. E eu também acho que cresci muito com isso; hoje, tenho uma grande facilidade em estar confortável em qualquer ambiente. Esses quatro, cinco anos da minha adolescência forçaram-me a viver em realidades muito diferentes, e acho que essas realidades estão muito espelhadas no livro. Quando falas do jornalismo, na questão dos segredos e dos podres, acho que não. Esses “podres” que estão reflectidos no romance, de uma classe privilegiada que parece sistematicamente impune e que não é “trazida à pedra” pelos seus erros, pecados e perversões… Aí, basta ler os jornais; sou eu como um cidadão, que observa a realidade portuguesa. E eu acho que isso é uma das coisas que mais tem destruído uma certa crença neste país. Nós somos da geração do Sócrates, que nunca mais é condenado. E este pequeno, grande exemplo é muito importante para uma certa moral colectiva que fica abalada. E é isto que está reflectido no romance, saber que há pessoas que andam por aí e continuam a ter uma vida absolutamente normal e que, no limite, para as gerações mais recentes, em que depois se começa a esbater a questão do Sócrates… E é como se o crime compensasse. Porque não sermos golpistas ou vivermos de esquemas menos claros? Se isso não nos traz grandes adversidades…

    Também há um tema que já estava presente nos romances anteriores, que é o dos desaparecimentos e um clima de mistério. Este livro é, aliás, uma espécie de thriller psicológico, com a morte de uma personagem no centro do enredo. Tens uma predileção por este estilo literário?

    Pois, isto é um bocado um fetiche meu, a coisa dos desaparecimentos; acho apaixonante. Desde miúdo que leio livros e vejo séries e filmes sobre desaparecimentos, e acho uma coisa incrível: como é que alguém de repente se “desmaterializa” e aquela presença desaparece… E sim, é algo que está nos três livros. Costuma-se dizer que os autores têm as suas marcas. Tenho a certeza que nos próximos dois ou três vai haver alguém desaparecido nos meus livros, não consigo escapar isso; é mesmo uma paixão que eu tenho. E o tema da pedofilia está também presente no livro porque eu como jornalista fiz também várias coisas sobre pedofilia, e foi uma coisa que me impressionou sempre muito. Quando se fala, por exemplo, da mãe do Rui Pedro ou os pais da Maddie, eu costumo dizer que não deve haver tortura maior, mais do que morrer um filho é desaparecer um filho; porque nunca fazes o luto, nunca tens um corpo do qual te possas despedir. E essa expectativa do reaparecimento, que eu acho que nunca desaparece, deve ser a pior tortura que o ser humano pode experimentar. E isso também está no livro.

    Foste jornalista durante muitos anos e até assumiste vários cargos de chefia, mas como disseste, a tua ambição sempre passou sobretudo pela produção literária, que requer maior sensibilidade e uma vertente mais artística. Assim sendo, e se nunca te interessaste realmente por notícias, alguma vez te sentiste como um “peixe fora d’água” no jornalismo?

    Sim, sim, completamente. É uma excelente pergunta, de facto; senti-me muitas vezes “peixe fora d’água”. Nomeadamente porque em alguns colegas meus sentia um grande entusiasmo pelas notícias, pela agenda, e pelo dia-a-dia, que eu não conseguia sentir. Porque aquilo que sempre mais me entusiasmou no jornalismo foi a possibilidade, dizendo de uma maneira simplista, de “ver, ouvir e escrever”.  

    As reportagens?

    Sim, as reportagens. Eu acho que, pessoas como eu – e eu sei porque a minha mulher é igual, e também é escritora e era jornalista – fomos parar jornalismo, porque era a profissão que pagava para contarmos histórias. Ainda bem que há pessoas que vibram com notícias e que estão interessadas em perseguir aquela notícia ou história; e no fundo, acho que é isso que tem mantido o jornalismo vivo. Mas actualmente, acho que já pouco se lê reportagens. Há alguns meios de comunicação que ainda apostam nisso, e gosto, por exemplo, do Observador. Penso que fazem isso bem; é um jornal que eu gosto muito do ponto de vista do tratamento da informação, mas não gosto tanto do ponto de vista da Opinião. Acho que aí, é até lamentável. O trabalho que os jornalistas fazem no Observador é muito bom, mas na Opinião acho mau mesmo.

    É muito ideológico?

    Eu não tenho nada contra o ideológico, até prefiro um jornal que se assuma de uma maneira ou de outra do que um jornal que não o faça. Aliás, é uma tradição em Inglaterra, Espanha, França ou Itália os jornais assumirem-se como de direita ou de esquerda, e acho muito bem que o façam. Mas a meu ver, a melhor direita portuguesa não quer escrever no Observador. Não estou a dizer que sou de esquerda ou direita, mas sim que a direita que eu acho que faz falta, e que de alguma forma deixou de ter representatividade no Parlamento, não se revê na Opinião do Observador. Portanto, isto não é apenas o ponto de vista de alguém que é de esquerda, que até sou. Seja como for, o Observador faz jornalismo muito bom, e tem feito por manter a reportagem viva, e também na questão dos podcasts… Aí, tem sido um grande bastião do jornalismo, sem dúvida. Mas tudo isto desapareceu um bocadinho, porque a reportagem é uma coisa que requer dinheiro e investimento. O Público, com certeza que também o faz. Mas também me entristece ver, por exemplo, casos como o Diário de Notícias; como é que eles hoje vão fazer reportagens? As coisas mudaram drasticamente em 10 ou 15 anos.

    E como é que vês essa mudança no jornalismo, desde que saíste?

    Vejo com alguma tristeza, mas não sou só eu. Eu estive lá e fiz parte desse mundo, mas sinto que as pessoas que nunca foram jornalistas e sempre leram jornais, sentem algum desencanto com isso.

    Pois, o jornalismo está realmente em crise, numa situação muito frágil…

    Está completamente em crise. Deixou de ser um negócio altamente atraente, como nos anos 90. Eu tive a sorte de fazer parte de projectos muito interessantes, mas enfim, a vida é o que é.

    Francisco Camacho com a mulher, Dulce Garcia, também escritora e antiga jornalista.

    Sim, e alguns desses projectos, como o Jornal I, do qual foste também cofundador, têm vindo a decair bastante nos últimos anos. É particularmente triste para ti, como alguém que ajudou a lançar o jornal?

    Sim, causa-me alguma tristeza. O jornalismo requer investimento, e quando não há esse investimento, é impossível fazer jornalismo bem. As redacções estão depauperadas, não há nenhum investimento em qualidade. E eu percebo que não haja; não estou a dizer que se devia fazer as coisas de outra maneira, eu não sei qual é o segredo. É um facto, e só estou a constatá-lo. O jornalismo era um negócio muito atraente para alguns investidores, e deixou de o ser. Portanto, dá-me a ideia que hoje, as pessoas que têm jornais, ou têm um projecto político, ou têm projectos que eu não consigo classificar quais são; mas têm sempre uma agenda qualquer. E antigamente não, era como teres uma padaria ou uma fábrica de cortiça; se dá dinheiro, dá dinheiro, e dava, sendo um jornalismo livre na mesma, sem necessidade de grandes interferências da administração. Claro que os próprios directores dos jornais tinham um poder que já não têm hoje; podiam bater o pé às administrações, porque os resultados eram bons.  

    Nós no PÁGINA UM somos muito críticos do jornalismo actual, e é por esse motivo que existimos… Qual dirias ser o principal problema que o jornalismo enfrenta?

    Eu acho que a origem dos problemas é falta de dinheiro. Porque assim não conseguem contratar bons profissionais, ou pelo menos, os melhores profissionais. Acho que há muita carolice nos jovens jornalistas, ainda bem que existe; portanto, muita gente que está no jornalismo está por convicção.

    Mas a falta de dinheiro também se deve à queda na procura de jornais…

    Eu quando, por vezes, sei de jornalistas que estão agora nos 20 e tal ou 30 anos e que recebem o mesmo que uma empregada doméstica, a única coisa que eu posso achar é que eles estão lá por convicção e porque adoram o que fazem. Mas, mais tarde ou mais cedo, quando essas pessoas tiverem filhos e outras responsabilidades, é inevitável que deixem o jornalismo. E quem é que vai sobrar para fazer jornalismo? Isso preocupa-me.

    E neste momento, não vês uma saída para esta questão? Uma luz ao fundo do túnel?

    Não, não vejo uma saída; porque também me custa um bocadinho estar com um discurso que é utópico, de dizer que devia ser assim ou assado. No fim do dia, tem de haver público que financie, e isso significa haver investidores e publicidade a pagar os jornais. Quando isso acontecer, é evidente que um órgão de comunicação estará mais próspero, fluente e mais poderoso, nesse sentido. Mas quando se tem as notícias de graça, e inúmeras fontes a que recorrer sem ter de se pagar um centavo, acho complicado dar a volta. Claro que tenho as minhas utopias, como toda a gente. Posso dizer “não, eu acredito que as pessoas estão dispostas a pagar por jornalismo de altíssima qualidade”, mas não sei se é exactamente assim.

    Ainda continuas com um olhar atento e jornalístico em relação à actualidade? Ou passados estes anos todos, já despiste um pouco essa pele?

    Eu acho que no meu livro se percebe que ainda sou um jornalista. Quando digo coisas como a epidemia de droga que houve nos anos 80 e 90 está esquecida, e que as pessoas têm dificuldade em recordar isso. A quantidade de famílias que ficaram altamente marcadas por essa questão, e que já não se ouve falar disso, parece que isso desapareceu. É como se daqui a 20 anos se deixasse de falar da covid, e esse assunto desaparecesse.

    Parece que hoje “corre-se” de uns assuntos para os outros, e perde-se, por vezes, a continuidade de alguns temas importantes.

    Exactamente. Quando no livro falo, por exemplo, dos imigrantes, não falo na Costa Vicentina, mas qualquer pessoa minimamente atenta percebe que estou a falar na Costa Vicentina. Isso também é jornalismo, de alguma forma; está em mim. Não me vejo a escrever um livro completamente desligado da realidade, e isso tem a ver com o meu lado jornalístico.

    E, ainda para mais, cresceste numa família de jornalistas [risos].

    [risos] Sim, venho de uma família de jornalistas: o meu irmão, o meu pai, a minha mãe…

    Falavam muito de notícias em casa?

    Zero. Aliás, houve uma altura em que o meu irmão Pedro era director da Visão, eu era editor executivo da Sábado, e o meu irmão Paulo era pivô da SIC, e nós nunca falávamos de jornalismo em casa. A minha mãe já estava reformada… Mas não, nunca falávamos. Quando vejo uma entrevista do Ricardo Costa a dizer que não fala com o irmão sobre política, acredito que seja mesmo assim, porque eu percebo isso. Tem de haver uns certos limites.  

    Mas eu imaginaria um ambiente um bocado frenético, numa família de jornalistas [risos].

    Quer dizer, nós falávamos de actualidade, tínhamos discussões em casa. Por exemplo, a minha mãe sempre foi muito simpatizante de Israel e da causa judaica. E lembro-me dela ser confrontada por nós sobre o que Israel estava a fazer aos palestinianos, e enfim, nem tínhamos chegado ao extremo de hoje. E havia ali uma certa tensão.

    Tinham visões diferentes?

    Tínhamos, sim. Portanto, falávamos da actualidade, mas não falávamos do funcionamento dos sítios onde trabalhávamos. Quando o meu irmão Pedro era director na Visão, e eu estava na Sábado, era impensável eu estar a trocar cromos com ele sobre qual seria a história de capa, ou algo do género; ainda por cima numa altura em que as news magazines vendiam imenso… Isso não, nunca aconteceu.

    Ser editor, apesar de tudo, é um trabalho mais tranquilo do que ser jornalista?

    Não, é diferente. Eu como editor, trabalho 24 horas por dia. Ou seja, tenho sempre a cabeça nos livros que eu quero fazer. 24 horas será exagero, porque também tenho de dormir, e não sonho com isto [risos]. Mas é um trabalho mentalmente mais absorvente.  Não tenho é aquela coisa que eu acho que me fartei, que é estar agarrado à agenda não sei quantas horas por dia. E isso é uma coisa que eu não quero voltar a fazer; só se tiver de ser. Na verdade, eu tive uma experiência de um jornal diário, que foi o I, mas eu sempre trabalhei mais em imprensa semanal, ou até mesmo mensal, na Grande Reportagem.

    Não tens saudades de ter de estar sempre em cima dos acontecimentos?  

    Não; tu como jornalista tens de estar sempre em cima dos acontecimentos que te atraem, e dos outros todos. Tens de estar em cima de tudo, e isso é uma coisa que, enfim, não me apetece muito.

    Daqui para a frente, podemos contar com livros teus com maior regularidade, ou é impossível de prever? [risos]

    Eu quero. Tenho tido um feedback fabuloso deste livro, que não tem muito a ver com o impacto no mercado, mas tem a ver com aquilo que as pessoas me dizem. Mas também tenho a capacidade de perceber que há 10 anos, quando lancei A última canção da noite, não havia redes sociais. Portanto, a comunicação é completamente diferente. Agora recebes tudo “em carne viva”, e pessoas que não conheces de lado nenhum mandam-te mensagens, “whatsapps”, e coisas através do Instagram e do Facebook a dizer que adoraram o livro. Eu tento também filtrar isso, mas é evidente que tem impacto. O meu principal objectivo neste livro parece cumprido. Isto pode parecer um objectivo um bocadinho modesto, mas na verdade, o que eu quis foi que as pessoas se agarrassem ao livro e não o largassem. Quis envolver o leitor. E tenho ouvido muitas opiniões, umas pessoas gostam menos e outras gostam mais, mas todas me dizem mais ou menos o mesmo: “comecei a ler aquilo num dia, e dormi menos para ler o teu livro”…  

    Esse é o melhor feedback, para ti?

    É, porque tem a ver com os meus objectivos. Não tive a pretensão de escrever um livro em que as pessoas começassem a pensar, por exemplo, no seu papel no mundo. Eu quis foi que as pessoas se mantivessem fortemente ligadas ao livro enquanto o estivessem a ler.  E isso para mim é muito bom. Até porque eu acho que nós em Portugal temos aqui um problema complicado com o mainstream, com o “meio”; e acho que isso acontece também com a Música, com o Cinema. As coisas são muito radicalizadas e concentradas em dois lados – há uma literatura intelectualizada, um bocado de nicho, e depois há um lado, nessas várias manifestações artísticas, que é carimbada como sendo comercial, ou “light”, o que queiramos chamar. E há problema com o mainstream, com aquilo que os ingleses e os americanos chamam quality fiction, em que um texto tem de ser irrepreensível do ponto de vista formal, mas sem grandes pretensões literárias. Depois, no fim, até pode ser considerado literariamente uma coisa bem feita, mas não existe essa pretensão a priori. E à minha modesta escala, quero contribuir para que isso deixe de ser assim, e que as pessoas se sintam entusiasmadas a ler um livro porque estão agarradas à história e não a um discurso. Eu não pretendi discursar para as massas, mas sim escrever uma boa história, e acho que terei conseguido o meu objectivo.

    Sentias que havia uma falta deste género de livros?

    Não posso dizer que tenha feito isto de uma forma consciente para colmatar uma falta. O que eu acho é que isso falta em Portugal. Tenho pena que o Francisco José Viegas não escreva mais, ou o Miguel Sousa Tavares. O João Pinto Coelho escreve bastante e gosto imenso dele, o João Tordo também escreve muito bem.

    Temos muitos escritores de qualidade…

    Temos qualidade, mas estas pessoas que estão aqui neste “meio” que refiro não me parecem muito bem-ditas. Há muito nicho, acho que a literatura em Portugal está muito metida em pequenos enclaves. Ou seja, tens pessoas que escrevem belissimamente e que cada livro revoluciona quase a linguagem, mas eu acho que antes de chegarmos a isso temos de fazer outras coisas. Uma vez, um editor espanhol disse uma coisa interessante, que não sei se é certa ou errada, mas que me fez pensar. Ele disse que em Espanha, tinham escritores que cada vez que escreviam um livro, vendiam imenso, porque estavam a contar histórias às pessoas; e que parecia que nós, escritores portugueses, estávamos no exercício permanente de nos desligarmos das pessoas, e de fazer qualquer coisa que não chega ao cidadão comum. E para mim, uma das grandes funções da literatura – nem queria usar esta palavra porque às vezes parece uma coisa pretensiosa –, é chegar às pessoas. Independentemente de ser um professor universitário ou uma cabeleireira, não interessa, porque todas as pessoas estão abertas a ler uma boa história.  E acho que há muita gente em Portugal a escrever para uma elite que ainda por cima é uma que não é exactamente palpável, nem se percebe bem quem é essa elite.

    Colocam-se numa espécie de pedestal?

    Sim, e é tudo difícil… “Epá, gostei imenso do livro do não sei quantos, mas aquilo custou-me imenso a ler”. Acho bem que essas pessoas continuem a existir, porque, no limite, vão abrindo um certo caminho, mas é como se nós quiséssemos ir directamente da primária para o mestrado sem passar pelo secundário. E eu estou bem no secundário.

    Não tens pressa de chegar ao mestrado? [risos]

    Não tenho pressa nem quero chegar lá. Acho que é importante contarmos boas histórias, e um bom romance é uma narrativa, é contar uma história, e não um discurso. São coisas diferentes, e há lugar para tudo, eu sei. Uma vez, no Público, há uns anos, classificaram-me como um “narrador”. E eu fiquei todo contente, porque é mesmo isso que eu sou, gosto de contar histórias. Agora, não confundamos; quando dizem que o meu livro é um policial… Quem o ler, vai perceber que é muito mais do que um policial. Hoje, diz-se um “thriller”, mas acho que é muito mais do que isso. A questão da intriga sinuosa é apenas o motor para que as pessoas avancem no livro. Há ali um assassinato no início, mas se formos a ver, é o que menos importa para a história [risos]. É um estratagema para que as pessoas se mantenham agarradas à história. É engraçado, porque não era um livro do qual eu estava absolutamente seguro que resultasse, mas é engraçado ver a reação das pessoas que, de facto, se sentem muito compensadas, e não dão o seu tempo como perdido. E isso é muito bom.

  • ‘No início, as relações tóxicas são muito facilmente confundidas com amor’

    ‘No início, as relações tóxicas são muito facilmente confundidas com amor’

    Poderá existir amor verdadeiro num relacionamento tóxico? Infelizmente, não. Nas relações onde o desrespeito pelo outro e o “terrorismo emocional” são uma constante, o que se desenvolve é um vínculo patológico quem o diz é Diana Cruz, psicóloga clínica doutorada em Psicologia Clínica da Família e autora de Não é amor, é uma relação tóxica, editado pela Manuscrito. A terapeuta vê como necessário esclarecer que o amor dá trabalho, mas “não deve doer”. Reconhecendo que também os homens podem ser vítimas de relações tóxicas fala, neste livro, sobretudo para as mulheres que sofrem abusos emocionais pelos seus companheiros, dando-lhes a mão no caminho para romper com a toxicidade e, claro, com o parceiro. A “desintoxicação” implica enfrentar muitos obstáculos, mas a psicóloga assegura que é possível sair da ‘teia’. Ao PÁGINA UM, explicou quais são as principais características destes relacionamentos, que podem ser verdadeiramente traumáticos – e que se desenvolvem também entre familiares, amigos ou até colegas de trabalho –, e como as ideias erróneas que ainda prevalecem sobre o amor não ajudam as vítimas a perceber que “caíram” numa relação tóxica.


    No seu livro Não é amor, é uma relação tóxica, afirma que não há dois relacionamentos tóxicos similares. Sendo assim, quais são as principais características que os definem?

    Há várias características muito comuns destas relações, e penso que nos devemos focar em duas ou três, provavelmente mais importantes, e que devem ser identificadas o quanto antes. Primeiro, são relações prejudiciais, em que há uma enorme falta de empatia e um desrespeito pelas necessidades e pelos limites da outra pessoa. Há, também, uma instrumentalização do outro. Ou seja, para o ‘parceiro tóxico’, a outra pessoa é mesmo como um instrumento, alguém que está ali para corresponder ao que ele precisa e às suas exigências, e para regular as suas emoções. São relações que não deixam espaço para os dois elementos, porque há um que é dominante e tem o espaço todo na relação. No fundo, é quem dita as regras. E depois há o outro elemento que está na relação com muito pouco espaço para a sua liberdade individual, e está sempre na expectativa de providenciar tudo o que seja pedido pelo parceiro tóxico – sejam coisas materiais, atenção, sexo, o que for.

    No entanto, nestas relações, criam-se também dinâmicas que podem facilmente ser confundidas com actos de amor, mas que não o são, na verdade…

    Sim, é isso que torna estas relações tão prejudiciais. No início, elas são muito facilmente confundidas com amor porque, numa primeira impressão, há uma intensidade de afectos muito grande. Há um período de sedução, que é muito forte e intenso, na primeira fase da relação, em que o parceiro tóxico aprende tudo sobre a outra pessoa – regra real, estes parceiros são extremamente inteligentes e capazes de o fazer e, portanto, têm uma capacidade enorme de ir ao encontro daquilo que nós queremos ouvir: seja os nossos interesses e objectivos de vida, o que gostamos e não gostamos. Portanto, cria-se uma intensidade afectiva e um vínculo que é quase instantâneo. É um vínculo patológico, mas é quase instantâneo, e que gera aquela sensação de “encontrei a minha alma gémea”, “é tudo o que eu sempre sonhei”. E só o facto de sentirmos isto já é uma alavanca para uma união, e para um vínculo muito forte. E, claro, este é um dos grandes poderes da relação tóxica, porque nós ainda estamos muito habituados a querer isso: a ideia de esperar pela cara-metade, a pessoa que encaixa perfeitamente em nós – quando, na realidade ninguém pode encaixar perfeitamente em ninguém e não há nada de errado nisso; pelo contrário.

