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  • ‘Vejo uma Europa com imigrantes assimilados e integrados’

    ‘Vejo uma Europa com imigrantes assimilados e integrados’

    Foi diplomata durante mais de quatro décadas. No pós-25 de Abril, foi secretário-geral da Juventude Centrista e integrou o governo da Aliança Democrática (AD), de Francisco Sá Carneiro, como adjunto do Ministro dos Negócios Estrangeiros. Hoje, aos 72 anos, António Tânger Corrêa é vice-presidente do Chega e encabeça a lista do seu partido na corrida às próximas eleições para o Parlamento Europeu. Vendo no Chega a herança da (primeira) Aliança Democrática, cujos valores sente que foram traídos pelo PSD e o CDS, nesta entrevista ao PÁGINA UM, Tânger Corrêa queixa-se dos ataques violentos e difamações por parte de ‘opinion makers’ e dos media mainstream. Garante, contrariando críticos, que o Chega é a favor de imigração, mas com maior autonomia dos países para a sua gestão. De resto, mostra-se contra uma Europa federal e defende a soberania dos Estados-membro. Esta é a quarta entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.



    Uma Europa de países soberanos, mais democrática, e com imigrantes, mas assimilados e integrados. Esta é a visão do cabeça-de-lista do Chega, António Tânger Corrêa, para o futuro da União Europeia. Para isso, defende um afastamento do acordado no Tratado de Lisboa e um regresso ao Tratado de Maastricht, com os países a voltar a ter uma maior participação e protagonismo na União.

    Ex-embaixador, com uma carreira diplomática de mais de 40 anos, o actual vice-presidente do Chega garante que o seu partido é a favor de imigração mas com regras. “Não somos nada contra a imigração. Vejo uma Europa com imigrantes assimilados e integrados”, disse, numa entrevista ao PÁGINA UM.

    Lembrou que, no caso de Portugal, “fizemos isso ao longo dos séculos”, que “é um país que sempre recebeu gente de todo o lado” e nunca houve problemas de integração. Mas alertou que, hoje, “o que estamos a assistir é à vinda de pessoas, de uma maneira completamente desregrada, de culturas completamente diferentes e difíceis de integrar”.

    O ex-embaixador defende uma revisão urgente do Pacto de Migrações da União Europeia (Pacto em matéria de Migração e Asilo), o qual classifica de “sinistro” porque “impõe castigos, revoga a soberania dos Estados, é um Pacto com armadilhas escondidas e não é democrático”.

    Tânger Corrêa é contra a ideia de uma União Europeia federal que, a seu ver, é já visível no poder e protagonismo elevado que tem a Comissão Europeia. “O Chega é um partido europeísta, não uma Europa federalista, mas uma União de nações”, apontou.

    E defende um desenvolvimento da Europa em linha com o Tratado de Maastricht. “Ao contrário do que dizem, o Tratado de Lisboa – ao ser um passo maior que a perna – fez-nos andar para trás e criou clivagens, incluindo com os britânicos”, disse. E avisou que a outra “alternativa é países que estão quase com um pé fora” da União Europeia acabarem por sair. “Isso seria dramático para a Europa. Isso seria o princípio do fim da União Europeia”, afirmou.  

    O cabeça-de-lista do Chega alertou que a Europa já não é uma luz no mundo, devido à crise de valores que atravessa e à perda de nível democrático. “A Comissão Europeia tem vindo a crescer em termos de protagonismo mas no sentido federalista do termo, não respeitando as soberanias nacionais”.

    Nesta entrevista, Tânger Corrêa lamentou a “campanha” difamatória e os ataques de que tem sido alvo por parte de alguns media mainstream, tendo sublinhado que rejeita qualquer ligação sua ou do partido a xenofobia ou ideias fascistas – as acusações mais comuns na imprensa.

    Mas também criticou o debate pouco elevado entre políticos nestas europeias. “O Sebastião Bugalho simpaticamente, antes de começar a campanha, telefonou-me” e disse: “Vamos fazer uma campanha elevada”. “Passados quatro ou cinco dias, estava-me a atacar. Escusava de ter telefonado”, desabafou.

    Sendo eleito, o ex-embaixador, promete que vai “assegurar muito maior transparência do que se passa em Bruxelas, que é muito mais importante do que o que se passa em S. Bento”.

    Esta é a quarta entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.