    Também é comum, por exemplo, confundir-se ciúmes excessivos com amor.

    Sim; aí, acho que há vários sinais. Ainda recentemente, quando fui ao programa Curto Circuito, dei alguns exemplos que acho que acontecem nas relações de todas as idades, mas sobretudo com os mais novos, porque há uma partilha menor; por geralmente não viverem ainda juntos. Mas as pessoas pensam: se tem ciúmes é porque se importa muito comigo e não me quer perder, gosta de mim. Entretanto, surgem uma série de outras coisas: se comenta a roupa que eu visto é por causa do ciúme; é por causa do ciúme – ou seja, do “amor” – que ele me diz um colega de trabalho está a “dar em cima” de mim, e que é melhor afastar-me…  É por causa do amor que não quer que eu siga esta ou aquela pessoa nas redes sociais… Sim, porque as redes sociais, nestas relações, também são “invadidas”; tudo é. E hoje, as redes sociais são uma parcela das relações interpessoais muito grande, como sabemos.

    E, portanto, é aquela convicção que foi criada na tal fase de sedução, de que somos feitos um para o outro e não nos podemos perder, em que o parceiro tóxico aprendeu tudo e mimetizou tudo o que a outra pessoa quer ouvir, que justifica aguentar todas estas coisas. A maioria de nós, quando estamos de fora, e se pudéssemos pensar bem quando estamos dentro da relação, perceberíamos que esta pessoa está a limitar com quem eu falo e quando falo, o que visto, onde vou. Portanto, está a limitar a minha liberdade individual, e não está a confiar em mim. Está só a isolar-me cada vez mais, até que a certa altura – e isso é uma coisa que acontece muito e é uma característica muito pesada destas relações –, há uma espécie de uma bolha, um isolamento muito grande, que pode até incluir os familiares. E esse afastamento contribui ainda mais para que aquela relação pareça tão importante – a certa altura, não há mesmo mais ninguém. Ela é importante porque o desamparo é gigante, e esse desamparo foi criado pela própria relação. O parceiro tóxico convence a outra pessoa que quem está ao seu redor não lhe quer bem, recorrendo muito à crítica e à desqualificação, e dizendo coisas como “tu não percebes nada”, “toda a gente te engana”… E todas estas características se enredam umas nas outras e transformam estas relações num ‘novelo’ do qual é mesmo muito difícil sair.

    Como referiu, há traços transversais nos comportamentos de um parceiro tóxico, mas não é possível reduzir estas pessoas a um único perfil; podem existir diversos tipos de personalidade tóxicas, certo?

    Sim, estas pessoas geralmente são muito egocêntricas, muito centradas em si próprias e nas suas necessidades, no que querem para si e no que pretendem dos outros e da vida. Lá está: como disse ao início, pessoas que têm muito pouca empatia; não têm grande preocupação com o impacto que as suas acções têm nos outros e com a dor que possam provocar – pelo contrário, mesmo com a outra pessoa a explicar imensas vezes ao parceiro que o seu comportamento a faz sentir-se ofendida ou humilhada, ele torna a fazer, se for preciso, no próprio dia.  

    Pode dizer-se que são narcisistas?

    Podem ser verdadeiros narcisistas, pessoas que não estão nada preocupadas com o outro. Também são pessoas muito imaturas emocionalmente – uma característica muito típica das personalidades narcisistas. No fundo, são um bocado como uma criança grande. As crianças estão muito centradas nas suas coisas, mas é natural, porque são crianças. Mesmo assim, uma criança conhece empatia; com os outros miúdos, com os animais… Mas estas pessoas tóxicas acreditam que não têm de dar, só de receber, e emocionalmente são muito instáveis, frustram-se e irritam-se facilmente. Estão perfeitamente convencidos que há um sistema de regras que são só deles; há as regras para nós seguirmos, mas eles não têm de as seguir; têm as suas próprias regras, que os próprios fazem. O exemplo das redes sociais que já referi é típico: ele pode definir com quem é que eu falo, mas eu não posso fazer o mesmo. Enfim, têm esta expectativa de que o outro está ao serviço. Neste caso, geralmente, são mais os homens que têm estas características.

    É por isso que dedica este livro às mulheres?

    Sim, eu quis mesmo que fosse um livro de mulher para mulheres, que é uma coisa que está a ficar fora moda e que é delicado de se fazer agora. Mas acredito que é um livro que pode ser lido, igualmente, por homens – mesmo que aqui eu esteja a falar para as mulheres, se ele for vítima de uma relação tóxica, vai fazer-lhe sentido. E já tive feedback de alguns homens, mesmo em pouco tempo, o que é muito curioso. Também tenho recebido muitas mensagens de amigas de mulheres que estão nestas relações, e que dizem que não sabem mais o que fazer para as ajudar. Então, este é um livro de mulher para mulheres, mas isto não é dizer que não há homens a viver relações tóxicas. Claro que há, tal como há nas relações homossexuais também. Na verdade, em qualquer tipo de relação, incluindo entre pais e filhos; há mães e pais tóxicos, chefes tóxicos e amigos tóxicos. Claro que, depois, a natureza da relação muda um bocadinho e a forma como tudo se manifesta. Mas não é muito diferente, porque estão lá as características que falámos inicialmente, aqueles sinais para vermos se estamos numa relação tóxica, o desrespeito pelo outro e pelos seus limites. Também me dirijo sobretudo às mulheres porque é o que há mais e porque é o que a minha experiência conhece melhor; são elas quem mais vem ao consultório pedir este tipo de ajuda.

    E de acordo com a sua experiência, que características pessoais é que tornam alguém mais susceptível de ser vítima de uma relação tóxica?

    É muito difícil falar disto, e mesmo na escrita do livro tive muito cuidado e dei muitas voltas até achar que estava explicado da melhor forma. Porque é muito fácil ler esta entrevista, ou o livro, e pensar que são as mulheres que geram isto, com a sua maneira de ser. Não. Mas, de facto, as relações têm dois lados e há características que tendem mais a entrosar-se com outras.

    Ou, por vezes, atribui-se a culpa à vítima por se ter mantido na relação, não é?

    Exacto e, portanto, não é dizer que elas têm culpa, mas há de facto características nossas enquanto mulheres que podem facilitar isto. Também é por isso que são mais as mulheres que são vítimas destas relações: porque regra geral, somos mais orientadas para as relações; enquanto os homens mais orientados para os objectivos. É incontornável – cromossomas XX e XY [risos]. Depois, são as mulheres mais empáticas e mais focadas na relação com o outro, ou muito compassivas, compreensivas e que tendem a racionalizar muito as atitudes do parceiro. Então, acreditam que se o amarem e orientarem, ele vai conseguir ser diferente. Regra geral, são as mulheres que têm esta crença de que o amor é uma força bruta de mudança.

    Acreditam que conseguem mudar e “salvar” o companheiro?

    Sim, no limite, são mulheres que têm um pouco esta “síndrome” de salvadoras, mas antes de chegar a isso, são mulheres mais empáticas, com capacidade de escutar o outro e de entender o outro. E, portanto, vão sempre encontrando algo que justifica aquilo; porque, claro, as dificuldades da história de vida do parceiro existem. Mas não lhes cabe a elas estar a viver toda aquela violência e drama por causa disso. Não todas, mas algumas podem ter uma identidade um pouco frágil, e sentir que parte do seu valor vem das relações que elas têm, e se estão numa relação em que elas contribuem para a felicidade da outra pessoa, têm ainda mais valor. E claro que nós, quando estamos numa relação dita saudável, queremos que a nossa contribuição na relação seja boa e queremos estar ali com a outra pessoa. Mas nós não deixamos de ter valor se não tivermos uma relação, nem quando identificamos algo daquela pessoa que não é da minha conta, e sobre a qual eu não posso fazer nada, nem tenho de fazer nada. As mulheres que têm síndrome de salvadora muitas vezes têm até profissões de ajuda, como a minha. Mas mesmo que não tenham, costumam ser pessoas muito disponíveis para o outro. Também podem ser pessoas que já tiveram relações tóxicas anteriormente e não ficaram bem recuperadas, ou que vêm de famílias muito disfuncionais. Ou podem ainda ser pessoas muito românticas, que acreditam que para ser verdadeiro, o amor tem de doer muito e de passar por muitas provações, com muito sacrifício. Mas não é verdade, porque as relações custam e dão trabalho, mas não são só dor e sacrifício, senão para que queríamos o amor?

    E quão fácil, ou difícil, é sair de uma relação tóxica?

    É muito difícil. Na minha experiência, as mulheres saem; mas muitas precisam mesmo de ajuda especializada. Depende também das características mais específicas daquela relação e do grau de violência que teve, porque há este terrorismo que destrói completamente a identidade. Eu chamo-lhe “terrorismo emocional”. Nem todas necessitarão de ajuda especializada, mas muitas sim – é muito difícil, porque é uma relação traumática. Todos nós já saímos de uma relação, e é sempre difícil. Mas aqui, não falamos de sair de uma relação dita normal; é toda uma outra situação, devido ao trauma. É uma relação onde a pessoa perdeu o Norte, a noção dos seus objectivos, e passou a fazer uma série de coisas que são contra os seus valores e a suas crenças.

    Muitas vezes, a vítima até já nem se reconhece a si mesma no final da relação, como refere também no livro.

    Já nem se reconhece, às vezes já nem percebe porque entrou naquela relação, não conhece aquele companheiro, nem sabe como é que a relação chegou ali. Muitas vezes tem vergonha e sensação de culpa, e são emoções que bloqueiam muito a pessoa. Sente culpa, primeiro, porque foi convencida de que a relação estava a correr mal por culpa sua, porque o parceiro o diz. Mas depois, quando as mulheres já perceberam que a relação tem tudo para o correr mal, há muita vergonha porque a maioria permanece durante muito tempo, e às vezes até com várias roturas pelo meio. E esses sentimentos muitas vezes requerem ajuda, e que a pessoa reorganize toda a sua vida. Note-se que esta pessoa provavelmente perdeu os amigos, ou se ainda tem alguns, geralmente não sabem nem da missa a metade, porque tiveram vergonha de contar, ou não o fizeram para proteger o companheiro, ou porque não queriam “ouvir” das amigas. Os familiares, às vezes também já não são tão próximos e não sabem da situação. Também ficam desestruturadas no seu trabalho – não é incomum vermos mulheres que tinham carreiras em franca ascensão, mas que de repente já não produziam aquilo que nas empresas estavam habituadas, ou perderam a confiança para lançar-se num projecto mais desafiante. Algumas são mesmo demovidas pelos parceiros de tentar.

    Eles próprios as convencem a não tentar alcançar os seus objectivos.

    Sim, porque isso é poder; alimenta a auto-estima, a folha de vencimento. E, portanto, muitas também já não têm a mesma estrutura de trabalho ou o mesmo reconhecimento; as pessoas notam que elas não estão bem, mas mesmo que ninguém note – embora seja difícil –, mas elas já não se sentem capazes, afecta o seu rendimento no trabalho.  Porque depois também não dormem, ficam doentes; começam a surgir uma série de sintomas físicos. Então, quando termina, não é só fazer o luto normal de uma relação e de um amor que não resultou; é o perceber que afinal, não era sequer amor nenhum. Todas as memórias de coisas que foram feitas e ditas de que não nos orgulhamos, a vergonha e toda a estrutura que desapareceu, deixou de fazer coisas de que gostava… Portanto, tem de ser tudo reformulado, recuperado. É às vezes, partindo de uma posição que é mesmo de doença mental, de depressão; a pessoa pode até deixar de comer.

    Pode, inclusive, ter sintomas de stress pós-traumático?

    Pode ter muitos sintomas que são concordantes com o stress pós-traumático, porque é de facto, uma relação traumática que vem daquele vínculo patológico – sedução “forte e feia” no início, e depois o “terrorismo” e a humilhação. Há muitas vezes um Síndrome de Estocolmo, que é o vínculo raptado pelo raptor. A pessoa sabe que está tudo mal, mas procura o parceiro para a consolar. Há uma incapacidade de afastamento, muito baseada também na ideia de que não há ali mais ninguém, na convicção que os parceiros tóxicos incutem na vítima, de que nunca ninguém a irá amar como ele.

    E estas dinâmicas relacionais também têm sempre presente a questão da codependência? Ou não necessariamente?

    Sim, no limite, podemos estar a falar de pessoas que têm características de dependência emocional. Ou seja, que têm muito estas necessidades de estar uma relação, e dificuldade em imaginar-se sozinhas. Mas o conceito de codependência é muito conhecido também noutras patologias psiquiátricas e psicológicas. Na codependência, há a ideia de que a própria vítima alimenta a agressão; não conhece outra forma de amor que não seja através da agressão. No estereótipo, é aquela pessoa que provoca o agressor para ele lhe bater; ou a mãe que quer que o filho deixe de consumir tóxicos, mas todos os dias lhe dá dinheiro, e sabe perfeitamente que o dinheiro é para as drogas ou o álcool. A pessoa codependente alimenta, de uma forma muito directa, o comportamento patológico. E é claro que isto eventualmente pode acontecer em algumas relações, mas de um modo geral, não é isso que acontece. Regra geral, stamos a falar de mulheres muito capazes, bonitas, com competências intelectuais acima da média e profissões diferenciadas, perfeitamente independentes; muitas delas, até então, tinham vidas totalmente autónomas, mas que depois são apanhadas nesta narrativa de conto de fadas. E quem é que não quer um? Mas depois há uma derrocada. E os parceiros tóxicos são com frequência também muito sedutores, têm sempre “satélites”, e fazem questão que a pessoa saiba que há mais mulheres que o desejam. Na fase inicial, antes de se aperceberem do tipo de relação, as amigas da vítima também lhe dizem que o parceiro é um “sonho”, e que ela não o pode perder. Coisas desse género.

    Os parceiros tóxicos seduzem as pessoas mais próximas da vítima e conquistam a sua simpatia?

    Sim, seduzem toda a gente, tornam-se muito próximos dos amigos e da família da vítima, para que toda a gente transmita aquela sensação de que saiu à vítima a sorte grande. “Tu agarra esse homem”…  E isto também vai minando a identidade daquela pessoa, porque com o tempo já não tem certeza de nada, não confia no próprio julgamento. E claro, há o típico gaslighting – em que o parceiro tóxico nega as percepções da vítima, como se ela estivesse só a ver coisas. Ao fim de anos a ouvir isto, a vítima começa a acreditar, e vai-se tornando dependente daquela relação, porque não há mesmo mais nada. E aquela ideia de que é possível estar numa relação diferente e saudável desaparece; a vítima acredita que só pode ter aquilo.

    E qual é a melhor forma de evitar cair numa relação destas? Fomentando uma autoestima saudável?

    Pois, essa é a pergunta de um milhão. Eu acho que há algumas coisas que são muito importantes. Uma, é a pessoa, de antemão, saber bem quais são os seus limites. Pode-se gostar muito de alguém e amar muito uma pessoa, mas há coisas que não se vão aceitar. E se estes limites estiverem muito bem definidos, já é mais difícil que um comportamento incorrecto do outro não faça soar o alarme. Se aquilo que nós precisamos e que nos traz segurança estiver bem claro, bem como quais são os limites inultrapassáveis, já sentimos o desconforto mais cedo – aquela “bomba de amor” toda logo na fase de sedução já parece desagradável.

    E depois, volto a frisar: as nossas ideias sobre o amor; porque é que nós havemos de esperar que uma pessoa goste de tudo que nós gostamos, ou queira tudo o que nós queremos. Isso não existe.  É preciso ter a consciência de que o amor dá trabalho, sim, mas não é sofrido, e os valores de respeito têm de estar acima de tudo. E se a esmola for muito grande, se a pessoa parece tão perfeita que é demasiado bom para ser verdade, se calhar é mesmo. Mas sobretudo, diria que tem muito a ver com os limites, e sim, os limites também têm a ver com a nossa noção de valor. A maioria das pessoas quer muito uma relação, também porque estamos constantemente a ser bombardeados com a mensagem de que isso é importante. E apesar de os tempos estarem muito diferentes, as mulheres ainda estão muito pressionadas para isso, sobretudo nas idades entre os 20, início dos 30 e 40.  Muitas vezes, sentem-se confusas se não estiverem numa relação, e isso aumenta a disponibilidade delas para aceitar ou aguentar certas coisas. Acreditam que depois a relação melhora; e quando começamos nisto, já estamos com os nossos limites expostos, no caminho para uma relação tóxica. Então, pode ser muito importante reconstruir estas crenças sobre o amor e sobre o papel que a pessoa quer ter numa relação.

    Este livro incide em particular sobre a “toxicidade” nas relações amorosas mas, como explicou, há relações tóxicas entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. É mais difícil haver um afastamento de familiares tóxicos? Por se tratar de família, a pessoa sente uma culpa maior em romper?

    Sim, sendo que a culpa do afastamento existe em todas as relações tóxicas, mesmo com parceiros amorosos. Mas com os familiares, por exemplo um pai ou uma mãe, é mais difícil porque a relação também é de outra natureza; são as pessoas que me criaram e me colocaram no Mundo. Nós não estamos muito preparados para o corte relacional com os pais; acontece, e acontece muito mais do que as pessoas imaginam, haver cortes de relação com os pais. E cada família terá as suas próprias razões, mas é uma coisa sempre vivida de facto com muita culpa. E lá está, também com muita vergonha, porque ninguém diz de ânimo leve que não fala com a mãe ou com o pai há anos – mesmo que sinta que foi uma dor dilacerante que a levou a tal. Mas, todas as relações que parecem mais “obrigatórias”, parece não haver escolha… Porque o namorado pode deixar de ser namorado, mas a minha mãe não vai deixar de ser a minha mãe.

    Mãe só há uma, como se costuma dizer.

    Exacto. Todas essas relações tornam este afastamento mais difícil, até porque muitas vezes não pode haver um afastamento físico. E com os pais ainda há uma outra coisa: teoricamente, na maioria dos casos, aquelas pessoas criaram-nos, desde o momento “zero”, em que não conhecíamos outra coisa. Então, pode imaginar-se a derrocada de identidade que isso pode fazer – é que nem chega a haver derrocada, porque aquela identidade nunca esteve verdadeiramente livre para se constituir em si mesma, a não ser sobre aquela depressão, agressividade, e peso da pessoa tóxica. E isso é muito penalizador do desenvolvimento dos miúdos, que serão pessoas adultas, e demora muito até que eles percebam que estavam a viver em famílias num clima de verdadeira opressão, violência e de desqualificação total da sua liberdade, e de como foram restringidas no seu crescimento e no seu desenvolvimento. Isto é uma marca muito maior. Todos nós sabemos, por mais saudável que seja nossa família, que trazemos sempre essa história connosco. Porque são aquelas pessoas que estavam lá quando não havia mais nada, houve um momento em que o mundo era só aquilo. Depois, as relações com os chefes, por exemplo, também podem ser muito complicadas, porque às vezes a pessoa não pode simplesmente vir-se embora. Pode sempre sair de um emprego, mas se calhar não pode no momento, ou da maneira que quer. E essa relação também é “obrigatória”, porque pelo menos durante um tempo, até que as coisas mudem, a pessoa está sujeita àquela relação e sabe que todos os dias tem de lidar com isso. E aqui não há tanto a questão da culpa, mas é a sensação de poder que existe. A pessoa sente que o chefe a trata mal, faz-lhe mal, inibe-a na maneira de estar, de ser e de trabalhar. E também cria verdadeiras hecatombes de falta de confiança, em que a pessoa não consegue fazer o seu trabalho. E não pode sair da relação no instante em que quer.

    Sim, implica todo um processo.

    Sim, nós dizemos que se a pessoa está a sofrer muito, tem de sair. E sim, tem de sair, mas isto é diferente de dizer logo “saia!”. Temos de ser realistas. Não se pode esperar que se diga à pessoa que o seu chefe é um grandessíssimo narcisista, e a pessoa se vá logo despedir e nunca mais volte. E isso pode ser também muito destrutivo; é como se fosse água mole em pedra dura. Mas a água não é assim tão mole, e vai minando, desfazendo, até a pessoa sentir que não tem opções. E isto vale para qualquer uma destas relações.

    As últimas três fotografias foram tiradas por Daniela Ventura

  • ‘Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade’

    ‘Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade’

    Há um ano, o Centro para as Liberdades Civis em Kiev foi um dos três galardoados com o Prémio Nobel da Paz, juntamente com o bielorrusso Ales Bialiatski e a International Memorial Board, uma associação russa. A advogada Oleksandra Matviychuk é, aos 39 anos, o rosto desta organização ucraniana que ajudou a fundar em 2007 para lutar pela democracia no seu país. Quase 20 meses depois da invasão da Rússia, a activista dos direitos humanos conversa com o jornalista Boštjan Videmšek numa entrevista publicada em simultâneo no PÁGINA UM e no jornal esloveno DELO.


    Recentemente, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia expressaram o seu apoio conjunto à Ucrânia em Kiev. O mesmo se pode dizer de uma reunião em Varsóvia, à qual assistiu. Sente que este apoio é sincero, forte, unido, suficiente? Ou sente que talvez já exista um cansaço na comunidade internacional?

    Apesar de a guerra já durar há quase vinte meses, o foco da comunidade internacional continua na Ucrânia. Isso é lógico. Agora, os ucranianos não estão apenas a lutar por nós próprios, mas também pelos outros. Estamos a assistir ao desmantelamento da Ordem Mundial que foi criada após a Segunda Guerra Mundial.

    Foto: Center for Civil Liberties

    Neste momento, por parte dos seus aliados, o que é que a Ucrânia precisa mais – e sente falta?

    Quando a grande ofensiva russa começou em Fevereiro passado, o Mundo reagiu com a ideia de que a Ucrânia não deve cair. Como resultado disso, começou a receber os primeiros carregamentos de armas, enquanto as primeiras sanções sérias foram impostas contra a Rússia pela comunidade internacional, pelas quais estamos, naturalmente, muito gratos. Tudo isto permitiu-nos resistir à invasão russa em larga escala. Mas agora chegou a hora de mudar essa narrativa: vamos ajudar a Ucrânia a vencer rapidamente. Há uma enorme diferença entre estas duas abordagens – a Ucrânia não deve cair e a Ucrânia tem de ganhar rapidamente. E é uma diferença que pode ser medida na prática. O tipo de arma, a rapidez da tomada de decisões e a severidade das sanções e muitos outros factores são decisivos. O problema é que nós, ucranianos, não temos tempo. O tempo, na Ucrânia, traduz-se em muitas vidas humanas perdidas nos campos de batalha, no interior e nos territórios ocupados.

    A maioria dos meus amigos e conhecidos ucranianos estão exaustos, cansados, traumatizados. Por causa da Guerra e da insegurança, porque foram ‘arrancados’ das suas vidas. Como é que se sente? Onde encontra forças para continuar, para lutar constantemente no campo civil?

    É difícil viver numa altura em que há uma grande guerra. O meu humor muda constantemente; para cima e para baixo, e para cima e para baixo. Vivemos em completa incerteza. Perdemos completamente o controlo sobre as nossas vidas. Não podemos planear nada, nem mesmo no dia seguinte, nem na hora seguinte! Um novo ataque russo pode acontecer a qualquer momento. Isso também significa que estamos constantemente receosos pelos nossos entes queridos, amigos e conhecidos – especialmente aqueles que se juntaram às forças armadas ucranianas ou vivem nos territórios ocupados. Ou em qualquer outro lugar do país. Nenhum lugar da Ucrânia está a salvo das bombas russas. Esta é a nossa realidade. Aquilo que me ajuda, e a muitas pessoas que conheço, para continuar a nossa luta e os nossos esforços, são duas coisas. A primeira é o nosso objectivo comum; lutamos pela liberdade. Pela liberdade em todos os níveis possíveis. Porque queremos ser um país livre e independente, não uma colónia russa. Pela liberdade de sermos ucranianos e de não apagarmos a nossa identidade e nos tornarmos russos à força. Pela liberdade das nossas decisões democráticas e de construir um país onde os direitos de todos sejam respeitados, um país onde as autoridades sejam responsáveis perante o povo, onde o poder judicial seja independente e onde a polícia não seja violenta para com os manifestantes.

    Foto: Right Livelihood

    A coisa que me faz continuar – e que nos faz continuar – é o desejo de ser um exemplo para os outros. Não desejo que nenhum país ou nação passe pela nossa experiência, mas estes tempos dramáticos deram-nos a oportunidade de trazer à tona o melhor de nós: que somos corajosos, lutamos pela liberdade, tomamos decisões difíceis, mas correctas, e que nos ajudamos uns aos outros. Somente através da ajuda mútua podemos experienciar aquilo que um ser humano realmente é. Um exemplo: quando a invasão russa em larga escala começou, as organizações internacionais evacuaram os seus cidadãos da Ucrânia, mas as pessoas comuns permaneceram. E as pessoas comuns começaram a fazer coisas extraordinárias. Pessoas comuns resgataram pessoas comuns de cidades atacadas. As pessoas comuns romperam bloqueios e cordões para fornecer ajuda humanitária. Pessoas comuns sobreviveram sob constantes ataques de artilharia. E também sobreviveram ao último Inverno, quando a Rússia estava deliberadamente a destruir o sistema energético ucraniano. Eu também passei algum tempo em Kiev num apartamento sem água, electricidade, Internet, conexão móvel e aquecimento. Isto uniu ainda mais as pessoas comuns e inspirou-as a continuar a fazer coisas extraordinárias. É assim que lutamos contra a dor e o desespero.

    Então concorda que o tecido social ucraniano ficou muito fortalecido durante a guerra, que está mais forte do que nunca?

    É difícil dizer que está mais forte do que nunca, mas está extremamente forte. Dito de outra forma: não temos outra escolha. Nunca nos renderemos. Nunca desistiremos. Não nos tornaremos escravos russos. Se pararmos de lutar, nós, ucranianos, desapareceremos. Esta guerra tem um carácter genocida. Os russos estão a tentar destruir a nossa identidade. Não há existência sem luta.

    Foto: Right Livelihood

    Afirmou recentemente que a vitória ucraniana não significa apenas a expulsão do exército russo do território da Ucrânia, o restabelecimento da ordem internacional e a libertação das pessoas que vivem nos territórios ocupados. A vitória, disse, significa também uma transição democrática bem sucedida. Como consegui-lo?

    Queremos construir instituições democráticas funcionais, eficientes e sustentáveis. Isso cumpriria a vontade de milhões de pessoas que arriscaram as suas vidas há nove anos, durante a revolução da dignidade e os protestos contra o regime corrupto. Nessa altura, quando se perguntava às pessoas nas ruas por que razão protestavam a favor da visão europeia da Ucrânia, elas ainda não conheciam a estrutura e o funcionamento das instituições europeias. Ainda hoje, o cidadão comum não sabe como funcionam o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu. Naquela época – e até hoje –, a escolha era sobre valores. As pessoas gostariam de viver no seu próprio país, que elas próprias construiriam. E onde as regras são as mesmas e completamente claras para todos. Onde o Governo não dita em quem o povo deve acreditar, e quem deve amar, e por aquilo que deve viver ou pelo que deve morrer… Queremos viver em liberdade. Queremos ser devolvidos à civilização europeia. Portanto, a escolha é uma escolha de valores. E é por isso que Vladimir Putin iniciou esta guerra, que não começou em 24 de Fevereiro de 2022, mas oito anos antes, quando o povo ucraniano conseguiu derrubar um regime autoritário, dando-nos a possibilidade de uma transição democrática. Putin queria evitar que isso acontecesse. Foi por isso que lançou uma agressão, ocupou a Crimeia e uma grande parte do Donbass e, em Fevereiro do ano passado, lançou uma grande invasão. Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade.

    Foto: Right Livelihood

    Será a Ucrânia também uma vítima de estruturas internacionais extremamente débeis – lideradas pelas Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, este fóssil vivo que, com a sua (in)ação, permite todas as guerras modernas?

    Vou ser honesta. O sistema internacional de garantia da paz e da segurança não funciona. As pessoas na Síria, Sudão, Somália, Afeganistão, Iraque e Ucrânia sabem disso muito bem. Mas agora estão a tornar-se perceptíveis mesmo para as pessoas nas sociedades democráticas desenvolvidas. Precisamos de uma reforma fundamental e abrangente do sistema das Nações Unidas. Ouvimos recentemente uma proposta do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para aumentar o número de membros permanentes do Conselho de Segurança. Mas esta não é uma reforma cardinal. Precisamos de uma abordagem totalmente nova. Um sistema completamente novo de garantia internacional da paz e da segurança, que não estará ligado ao Produto Interno Bruto (PIB) nem à dimensão geográfica dos membros do Conselho de Segurança. Deve estar vinculada pelo respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades.

    Oleksandra Matviychuk em Dezembro do ano passado, enquanto discursava em Oslo, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz.

    Não há absolutamente nenhuma indicação de que a Rússia esteja a considerar pôr fim à sua agressão na Ucrânia. Muito pelo contrário. Parece que as consequências da guerra colonial-imperial para Moscovo não são tão graves como se poderia pensar que seriam. Como parar então a Rússia?

    O que precisamos para ganhar, é o que me pergunta? Os resultados das guerras não são decididos nas fronteiras nacionais. Não é apenas uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, entre dois países; é uma guerra entre dois sistemas. Entre o totalitarismo e a democracia. Putin não vai parar. Putin tem de ser travado. Se não for parado na Ucrânia, irá continuar. A Rússia é um império que tem o seu centro, mas sem fronteiras. Se um império tiver energia suficiente disponível, irá sempre expandir-se. Para travar a expansão deste império, muitos países, e não só a Ucrânia, precisam de sair da sua zona de conforto. Sim, estamos gratos pelas armas e pela ajuda financeira à economia ucraniana, mas a Rússia está a preparar-se para uma guerra prolongada. Esta guerra já mudou o quadro social da Rússia. Por conseguinte, todo o mundo democrático tem de fazer mais para contrariar este cenário russo. Ninguém quer uma guerra longa. Nós, ucranianos, queremos paz.

    Foto: Right Livelihood

    Está muito envolvida na documentação dos crimes de guerra russos. Como punir a Rússia por todos os crimes de guerra?

    Quando falamos de justiça, estamos a falar das condições prévias para a paz em toda a região. Os militares russos cometeram crimes horríveis. Não só na Ucrânia. Ainda antes, na Chechénia, na Geórgia, … Também na Síria, no Mali e na Líbia. Nunca foram processados ou punidos. Por isso, começaram a acreditar que podem fazer o que quiserem de impune. Por conseguinte, é necessária a criação de um tribunal especial para a agressão russa; que Putin, toda a liderança política e comando militar russo sejam responsabilizados pelo planeamento, início e execução desta guerra. Documentámos um grande número de crimes: assassinatos planeados, tortura, violações, raptos, bombardeamentos selectivos de zonas residenciais… Tudo isto é o resultado da decisão da liderança russa em iniciar uma guerra. Por isso digo que, se queremos paz, a primeira condição é a justiça. Com uma acção tão decisiva, poderíamos evitar novos ataques russos e quebrar o ciclo vicioso da impunidade.

  • ‘O jornalismo não pode ser permeável às modas linguísticas, ideológicas ou morais’

    ‘O jornalismo não pode ser permeável às modas linguísticas, ideológicas ou morais’

    Jornalista veterano, Mário Carneiro anda no ramo há mais de 30 anos, já passou pelos três principais canais de televisão portugueses, e é, desde Março de 2020, director de Informação do portal Sapo. Juntamente com o também jornalista António Luís Marinho, publicou ainda os livros 1974:o ano que começou em Abril, 1975: o ano que terminou em Novembro, e Portugal à lei da bala. A febre do “wokismo” levou-o agora a despir a pele de “jornalista sério”, para encarnar uma postura mais humorística e provocadora: com Uma noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos faz uma paródia do clima de censura actual, que tudo quer “corrigir”, e reescreveu dez conhecidas histórias infantis, de forma a não ferir quaisquer susceptibilidades…


    Não é o primeiro livro que escreve, mas este Noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos destoa bastante dos anteriores. Que motivo o levou a escrevê-lo?

    Isto tem uma motivação muito antiga: há cerca de 30 anos, quando se começou a ouvir falar do politicamente correcto, tive a ideia de fazer uma coisa enorme, que era um dicionário de português para português politicamente correcto. Era um bocado a onda deste livro, só que em dicionário, e comecei. Só que 30 anos depois, ainda estava para em “Abóbora”, quer dizer, ainda não tinha passado da letra A. E é um trabalho muito chato, que nunca mais acaba, e é desgarrado, não tem a continuidade de uma narrativa. E, sinceramente, o que me motivava, por um lado, era achar que tinha de ser feito e, por outro lado, tinha medo que alguém fizesse aquilo antes de mim, e eu iria ficar doido por causa de todo o trabalho que tive e que ia para o lixo. Até que decidi que não era aquilo, de facto. E agora, mais recentemente, quando vi aquela censura – que não tem outro nome – aos contos de Roald Dahl, achei que era um bocado demais. Ao princípio, eu ria-me com isto. E depois, muitas pessoas com quem me dou, começaram-me a chamar a atenção que, se calhar, não era motivo para rir tanto assim. Mesmo assim, eu continuava-me a rir, porque tenho uma atitude de riso perante a vida e perante o bizarro. Mas comecei a achar que isto se calhar não é tão inocente e não é tão ‘simplesmente parvo’ como parece, se calhar merece uma outra abordagem. E achei que a abordagem interessante era mesmo esta. Então, pensei, ok, vou jogar o jogo deles: vou pegar nos contos tradicionais, e vou fazer uma versão dos contos – não como eles fariam –, mas muito para lá do que eles fariam, e expor todo o ridículo deste tipo de argumentação e de comportamento e de censura.

    Portanto, já “detectou” os primeiros sinais do politicamente correcto há 30 anos.

    Sim, há 30 anos era em pequenas coisas. Eram pequenas coisas, se calhar mais ou menos inocentes e, talvez até, bem-intencionadas. Só que depois isto começou a alastrar e agora está em todo o lado. E a atitude, ou de ignorarmos, ou de rirmos, pode ser perigosa, porque de repente isto pode estar de tal forma instalado que é difícil de desconstruir. Portanto, dei o meu contributo para começar a ‘desconstrução’.

    Parece ser consensual que este fenómeno começou nos Estados Unidos. Também tem essa percepção?

    Sim, também tenho essa ideia. Isto é engraçado porque se nós olharmos para o que isto é – e estou a ser o mais honesto que consigo ser em relação a transmitir aquilo que eu penso mesmo –, eu acho que isto é uma mistura de 30% de patetice, 30% de paternalismo e 30% de puritanismo. E depois sobram 10% de boas intenções, e metade delas são parvas. Portanto, eu acho que isto tem muito pouco que se aproveite, mas nestes 3 P’s que eu vejo aqui, quer o puritanismo, quer o paternalismo, são conceitos muito presentes na cultura norte-americana. Este cuidado ultra paternalista e ultra puritano tem muito a ver com eles. E é um modelo que, eu sei, e todos sabemos, que até nos Estados Unidos é contestado por muita gente. E o que diríamos cá? É que o ultra paternalismo e puritanismo não têm raízes na nossa civilização, muito pelo contrário. Ou já tiveram, se calhar, mas não têm neste momento.

    Mas mesmo assim está a pegar por cá…

    Está a pegar por uma razão simples: porque é um discurso fácil. É um discurso “da moda”, e é um discurso que não obriga nem a ter background nem a fazer nada, é só ‘desmontar’. Ninguém tem de apresentar uma alternativa, tem só de desconstruir o que já está feito. Isto é extremamente fácil, e permite a desresponsabilização também.  E é preocupante porque nós, em termos civilizacionais, temos todo o direito à indignação e é bom que nos indignemos, nos revoltemos e que lutemos pelos direitos dos outros e pela igualdade… Seja pelo que for, temos todo o direito, e se calhar até o dever, de nos indignarmos. Mas acontece que estamos a viver uma época em que as pessoas vão atrás de quem é o indignado e não de qual é a indignação. Basta pensar que há uns anos estávamos todos, a meu ver, legitimamente indignados, porque os talibãs destruíram as estátuas dos Buda com dinamite. Agora, não conseguimos ter o mesmo tipo de indignação quando vemos estátuas nossas, da nossa civilização, da nossa cultura ocidental, a serem pichadas, derrubadas e escondidas. Porquê? Porque a indignação é a mesma, mas o indignado é outro. Portanto, isto de escolher lados e causas conforme quem é um indignado e não conforme qual é a indignação, é altamente preocupante. E estas selectividade também é própria do politicamente correcto.

    Talvez a razão dessa indignação selectiva seja porque não se trata de uma questão de valores?

    Não, não!, trata-se de abrir as redes sociais e olhar e ver: “quem é que hoje está no pelourinho? O que é que lhe estão a atirar? Vou contribuir também com a minha batata ou com o meu pedregulho e atirar”. Não exige nada, desresponsabiliza, começa e acaba hoje, for preciso… Não há melhor.

    Para além da reedição dos contos de Roald Dahl, houve mais algum episódio ou notícia que o tenha chocado particularmente?

    Sim, há coisas que me chocam. Quer dizer, só nos podem chocar… A história da professora de Artes nos Estados Unidos, que foi demitida da escola porque mostrou aos alunos um PowerPoint ou uma fotografia que tinha a estátua de David, e como os pais não tinham sido avisados, no início do ano, de que ela ia mostrar material “pornográfico”… É assustador: “pornográfico”! E ela foi demitida. Quando nós começarmos a consentir isto… Obviamente que eu – como qualquer pessoa normal – acho que as crianças de qualquer idade, sobretudo em idade escolar e em meio escolar, não podem ser submetidas a ver pornografia. Como é óbvio. Só que, caramba, se a estátua do David é pornografia, onde é que nós vamos parar?

    Tenho a percepção de que muitos jornalistas parecem “alinhar” com e promover, de certa forma, o politicamente correcto: em peças, reportagens, e artigos de opinião. Nesse aspecto, o Mário sente-se muito diferente da generalidade dos jornalistas?

    Espero que não. Sinto-me diferente, mas espero que não seja diferente da maioria. Defendo com a vida que as pessoas possam escrever o que quiserem em artigos de opinião, porque são espaços de opinião, assinados. Portanto, se um jornalista com carteira profissional quiser fazer um artigo de opinião a defender rigorosamente o contrário daquilo que eu estou a defender, acho lindamente. Nas notícias, já não acho graça nenhuma que esteja presente qualquer tipo de contaminação por qualquer tipo de corrente ou de “moda ideológica” que esteja em vigor. Há aqui uma questão, que é: há muita gente que quer ficar bem na fotografia, e faz o que for preciso para ficar bem na fotografia. Eu não quero ficar bem na fotografia – eu nem faço questão de ficar na fotografia. Agora, não vou permitir é que transformem a História numa caricatura do que é a História. A História tem um papel lixado: é sempre um réu. Nunca nos julga. E nós, no passado, cometemos erros grotescos, idiotas, cruéis, hediondos. E enormes virtudes também! As mesmas mãos que fizeram a bomba atómica, fizeram as catedrais góticas. As mesmas mãos que compuseram as sinfonias de Beethoven, fizeram câmaras de tortura. Portanto, nós, para trás, temos do melhor e do pior. Agora, nós não podemos ter o desplante de achar que podemos julgar a História. Aliás, alterar a História: esse é que é o ponto-chave. Olhar para trás e ter um juízo crítico, e pensar “isto foi um disparate tão grande que aquilo que nós mais queremos é que não se repita”, é-nos exigível. Olhar para trás e ‘dourar a pílula’ ou alterar as coisas… Nascer com um sentimento de culpa! Esta coisa, que acaba por ser quase judaico-cristã, que é: nós, enquanto comunidade, estamos todos a pedir desculpa por coisas que os nossos antepassados fizeram. E que estão ultrapassadas! O mais importante é que nós, no futuro, não façamos igual ao que fizemos anteriormente, e integrarmos os erros e as pessoas que foram vítimas desses erros no passado. Agora, esta autoflagelação constante… Ainda agora nasci e já tenho culpa? Não faz sentido nenhum. E sinto, sim, que algum jornalismo – e aí, eu sou um optimista, espero mesmo estar certo –, e não a maior parte do jornalismo, segue essa corrente. É uma corrente facilitista. Portanto, não é de espantar.

    Mas nota-se bem?

    Sim, nota-se, aqui e ali. Não posso dizer que é este órgão de comunicação, ou este jornal ou aquela rádio, não. Se isto continuar assim, daqui a uns anos, talvez até se note. Mas não, por enquanto, o que noto é mais a nível individual: esta ou aquela pessoa, ou este tipo de artigos. Aí sim, nota-se.

    Portanto, diria que se calhar uma parte boa dos seus colegas na comunicação social mainstream não ia achar muita piada a este livro?

    [pausa] Duas coisas. Primeiro: acho que alguns nem iam perceber. Não iam perceber. Explico-me, para não parecer que é uma sobranceria intelectual. Não iam perceber porque iam ficar na dúvida sobre o que eu estava, afinal, a fazer: se era um exercício de sarcasmo ou se era um exercício de exposição de uma causa. E em segundo lugar – já no outro dia disse a alguém, e sublinho –, este livro tem uma coisa óptima. É um excelente presente para dar uma pessoa de quem gostamos, e é também um excelente presente para darmos a uma pessoa de quem não gostamos [risos]. Portanto, acho que isto diz tudo. Mesmo dentro da classe profissional, tão depressa ofereceria este livro a um jornalista que eu admiro e de quem goste, como a um jornalista que não gosto tanto ou cujo trabalho não respeito tanto.

    Este livro é uma reescrita de contos em jeito de paródia, mas já temos visto remakes de histórias e filmes da Disney, por exemplo, em nome da diversidade e da inclusão. Em relação às crianças, vê com alguma preocupação que estejam a viver em ambientes cada vez mais “assépticos” onde é já proibido chamar qualquer ‘nome’, em jeito de brincadeira, a um colega?