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  • ‘Não somos um bom exemplo na imigração’

    ‘Não somos um bom exemplo na imigração’

    O partido Reagir Incluir Reciclar (RIR) concorre pela primeira vez a eleições para o Parlamento Europeu. Na estreia, o partido tem como cabeça-de-lista a sua presidente, Márcia Henriques. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a líder do RIR acusa Portugal de estar a falhar na recepção aos imigrantes e refugiados, devido à desorganização e burocracia. O partido defende que sejam aplicadas penalizações aos Estados-membro que falhem nos procedimentos de recepção aos imigrantes. Outra das propostas do RIR é que haja uma harmonização dos horários de trabalho entre sector público e privado, em Portugal, e também a nível comunitário. Márcia Henriques aproveitou para deixar críticas aos principais canais de televisão, por discriminarem os partidos sem assento parlamentar. O RIR foi um dos partidos que reclamou junto da Comissão Nacional de Eleições, a qual deu razão às diversas forças políticas. Esta é a terceira entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.



    Para o partido RIR-Reagir Incluir Reciclar, estas eleições para o Parlamento Europeu representam uma estreia. É a primeira vez que o partido concorre às eleições europeias. Para Márcia Henriques, presidente do RIR e cabeça-de-lista nestas eleições, trata-se de “um marco histórico” para o partido.

    O partido considera o tema das migrações como o principal, nestas eleições, e deixa críticas a Portugal nesta matéria. Segundo Márcia Henriques, “não somos um exemplo” em matéria de acolhimento de imigrantes e refugiados.

    “Primeiro, e antes de tudo, nós temos de conseguir colocar a AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] a funcionar”, afirmou em entrevista ao PÁGINA UM. Também defendeu que Estados-membro “que não cumpram a legislação e não deem resposta eficaz e rápida aos pedidos de asilo e autorizações de residência” sejam penalizados, eventualmente com “retenção de fundos” europeus. O RIR considera que Portugal deve ter como prioridade o “reforço de meios” para ajudar à integração de imigrantes.

    Márcia Henriques, presidente do partido RIR. (Foto: PÁGINA UM)

    Outras das prioridades apontadas pelo RIR é a harmonização dos horários de trabalho a nível comunitário. “Acho que é importante a necessidade de convergência dos horários de trabalho das pessoas. Já a nível interno existe uma diferença entre o sector público e o sector privado”, com os funcionários públicos a trabalhar 35 horas semanais face às 40 horas praticadas nas empresas privadas.

    Por outro lado, o RIR defende também que haja um foco no combate à corrupção em Portugal e ao nível da União Europeia. “O grau de corrupção é grande. Tem que ser combatida e tem que ser falada”, disse Márcia Henriques.

    Em termos de cobertura da imprensa nestas eleições, o RIR foi um dos partidos que reclamou junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) devido à discriminação feita pelos principais canais de televisão, que chamaram para debates apenas os partidos com assento parlamentar em Portugal, mesmo aqueles que não têm representação no Parlamento Europeu. A CNE tem dado razão às diversas forças políticas, já que as estações de TV estão a violar a Constituição aproveitando a existência de uma lei que é vista como inconstitucional.

    “A CNE acabou por nos dar razão, [diz que] constitucionalmente é um atropelo, mas o efeito prático disso é nenhum porque as televisões dizem que é um critério editorial e que não podem deixar de fora partidos com assento parlamentar, porque têm uma grande percentagem dos votos. Estamos sempre de mãos atadas”, afirmou a presidente do RIR.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Se, da parte dos canais privados, o RIR entende a posição, já “da parte da RTP não compreende”. Márcia Henriques apontou que a RTP apenas faz o debate dos pequenos partidos “só para não ser atacada”. “Numa corrida, partimos todos da linha de partida. Aqui não. Está inquinado”, desabafou. Comentando também o facto de grandes órgãos de comunicação social ignorarem alguns acontecimentos de relevo, incluindo internacionais, Márcia Henriques foi taxativa: “os meios de comunicação social acabam também por governar os países”.

    Esta é a terceira entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.


    N.D.: Uma falha técnica do equipamento de gravação afectou algumas das entrevistas do HORA POLÍTICA. A gravação da entrevista à cabeça-de-lista do RIR é uma das que apresenta pequenas falhas pontuais. Pelo facto, pedimos as nossas desculpas aos leitores e à entrevistada.


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  • ‘Falta substrato democrático na União Europeia’

    ‘Falta substrato democrático na União Europeia’

    Especialista em alterações climáticas e sustentabilidade, Duarte Costa, 35 anos, é co-presidente do Volt Portugal e primeiro candidato na lista do partido nas eleições europeias de 2024. Fervoroso defensor de uma União Europeia federal, é também um dos embaixadores do Pacto Europeu para o Clima e adepto das políticas de sustentabilidade. Para combater a pobreza, defende a criação de um Rendimento Básico Europeu que complemente os rendimentos dos trabalhadores com baixos salários. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o candidato do Volt Portugal deixa fortes críticas à imprensa, incluindo pela discriminação que faz no âmbito dos debates relativos às eleições europeias. Esta é a segunda entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.



    Uma União Europeia federal e mais democrática. Esta é uma das máximas do programa eleitoral do Volt Portugal que concorre às eleições europeias de 2024. Para Duarte Costa, co-presidente do partido e cabeça-de-lista do Volt Portugal às europeias, só com uma União Europeia federal se pode, não só melhorar o nível democrático, mas também, por exemplo, combater a corrupção a nível europeu e nos Estados-membro.

    Segundo Duarte Costa, não se trata aqui de diluição da soberania nacional de cada país, mas a “passagem para um nível partilhado de um conjunto de responsabilidades públicas e dos Estados, que não são mais eficazes se forem tomadas a nível nacional”.

    Defende que, com uma União Europeia federal, “nós ganhamos em democracia e ganhamos em eficácia”. Isto porque, para o Volt, “falta substrato democrático na União Europeia”, a começar pelo facto de existir uma Comissão Europeia que não é eleita e que tem muito poder. Por isso, para Duarte Costa, o “federalismo” permite que os portugueses de mais europeus tenham “uma voz mais directa na União Europeia”.

    Ainda no âmbito do reforço da democracia, o Volt propõe a “criação de assembleias de cidadãos deliberativas”, com poder vinculativo, e que permitirão a verdadeira “criação de uma democracia europeia”, que irá proteger “a União Europeia de avanços populistas de que a Europa está cada vez mais refém”.

    Mas o partido defende outras medidas, como a introdução de um Rendimento Básico Europeu para apoiar pessoas que trabalham mas que têm rendimentos baixos que as colocam num nível de pobreza. Segundo Duarte Costa, seria abrangida 13% da população da União Europeia e, a nível nacional, a medida iria beneficiar “quatro milhões de portugueses”.

    Duarte Costa, Volt Portugal. (Foto: PÁGINA UM)

    Outra das bandeiras do Volt é na área da defesa da sustentabilidade e de combate às alterações climáticas. O partido defende medidas que assentem numa transição justa para uma economia descarbonizada e em metas específicas para a diminuição das emissões.

    Mas Duarte Costa considera que, apesar de o Volt apresentar medidas concretas no seu programa eleitoral, não as consegue transmitir através dos media mainstream. “Em Portugal tem havido uma barreira muito blindada contra o Volt, para que as pessoas não possam conhecer o Volt”, acusou o dirigente político.

    Lembrou que o partido apresentou uma queixa junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) contra as três estações de televisão generalistas e a CMTV por excluírem o Volt dos debates eleitorais. “A CNE emitiu um parecer que nos foi favorável de que há um tratamento desigual da imprensa que é inconstitucional”, frisou. Mas vale pouco, já que, após a entrevista ao PÁGINA UM, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) descartou qualquer intervenção do regulador para alterar a composição dos debates.  

    “Há partidos que têm muito mais cobertura que outros. A CNE deu-nos razão mas continuamos na mesma”, afirmou o candidato. Assim, o Volt admite que pode vir a “fazer uma denúncia na Comissão Europeia contra o Estado português por não estar a assegurar igualdade de cobertura de candidaturas num acto eleitoral”.

    “Tem faltado levarmos o estado de direito a sério”, indicou, acrescentando que é visível que há “candidatos associados a cadeias de TV”, nomeando o caso de Sebastião Bugalho, cabeça-de-lista da coligação Aliança Democrática, que entende que foi favorecido em pelo menos um debate.

    Duarte Costa e Rhia Lopes, cabeças-de-lista do Volt Portugal nas eleições europeias de 2024. (Foto: D.R./Volt Portugal)

    Duarte Costa lamentou o facto de “o jornalismo estar muito dependente de um conjunto de órgãos [de comunicação social] muito reduzido, que por vezes têm interesses políticos estabelecidos”. E afirmou: “nestas eleições para mim está muito claro que os critérios editoriais não têm o nível de imparcialidade que é esperado”.