    Não; ofender, acho sempre péssimo. Uma brincadeira só uma brincadeira quando as duas pessoas estão a brincar. Não defendo que as pessoas possam ser ofendidas, nem que possam ser ostracizadas por serem diferentes. Mas também não defendo uma “cultura” do melindre permanente: tudo pode melindrar as pessoas, tudo pode fazer mal e tem de se ter cuidado com tudo… Isso não. Educar é preparar as crianças para um mundo que vai ter dias de sol e dias de chuva. Portanto, não é só oferecer, ‘em termos comportamentais’, t-shirt e protector solar. É, também, oferecer botas e guarda-chuvas, porque há dias que não vão ser bons. Os miúdos vão ter dias bons e dias maus. E educar é prepará-los para os dias bons, prepará-los ainda melhor para os dias maus, e nunca esquecer que tanto nos dias bons como nos dias maus, uma coisa que têm de fazer é estar atentos para dar a mão a alguém que esteja ao lado e ajudar. É tão simples quanto isto. Tudo o resto, esta forma de estar na vida em que se tem de ter um cuidado excessivo para não melindrar, e em que já estamos nós a medir a capacidade de os outros ficarem melindrados… Isto é o paternalismo levado ao extremo. E uso um exemplo, que é: os cegos, em geral, não gostam de ser tratados por “invisuais”. Quem criou a expressão “invisual” foram as pessoas que veem, e começaram a tratar os cegos por assim. Sem lhes perguntar a opinião – e eles não gostam. É um ultra paternalismo. As pessoas têm uma doença que se chama cegueira, portanto, são cegas. Eles próprios não querem, ou não apreciam, ser tratados por “invisuais”. E este cuidado extremo, esta paranoia com o melindre, não prepara as crianças. E isso preocupa-me. As crianças terem só uma versão da História, isso já tem a ver com a educação que os pais lhes dão. Agora, não estão a preparar melhores adultos, de todo. Estão a preparar adultos indefesos, porque nem toda a gente está a fazer isso. Se toda a gente estivesse a fazê-lo – eu acharia na mesma que era patético, mas pronto –, as sociedades vindouras seriam assim. Mas não é o caso. Esses miúdos ultraprotegidos vão estar lado a lado, nos campos de futebol a jogar à bola, nas salas de aulas e nas filas para o emprego, com miúdos que foram educados com os princípios – e aqui vou ter de usar a expressão – “normais”. E vão estar em desvantagem.

    Pois, porque já não nasceram e cresceram nesse ambiente e não ganharam “anticorpos”.

    É engraçado; há uns anos, lembro-me de ter lido um artigo, que faz todo o sentido, e que dizia que as crianças estavam a perder imensas imunidades por terem deixado de ter animais dentro de casa, como cães e gatos. Antes, os miúdos andavam com os cães e com os gatos, metiam-lhes a mão e depois metiam na boca… E os miúdos apanhavam umas viroses, e ganhavam uma série de imunidades. Quando os cães e os gatos começaram a estar mais afastados, os miúdos começaram a perder imunidade, porque não estavam expostos a essas “agressões”. Portanto, eu não sou adepto de que os miúdos devam ser postos dentro de pocilgas e de currais, para andarem ali a rebolar na ‘caca’ dos animais e saem de lá todos fortes. Mas se calhar os cães e os gatos que nós tirámos de dentro de casa há uns anos, fazem falta. E aqui é a mesma coisa: esta ultra cultura de melindre que não se pode dizer nada ao menino, isto não prepara ninguém!  Retira-lhes defesas naturais e anticorpos. Vamos ver o que acontece daqui a uns anos… Hoje, já nos queixamos que esta gente toda tem é muitos direitos e poucas obrigações. No outro dia, alguém dizia, com uma certa graça, que aquilo que estas gerações dizem que é uma exigência, para as anteriores era uma ambição. Andam-se a perder aqui passos pelo meio, e se calhar não é boa ideia.

    Parece que é tudo cada vez mais fácil?

    Sim, e é mentira, porque não é nada fácil. Se há coisa que nós aprendemos à medida que vamos vivendo, é que a vida não é fácil. Mas se calhar também faz parte da magia dela.

    Disse que este politicamente correcto é uma mistura de puritanismo, com paternalismo e patetice. Portanto, não vê que haja, também, más intenções por parte de algumas pessoas?

    Pois, eu sei que existe um bocadinho, digamos, a tese de que isto é um movimento, e que tem qualquer coisa por detrás. Eu acho que isto não é orgânico, e acho que a estupidez, felizmente, não é orgânica. Portanto, há núcleos de estupidez e, actualmente, com as redes sociais, as pessoas começam a encontrar mais pontos de contacto e razões para se identificarem. E, se calhar, começam-se a sentir mais normais por serem estúpidas. O que eu acho é que existe muita estupidez, que está espalhada, e com a facilidade que temos hoje com as comunicações, esta estupidez se calhar liga-se com mais facilidade, e dá a ideia de que é um movimento. Não me parece que seja um movimento, mas se calhar posso estar enganado e a ser ingénuo. Talvez haja três ou quatro pessoas mais organizadas que querem fazer alguma coisa disto, mas não me parece que seja.

    Uma das consequências deste fenómeno, é que aqueles que se opõem, acabam por se alinhar mais com movimentos de direita como uma forma de tentar combatê-lo.

    Sim, é mais ou menos fácil isso acontecer, mas também é um bocado tonto. Vamos lá ver: o puritanismo, levado ao extremo, é um conceito muito mais caro à direita do que à esquerda. É quase uma questão de rigidez moral. A esquerda é que tinha, ou costuma ter, quase o exclusivo das grandes liberdades morais, dos livres-arbítrios morais… Eu sei que de vez em quando parece colar, mas depois acaba por ser contra-natura. Lá está, eu acho que isto é estupidez, e a estupidez é transversal. Há estupidez à esquerda e à direita, génios à esquerda e à direita… Isto é um comboio de estúpidos [risos]. Não, também estou a exagerar…  Mas é uma coligação de estupidezes.

    E na sua visão, combate-se com o humor? E o jornalismo, também pode ter um papel?

    O jornalismo, se for sério, tem sempre um papel. E o jornalismo tem de ser sério. Tem sempre um papel, que é pôr um travão a coisas que não façam sentido. Portanto, o jornalismo tem o seu papel – não pode ser permeável às modas. Não pode! Nem às modas linguísticas, nem às modas ideológicas ou morais. O jornalismo é um espelho da sociedade e do tempo em que vivemos. Se calhar, com o tempo, esta permeabilidade torna-se uma inevitabilidade. Agora, enquanto é só uma moda, o jornalismo não pode andar atrás de modas.

    Quanto ao humor, eu diria que é uma boa ferramenta. Usando a linguagem dos contos – que é de contos que estamos a falar –, isto é um bocadinho a história do traje novo do rei, do miúdo que diz “o rei vai nu”. Este exercício de apontar o ridículo de o rei ir nu, e toda a gente estar a gabar a roupa nova do rei, é um exercício que tem um bocadinho de humor, um bocadinho de sarcasmo, mas também tem um bocadinho de tristeza por ter de estar a fazer isso. Mas acho que tem de ser feito. Eu não ficava bem com a minha consciência se visse isto a acontecer e não fizesse nada, se me mantivesse só a comentar com amigos, a dizer “que estupidez, já viste”, e por aí fora. Eu acho que o humor não vence guerras, mas resiste.

    Pois, há quem ache que o melhor a fazer é mesmo ridicularizar e usar o humor como “arma”.

    Sim, é resistência. Isto não é uma guerra, e ainda bem que não é. Mas também se fosse uma guerra – lá está –, o humor não vence guerras, o humor ajuda na assistência. A Segunda Guerra Mundial tem excelentes anedotas, e muitas delas – até li um livro há uns anos –, contadas por judeus que estavam a passar o pior que se pode imaginar e que perceberam que, se calhar com o humor, não ganhavam a guerra, mas resistiam.

    Até agora, já teve algumas reacções ou feedback ‘engraçados’ ao livro?

    Até agora, as pessoas têm sido todas muito simpáticas e têm gostado muito, eu acho [risos]. Muito honestamente, não é por ter sido eu a escrever, mas acho que o livro está muito divertido. Eu diverti-me imenso a escrevê-lo. Acho que o livro está divertido e que as pessoas se divertem a ler. E ainda não tive – eventualmente terei, e estou pronto para isso, para debater alguma coisa que alguém não goste, ou que alguém, justificadamente, queira contrapor… Mas não, até agora, as reacções têm sido mesmo muito positivas.

  • ‘Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres’

    ‘Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres’

    Fronteiras e “muros”: se o mundo precisa de mais ou de menos é uma questão polémica e fracturante. Há quem defenda um reforço das fronteiras a nível global, e quem gostasse que as linhas que dividem as nações fossem mais permeáveis. Escritor, locutor e agente literário escocês, James Crawford investigou os arquivos arqueológicos e arquitectónicos durante mais de uma década e está entre os que acreditam ser possível um Mundo onde as fronteiras dividem menos e agregam mais. Através de dados históricos, viagens, e até Mitologia, este escocês procurou entender como começaram e evoluíram, até aos dias de hoje, as dinâmicas em torno das fronteiras. O resultado foi o livro O poder das fronteiras, recentemente editado em Portugal pela Saída de Emergência, e que foi o foco de uma conversa com o PÁGINA UM.


    Em O poder das fronteiras, explica que foi uma semana específica de 2018 que despertou em si a vontade de compreender a origem das fronteiras e a forma como moldam o nosso Mundo. Quando decidiu escrever este livro, o que tinha em mente?

    Foi o tipo de sensação que se tem quando a pressão acumulada sobre alguma coisa se começa a intensificar. Claramente, existem problemas em torno das fronteiras, e sempre existiram, mas pareciam estar a tornar-se cada vez mais sérios. E eu tinha esta questão: serão as fronteiras um sintoma? Toda a tensão, conflitos e pressão em redor das linhas fronteiriças, seriam um sintoma de outras questões, ou, até certo ponto, seriam as próprias fronteiras que estavam a causar estes problemas?  A forma como operam já não resulta… Foi essa questão que eu me propus a responder. Esse sentimento, de que falo no início do livro, essa semana em que eu via, em todo o lado, notícias sobre a fronteira dos Estados Unidos com o México, ou o conflito israelo-palestiniano, ou as Coreias do Sul e do Norte; e depois, o então primeiro-ministro do meu país a dizer: “fizemos um acordo que vai acabar, de vez, com a livre circulação”, como se isso fosse uma coisa boa. Senti que o Mundo tinha enlouquecido, o meu país tinha enlouquecido.

    Não percebeu os motivos dessa alegria…

    Perguntei: que é que estava a acontecer? Então, tudo aquilo me colocou numa missão, digamos assim… Eu acho que as pessoas não entendem realmente de onde vêm as fronteiras. Qual é a sua origem. Onde começaram. Como mudaram ao longo do tempo. E como estão a funcionar actualmente. E será que as fronteiras conseguem realmente subsistir no Mundo Moderno? Há tantas situações, e não apenas com fronteiras, mas com outros assuntos, em que estabelecemos uma maneira de fazer as coisas, e depois o Mundo muda e essa maneira deixa de funcionar. Mas agarramo-nos a isso, porque é o que conhecemos; e eu acho que as fronteiras são um dos exemplos mais extremos disso. Foram criadas para resolver um problema específico, que foi uma guerra religiosa em meados do século XVII. Mas não funcionam quando lidamos com fenómenos como a globalização, a Internet, as alterações climáticas e a migração em massa, porque são problemas diferentes. Então, o livro é sobre tentar entender se as fronteiras, como operam actualmente, serão sustentáveis. E se não forem, o que podemos fazer?

    Para falar no presente e no futuro, recua até à fronteira mais antiga que se conhece: a Mesopotâmia…

    Falar sobre essa primeira fronteira, este pedaço de um pilar que marcou aquilo que temos a certeza de que foi uma fronteira; vê-la e retirá-la do armazém do Museu Britânico e tê-la à minha frente… Não era muito grande, e estava cheia de inscrições. Pela tradução, alguns sugerem que o que está lá escrito foi a primeira tentativa de fazer História. Antes disso, tudo acontecia num eterno presente; não se tentava juntar uma sequência de eventos, que é como reconstruímos a História. Esta fronteira “explicava” porque é que lá estava. Nessa primeira tentativa de escrever História, temos o primeiro registo de sempre do uso da frase “Terra de Ninguém”. Tocar naquele objecto com os meus dedos, e pensar no facto de ter sido escrito 4500 anos antes de eu lhe ter tocado, e saber o impacto que essa frase teve no Mundo ao longo do tempo, sobretudo no início do século XX, com a Primeira Guerra Mundial… E a forma como a Primeira Guerra Mundial foi quase como uma guerra fronteiriça, em que se criaram estas duas longas linhas, que vão desde o Mar do Norte até à fronteira da Suíça, nos Alpes, e enviaram pessoas através dessa linha para lutarem umas contra as outras; é tão grotesco. Mas o facto de haver uma conexão entre esse pilar fronteiriço, que eu toquei, que é de 2400 a.C., e a Primeira Guerra Mundial, foi realmente chocante.

    Visualização da “primeira” fronteira do mundo no Museu Britânico

    Fez várias viagens para escrever este livro. Que descoberta ou momento destacaria?

    Ir para West Bank, e ficar no Walled Off Hotel, do artista Banksy, mesmo ao pé do muro da Cisjordânia, foi uma experiência muito estranha. O hotel é ao mesmo tempo uma piada e uma provocação, e uma forma de arte de protesto, mas também é muito real para as pessoas que vivem lá, para os palestinianos. Eu acho que nós, no Ocidente, não conseguimos sequer imaginar como será viver ao lado de um muro de cimento de oito metros de altura, que nos separa de uma terra que sempre conhecemos. É algo tão surreal. E sei que é muito difícil, mas se tirarmos a religião e a política do West Bank, durante um segundo, o que temos é quase o futuro sombrio das fronteiras. Se as coisas correrem mal no Mundo, veremos mais destes muros a aparecer em todo o lado e, em certa medida, é o que estamos a ver. E já não se trata de dividir dois países, que foi o que as fronteiras começaram por fazer. Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres. Essa parece ser a tendência; tentar conter o fluxo de migração em massa a nível global, em vez de ser uma questão entre duas nações. É sobre a circulação de pessoas, e o que se vê em Israel é um exemplo de quão extremo isso se pode tornar.

    Vista da varanda do Walled Off Hotel, do famoso artista britânico Banksy, para o muro da Cisjordânia, em Belém. O hotel é conhecido por ter “a pior vista do mundo”.

    Fala também na queda do Muro de Berlim, e de como esse momento fez com que alguns antecipassem um mundo com menos fronteiras, mas que não foi bem assim. Na sua opinião, o mundo ficou mais ou menos dividido, desde então?

    As evidências sugerem uma maior divisão. A queda do Muro de Berlim parecia abrir a possibilidade, não de um Mundo sem fronteiras, mas de um Mundo onde o impacto das fronteiras se faria sentir menos. E nós, obviamente, vivemos isso, experienciámo-lo dentro da União Europeia, com o Acordo de Schengen. Grande parte das infraestruturas fronteiriças entre países europeus foram desmanteladas e podíamos circular com bastante liberdade; milhões e milhões de pessoas podiam circular livremente. Esta era a liberdade de movimento, que Theresa May, a antiga primeira-ministra britânica, falou em terminar, como se isso fosse algo positivo. Quando o Muro de Berlim caiu, havia apenas 12 muros fronteiriços em todo o mundo. Neste momento, há mais de 74, e há mais a serem construídos. A maioria foi construída desde o início dos anos 2000, nos últimos 20 anos. Então, apenas com base na evidência física de separação, é um aumento de seis vezes desde 1989.

    Um paradoxo…

    De certa forma, a fronteira que era o Muro de Berlim, que fazia parte da Cortina de Ferro, dividiu o mundo em dois, mas agora dividimos o Mundo em muitas partes diferentes. Porém, sem dúvida, o sentido do Norte global e do Sul global é onde estão as maiores divisões e de onde brotam as maiores tensões. Seja com a fronteira dos Estados Unidos e do México, seja o Mar Mediterrâneo, como esta espécie de fronteira marítima que as pessoas estão sempre a tentar atravessar, e todos os problemas que tivemos com barcos de migrantes. Depois, vemos coisas como o Governo britânico a tentar enviar refugiados para Ruanda, a terceirizar uma fronteira a 643 quilómetros a sul do Reino Unido. Todas estas tendências, na minha opinião, são uma última tentativa de nos agarrarmos a uma forma antiga de fazer as coisas.

    Não está muito optimista…

    E diria que há duas maneiras de ver isto: uma optimista, que é interpretar como um estágio de negação que se tem sempre antes de as coisas mudarem, e quase forçam mais, porque se trata de simbolismo… E acho que muitos dos muros que construímos, seja o muro de Donald Trump no México, ou o movimento “parem os barcos” na Inglaterra, ou os muros que estão a ser construídos entre a Grécia e a Turquia, ou entre a Polónia e a Bielorrússia… Sabemos que estes muros não são, na verdade, muito eficazes a impedir que as pessoas circulem. São construídos para apelar aos eleitores, para que os partidos de direita, em particular, pareçam fortes. Por isso, tornam-se um símbolo, mesmo que sejam ineficazes enquanto políticas.

    No seu entender, foi o que aconteceu com o Brexit?

    Acho que foi uma espécie de olhar nostálgico para o passado, um dos aspectos que espoletou o Brexit, no meu país: uma sensação de tentar recuperar a grandeza do Império Britânico, virando as costas à Europa. E obviamente falhou redondamente. Podemos ver economicamente o que aconteceu ao meu país desde então, mas também podemos ver o poder de uma fronteira através disso. As fronteiras permitiram o desenvolvimento das nações. Antes de haver fronteiras, a palavra “nação” não existia. Não pensávamos em identidade nacional, porque as fronteiras não eram desenhadas tão duramente como foram depois de meados do século XVII. E agora há quase a sensação de que as próprias fronteiras são a fonte do nosso nacionalismo, por isso definimo-nos em oposição a outras pessoas. E acho que foi isso que aconteceu no Reino Unido, definirmo-nos em oposição à Europa. Podemos ver que na América há uma política isolacionista que define a posição americana em relação aos outros países, que tenta virar as costas para o mundo e ter essa política de “América Primeiro”. Mas com o impacte das alterações climáticas, a pressão que vai ser colocada nas fronteiras será tão extrema, que penso que vamos ser confrontados com a realidade de mudar a forma como funcionam.

    Então, que modelo imagina para o funcionamento das fronteiras? Um modelo mais cooperativo, ou um mundo sem fronteiras?

    Eu não acredito que alguma vez possa haver um Mundo sem fronteiras. Logisticamente, seria muito complicado. Mas já tivemos conflitos por causa de fronteiras, vimos isso a acontecer. Aconteceu na Europa, e lidámos com isso de uma forma, de certo modo, que o mundo nunca viu. Sempre que alguém fala dos problemas com as fronteiras, as pessoas dizem: “não é possível um mundo sem fronteiras, é utópico e louco”. E sem dúvida que não é o que eu defendo. Se recuarmos, como eu tentei fazer no livro, e desconstruirmos o que é uma fronteira, vemos que, no final de contas, cada fronteira é uma história. É uma história que contamos. Nenhuma fronteira política alguma vez existiu de forma natural, e nunca existirá. Quando se ergue uma fronteira política, trata-se de uma história. E quem é que a está a contar? É contada por algum motivo em particular. Mas também é possível contar uma versão diferente da história, e é aí que reside a questão: estas histórias não são eternas. As fronteiras, que criamos, sugerindo que nunca se movem, não é verdade, porque movem-se o tempo inteiro. No livro dou exemplos. Um dos mais reveladores é a dos Estados Unidos com o México, que estava num lugar completamente diferente até há 200 anos. Cerca de 805 quilómetros quadrados do que é agora os Estados Unidos era México até o ano de 1848. Portanto, a ideia de que as fronteiras actuais são uma estrutura fixa e eterna, é obviamente ridícula.

    No livro fala também no conceito de nicho climático humano, como a única verdadeira fronteira que existe para a Humanidade…

    É a ideia de que cada espécie na Terra tem um nicho climático, e um dos exemplos mais óbvios é a “linha de árvores”, em que acima de uma determinada altura numa montanha, uma árvore não cresce porque a temperatura é demasiado baixa. Há um matemático ecologista com quem falei sobre isto, que investigou sobre se haverá ou não um nicho climático humano. Ou seja, se as condições sob as quais os humanos tenderam a prosperar, e as áreas do planeta onde têm vivido, estão dentro deste nicho climático. E ele descobriu que sim, muito claramente, e que os seres humanos sempre tenderam a viver em lugares com temperaturas entre 11 e os 15 graus centígrados. E cerca de 95 a 97% de toda a população global vive dentro desse nicho, mas com o impacte das mudanças climáticas, esse nicho vai mudar nos próximos 50 anos mais do que mudou nos últimos 6.000 anos. E se mudar como foi projectado, com as estimativas para o aumentar das temperaturas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, em vez de ser 97% da Humanidade a viver nesse nicho, será apenas 70 ou 75%. Portanto, cerca de 25% da população mundial viverá em sítios com temperaturas mais elevadas do que se costumava viver. E estamos a falar de dois mil milhões de pessoas. Portanto, a questão é, se dois mil milhões de pessoas viverem em regiões sem condições, o que irão fazer? Presumivelmente, deslocar-se-ão, e isso colocará uma pressão sem precedentes nas fronteiras.

    As bordas de um glaciar no vale de Ötztal, no Tirol, nos Alpes austríacos, na fronteira entre Áustria e Itália (Áustria à esquerda, Itália à direita)

    Acredita que as alterações climáticas terão um impacte assim tão significativo, que obrigue a redefinir as fronteiras?

    Temos de reflectir sobre a gestão de um fluxo de pessoas por causa das alterações climáticas. Obviamente, neste Verão, com as ondas de calor, as secas e os incêndios florestais no Sul da Europa e na América do Norte, acho que as pessoas estão a perceber quão severos podem ser os impactes das alterações climáticas. E isso faz com que as fronteiras, como estão actualmente, se tornem insustentáveis. Vemos que as outras espécies, sejam plantas ou animais, estão a deslocar-se. Mas as pessoas não. É como se tivéssemos desistido da liberdade de movimento que as outras espécies têm; e isso vai tornar-se cada vez mais um problema. Então, é nisso que temos de trabalhar em cooperação. E uma das coisas que o matemático ecologista me disse é que, na verdade, existem linhas fronteiriças na Natureza, que se chamam ecótonos. Por exemplo, quando se passa da savana para o deserto, ou para uma floresta tropical. Esses ecótonos são os lugares onde se encontra a maior biodiversidade, porque muitas coisas se juntam. E, portanto, a forma como uma fronteira funciona na Natureza é exactamente o oposto das fronteiras que criámos, que é um corte abrupto entre os dois lados. Na Natureza, é um lugar de troca, comunidade e agregação. E se pudéssemos repensar as fronteiras dessa forma, acho que seria uma transformação de como o Mundo funciona. E já há exemplos disso.

    Numa moto de neve, no lago gelado que forma a fronteira entre a Suécia e a Finlândia

    A Grande Muralha Verde, em África, de que fala no final do livro, é um desses exemplos?

    Sim, esta ideia de criar uma espécie de mosaico na paisagem, de um extremo de África até ao outro, ao longo do Sahel, em parte para combater as alterações climáticas. Plantaram-se árvores, ajudou-se a agricultura, criou-se uma agrofloresta… É um muro que foi concebido para aproximar as pessoas, em vez de as afastar. Portanto, há exemplos, não é apenas um desejo utópico, e acho que esse é o ideal para o qual devíamos apontar. Mas precisamos de dialogar, e o perigo actual é que estamos simplesmente a virar costas aos problemas e a construir muros, mesmo sabendo não ser essa a solução. É uma medida de curto prazo, em grande parte para conseguir votos e para que certos partidos políticos se mantenham no poder.

    Seria possível que se construíssem mais Grandes Muralhas Verdes? Para si, é uma expressão positiva que os muros, geralmente com uma conotação negativa, podem ter?

    Sim, eu falei com uma das responsáveis pelo projecto, que trabalha na Grande Muralha Verde para as Nações Unidas, e ela disse que adoraria vê-las em todo o lado. E eu perguntei-lhe se conseguia imaginar uma na fronteira dos Estados Unidos com o México, e ela respondeu que não podia comentar esse assunto [risos]. Mas é um exemplo perfeito. O Sahel é um território que se tem degradado muito com as alterações climáticas. Está a caminho da desertificação. E a ideia de tentar fazer deste lugar um sítio de intercâmbio e comunidade, em vez de um lugar de confronto e oposição… Não há nada que nos impeça de fazer o mesmo, a não ser as narrativas políticas que contamos. E acho que é isso que é tão interessante sobre o que precisamos de fazer, e os paralelos com as alterações climáticas são exactamente os mesmos. Temos a tecnologia e o conhecimento necessários para mudar os nossos comportamentos. A questão é: podemos mudar a forma como nos comportamos? Não é se é possível fazê-lo, mas se é possível mudar a nossa mentalidade.

    Estabelece também uma metáfora entre as fronteiras e as defesas do organismo humano contra os vírus, como a covid-19. A intenção era mostrar, através de comparações, como funcionam as fronteiras?

    Sim, eu comecei a escrever o livro antes da pandemia, e estava a meio quando eclodiu. Uma das histórias que conto, quando estava na Noruega, é sobre o povo Sámi, a última população indígena da Europa, e o impacto das fronteiras. Quando me vim embora da Noruega, foi o dia em que o país fechou as suas fronteiras a todos os estrangeiros, em Março de 2020 [risos]. A partir daí, o Mundo encolheu progressivamente. Eu estava a viajar por causa do livro, e a partir daí, o Mundo encolheu à minha volta. Pelo menos, eu tinha um propósito, porque estava a escrever o livro. Antes, tinha pensado em escrever sobre a possibilidade de pandemias e o que elas faziam às fronteiras. E depois, dei por mim a viver uma pandemia. Por isso é que, em vez de dedicar apenas meio capítulo ao tema, foi praticamente um capítulo inteiro. E é fascinante ver como a “tecnologia” em torno das fronteiras se desenvolveu como uma forma de controlar a propagação de doenças, desde a Peste Negra até a cólera. Antes de se implementar um passaporte, era mais importante ter documentos a comprovar que não se tinha doenças, para poder atravessar lugares. Depois, falei com biólogos sobre as fronteiras. Porque começamos a pensar no que realmente acontece quando o SARS-CoV-2 entra no nosso corpo: o vírus está a cruzar um “limiar”, é uma metáfora para uma fronteira. E é tão interessante ouvir um virologista falar sobre o que acontece, porque, na verdade, o problema está, particularmente com a primeira onda, na reacção exagerada do corpo ao vírus. E como o corpo, os diferentes órgãos, reagem exageradamente a esta espécie de “invasão”, começam a autodestruir-se. Parece uma metáfora certeira! Tantos destes problemas são espoletados pelo medo, ao tentar ser-se forte nas fronteiras. E é esse stress constante e sentido de se estar sob ataque, que leva a um colapso. Então, parecia que havia paralelos realmente fortes entre a covid-19 e o que estava a acontecer, em geral, a nível geopolítico.

    Faz quase uma visão “panorâmica” de diferentes tipos de fronteiras [risos].

    Sim, acho que o livro foi sobre tentar entender todas as diferentes dimensões de fronteiras, sejam físicas, celulares ou paisagísticas. Eu não tenho formação em Biologia. Por isso, falar com um biólogo, que estava a ser pago pelo Governo americano para entender como a covid-19 actuava, foi incrível; ter a sua visão e depois ver como as fronteiras se tornaram tão importantes durante a pandemia… Estávamos a fechar as fronteiras, mas claro que o vírus passou de qualquer maneira. Portanto, foram importantes, mas totalmente ineficazes. A única verdadeira fronteira era a nossa própria pele, as nossas células. Isso foi poderoso para mim, na altura, porque não tínhamos a certeza se o Mundo voltaria a recuperar qualquer sentido de normalidade. Todos esses factores conjugados tiveram um grande peso na experiência emocional que foi escrever o livro.

    Fala também de fronteiras tecnológicas, nomeadamente a Grande Firewall da China, que mostrou ser possível colocar barreiras ao suposto Mundo livre e que seria a Internet.

    A Grande Firewall é algo que considero tão trágico. O início da Internet foi sobre quebrar fronteiras, e qualquer pessoa de qualquer ponto do planeta se poder juntar.  E o facto de certos países olharem para isto e dizerem: “não, não gostamos disto, queremos ser capazes de controlar o fluxo de informação e ideias, tal como uma fronteira controla o fluxo de pessoas”… É tão contraditório e totalmente contra o propósito para o qual a Internet foi criada. E é um sintoma da febre de fronteiras que se desenvolveu, mas, além disso, não funciona. As coisas passam, há sempre lacunas, sabemos que os “muros” não resultam. Todas as evidências nos mostram isso. Sempre que se ergue um muro, e a história comprova-o, em algum momento cairá. Não há nenhum muro que tenha durado desde o momento em que foi criado até agora. Eles desaparecem, deslocam-se, alteram-se. E tal como agora estamos a debruçar-nos sobre as alterações climáticas, e com a forma como lidamos com as emissões de carbono; há tanto dinheiro investido na indústria fóssil, tantos interesses instalados, que é difícil ultrapassar isso. E acho que é semelhante ao que acontece com as fronteiras. É um apego, mas acho que é aquele último apego antes da mudança. É isso que eu espero. E temos de ter esperança, porque caso contrário, caímos em desespero. Mas há exemplos, não é que não existam. E foi por isso que escrevi o livro, para contar estas histórias e transmiti-las ao maior número de pessoas possível. O meu livro não é um manifesto, não dou um plano de acção sobre como mudar as fronteiras, mas espero que no final da leitura, se entenda porque é que não estão a funcionar, porque estão a quebrar, e o que temos de fazer para nos adaptarmos e, espero eu, mudarmos para melhor.

  • ‘Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita’

    ‘Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita’

    Aos 34 anos, Tiago Paiva já não é só um youtuber no nicho cada vez mais gigantesco das redes sociais. A partir do momento em que, em Maio passado, da tribuna do Parlamento, no decurso de uma visita informal a convite da Iniciativa Liberal, lançou um insulto ao primeiro-ministro António Costa, a sua fama engrandeceu-se. Embora conte com cerca de 176 mil subscritores no seu canal de Youtube e mais de 290 mil seguidores no Instagram, quer libertar-se de amarras e prepara o lançamento da sua própria rede social, a Hodl, como forma de “ripostar” contra a crescente censura. O PÁGINA UM quis conhecer melhor este portuense de gema nesta primeira entrevista aos Irreverentes da Nação. Preparem os cintos e não se escandalizem por não haver asteriscos: vai haver quem goste e vai haver quem deteste. Menos mau, conquanto todos possam opinar.


    És sobretudo conhecido como youtuber, mas começaste por apostar na música, e também trabalhaste como actor e argumentista. Afinal, qual era o teu sonho?

    Quando miúdo, o meu objectivo era ser actor e músico. A minha referência era o Jared Leto, porque é um actor incrível e é um músico incrível [vocalista e guitarrista dos 30 Seconds to Mars]. Entretanto, comecei-me a aperceber que, vivendo no Porto, não sabia como fazer para ser actor. Eu tinha tocado violino quando era pequenino, dos 7 aos 12 anos – a minha mãe era professora de música, e o meu avô era da orquestra sinfónica –, mas depois desisti. Tinha uma banda, mais ou menos 16 anos, só que os meus companheiros não tinham o ritmo… Quando entro em alguma coisa, é para ser a sério, não gosto de estar a fazer alguma coisa só por fazer. Tem de haver um objectivo, senão para mim não faz sentido. Não consigo estar num projecto só pelo prazer; para isso vou jogar golfe com os meus amigos. E mesmo para jogar golfe, se não tiver um objectivo, já não tem piada. Infelizmente, sou assim [risos]. Se calhar, gostava de ser um bocadinho diferente, às vezes.

    És ambicioso?

    Sim, mas não acho que seja só uma questão de ser ambicioso. Acho que tenho um bocadinho de overthinker, e se vou fazer alguma coisa, tem de haver um objectivo. Por exemplo, não consigo estar deitado na praia, quieto, só a apanhar sol, sem fazer nada.

    E qual o estilo dessa banda em que estiveste?

    Era de punk-rock americano. As referências eram Sum 41, Blink-182 e principalmente Yellowcard,. Foi por causa dessa banda que eu voltei a tocar, com o violino, e em punk-rock. A minha namorada da altura era a guitarrista. Eles mostraram-me uma música com violino, e então voltei a tocar. Só que depois percebi que se não ensaiássemos mais, não íamos conseguir levar aquilo adiante. Tentei puxar por eles, até perceber que era difícil, era cada um para seu lado. Então, decidi experimentar tocar violino em discotecas, achei que podia ser uma cena gira. A nível da música, foi assim que comecei.  A representação surgiu depois, quando já estava a ganhar um bom dinheiro. Nessa altura, ainda estava a estudar Arquitectura – a minha mãe queria que eu fosse arquitecto. Aquelas coisas…

    E tu não querias ser arquitecto…

    Opá, não. Estava a tirar o curso porque a minha mãe queria, e porque não havia nada que eu pudesse mostrar como alternativa. Então, foi com o violino que isso aconteceu, comecei a ganhar muito dinheiro, e disse-lhe que queria ir viver para Lisboa para estudar interpretação. Nessa altura, eu jogava golfe, era federado, e fazia os torneios todos. E o [actor] Lourenço Ortigão entrou nos Morangos com Açúcar; e eu conhecia-o porque jogava os torneios comigo. Eu liguei-lhe e perguntei-lhe como tinha conseguido, e ele disse: “olha, foi granda ‘pilada’, porque fui lá levar a minha namorada, eles viram-me e acharam que eu era parecido com o Zac Efron”. Sugeriu-me que experimentasse uns workshops de duas semanas para ver se gostava, e se gostasse podia fazer os de três meses. Fui para Lisboa fazer esses workshops, aproveitei e fiz mais um workshop de um ano de Produção e Música, mas na verdade pouco ia às aulas. Era muita iniciação, e eu já passava horas e horas a fio, até às 5 ou 6 da manhã, todos os dias, a produzir e a aprender por mim. Quando cheguei lá, aquilo que eles estavam a aprender, eu já sabia de cor.

    Foi então aí que decidiste criar a série 4Play?

    Eu comecei a perceber que não havia castings, fui ao dos Morangos [com Açúcar] porque era a única merda que havia na altura para fazeres. E a probabilidade de entrares era quase nula. Então, entendi que não dava. Depois vi um filme do Ben Affleck e do Matt Damon, O bom rebelde, e fui pesquisar, e vi que eles basicamente criaram a oportunidade deles. Ou seja, escreveram o guião, e até ganharam o Óscar de Melhor Argumento, e foram os dois as personagens principais. E eu pensei: olha, vou fazer a mesma merda, vou criar uma série. Naquela altura ninguém via séries, e eu, há 15 anos já “papava” tudo: Friends, Seinfeld, How I met your mother, tudo. Mas eram raras as pessoas que viam séries, eu tinha alguns amigos que viam, mas não é como agora, que é uma cena normal. Tanto assim que então as séries eram consideradas a “segunda liga”; havia o cinema e depois vinham as séries. Hoje, já estão no mesmo patamar: actores como Idris Elba e Matthew McConaughey fazem todos séries, mas antigamente isso não acontecia. Se fizessem, era porque não estavam bem. Mas eu adorava, e decidi criar eu a minha própria oportunidade, e fiz a 4Play.  

    Foi também aí que começaste no Youtube?

    Sim, eu comecei com o YouTube porque já tinha muitas ideias. Lembro-me de aos 16 anos, eu e o meu grupo de amigos termos como referência os Gato Fedorento [criados em 2003]. Eu já escrevia sketches e cenas assim engraçadas, e guardava na gaveta. Nunca tinha feito nada com isso, porque não era como hoje: os miúdos filmam tudo com o telefone, põem no Tiktok e já estão a bombar. Tenho a certeza que se houvesse Tiktok na altura teria sido desde cedo a bombar. Mas não havia, não havia câmaras nos telemóveis, e para teres uma câmara era preciso guita a sério. Acabei por deixar andar. Depois, fui fazendo uns vídeos de longe a longe, na inocência de achar que ficariam virais e que me catapultavam. Achava que se tivesse um vídeo viral no Youtube, se calhar conseguia arranjar mais trabalho como actor, que era o meu objectivo. Ao ser conhecido e ter visibilidade, se calhar ia conseguir arranjar certos trabalhos como actor…

    Então, o teu principal objectivo era mesmo ser actor…

    Sim, sempre foi, na verdade. Entretanto, já mudou o jogo, mas sim o objectivo era ser actor. Lancei meia dúzia de vídeos, e depois, ainda antes da pandemia, estava com a ideia de voltar a fazer YouTube, mas com mais consistência, e depois quando fui viver com o Ângelo Rodrigues… Nós tínhamos muitas conversas; filosóficas, de gajas, de tudo, e passávamos muito tempo juntos. Isto antes de ele ter aquele acidente. E uma cena que ele me ensinou, e bem, e que eu passo também para quem gosta, e para o meu público, é que temos de ter consistência se queremos fazer YouTube. Temos de lançar cenas todas as semanas, não é quando apetece. E eu já estava a preparar vídeos, tinha uma lista interminável de merdas no telefone.

    Quantos subscritores tinhas nessa altura, em 2019?

    Uns 30 e tal mil.  Porque fiz a 4play [em 2017], e teve sucesso. Não o sucesso que eu tenho agora, mas havia pessoas que me conheciam. Não era uma pessoa superconhecida; claro que quando andava na rua, havia pessoas a pedir fotos ou a pedir a segunda temporada. Porque antes de pedirem uma foto, a primeira coisa era perguntarem-me pela segunda temporada [risos]. Ainda hoje, passados quase sete anos… Enfim, eu já ia voltar para o YouTube, e com o Ângelo a bater na tecla da consistência; pronto, pensei, então vamos lá fazer aqui uma cena com consistência. Comecei a preparar vídeos para filmar, até que tinha filmado já um, e foi quando entrou a covid. Por isso, os meus vídeos do início, quando comecei a fazer isto a sério, são praticamente todos de máscara; as pranks que eu fazia na rua. Agora é impossível porque as pessoas conhecem-me, já não dá. Tenho pena, na verdade, porque era um conteúdo muito giro.

    Falemos do teu vídeo na Assembleia da República. O teu alcance junto do público cresceu muito?

    Cresceu mais o Instagram do que propriamente o YouTube, que já estava a crescer, e cresce todos os dias. Agora, é claro que o Instagram cresceu quase em 100 mil seguidores, foi imenso [risos]. Foi bom.

    E como foram as reacções ao vídeo? Mais positivas ou negativas?

    Foram completamente positivas; a única cena foi que eu já estava assim meio: “epá, já chega”. Durante um mês não conseguia andar na rua sem ouvir: “Costa vai para o caralho”. Literalmente, se eu estivesse a conduzir ou a pé, onde quer que estivesse, era a primeira coisa que me diziam, dos 12 aos 60 anos. E eu já estava: “pronto, está bem, já chega” [risos].

    Antes disso, já falavas sobre política?

    Já tinha falado de política no meu podcast Devaneios e noutras situações, já tinha mandado umas “berlaitadas”. Gosto de as mandar, e cada vez tenho de mandar mais, porque nós estamos numa situação que tem de mudar urgentemente.

    Mas sempre tiveste posições vincadas politicamente?

    Sim, já tinha, sempre fui um bocadinho mais à direita, porque a esquerda não funciona. O centro, como nós vemos, também não, e eu pelo menos sou um bocadinho mais à direita. Não sou extrema-direita, mas sou mais à direita.

    Dirias que os artistas tendem a identificar-se mais com a direita?

    Não!, pelo contrário. No mundo artístico tens muitos fascistas [risos]. Não, no meio artístico é tudo Bloco de Esquerda ou à esquerda; a maior parte é de esquerda. Mas eu digo-te porquê: são todos falidos, e, em geral, as pessoas falidas e artistas são à esquerda; é sempre assim. Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita. Porquê? Porque é quem cria empregos que põe um país a andar. Não é, como nós agora, a tentarmos ser todos iguais, que nunca vamos ser. As políticas deles [de esquerda] são boas no papel, porque na realidade nunca iriam funcionar. Portanto, a maioria dos artistas, principalmente de teatro e essas merdas, é tudo de esquerda. Vivem daquele dinheiro, e não entendem que uma pessoa como eu, ou como outras que trabalham 16 horas por dia, se for preciso, para que as coisas aconteçam, têm “direitos” diferentes. Quer dizer, os direitos são os mesmos, mas a questão é que, se eu trabalho mais, tenho de ganhar mais. Ninguém me obriga a trabalhar mais, mas eu trabalho porque quero. Portanto, se tu queres trabalhar pouco, tudo bem, mas vais ganhar pouco. Eu não tenho de ganhar o mesmo que tu se eu trabalho o dobro, ou se a minha área dá mais dinheiro. Isto é como aquela história do futebol feminino, de quererem ganhar o mesmo que no futebol masculino; e é estúpido. Minha querida!, o futebol feminino não tem a mesma audiência e a mesma revenue que o futebol masculino; logo, não podes ser paga da mesma forma. É tão simples quanto isso. Da mesma forma, uma modelo feminina ganha muito mais do que os modelos masculinos, é o que é. É o negócio. E vemos algum homem a dizer que quer ganhar como elas? Ou na pornografia, por exemplo, as mulheres ganham muito mais do que os homens. Elas é que são as estrelas, não são eles. Faz parte, é o que é.

    Esse facto de os artistas serem mais de esquerda é uma das causas para não serem tão contestatários e críticos do actual Governo? Não vemos muitos artistas a criticar os governantes, certamente não tanto como tu… Gostavas que os teus colegas falassem mais contra a situação do país?

    É lógico, não é? O Partido Socialista (PS) está no poder há anos. Agora, têm maioria absoluta. Ou seja, eles decidem tudo, não há como não decidirem. E acho que não podemos ter um partido com maioria absoluta, é mau para o país. A verdade é que o PS não defende o país, eles defendem-se a eles próprios. Defendem os tachos que arranjam aos familiares, e por aí fora, e continuamos nisto. Querem que o povo seja burro, e que seja pobre para que dependa deles. Eu fiz um vídeo com a avó da minha namorada, e ela estava contente com os 125 euros que o Governo deu, mas o que ela não vê é que dão 125 e tiram do outro bolso. Ou seja, eles mentem ao povo, mandam areia para os olhos dos velhinhos, e a nossa população é muito envelhecida…  E mete-me realmente nojo saber que o partido que manda no país é um partido que engana as pessoas, e engana velhinhos, para se manter no poder. Eles querem que sejamos pobres, na verdade, não querem que haja pessoas ricas. Assim dependemos deles, e depois quando nos dão alguma coisa, pensamos: “ah, eles são tão bons”… E isto tem de acabar.