    Para que exista mais pluralidade nos media na Europa, o Volt defende que “a União Europeia avance para criar um canal europeu”, com informação e outros tipos de conteúdos que contrarie o actual “centralismo de órgãos de comunicação social e narrativa única sobre as coisas”, que criam um “campo aberto para a manipulação de massas”. Para Duarte Costa é necessário garantir que existam na Europa “múltiplas fontes de informação e ninguém a conseguir controlar a narrativa”.

    Esta é a segunda entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.


    N.D.: Por motivos técnicos, a gravação apresenta falhas pontuais breves. Pelo facto, pedimos as nossas desculpas aos leitores e ao entrevistado.


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  • ‘Há uma tentativa de erosão da soberania dos países europeus’

    ‘Há uma tentativa de erosão da soberania dos países europeus’

    Nascida em Luanda há 47 anos, Ossanda Liber lidera a mais jovem força partidária em Portugal. O partido Nova Direita foi inscrito junto do Tribunal Constitucional em Janeiro deste ano, ainda a tempo das legislativas do passado mês de Março. Nesta entrevista, a cabeça-de-lista do Nova Direita ao Parlamento Europeu defende um modelo de defesa comum na União Europeia e uma independência face ao poder dos Estados Unidos. Também alerta para a tentativa de erosão da soberania dos países europeus. Pelo meio, deixa fortes críticas aos maiores órgãos de comunicação social, acusando-os de estarem a boicotar os partidos de direita de modo “propositado”. Esta é a primeira entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.



    Sem ‘papas na língua’, Ossanda Liber é directa nas críticas ao actual panorama político em Portugal e na União Europeu, e deixa um alerta sobre uma “tentativa de erosão da soberania dos países europeus”.

    Para a cabeça-de-lista do partido Nova Direita às eleições europeias, há uma ideia de se criar “uma espécie de Estados Unidos na Europa”, uma visão federalista da União Europeia que o seu partido rejeita.

    Nesta entrevista ao PÁGINA UM, para a secção da HORA POLÍTICA, Ossanda Liber elege a defesa da soberania como a primeira bandeira do Nova Direita. A segunda bandeira é a criação de uma política comum de defesa a nível comunitário, e a terceira é a defesa da liberdade de expressão.

    “As pessoas não se dão conta da transferência de poder [para a União Europeia] que fizemos ao longo dos anos em troca de dinheiro. No fundo, estamos a ser pagos para nos calarmos e para não fazermos nada”, afirmou.

    Em matéria de defesa, a líder do Nova Direita quer uma “NATO Europeia” complementada com acordos bilaterais, nomeadamente com os Estados Unidos. Ossanda Liber destacou que a “NATO é financiada e dominada pelos Estados Unidos” e que “serve os interesses estratégicos e orçamentais” daquele país. Por isso, defende que, na Europa, “temos de ter a nossa própria defesa e fazer acordos bilaterais”. Por outro lado, rejeita que a União Europeia “seja arrastada para guerras”.

    Ossanda Liber (Foto: PÁGINA UM)

    Destacou que a sua “terceira grande preocupação é a liberdade de expressão”, apontando que “a supressão do debate de ideias é algo que se sente diariamente”. Contudo, acredita que a cultura de censura e cancelamento tem os dias contados: “o ciclo da loucura e da irracionalidade, está a acabar, com a emergência de movimentos conservadores”.

    Aliás, para a líder do Nova Direita, “há pânico na Europa de que o equilíbrio do poder mude”, com os votos a penderem para a direita conservadora, o que pode levar a que comece a emergir informação sobre mais casos de opacidade. Neste ponto, alertou que está a haver uma normalização da corrupção e da falta de transparência na política em Portugal e na União Europeia que “está a ser vítima de grandes movimentos de corrupção”, incluindo Qatargate, além da investigação que tem como alvo a própria presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

    Sobre o cenário político nacional, Ossanda Liber defende que Portugal ficou dominado nos últimos anos por uma ideologia de esquerda radical que tomou conta de instituições e dos maiores órgãos de comunicação social. E foi particularmente dura nas suas críticas à imprensa mainstream, acusando-a debloquear as visões e ideias de partidos da direita: “a imprensa não está a prestar um bom serviço à democracia”.