    E no teu círculo vês outras pessoas com a mesma opinião, mas que não falam, não são tão vocais, por receio?

    Sim, claro. As pessoas têm receio, ou de serem canceladas, ou das marcas… Eu tenho amigos youtubers, dos “grandes”, que não vão dar opiniões políticas, ou actores que não dão opiniões políticas, porque os pode prejudicar no trabalho. É isso que eu gosto também no meu trabalho: eu estou-me a cagar, vou dizer o que me apetecer. Se os meus patrocinadores não gostarem, que vão à vida deles.

    Não te vais condicionar pelo dinheiro?

    Claro que não. Aliás, pelo contrário. Houve a situação toda do Costa, e em relação à pergunta que fizeste sobre as reacções, foi tudo positivo, e os únicos comentários que tive negativos foi no Twitter [actual X], que é a plataforma mais nojenta que existe. É tóxica, só estão lá pessoas tóxicas. Claro, vais ter comentários negativos no Instagram, e etc., mas na rua nunca ninguém me disse nada a não ser coisas boas. Disseram-me: “estamos contigo, estamos na luta, estes gajos têm de sair dali”. Portanto, foi este o resumo. Mas quando és figura pública, tens sempre comentários negativos e positivos. Até podias estar a acabar com a fome. Se eu agora tivesse 10 milhões na conta, e desse a um país qualquer em África, ia haver sempre alguém a dizer algo de negativo, mesmo com uma coisa tão positiva como essa. Portanto, não há como… Já estamos habituados a isso, mas no cômputo geral foi óptimo. Vendi muitas camisolas…

    Portanto, foi bom para o negócio? [risos]

    Foi bom para o negócio [risos]. Já não me posso queixar.

    Falaste no Twitter. Estiveste uns meses sem lá ir, e regressaste depois deste vídeo do Costa? Foi por causa dessa “toxicidade”?

    Eu nunca vou ao Twitter, na verdade. Não me interessa. Eu faço stories todos os dias; por acaso agora tenho feito menos, porque estou aqui para recomeçar a temporada do YouTube, negócios a acontecer novos, e estou um pouco cansado [risos].

    Portanto, podemos esperar que continues a criticar o Governo…

    Sim, claro que sim. Nós temos de falar contra o sistema, senão isto não muda. Não dedico o meu canal do YouTube a isso, logicamente, não gosto de meter as coisas de calçadeira… Mas quando há uma oportunidade de falar sobre as coisas, falo. Não vou fazer um vídeo só para falar nisso, isso deixo para os “Gonçalos” [referência ao youtuber Gonçalo Sousa] e todas as outras pessoas que falam sobre política, e eles que façam isso, que é o conteúdo deles. O meu é outro, mas quando tiver de mandar as minhas gaitadas, mando.

    Um dos teus projectos mais recentes é uma nova rede social, a Hodl. Será lançada em breve?

    Em breve, salvo seja. A única informação que posso dar, porque não posso mesmo falar, é que ainda vai demorar uns sete meses para sair a primeira fase. Vamos dividir isto em quatro blocos, e vamos começar só com um chat. É a única coisa que eu posso dizer. Tem algumas coisas diferentes dos Whatsapps e assim, umas ligeiras modificações, e tem uma cena que eu acho muito fixe mesmo. Depois vamos à primeira ronda de investimento, para depois avançarmos para as próximas fases, que já requerem muito mais investimento e dinheiro para manutenção em servidores.

    E um dos motivos que te levou a querer criar esta rede foi a falta de liberdade de expressão que sentias nas redes convencionais?

    Sim, e o facto de ser banido do Tiktok, de eliminarem histórias a toda a hora de cenas que não têm nada de mal, simplesmente porque fazem denúncias. Pessoas que não têm nada para fazer, e fazem as denúncias. O Tiktok é uma plataforma – e podes mesmo escrever – muito coninhas. Tu não podes fazer absolutamente nada. Eu já fui banido no Tiktok porque fiz um vídeo com a sunga do Borat. Tive de criar outra vez uma conta, já vou na terceira. Já nem tenho paciência, e já nem posto nada, não vale a pena. E depois no Instagram, houve stories e posts a serem removidos, que já eram de 2020 e 2019. Alguns actuais. E uma pessoa pensa: há aqui alguma coisa muito errada mesmo, porque já não se pode dizer nada.

    Que tipo de conteúdos eram?

    Já não me recordo, sei que era humor negro ou cenas assim do género. Enfim, se tiras a alguém a liberdade de fazer humor negro, ou qualquer humor que seja, estás a matar a liberdade de expressão. E não é só a mim, é a muita gente. Eu estava a criar uma espécie de rede social para Web3, ou seja, para a parte das NFTs [nonfungible tokens] e cripto. E depois pensei que tinha de ser algo tipo Web 2.5 ou Web 2, mas com algumas características de Web3.  E foi aí que cometi a “loucura” de pensar: ok, então vou fazer uma rede social melhor do que as outras, com mais liberdade de expressão e com características novas.  

    Sabe-se que tens falado sobre a covid-19 e as vacinas… Sentes que te tornaste mais crítico do estado das coisas após a pandemia?

    Eu acho que quem se preocupa, acabou por ficar mais crítico. Durante a pandemia fomos uns ratinhos, andámos de um lado para o outro a fazer o que eles mandavam. E depois percebemos que aquilo foi uma palhaçada autêntica. Não há outra palavra: foi uma palhaçada. Eu comecei a fazer YouTube quando começou a covid, e na altura tinha uma série de apartamentos meus, tinha feito um investimento num apartamento que ia remodelar e vender ou fazer alojamento local. De repente, tinha a minha liquidez toda nos meus apartamentos, e zero dinheiro. Na altura perfeita, que começa em Março, a época alta, e eu a esfregar as mãos, depois de todo o trabalho que tive, depois de suor, trabalho, dinheiro… Quando finalmente estou para recuperar aquilo que investi, vem a covid, e fechou tudo. Fiquei mesmo nas lonas. Tive de me reinventar e pensar: o que vou fazer agora? Como já ia fazer Youtube, apostei naquilo ainda mais. Por esse lado, até foi bom, se calhar se não tivesse sido a covid, não me tinha dedicado ao Youtube. Como não se podia fazer nada, dediquei-me àquilo. Mas sim, sinto que qualquer pessoa que se importe, acabou por ter um bocadinho mais voz e mais “vontade”, ao perceber que aquilo que eles fizeram foi estúpido… Resumidamente: uma coisa é os velhinhos tomarem a vacina, porque são mais debilitados, claro. Não digo que não. Mas pessoas jovens a tomarem uma vacina para uma doença que não [lhes] fazia absolutamente nada? Pá, não. E depois há os efeitos adversos, que é só ver as estatísticas, nem vale a pena estar a falar sobre isso… A Ciência não mente. Ainda ontem me apareceu um reel de um médico de 70 e tal anos a falar desta situação, e da gripe, que mata pelo menos umas três mil pessoas por ano. E a covid teve números muito parecidos, mas de repente já não havia gripe. Era só covid… Mas, enfim, tenho a certeza que tudo isto não cheira nada bem, digamos assim.  

    E sentiste que as críticas que fizeste nos últimos meses te prejudicaram financeiramente ou em termos de eventuais parcerias e trabalhos?

    Não. Já me aconteceu, por exemplo, uma marca que queria fazer uma publicidade, e depois não avançou, e provavelmente foi por causa da situação do Costa. Mas eu tenho os meus patrocinadores principais, como a Solverde, há dois anos, e muito provavelmente vamos renovar contrato. E são esses que me interessam, são esses que acreditam em mim há imenso tempo, e tenho um bom contrato com eles que dá para pagar a minha estrutura, que é grande. Já tenho uma estrutura grande e consigo mantê-la. Claro que em Portugal é sempre difícil, porque por muito bem que eu ganhe, 50% é para o Estado… Por isso é que muito provavelmente vai deixar de ser para o Estado português e vai para outro [risos]… É o que é. Se baixassem os impostos, as pessoas ficavam aqui. Não cabe na cabeça de ninguém que metade do que uma pessoa ganha vá para o Estado. Repara, vamos supor: se uma pessoa ganha mil euros, paga 25%, ou seja, 250 euros ao Estado. Portanto, se eu ganhar 10 mil euros, fazia sentido que eu pagasse 2.500 ao Estado, era o que fazia sentido. Ganho mais, mas é a mesma percentagem, por isso estou a pagar mais dinheiro na mesma. Então, por que razão há escalões se eu que ganho mais tenho de pagar metade e não os 25%? É porque o gajo que ganha os 10, os 20, os 40 ou os 100 mil, com mais dinheiro, vai ter mais estrutura, e assim vai contratar mais pessoas… Isto não faz sentido nenhum. E depois, o que é que acontece? Pessoas empreendedoras saem do país. E, enquanto continuarem com isto, é o que vai acontecer… Tens países inteligentes, que têm IVA a 4,5% e benefícios fiscais para empresas, etc. E os nossos benefícios fiscais são só para quem vem de fora… Um chinês que venha para cá não paga durante dois anos para ter um negócio dele. Não sei se ainda está assim, mas há uns anos, era assim. Passados dois anos, põe a empresa em nome do filho e continua 20 anos sem pagar nada. Pronto. Pagamos nós, não é?

  • ‘Para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante’

    ‘Para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante’

    Observar seres alados, alguns pequenos, assustadiços e irrequietos, que fogem à menor aproximação humana, talvez não pareça uma ideia aliciante para a maioria das pessoas, mas o ornitólogo Gonçalo Elias garante que há cada vez mais adeptos. E gente que quer saber mais. Por isso, em co-autoria com o fotógrafo José Frade, lançou o livro Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação, onde explica, passo a passo, como qualquer um pode “viciar-se”, primeiro à volta do quarteirão, ou até mesmo sem sequer sair de casa. Licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores, é hoje, aos 55 anos, um dos mais conhecedores especialistas em aves. E numa entrevista ao PÁGINA UM demonstra saber tanto que, na verdade, merecia talvez voar com(o) elas.


    Para si, que estuda aves há três décadas, que particularidade vê que as torna, para si, ainda fascinantes?

    Aquilo que nas aves mais fascinou as pessoas foi a sua capacidade de voar. Quase nenhum outro vertebrado consegue; os morcegos conseguem, mas são um pequeno grupo dos mamíferos. A esmagadora maioria dos outros vertebrados não consegue voar, mas com as aves é o contrário, quase todas as espécies conseguem. Isso fascinou muito as pessoas, e eu acho que até as inspirou no desejo de voar, que se concretizou através da construção dos aparelhos. E desde a Antiguidade que já se estudavam as aves e as diferentes espécies; e se percebeu que cada espécie tem as suas preferências, os seus hábitos, as suas características, a sua forma de comunicar. Por exemplo, Aristóteles é sobretudo conhecido por ser filósofo, mas também era um naturalista, muito interessado, e escreveu algumas obras, nomeadamente A história animal, que desenvolvia muito o conhecimento, já nessa altura, sobre as aves.

    Depois, com o avançar dos tempos e da Ciência, foram conhecidos mais aspectos muito peculiares, como as migrações. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com muitos mamíferos e répteis, as aves não hibernam. Em vez disso, fazem migrações, ou seja, movimentos periódicos de umas regiões para outras, de modo a conseguirem passar as várias épocas do ano nas melhores condições de sobrevivência. Nem todas as aves migram, algumas conseguem sobreviver o ano inteiro na mesma região; mas uma grande parte das espécies efectua migrações precisamente para tirar partido das melhores condições nas várias regiões, em função do ciclo das estações.

    A observação das aves é ou não uma actividade dispendiosa?

    Não tem de ser dispendiosa. Claro, há pessoas que investem muito, e vão dar a volta ao Mundo para ver aves. Obviamente, quando chegamos a esse nível, já terá outros custos. Mas para qualquer pessoa começar, na verdade, não precisa de gastar dinheiro quase nenhum.  O essencial para começar é um instrumento de observação; normalmente um binóculo. Há quem use a máquina fotográfica para fazer registos fotográficos, o que também é muito útil. Hoje, há máquinas compactas já com algum alcance que nem são demasiado caras.

    Os smartphones não serão suficientes?

    Acho que não, porque as aves são muito pequenas; esse é o principal problema a nível da observação. E, sendo aves selvagens, não se deixam aproximar, daí precisarmos de auxiliares de observação, sejam binóculos ou máquina fotográfica.  Embora as câmaras já tenham evoluído bastante, o problema dos smartphones é fazerem sobretudo zooms digitais, e não zooms ópticos.  E, portanto, quando estamos a falar de ampliações muito grandes, isso acaba por ter consequências ao nível da qualidade da imagem. Para objectos ou, neste caso, animais, que estejam muito distantes, já não se consegue ver bem o detalhe. O smartphone serve para fazer uma foto de registo, mas não é o instrumento de observação nem de fotografia ideal. O ideal é ter um binóculo para conseguir observar os detalhes, porque como eu disse, as aves selvagens não se deixam aproximar nem apanhar. Mas há binóculos por 100 ou 150 euros, não é necessariamente um equipamento muito caro. Há para vários preços, mas por 150 euros já se consegue um binóculo. A máquina fotográfica é opcional.

    Então, basta um binóculo e uma máquina fotográfica para se começar?

    É também necessário, ou conveniente, ter um guia de identificação, um livro que nos ajude a identificar as várias espécies. O principal desafio, quando estamos a observar aves, é identificá-las correctamente. Em Portugal, temos cerca de 300 espécies regulares, ou seja, aquelas que aparecem todos os anos, e o principal desafio para quem se lança nesta actividade é aprender a distinguir umas das outras. Porque se não soubermos distingui-las, são apenas aves, não é? Mas quem se envolve nesta actividade, rapidamente aprende que as espécies são diferentes e que há características para identificar. E há aqui um outro aspecto que também estimula muito as pessoas: há aves mais comuns e aves mais raras. E normalmente aquelas que são mais raras são percepcionadas como tendo mais valor, como em qualquer tipo de coleccionismo. Por exemplo, há selos muito comuns, que valem muito pouco no mercado de usados, e depois há selos que são raros, e por isso mais cobiçados e mais procurados. Da mesma forma, com as aves, alguns bichos são mais difíceis de encontrar, e há um desejo de quem vai vendo as diferentes espécies de conseguir ver também as mais raras.

    No Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação refere que podemos começar por ver aves ao pé de casa, e até mesmo dentro de casa…

    Sim. No livro, eu e o José Frade explicamos exactamente que qualquer pessoa, onde quer que more, pode ver aves. Obviamente, há sítios melhores que outros, porque depende da vegetação, da densidade de construção…  Já morei em sítios com características muito diferentes, incluindo em zonas densamente urbanizadas, e em qualquer sítio é possível encontrar aves selvagens. E não estou a falar só de pombos, porque os pombos nem sequer são realmente selvagens. Mesmo numa cidade, é possível encontrar zonas com água, com jardins, com terrenos baldios, e estruturas que servem de abrigo às aves. Só para dar um exemplo, na cidade de Lisboa já foram registadas mais de 200 espécies de aves selvagens. Isto inclui a zona ribeirinha do rio Tejo, e vários parques e jardins, mas a diversidade que podemos encontrar, até numa zona urbana, que é onde a maioria das pessoas mora, é absolutamente notável. Para observarmos ao pé de casa, podemos começar por ir dar uma volta a pé ao quarteirão. Eu também comecei assim. E isso não nos obriga sequer a ter custos de deslocação. Por isso, é uma actividade que pode ser praticada a custo reduzido.

    No livro, refere que uma das vantagens desta actividade é o maior contacto com a Natureza. A observação de aves leva a uma maior consciência ambiental e da importância da preservação da Natureza?

    Não gosto muito de generalizar, porque há diferentes tipos de atitudes e comportamentos. Penso que para entendermos o que é que leva as pessoas a ver aves, é importante clarificar que há diferentes motivações. Nem todas as pessoas vão ver aves pelos mesmos motivos. Grosso modo, podemos agrupá-las em cinco categorias diferentes. É uma classificação minha, não vi em lado nenhum, mas é a minha forma de ver isto. No primeiro grupo, temos aqueles que exploram mais a vertente científica, e cujo objectivo é escrever artigos científicos, seja em contexto académico ou outro. No segundo grupo, temos as pessoas que se dedicam a observar aves para a realização, por exemplo, de estudos de impacte ambiental. Até por normas da União Europeia, quando se constrói uma grande infraestrutura – como uma barragem, uma autoestrada, um parque solar, um aeroporto, ou um parque eólico –, é necessário fazer estudos de impacte e isso obriga a fazer determinados programas de monitorização; e, portanto, há pessoas, já com alguma experiência, que são recrutadas e vão para o terreno fazer estudos continuados para registar o que é que ali aparece. Depois há um terceiro grupo, as pessoas que se dedicam à Conservação. Muitas vezes estão ligadas a organizações não-governamentais, de Ambiente, e não só, e que vão observar as aves com o objectivo de recolher informações para tentar depois fazer a gestão do habitat e tomar as melhores decisões que favoreçam a conservação das espécies, nomeadamente as espécies que estão ameaçadas. Também há departamentos estatais que tratam dessa vertente, nomeadamente o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. No quarto grupo há uma vertente mais comercial ou turística, onde se incluem pessoas que se dedicam a observar aves para vender esse serviço, ou seja, para mostrar a outras, que normalmente vêm de fora… Isto existe um pouco por todo Mundo; quando vamos a outro país ver aves, muitas vezes a técnica para conseguir encontrar as espécies que lá ocorrem é contratar um guia local. E, finalmente, há um quinto grupo, que são as pessoas que se dedicam a observar aves por lazer, ou seja, pelo simples prazer de desfrutar da observação. Este é o grupo que profissionalmente não tem a ver com a observação de aves, mas é cada vez mais numeroso, com milhões de pessoas por todo o Mundo. E essas pessoas vão recolhendo observações também e partilhando em base dados.

    São, de facto, grupos com motivações bastante diversas…

    Precisamente. Daquilo que eu vejo nas pessoas que se dedicam à observação por lazer, há um pouco de tudo. Há aquelas pessoas que têm a preocupação de não perturbar as aves e que, portanto, procuram seguir determinadas práticas e códigos de conduta que ditam que o bem-estar das aves está em primeiro lugar. Mas, infelizmente, como em qualquer outra actividade, também há casos de pessoas que não respeitam determinados limites, e que se for preciso entram em propriedades privadas e perturbam as aves para obter uma boa fotografia. São práticas que não são aconselhadas. Enfim, uns por não terem consciência, outros por falta de cautelas, nem todos respeitam estes limites. É importante passar a mensagem de que as aves são selvagens, estão no seu espaço e também precisamos de lhes dar alguma distância para conseguirem levar a sua vida, porque assim é que contribuímos para a conservação.

    Na Europa, existem disparidades no desenvolvimento desta actividade, e sei que um dos países que se destaca é o Reino Unido, como também se salienta neste livro. Essas diferenças prendem-se com aspectos culturais?

    Há diferenças culturais e diferenças históricas. Efectivamente, esta actividade ganhou mais tradição nos países do Norte da Europa; portanto, incluindo o Reino Unido, como referiu, e também os Países Baixos e a Suécia. São países com bastante tradição da observação de aves. Nos Estados Unidos também já há uma tradição que vem de há mais de 100 anos. No Reino Unido, penso que o interesse pela observação de aves começou no final do século XVIII, mas é preciso ver que ao início, esta actividade era praticada por muito poucas pessoas, nomeadamente grupos com maior poder de compra, ou aquilo que às vezes se designa por aristocracia ou elites. Portanto, não era uma actividade praticada em larga escala. Penso que isso mudou, pelo menos no caso da Europa, mais ou menos a partir de 1950 ou 60. Houve uma figura muito importante, um britânico chamado John Gooders, que já faleceu em 2010, e que ainda tive o privilégio de conhecer. Ele escreveu um livro que se chamava Where to watch birds [Onde observar aves]. Nesse livro, ele sugeria roteiros de observação de aves no Reino Unido. Porque podemos começar por dar uma volta ao quarteirão, mas ao fim de algum tempo vai crescer o desejo de se ver espécies diferentes. Para isso, é preciso saber onde havemos de ir, e nem sempre existe essa informação. Agora, é mais fácil, graças à Internet, saber onde se pode encontrar determinadas espécies, mas há 50 ou 60 anos não era assim.

    Esse livro democratizou a prática da observação de aves?