    Outras prioridades do Nova Direita passam por uma mudança na política energética, já que o partido defende a opção do uso da energia nuclear, e também porque considera que as metas propostas no âmbito de políticas de sustentabilidade ambientais são impossíveis de alcançar, como o fim dos carros a gasolina e gasóleo.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Nesta entrevista, Ossanda Liber comenta ainda alguns episódios mediáticos em que se viu envolvida, incluindo o mais recente nas redes sociais, após ter feito uma publicação com uma foto sua empunhando uma arma, tirada nas comemorações do Dia da Marinha, em que sugeria que a sua missão é “fuzilar a esquerda”.

    Esta é a primeira entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • ‘As autoridades de saúde, incluindo a DGS, também praticam violência obstétrica’

    ‘As autoridades de saúde, incluindo a DGS, também praticam violência obstétrica’

    O silencioso flagelo que é a violência obstétrica ganhou mediatismo com a pandemia da covid-19 – uma altura em que a Direcção-Geral da Saúde emitiu recomendações que violaram grosseiramente os direitos das grávidas, sem qualquer fundamento científico e até em contracorrente com a Organização Mundial da Saúde. Além de ter sido vedado às grávidas o direito a um acompanhante, tiveram ainda de suportar o trabalho de parto de máscara, e muitas foram até separadas dos seus bebés. Mas ainda hoje a DGS emite orientações sobre procedimentos no parto que configuram violência obstétrica. Contudo, como explica a advogada e activista Mia Negrão, as grávidas já há muito que eram sujeitas a protocolos e intervenções desadequadas, tendo, em alguns casos, sofrido danos físicos ou emocionais permanentes. A autora do livro O meu parto, as minhas regras e fundadora do projecto Nascer com Direitos pretende devolver a todas as futuras mães a possibilidade de fazer escolhas informadas para que a gravidez, o parto, e o pós- parto sejam menos traumáticos e medicalizados, e mais humanos e respeitados.


    Como advogada e activista, fundou o projecto Nascer com Direitos e lança agora o livro O meu parto, as minhas regras, que pretende consciencializar as mulheres para os seus direitos na gravidez e no parto. Porque é importante falar sobre isto?

    Em primeiro lugar, porque a violência obstétrica existe, e as mulheres estão muito pouco informadas. Estamos em 2024 e já se fala de violência obstétrica noutros países, como a Venezuela, desde 2007, e nós só começámos a falar sobre isto mais ou menos em 2020; portanto, estamos com algum atraso. As mulheres vão para os hospitais sem saberem quais são os direitos que têm na gravidez e no parto, e até depois no pós-parto, pelo menos durante o tempo em que estão internadas, naqueles dois a três dias após o parto ou cesariana. E, no fundo, isto é importante porque quando as pessoas não conhecem os seus direitos, também não sabem que opções têm, e acabam por fazer aquilo que está protocolado pelos hospitais e pelos profissionais de saúde sem questionarem. E, depois, quando sentem as consequências disso, nomeadamente para a própria saúde ou para a saúde dos bebés, é que percebem que foram vítimas de violência obstétrica ou de violência neonatal e que, afinal, tinham direitos e que esses direitos não foram respeitados.

    O termo violência obstétrica é, provavelmente, ainda desconhecido por muitas pessoas. Também é algo polémico entre os profissionais de saúde. Como é que se pode definir a violência obstétrica?

    A violência obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres. Na lei venezuelana de 2007, eles conceptualizam a violência obstétrica – e foi a primeira lei a conceptualizá-la –, e dizem que é feita por profissionais de saúde. Ou seja, é a apropriação dos corpos e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde. Não concordo que seja só por profissionais de saúde, na medida em que temos entidades de saúde que também praticam violência obstétrica, porque são elas que emitem as recomendações, orientações, etc., e que muitas vezes já estão a limitar os direitos das grávidas, e até dos bebés, e já estão a protocolar situações que não deviam estar protocoladas, nomeadamente, tudo aquilo que tem a ver com intervir em gravidezes ou partos de grávidas de baixo risco, como acontece hoje. Ainda agora, há dois ou três dias, foi actualizada uma orientação da Direcção-Geral da Saúde [DGS], em que continuam a recomendar, por exemplo, a episiotomia [corte cirúrgico no períneo], a canalização da veia, ou outras coisas para as quais não há evidência de que haja benefícios em gravidezes de baixo risco. Obviamente, o que devíamos fazer era uma aferição do risco à partida, para podermos distinguir uma grávida de risco e uma grávida de baixo risco. E as grávidas de risco, de facto, podem ter de ter algumas intervenções. Mas não sei até que ponto devem estar protocoladas porque, na verdade, mesmo nas grávidas de risco, há muitos aspectos em que o risco pode ser diferente. Por exemplo, uma pode precisar de um antibiótico, e outra precisar só de uma vigilância mais apertada. Portanto, protocolar estas coisas nem sempre é boa ideia.

    Até porque, como refere no livro, uma primeira intervenção que até não seria de facto necessária, muitas vezes dá azo a uma “cascata de intervenções” – e é algo que pode começar com uma coisa aparentemente tão simples como confinar a grávida à cama, certo?

    Sim, e é uma coisa muito comum nos hospitais em Portugal. Aliás, eu ainda há pouco tempo contava esta história: tenho uma amiga que estava grávida e quando fui ter com ela estava com outra amiga que já tinha tido um bebé no hospital onde ela também ia ter o bebé. E eu disse que nesse hospital há muita violência obstétrica, e que eu conheço bem, e a outra rapariga disse que tinha adorado o parto e que foi maravilhoso, foi muito respeitada, e foi tudo como ela quis… E eu perguntei-lhe em que posição é que tinha parido – que escolheu para parir – e ela ficou a olhar para mim sem perceber muito bem a pergunta, e lá disse que tinha sido numa posição “normal”, ou seja, deitada. Na verdade, ela nem sequer conhecia outras opções. Portanto, como é que ela acha que a vontade dela foi respeitada? O que aconteceu foi que afunilaram todas as opções e levaram-na a acreditar que aquela era a única opção que ela tinha. E, como ela não tinha outras ideias, conhecimento, nem qualquer tipo de informação, achou que aquilo era o normal. Ela não sabe que a experiência de parto dela podia ter sido muito melhor se ela tivesse mais informação, porque depois, claro, fizeram uma episiotomia, e o bebé foi tirado com ventosas, etc., mas “correu tudo bem”. Ela teve uma experiência positiva, e ainda bem, porque há muitas experiências com violência obstétrica que são positivas na mesma; a violência obstétrica é objectiva, mas a experiência de parto é subjectiva. Portanto, ela teve uma experiência boa, mas houve violência obstétrica, porque ninguém a informou de nada. Basicamente, obrigaram-na àquilo; só que ela não se sentiu obrigada, porque como ela não conhecia outras opções, e foi jogando o jogo deles.

    E porque é que acha que as normas não são actualizadas de forma a corresponderem às evidências científicas actuais? Porque é que as nossas autoridades de saúde não alteram os protocolos?

    Porque nós estamos muito atrasados relativamente às evidências científicas. É muito difícil actualizarmos profissionais mais antigos, que estão habituados a fazer as coisas de uma certa forma, porque aprenderam daquela forma. Os jovens que estão agora a acabar o curso de medicina ou de especialidade já vêm com outras ideias e já querem mudar um bocadinho as coisas. Mas, efectivamente, continuamos a ter muitos médicos que ainda fazem as coisas à maneira antiga. Portanto, ou nós temos uma renovação de gerações, ou então é muito difícil que estas gerações mais antigas de profissionais de saúde consigam actualizar-se, porque eles não sabem fazer as coisas de outra forma. Aprenderam assim, e acham que é assim que está correcto. É muito difícil, por exemplo, dizermos a um obstetra que não deve fazer episiotomia, porque não basta não fazer episiotomia. E o que eles dizem é que ela é necessária, e que sempre que fazem é por necessidade. E eu acredito que eles acreditam nisso! Porque se eles não mudarem toda a assistência ao parto, aquela episiotomia, para eles, vai ser necessária, efetivamente, porque eles não conhecem estratégias. Se têm mulheres sempre a parir em posição sempre litotómica – ou seja, deitadas – é óbvio que eles vão achar que a episiotomia é necessária, porque não sabem que há uma alternativa – que é terem as mulheres em liberdade, a parir na posição em que elas escolhem, e darem informação a estas grávidas para elas saberem que podem escolher e que têm direitos.