    Sim, o livro teve enorme aceitação, e abriu, de certa maneira, as portas da observação de aves a um grande número de pessoas. É claro que entre as pessoas que já praticavam a actividade, houve quem não achasse muita piada, porque aquilo era uma actividade de elite, digamos, e algumas pessoas não viram com bons olhos a abertura à sociedade em geral. Depois, John Gooders escreveu sobre birdwatching não só para o Reino Unido, mas também para a Europa. Aliás, o primeiro livro que eu li seu foi o Where to watch birds in Europe, em que sugeria roteiros de observação em diferentes países, e foi publicado nos anos 1970. Hoje já existem roteiros para praticamente todos os países do Mundo, porque rapidamente se percebeu que havia muito interesse por parte das pessoas em ter livros que as direccionassem para os melhores locais onde encontrar espécies interessantes. Mas John Gooders foi um dos percursores da observação de aves; não sei se exactamente o primeiro a nível mundial, porque penso que já se tinha aberto caminho antes nos Estados Unidos. Mas efectivamente, a informação que ele trouxe permitiu abrir as portas, e tornar mais fácil o acesso à informação. Isto depois espalhou-se a outros países da Europa, mas neste ponto de vista, o Reino Unido foi um bocadinho o pioneiro a nível europeu, e talvez por isso a tradição tenha conseguido avançar mais depressa nesse país.

    Quais os países mais interessantes para a observação de aves, a nível de diversidade das espécies? Ou a resposta dependerá sempre dos propósitos e das preferências individuais?

    Em termos de diversidade, grosso modo, podemos dizer que todos os países do Mundo têm potencial. De uma forma geral, a diversidade de espécies aumenta à medida que nos aproximamos dos trópicos, das zonas equatoriais. Na América, destacam-se países como a Colômbia, o Equador e o Brasil. Em África, destacam-se países como o Quénia e a Tanzânia; e na Ásia, destacam-se países como a Índia ou a Indonésia. Só para referir alguns. A diversidade de espécies é mais elevada nos países de latitudes tropicais, mas claro que em latitudes superiores também aparecem espécies diferentes. Portanto, todos os países acabam por se complementar uns aos outros. Além disso, também é importante referir que há países e territórios que, por serem ilhas, estão isolados dos restantes, e por isso têm espécies que se chamam endémicas, ou seja, espécies que existem ali e não existem em mais lado nenhum do Mundo. Isto acontece mais com as plantas, porque as plantas não têm tanta mobilidade, mas também pode acontecer com aves. Temos algumas aves endémicas em Portugal, tanto nos Açores como na Madeira. Por exemplo, na Madeira temos o pombo-trocaz e a estrelinha, conhecida localmente como bis-bis; e nos Açores temos o priolo e o painho-de-monteiro. Todas as principais ilhas do Mundo têm um grande número de endemismos. Destaco a Austrália, Madagáscar, a Nova Zelândia, as Filipinas e certas ilhas da Indonésia. São locais ricos em endemismos. Portanto, a proximidade aos trópicos e a insularidade tornam certos locais muito interessantes.

    E, de um modo geral, que países oferecem condições mais favoráveis para esta actividade?

    Depende do grau de desenvolvimento. Há países que por terem um menor grau de desenvolvimento, ou por outro tipo de problemas, como a instabilidade dos regimes políticos, podem não ser muito seguros para a observação de aves. Destaco alguns país de África ou do Médio Oriente e certos países da Indochina. Pode até nem ser só por questões de segurança, mas por haver também muitas restrições à mobilidade das pessoas, que as impedem de ir observar para onde querem. Depois, há países com um bom grau de desenvolvimento, mas já foram transformados de tal forma em termos de intensificação agrícola, industrial ou de urbanização, que acabam por não ser tão interessantes, porque têm um grande grau de poluição e de alteração dos habitats. Portanto, varia muito, embora, na maioria dos países, mesmo naqueles que já estão transformados, existem áreas protegidas, classificadas, com boas condições de visitação e que funcionam como bons refúgios.

    Para a maioria dos países, agora mostra-se fácil encontrar informação online sobre quais são os melhores locais de observação de aves. E nos casos em que o acesso seja mais difícil, há empresas especializadas que vendem pacotes de birdwatching, ou seja, tours de 10, 15 ou 20 dias especificamente para observar aves. Aí, a pessoa já vai acompanhada com um guia especializado, vai directa ao local, e, portanto, não tem de preparar nada nem de se preocupar com alojamento nem com transporte. E existem pacotes desses em países tão variados como a Argentina, a Malásia, a África do Sul, os Camarões, Marrocos ou China. Esses são pacotes relativamente caros, por serem viagens bastante especializadas, mas que permitem um contacto com aves que, de outra forma, a pessoa dificilmente conseguiria. Portanto, a nível mundial, há toda uma indústria em torno desta actividade.

    Agora falando apenas de Portugal. Quais as regiões mais interessantes para a observação de aves?

    Também há diferenças entre regiões, naturalmente. Pela minha experiência, a nível da diversidade de espécies, as zonas mais ricas são as chamadas zonas de influência mediterrânica, a Sul do Tejo; portanto, o Alentejo e o Algarve. E também uma parte do Ribatejo, e ainda o interior Norte e interior Centro, ou seja, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa. O litoral Norte e Centro, em parte por causa da influência atlântica e das enormes transformações do uso do solo – com a intensificação agrícola em certas zonas e o grau de florestação intensiva e urbanização também de grande densidade –, é uma zona que está muito transformada. No entanto, no litoral existem locais de enorme interesse, que estão principalmente em torno das zonas húmidas. Falo, por exemplo, do estuário do Tejo, que é também um hotspot a nível nacional, do estuário do Mondego e de outros estuários que existem mais para Norte, como o do Minho, do Cávado e do Douro. E a Ria de Aveiro, naturalmente. Isto para citar alguns exemplos. Portanto, genericamente, no litoral Norte e Centro, as zonas húmidas são as mais interessantes, embora haja também outros spots em cidades e pequenas serras. No Interior e no Sul, os locais estão mais distribuídos e a riqueza específica tende a ser maior a nível de aves terrestres. No conjunto, o país tem uma boa diversidade de espécies, complementando o litoral com o interior. E depois, ainda temos, como referi, o caso dos Açores e da Madeira, onde apesar da diversidade de espécies global ser menor – porque as ilhas normalmente têm menos espécies –, há coisas diferentes. Portanto, as ilhas complementam um bocadinho o Continente.

    As regiões com menos diversidade em aves acabam por compensar na existência de outro tipo de espécies.

    Sim, as ilhas por norma têm menos, porque, tal como algumas espécies evoluíram isoladamente, as outras dos continentes também muitas vezes nem sequer conseguiram lá chegar. Portanto, as ilhas de uma forma geral têm menos diversidade do que as regiões dos continentes. Nos continentes há muito mais intercâmbio de umas regiões para outras. As ilhas estão isoladas, e quanto mais remotas são, menor a diversidade. Por isso, os Açores têm menos espécies do que a Madeira a nível de nidificantes, porque a Madeira, apesar de tudo, está mais perto do continente africano.

    Daquilo que tem visto, em que grau as aves têm sido afectadas com o problema dos plásticos nos oceanos?

    O plástico é um problema grande para as aves marinhas, porque acabam por ingerir micropartículas. Não são necessariamente aqueles plásticos grandes que nós vemos a flutuar. O plástico vai-se decompondo, e as micropartículas ficam lá durante muitos anos. E as aves podem ingeri-las; às vezes, também bocadinhos de plástico maiores, e já houve vários casos de aves marinhas que foram encontradas mortas com grandes quantidades de plástico ingeridos. Portanto, é evidente que em termos de saúde das aves, terá algum impacto. Não sei exactamente até onde isto já foi estudado, mas a poluição, nomeadamente por plásticos e por outros poluentes – porque também já houve casos de aves contaminadas por hidrocarbonetos, por exemplo, na sequência de desastres de petroleiros… Este tipo de poluição também pode afectar as aves e outros seres vivos. É evidente que devem ser tomadas medidas para reduzir a poluição dos oceanos, porque põe em causa o equilíbrio dos ecossistemas, e nomeadamente dos ecossistemas marinhos.

    E o impacto das alterações climáticas, também se tem revelado significativo?

    As alterações climáticas são um problema bastante vasto e abrangente, e, sem dúvida nenhuma, tem impacto nas aves selvagens. Este assunto está a ser estudado para se obter mais dados; no entanto, há um aspecto que eu gostava de salientar: para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante. Depende também das espécies. Há outros factores em jogo. Eu recordo-me que há uns dois anos, assisti à sessão de apresentação online do Novo Atlas Europeu, um projecto para estudar as circulações das aves a nível da Europa, e que comparava com outro que tinha sido feito há 25 anos. E analisaram-se as distribuições das espécies e compararam-se para saber se se tinham deslocado para Norte ou para Sul; porque, em relação às alterações climáticas, existe uma teoria, digamos assim, de que se a temperatura aumentar, as aves vão-se deslocar para Norte, porque as regiões do Norte ficam menos frias, a temperatura fica óptima, e as aves vão atrás dos gradientes de temperatura… Isto é o que diz a teoria. Na prática, verificou-se que houve tantas espécies a deslocar-se para Norte, como espécies a deslocar-se para Sul, ou seja, em sentido contrário àquele que era suposto deslocarem-se se o único factor fosse o aumento da temperatura. E os autores desse estudo disseram que se metade das espécies se deslocaram para Sul, podemos interpretar que há aqui outros factores a condicionar a distribuição das aves. Portanto, é algo que tem de ser estudado mais em profundidade.

    E que outros factores poderão ser?

    Nem sempre sabemos. Normalmente, estas equações são complexas, há vários factores em jogo simultaneamente, e não conseguimos isolar uns dos outros para medir o impacto de cada um. Eu diria, pela experiência que existe em Portugal e noutros países, que um dos principais factores que condicionam a distribuição das aves são as alterações de habitat; se quisermos, as alterações do uso do solo, nomeadamente devido à actividade agrícola. E eventualmente florestal, e também devido à urbanização, à construção de barragens. Tudo o que faz mexer no habitat causa impacte, e isso pode fazer as espécies colonizarem novas zonas ou desaparecerem. Esse é um factor muito importante, e que deve ser tido em conta, independentemente das alterações climáticas. Ou seja, temos de entrar com o “mix” todo. Ainda pode haver outras variáveis, como a perturbação causada seja por observadores e fotógrafos, como por pessoas que estejam a praticar actividades desportivas, ou qualquer outro tipo de acções humanas. Portanto, perturbação, perseguição directa, seja caça legal ou ilegal, e introdução de espécies exóticas ou invasoras, são tudo factores que podem concorrer para causar desequilíbrios e alterações em determinadas aves. Sem esquecermos a relevância das alterações climáticas, não devemos cair no erro, como às vezes vejo, de achar que tudo se deve às alterações climáticas, e esquecermos que há outros factores que também podem ser muito relevantes, nomeadamente as alterações de habitat.

    Em Portugal, as medidas de conservação das aves têm sido suficientes, ou poderia fazer-se mais?

    Acho que se poderia, e deveria, fazer muito mais. Há 50 anos, fizeram-se muitas coisas más, como drenagens de zonas húmidas, e outras coisas que alteravam o uso do solo, e não se tinha noção dos danos que aquilo causava. Hoje, há muita informação, nomeadamente sobre o que pode ser feito a nível de gestão do habitat para conservar as espécies, mas, apesar de tudo, muitas vezes não são tomadas medidas para evitar alterações. Aquilo que eu defendo, antes de mais, é que se invista mais a sério em programas de monitorização das espécies ameaçadas. Eu penso que é essencial monitorizar-se as espécies para se poder perceber o que é que está a acontecer, e depois se poder tomar as medidas consideradas relevantes.

    Há poucas semanas estive em Vila do Conde, num simpósio internacional sobre picanços, que é um grupo de passeriformes, e a certa altura assisti a uma apresentação de uma pessoa do Canadá, que disse que nos 1990, essa ave foi classificada como ameaçada. E o Governo federal canadiano imediatamente decidiu pôr em marcha um programa de monitorização. E eu gostaria que em Portugal acontecesse algo semelhante. Nós também temos um Livro Vermelho, que saiu em 2005, e sairá outro daqui a poucos meses, penso eu, e o Livro Vermelho classifica determinadas espécies como ameaçadas. E eu gostaria que tal como no Canadá, quando uma espécie é classificada como ameaçada, imediatamente tivesse início um programa de monitorização para o acompanhamento daquela espécie. Caso contrário, esses estatutos de ameaça acabam por servir de muito pouco, porque não se tomam medidas. E, no limite, a espécie pode desaparecer, como já aconteceu, infelizmente. Portanto, o apelo que eu deixo aqui é no sentido de se investir mais, desde logo, na monitorização.

  • Um conteúdo comercial escrito por jornalistas ‘destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade económica’

    Um conteúdo comercial escrito por jornalistas ‘destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade económica’

    Na segunda parte da sua entrevista ao PÁGINA UM, João Palmeiro, o histórico presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, aborda as polémicas parcerias entre os media e empresas e também entidades públicas, que têm colocado em causa a independência e credibilidade do jornalismo. Mas também há tempo para uma conversa sobre as maravilhas da imprensa e as suas histórias. Na verdade, a História da Imprensa é um mundo fascinante, que tem ainda muito para descobrir, e que levaria por certo a mais mil e uma conversas… Poder ler a primeira parte desta entrevista AQUI.


    Nos últimos anos, tem começado a aumentar de forma massiva os conteúdos comerciais ou patrocinados, e as parcerias comerciais que muitas vezes são apresentados ao leitor com apoio da empresa X ou Y. E muitas com a participação dos jornalistas, mesmo tendo um contrato comercial por trás. E tudo isto não é claro para o leitor . Como é que vê isto para o futuro da credibilidade da imprensa?

    Tenho uma visão muito clara sobre isso. Primeiro, é preciso, cada vez mais, haver provedores do leitor. Pessoalmente, tenho uma experiência de provedor do leitor. Aliás, eu não sou nem nunca fui jornalista, e aceitei ser durante 10 anos provedor de leitor do primeiro jornal regional digital que houve em Portugal, que foi o Setúbal na Rede. Exactamente para poder mostrar que se eu era capaz de o fazer, não sendo jornalista. Um jornalista fá-lo-ia com muito mais competência do que eu. Mas o provedor do leitor não tem que ser um provedor pela publicação. Quer dizer, tem que ser uma instituição a que as pessoas possam recorrer, e que, de uma forma rápida, possa esclarecer. E hoje, com o mundo digital, não há nenhuma razão para que não seja de forma rápida.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Qual modelo, em concreto, que defende?

    Aqui [na Associação Portuguesa de Imprensa] temos defendido um modelo de Conselho de Imprensa, que seja uma espécie de um corpo de provedores de leitor, à disposição para esclarecer as pessoas. E que têm também, entre si, o objectivo de ir sinalizando, chamando à atenção e comunicando publicamente os casos em que há desvios, como aquele que está a dizer. Não podemos ficar à espera, em sociedades muito garantistas como a portuguesa, por exemplo, de processos longuíssimos de averiguações disto e aqueloutro. E não é isso também que a maior parte dos consumidores de notícias querem. Os consumidores querem saber: é verdade ou não é? Foi bem feito ou não foi? Se depois disso há um castigo ou não há, isso é com outro agente. Já é com a verificação.

    Isso seria suficiente?

    Temos essa visão de que o jornalismo exige cada vez mais a intervenção de pessoas que estão à disposição para verificar, e hoje em dia, com os meios que existem, isso pode ser muito fácil de fazer. Segunda coisa: os estatutos editoriais são a garantia daquilo que eu estou a oferecer. São como, nos medicamentos, as bulas, que ninguém lê mas que toda a gente devia ler antes de tomar um remédio. Por exemplo, lemos muitos estatutos editoriais que dizem: “esta publicação defende a Lei de Imprensa”. Não é isso o estatuto editorial. O estatuto editorial é a minha promessa de como interpreto exactamente os conteúdos que vou dar. E é também sobre isso, quando eu falo nos provedores dos leitores: não fazem essa função de uma maneira cega; têm de ir ao estatuto editorial, e é sobre ele que dizem “sim” ou “não”. E a ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social], que de vez em quando anda atrás dos estatutos editoriais, bem podia fazer um trabalho mais decente do que aquele que faz em relação a isso.

    Falemos agora de contratos entre empresas de media. No PÁGINA UM temos revelado diversos casos envolvendo praticamente todos os grupos, envolvendo jornalistas e contrapartidas editoriais para execução de contratos de prestação de serviços. Alguns até incluem a possibilidade de pedir a substituição da equipa de jornalistas se as entidades não estiverem satisfeitas com os conteúdos. Ou então a definição de um número determinado de artigos sobre actividades de um centro de investigação universitário, como se viu num contrato com o Público. A questão é, garantimos que as notícias são verdadeiras, mas depois temos situações destas. E o leitor às vezes apercebe-se disso. Em que é que ficamos? Onde é que está a informação e a desinformação?

    Os jornais sempre tiveram um problema muito grande – que não é de agora, é de sempre: há os jornalistas, e os outros. Os outros [departamentos de marketing], em muitos casos são pessoas que fazem contratos desses; que ninguém vê, e que escrevem lá coisas que não estão autorizados a escrever. Porque acham que isso os ajuda a vender melhor. Já fui responsável por coisas dessas; não dessas em concreto, mas por coisas nessa área em algumas publicações, e tinha que firmemente dizer: “vocês não podem falar como jornalistas” às pessoas que vendem e que fazem negócios. E a resposta que me davam sempre era: “ah, mas isso é que vende”. Ou seja, se eu for falar com um comercial da não-sei-quê, nem me ouvem, mandam-me embora imediatamente. Se eu for sugerir que aquilo que eu estou a vender é uma coisa que vai ser feita por jornalistas, que vai ter esse retorno maravilhoso que é a aparência jornalística, aí eu vou fazer um negócio.

    E é isso que está ser vendido…

    Eu sei. Agora, isso não tem uma definição. Por exemplo, esse último caso que falou, das universidades, às vezes têm objectivos tão simples como este: existe uma regra europeia que determina que se forem publicados artigos sobre ambiente, tenho uma diminuição de X por cento na minha pegada de carbono. E, portanto, esse tipo de publicações são altamente apetecíveis, porque eu faço um relatório ao fim do ano, e no ano seguinte tenho X notícias no jornal. E isso é qualquer coisa que eu vou vender aos outros. E quando os outros dizem: “mas essas notícias vocês não podem publicar”; eles dizem; “podemos, podemos, porque isso diminui a nossa pegada de carbono”. Este princípio foi mal transposto em Portugal, e eu tenho alguns jornais em cima de mim a dizer que estão a perder negócio porque não estão a usar esse benefício; porque o princípio foi mal transposto e, aparentemente, os serviços públicos só os aplicam à publicidade. Só quando a publicidade é a favor do ambiente é que fazem as tais contas para descontar; se forem artigos não fazem. Noutros Estados-membros não é assim, e a própria directiva europeia incentivava a que se incluíssem também conteúdos informativos. Nunca se diz conteúdos jornalísticos, mas conteúdos informativos. Aqui em Portugal, eu não faço ideia [como foi], porque segui muito esse processo durante 10 ou 15 anos, e depois de repente, de um dia para o outro, isto apareceu feito sem nos terem dado cavaco. Portanto, isso leva-me, outra vez, à minha ideia cada vez mais alicerçada: a questão fundamental é o acto jornalístico; temos de ser capazes de definir o que é o acto jornalístico e de ensinar aos utilizadores, aos que acedem, que uma coisa é o acto jornalístico e outra coisa é mera informação, por muito bem escrita que esteja. E tem que ser o utilizador a estar também preparado para fazer isto. Vai levar anos. Talvez demasiados.

    Mas antigamente, sabíamos que havia apenas a publicidade, e depois passou a haver o conceito de publireportagem…

    Porque a publicidade também evoluiu.

    Sim, mas a publirreportagem era claramente a identificação. Não havia qualquer dúvida de ser publicidade escrito. Agora é uma ‘misturada’ enorme. Temos jornalistas a assinarem peças comerciais. E até há jornalistas que, de boa fé, fazem notícias sem saber que estão incluídas num contrato comercial.

    Isso eu acho insuportável, não posso dizer outra coisa. É uma prática que durante algum tempo pode ajudar à sustentabilidade, mas que no fim, vai destruir a sustentabilidade; destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade comercial. Mas querem ver também outra coisa? O Instituto Nacional de Estatística (INE) fala em investimento publicitário, mas não o que é declarado pelas publicações, mas sim aquele declarado pelos anunciantes. E tem lá várias rubricas: imprensa, rádio, televisão, internet, eventos, outdoors. E depois, de repente, tem “outros”. E nos “outros”, está o terceiro maior investimento. O maior investimento é naturalmente a televisão – quase 400 milhões de euros –, o segundo já é a internet, com 203 milhões de euros, e depois os “outros” são quase 150 milhões de euros.

    E o que é “outros”?

    Exactamente. Andamos aqui desesperadamente, numa investigação com o INE, a tentar perceber o que é “outros”, sobretudo porque isto vem do lado dos anunciantes; não vem do lado dos meios. Reparem: isto são dados públicos, portanto não tenho problema nenhum em falar nisto. Em 2022, aquilo que se chama “imprensa” recebeu, segundo o INE, recebeu 27 milhões de euros de investimento. Mas do lado da informação remetida pelas empresas diz-se que a imprensa recebeu 72 milhões de euros.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Não bate a bota com a perdigota.

    Só uma das empresas declara que, no sector de imprensa, recebeu 31 milhões de euros. Onde está? Quer dizer, eu confesso-vos – e peço desculpa de ser tão directo e tão bruto nisto – que estou muito menos preocupado com a transparência da propriedade do que em perceber isto. O que é isto? Quer dizer, eu vou a qualquer lado público e vejo as pessoas a olhar para mim: “coitado, lá vem ele, o presidente da API, os tipos estão quase a morrer, já quase não têm publicidade, aquilo é uma desgraça”… E realmente, quando eu olho, vejo 27 milhões de euros! Quando, há quatro anos, eram 54 ou 56 milhões de euros. Isto é uma catástrofe, é menos de metade. Mas depois, afinal do lado das empresas os números são outros…

    Se calhar são as tais parcerias de que falavamos…

    Estamos a tentar saber, porque achamos que a nossa obrigação compreender isto, porque só assim podemos contribuir para que as coisas melhorem.

    Vou fazer-lhe uma provocação: julgo que está na presidência da API formalmente indicado pela Impresa.

    Exactamente.

    Pronto. Verificámos que nos últimos três anos, o caderno principal começou a publicar uma página denominada “Projetos Expresso”. Sabemos que são parcerias comerciais, com conteúdos assinadas por jornalistas com carteira profissional. Só durante a pandemia, em três anos, houve mais de 80 conteúdos apoiados pelo sector farmacêutico. Quando estamos aqui a falar na informação falsa ou verdadeira, também é legítimo perguntar: sem estas parcerias, o jornal teria outra abertura editorial? E de que forma essas parcerias podem condicionar a linha editorial. É legítimo pensar que se alguns temas não saem nos jornais, não é por ser informação falsa, mas porque poderiam afastar parceiros comerciais. Não tenho dúvidas de que grande parte das notícias do PÁGINA UM estariam nos outros jornais, e agora nem sequer são temas abordados…

    Vamos ver. Eu não tenho grandes dúvidas de que a entidade que eu represento, no que diz respeito ao cumprimento das regras sobre a verdade, cumpre até à exaustão possível da capacidade humana. A outra questão está num problema que não é de hoje, que é a escolha daquilo que eu quero publicar ou não. Durante muitos anos, a escolha daquilo que se publicava ou não era a do director, que dizia porque não gostava ou não lhe interessava… Quer dizer, isto eram questões atendíveis, tendo em conta a forma como o director interpretava o seu papel com os seus leitores. Hoje, quer pela extensão possível do mundo digital, quer pelas dificuldades que o mundo do papel passou a sentir, tornou-se uma quadratura mais difícil de resolver. Naturalmente, acho que não devemos nunca tentar perceber aquilo que não foi publicado, temos de ter uma opinião com base naquilo que foi publicado. Porque aquilo que não foi publicado, sim, pode haver casos em que não foi publicado por pressões, mas a verdade é que numa sociedade plural e diversa, com vários órgãos de comunicação social, os interesses não podem ser todos tão coincidentes. Em Portugal, temos uma riqueza importantíssima, que são os jornais regionais e locais. Até temos um exemplo interessante, apesar de tudo, que é o da Igreja Católica: tem algumas posições claras, e que diz que disto não se fala, e que este caso não se publica.

    Mas já temos casos de queixas de leitores por os jornais não cobrirem determinado assunto. Ou a questionar determinada abordagem. No Público, por exemplo, á habitual o Provedor do Leitor tecer várias críticas…

    Mas o provedor está lá dentro do jornal, e portanto sabe, tem de saber, aquilo que é o objectivo e a disponibilidade do jornal. Uma das coisas com que me debato muito é olhar para a diminuição do número de páginas dos jornais. E digo sempre isto: “bom, eu ontem publicava 10 notícias, hoje só posso publicar cinco porque não tenho dinheiro para fazer mais, não é porque há uns senhores que me batem à porta”. Portanto, como é que eu, editor, estou preparado para dizer: “eu não quero publicar estas cinco, só vou publicar estas outras”? Ou “vou cortar todas a meio”?

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    A redução das notícias não é uma saída em desespero? Porque daqui a nada… Aliás, o PÁGINA UM nasce pela ideia de que as notícias vendem e podem fazer dinheiro, podem er valorizadas pelos leitores e não pelos anunciantes…

    Eu sei. Mas eu tenho que ter um espaço de publicação. O espaço digital veio tornar mais fácil resolver este problema. Mesmo assim, ainda há uma escolha sobre o que é que se põe ou não põe no papel. E esta escolha não é igual em todas as publicações e na cabeça de todos os directores. Daí o grande esforço que estamos a fazer na transição para o digital através do Aveiro Media Competence Center, onde o objectivo é ver o papel e o digital como um todo; como a sua relação com os seus públicos. E depois, têm de se saber que há públicos que não tem acesso ao digital, e há públicos que gostam de ter o acesso às duas coisas; e há públicos que só gostam do digital.

    A discussão entre o digital e o papel estará ao nível daquilo que a relaçao entre o diário, o semanário e o mensário, que se destinavam a leitores distintos. Até poderiam ser os mesmos, mas os jornalistas devem ser diferentes. O tempo de reflexão e de produção é completamente diferente. No início, as redacções do digital e do papel eram distintas. Hoje, um jornalista de um semanário em papel tem que fazer tudo a todas as horas, durante todos os dias. Portanto, a qualidade decai. O Público faz gáudio de fazer 150 notícias por dia no online. Não sei quantas delas são de agência ou quantas são de qualidade duvidosa. Mas o leitor apercebe-se disso.

    Mas pegando nessa sua ideia sobre os diários e os semanários, é verdade. Mas reparem. Se analisarmos a imprensa regional, vemos que temos casos muitos interessantes: os jornais saíam três dias por semana, depois passaram a dois, e depois uma vez por semana. E encontramos sempre o mesmo padrão: a evolução da necessidade de ter jornalistas em sítios onde os jornalistas não podiam estar. Primeiro ponto. Segundo padrão: o conflito latente entre a personalidade do dono ou do editor do jornal, e do presidente da Câmara ou da Junta. Quantos mais próximos estamos, mais importância as coisas têm. Ao longo do tempo fomos caminhando para um jornalismo que, em muitas vezes, está mais dependente de situações pessoais do que de situações de influência política, social ou de dinheiro. Claro que existem algumas, mas são mais de situações pessoais do que aquilo que foram no passado, porque efectivamente as instituições não foram capazes de se distanciarem o suficiente para perceberem qual era o papel de cada um. Recentemente, um pequeníssimo jornal dizia-me assim: “eu quero ter cá uma jornalista a tempo inteiro, mas não lhe posso pagar; ela tem de trabalhar noutro sítio para completar o salário, e eu não lhe consigo dar uma carteira profissional, digam-me lá como é que eu resolvo isto”! Em boa verdade, atendendo a todas as regras e princípios, aquilo que eu tinha de lhe dizer era: “feche o jornal”. Depois, claro, estamos aqui a inventar, e dizer: “porque é que não faz assim ou assado”… Mas se eu lhe dissesse para fechar o jornal, provavelmente haveria alguém na terra a esfregar as mãos para ocupar aquele lugar, e fazer cobras e lagartos. É muito difícil, percebem?

    Sobre o domínio da propriedade, que é controlada pela ERC, existe ou não necessidade de tornar essa informação mais transparente? E, já agora, como viu a novela da ERC sobre a nomeação do Conselho Regulador e do futuro presidente?

    Sabe, eu como já sou suficientemente idoso, posso dizer algumas coisas como esta: quando vemos que um modelo de funcionamento conduz sempre às mesmas coisas, então estamos petante um modelo que não está bem. Ou seja, a substituição da primeira ERC levou um ano e meio. A substituição do segundo Conselho Regulador levou quase dois anos, e a do terceiro já vai na mesma. Independentemente da novela, é porque há qualquer coisa no sistema que impede que funcione. A 1ª Comissão da Assembleia da República que tem de fazer a nomeação dos quatro membros da ERC chegou ao dia em que fazia os cinco anos e escreveu na sua agenda “eleição dos novos membros da ERC”. E depois ficou à espera que a 12ª Comissão, onde os partidos têm de fazer as propostas e ouvir os candidatos, ouvissem os candidatos. Então, é preciso ir ver onde as coisas não funcionam. E onde é? Os dois maiores partidos dividem entre si – eu acho isto uma coisa injustificada –, as nomeações. Penso que devia ter sido feito um regulamento; não é como isto agora, que toda a gente sabe que é assim, e que toda a gente diz que não devia ser assim. Mas o problema está no quinto membro [da ERC, cooptado pelos outros quatro, para presidir], que não é nomeado oficialmente pela Assembleia da República, mas que os partidos não avançam sem terem o acordo em relação ao seu nome. Portanto, isto não funciona. Então, é preferível dizer assim: numa legislatura, um nomeia três e outro nomeia dois; e na legislatura seguinte trocam. Podíamos dizer que na primeira vez, ninguém sabia bem como é que se fazia. Na segunda vez, podia dizer-se que ainda estávamos a experimentar… Agora, meu Deus, à terceira vez só come quem quer.

    Qual seria a solução? Vamos ter outra vez um sinal de estarmos perante uma decisão política?

    Eu até acho que nem é uma decisão assim tão política, nesse sentido de política partidária. Será política, mas depois os partidos ligam muito pouco à ERC. Depois, a ERC entrega os relatórios anuais, normalmente 10 meses depois do fim ano… Já alguma vez assistiram a alguma discussão na AR dos relatórios da ERC?

    Por acaso, tive curiosidade em ouvir a última, que foi há alguns poucos meses. A grande discussão foram questões laborais internas [risos].

    Claro. Se fosse membro da ERC, apresentava lá o primeiro relatório, e da segunda vez que ia lá dizia: “estes tipos não querem saber disto para nada; quer dizer, isto não vale a pena, portanto toma lá qualquer coisa…”. Agora estar a ter trabalho e chatice por causa de uma coisa destas… Todo o sistema enferma deste problema. E pergunta-se: “porque é que os deputados não discutem?” Porque sabem que, na verdade, essa discussão não tem nenhum impacto. Portanto vão às questões como essas [questões laborais], que podem trazer alguma notícia. Acho que vai ser a lei europeia que vai poder mudar alguma coisa neste aspecto, porque isto no futuro, em termos da Europa, será completamente inaceitável. Não vai ser possível.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Mas voltemos à questão da propriedade dos órgãos de comunicação social. Sente ser preciso maior transparência sobre quem são os verdadeiros donos? E, para além dos accionistas, deve continuar a saber-se as dependências que existem, em termos de passivo, e quem tem poder decisório?

    Para o bem e para o mal, só em 2019 ficou pronta a Plataforma [da Transparência dos Media]… Nem a Associação [Portuguesa de Imprensa], que convinha saber algumas coisas, conseguia antes saber algo sobre os accionistas e detentores do passivo. E na ERC, a Plataforma só em 2020 e 2021 começou a funcionar. À vossa pergunta, eu respondo que sim, tem de haver transparência. Não posso pedir um tratamento específico para este sector sem dar alguma coisa em troca. E o em troca é preciso dar informação aos cidadãos, a quem estou a pedir que me deem alguma coisa dos seus impostos, sobre quem, como, porquê e de que forma as coisas funcionam e são empregues. Em Portugal temos muito pouco o hábito de fazer isso, mas a transparência tem uma consequência. Não sei se se lembram, mas antes dessa Plataforma havia uma lista de umas 50 empresas de media que tinham de revelar alguma informação. E por que eram essas 50 e não eram outras? Em Portugal, no se gosta de discutir e analisar a regulação, e isso tem de ser feito. Acho que a confiança só existe quando há conhecimento, e às vezes para ter conhecimento, é preciso haver exposição. E essa exposição tem dee ser a mínima para que as pessoas possam ter confiança. Agora, quais são os limites dessa exposição?

    Para terminar, há quantos anos está aqui na Associação?

    Demasiados. Na direcção, estou há três décadas.

    Em 30 anos, mudou muita coisa na imprensa, o digital apareceu em força… A situação financeira mudou e as tiragens desceram muito. Como vê hoje o jornalismo em comparação com o que era há 30 anos, e como antevê o jornalismo daqui a trinta anos? Falar em “daqui a trinta anos” é para dar esperança… [risos].

    Olhe, vivi muitas vezes sem tempo para, verdadeiramente, ter uma percepção disso, mas julgo que vivi os anos mais interessantes e mais espantosos na mudança. Acredioto que daqui a 30 anos se dirá do que foi o jornalismo nesta nossa época. Por formação, e por uma quantidade de razões, fui habituado a dar um grande valor à visão histórica das coisas. E penso muitas vezes no jornalismo de há 100 anos, de como era o jornalismo nos outros séculos. Tenho a grande sorte do meu pai ter sido jornalista, entre o fim dos anos 20 e meados dos anos 40. Tenho memória daquilo que me contava, e da maneira como era o jornalismo; que eu consigo reconhecer hoje. Se o meu pai voltasse, veria que hoje o jornalismo em si não seria tão diferente como era na idade dele. Até porque, como foi um dos pioneiros da rádio em Portugal, eu vivi muito anos a ouvir muitas histórias sobre o jornalismo radiofónico, quando aquilo era tudo uma coisa que ninguém sabia muito bem para onde ia. Quando não havia dinheiro, quando era preciso inventar publicidade na rádio…

    ET: Eram outros tempos…

    No fim dos anos 1940, o meu pai escreveu uma das primeiras novelas radiofónicas comerciais em Portugal, em que Vasco Santana fazia de João Maria, que, na verdade, era eu. Eu sou o João Maria, era o João Maria na cabeça do meu pai. E o Vasco Santana fazia o papel principal, e a minha mãe fazia de cavalo. Relinchava e tudo – é verdade. Portanto, fui educado dentro desta visão, mas depois tomei uma decisão aos meus 14 ou 15 anos: “jornalista não serei nunca na minha vida”. Estava completamente bem informado, e era já nessa altura um leitor diário de jornais, o que era uma coisa única na minha idade. As pessoas hoje dizem: “os jovens hoje não leem”, e eu digo: “não sabe o que está a dizer”. Antigamente, os jovens não liam nada. Uma pessoa como eu era um caso único, extraordinário, resultante de uma educação em casa. Sou um ouvinte de rádio completamente compulsivo por causa disso. Mas praticamente não vejo televisão, e porquê? Porque a televisão só entrou na minha casa quando tinha 12, 13 ou 14 anos. Tenho um irmão 10 anos mais novo que fez tanto barulho que o meu pai lá comprou a televisão. Eu conto esta história para perceberem como olho para estas coisas, para trás e para a frente, nesta base.

    E então o que vê?

    Primeiro: acho que o jornalismo não vai acabar. Não se esqueçam que no fim da Primeira Guerra Mundial houve algumas tentativas de convenções internacionais para dizer o que era o jornalismo. No fim da Segunda Guerra Mundial houve a Declarações dos Direitos Humanos, que falavam do jornalismo, da liberdade de imprensa e de tudo mais. Estamos agora num momento em que é preciso fazer isso outra vez. Eu estive muito envolvido nas Nações Unidas, sobretudo em 2017 e 2018, numa tentativa de fazer crescer uma coisa destas, mas que acabou pura e simplesmente porque os russos não quiseram que fossem para a frente. Bloquearam a tentativa de lançar esta discussão de uma maneira diferente. Disseram-me também que os chineses tinham ido pela mesma linha, não tenho nenhumas evidências. Acho que, no jornalismo, vevemos reféns de práticas e de modelos que já não se adaptam mais àquilo que são os nossos dias… Se virem as leis de imprensa do fim do século XVIII, princípio do século XIX, percebem que o controlo do poder era feito através das gráficas. A propósito, neste momento, estou neste momento num trabalho que resulta de se ter descoberto, em três bibliotecas do Alentejo, jornais manuscritos. Quando fui ver a data desses jornais manuscritos, achava que eram de 1700. Mas não. São jornais entre 1889 e 1907, quando houve em Portugal as maiores leis de restrição da liberdade de imprensa, ainda no tempo da Monarquia. Portanto, aqueles jornais eram a forma de utrapassar essas restrições – eu, aliás, tenho chamado a esses jornais os blogues do século XIX…

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    E que passavam depois de mão em mão…

    E eram copiados! Eu recebia o jornal, copiava um para si, outro para outra pessoa; vocês copiavam outros dois… Agora, que informação é que existe sobre isto? Muito pouca, porque estes jornais chegaram às bibliotecas há 10 anos.

    E se calhar, nessa altura, esses jornais eram considerados desinformação… [risos]

    Provavelmente. Só chegaram há 10 anos às bibliotecas, porque pertenciam a pessoas que tinham uns exemplares nas gavetas. Encontrei três em Estremoz, um dos quais teve pelo menos 15 edições. Há um que até tem banda-desenhada! E até tem letra cursiva, e cabeçalho, director, editor, preço!

    Exisiam antes referências da existência de muitos desses jornais?

    Nunca conheci. Fizemos aqui uma pequena investigação, porque infelizmente tudo foi feito com o tempo que sobra, que é muito pouco. Mas enfim, como já cá estou há demasiados anos, quero que o meu contributo final seja este. E aquilo que descobrimos foi que o Partido Comunista Português e o Pacheco Pereira têm um acervo de jornais clandestinos. Mas desses, sabe-se tudo. Estes, de que vos falo, não. E se se for e ver a Lei de Imprensa então vigor, percebe que estes tipos não queriam ser apanhados.

    Ou seja, não havia referências da existência desses jornais da transição para o século XX na Biblioteca Nacional nem na Torre do Tombo…

    Eu descobri isto no Alentejo, porque fizemos uma exposição sobre jornais transtaganos, e andei a correr as bibliotecas elentejanas a ver o que se encontrava. E um dia disseram-me “venha cá, que temos uma coisa para lhe mostrar”. Eu vi bibliotecários quase a chorar. E eu dizia: “mas eu preciso disto digitalizado”. E eles sempre muito solícitos. Portanto, um amor, um carinho, uma devoção. Por exemplo, em Beja houve um jornal destes que se chama Violeta, que até tinha banda-desenhada. Violeta é o nome do café onde o Eça de Queirós escreveu quando viveu em Évora. Ainda existe o Café Violeta. Mas nõ sei se o Violeta foi de facto um jornal de Évora, porque osexemplares que noschegaram pertenciam a uma família de Beja. Mas há outras coisas intrigantes. Por que raio enconytrámos três jornais deste tipo em Estremoz? Três! E há mais, tem um em Portalegre, que se chama o “O Leão da Estrela”! E este, depois até passou a impresso, sócom o título de “O Leão”.

    João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

    Esse mundo é maravilhoso. Num dos meus romances [PAV, Corja Maldita], fiz metaficção, e, às tantas, há uma cobertura noticiosa de uns motins verdadeiros em Madrid na década de 1750 [motim de Esquilache]. E então coloco um jornalista que faz a cobertura desses eventos para o Occulto Instruido, mas esse existe, está na Biblioteca Nacional. No século XIX, houe muito jornalismo, de pendor político, alguns muito efémeros…

    Encontrei um jornal em Alcácer, numa associação, escondido. E o jornal chama-se “Terra de Kant”. E eu olhei para o título e disse: “alto! isto não foi feito por um gráfico normal”. Depois estive a ver, tinha o número zero, e aquilo era do nosso fotógrafo principal, o José Manuel Rodrigues, que foi Prémio Pessoa [erm 1999].

    É de que ano?

    1981. Aquilo teve 10 ou 15 números, era mensal, e de repente passa a ser um jornal a cores, deixa de ser um jornal a preto e branco, e passa a ser um jornal a cores, igual a todos os jornais regionais que pode imaginar, e muda o título. O título passou a ser tipográfico e deixou de ser desenhado. E quem era o director do jornal? Era o Camilo Mortágua. Há uns tempos telefonei à Joana Mortágua, e disse-lhe que tinha de lhe pedir um favor. E ela: “então diga-me lá”. Eu disse-lhe que já tinha perguntado a toda a gente e ninguém se lembrava; “importa-se de perguntar ao seu pai?”. Ela disse que o pai já estava um bocado velhote, mas talvez a mãe se lembrasse. Era o fim-de-semana do primeiro de Maio, e ela ia passar o fim-de-semana com eles. E depois liguei-lhe na segunda-feira, e ela disse que nem um nem outro se lembrava. Acabou-se por descobrir que estes vonte e tal números tinham sido impressos numa tipografia no Porto chamada Aguadouro. Eu olhei para aquilo e disse, isto ou foi feito por uma criança num dia de inspiração total, ou então foi feito por uma pessoa que sabia o que queria transmitir. Isto é uma coisa que eu só sei que não é do Picasso, porque ele nunca fez uma coisa destas, e nunca tinha estado aqui, e não pode ter sido. Isto é verdadeiramente fascinante. Mas os jornais manuscritos, oiça… Eu agora tenho que ver outras bibliotecas ao longo do país.

    Essas histórias que nos está a contar, poderíamos imaginar isso num período anterior…

    Claro, mas não. São daquele período e a razão para mim é muito clara. Ando a chatear a Universidade de Évora, que estão sempre a dizer que querem escrever uma história do Alentejo, e u digo: têm aqui, vão aos jornais alentejanos, e a partir dos jornais do Alentejo escrevam pelo menos uma sinopse do que pode ser a história do Alentejo. Porque está aqui tudo o que é preciso.

    Portanto, estamos perante um maná…

    Sim, é fabuloso. Houve ao longo dos tempos, e ao mesmo tempo são jornais ondese vê que aquelas pessoas acreditavam mesmo que aquilo ia mesmo fazer alguma coisa para mudar…

    Fotografias: Júlia Oliveira