    Os jovens que estão agora a formar-se já se actualizam mais, procuram as evidências científicas, e já vivem num mundo também mais digital, onde podemos encontrar mais facilmente essas evidências. Para eles, é mais fácil alterarem as práticas; até porque já temos vários obstetras no Instagram, no YouTube e noutras plataformas, a informar sobre um parto respeitado – aquilo a que se chama o parto humanizado – e uma boa assistência ao parto baseada em evidências. Portanto, fazendo esses cursos e tendo acesso a essa informação, eles mais facilmente transpõem isso para a sua prática clínica. Pelo contrário, os profissionais mais antigos têm muito mais dificuldade, por um lado, em encontrar esta informação, e depois em aplicá-la, porque é muito difícil mudarmos os protocolos que aplicámos a vida toda e que achamos que têm sucesso porque as pessoas dizem que estão satisfeitas. Só que agora temos cada vez mais grávidas a conhecer os seus direitos, e que estão insatisfeitas e reivindicam e dizem que não querem assim. E esses médicos, depois, não ficam muito contentes com isto. E também por isso há tantas cesarianas.

    Aliás, salienta que este é um problema sistémico e não individual, já que os profissionais de saúde não têm consciência de estarem a praticar violência obstétrica porque estão a fazer aquilo que acreditam ser o correcto. Também será assim com o consentimento informado, que crítica no livro, dizendo que não devia resumir-se a assinar um papel? Como é que acha que deveria funcionar o consentimento informado no parto?

    Não sou eu que acho; isto consta em legislação nacional, internacional e em convenções – o consentimento informado é um direito humano. O consentimento informado parte da premissa de que temos direito a não ser sujeitos a tratamentos indesejados. E indesejados abrange tudo, independentemente de aquilo me salvar a vida ou não – se eu não quiser aquele tratamento, eu tenho direito a recusá-lo. O que acontece é que, para haver consentimento informado na área da saúde, a pessoa precisa de ter informação para tomar decisões, e, logicamente, uma pessoa não tem de saber tudo sobre aquela área de especialidade – neste caso, obstetrícia. E a questão aqui é: onde é que a pessoa vai buscar informação, se os profissionais de saúde se recusam a dar informação, como acontece, muitas vezes, ao longo da gravidez? Quando a grávida quer falar sobre o parto na consulta, os médicos dizem-lhe que ainda é muito cedo, que ainda faltam muitas semanas, e mais tarde falarão sobre isso. E depois, nunca querem falar. Isto acontece imenso. Portanto, não há informação. As grávidas muitas vezes vão até buscar informação à Internet, e não se sabe se as fontes são fidedignas, e se aquilo é aplicável àquele caso, porque as grávidas são todas diferentes. E às tantas, como os profissionais de saúde não querem dar informação isenta e cientificamente válida, há aqui uma colisão, porque as grávidas também não têm a certeza daquilo que leram. Muitas vezes, têm planos de parto em que não sabem muito bem o que aquilo significa, mas como têm medo, escrevem que não querem um determinado procedimento, e depois isto é um grande problema. Portanto, cabe aos profissionais de saúde dar informação às grávidas para elas poderem decidir se querem ou não aquelas intervenções.

    Além disso, é necessário que haja espaço e tempo para que elas possam decidir o que querem, porque se chegarem ao pé de uma grávida no momento do parto e perguntarem-lhe se quer fazer um procedimento, a grávida não tem tempo para pensar e está a sentir-se pressionada.  O modelo ideal é que o médico lhe dê informação com tempo e espaço para ela decidir. E claro que a informação que tem a ver com o parto deve ser dada durante a gravidez, já que nós sabemos que o parto terá de acontecer; se não for um parto, será uma cesariana. E é preciso prestar esclarecimentos: se a grávida sentir que não dispõe de toda a informação para decidir, e precisa de saber mais, o profissional de saúde tem de esclarecer a grávida, e de respeitar, depois, a decisão dela. Se ela não quiser uma intervenção, ela não lhe pode ser feita. O que acontece nos hospitais em Portugal é que dão-nos um formulário de consentimento informado quando entramos na maternidade e dizem que é obrigatório assinarmos para nos poderem internar. E a grávida assina o papel, que às vezes até está em branco e só apontam depois o que é que fizeram, como ventosas, cesariana, ou seja o que for. Mas aí, a grávida já assinou, e muitas vezes nem sequer leu porque estava com contracções e assinou sem saber sequer o que está a assinar. Aquilo que lhe disseram é que é necessário para ela ficar internada. Ora, isto não é consentimento informado de forma alguma.

    woman wearing gold ring and pink dress

    Também refere no livro um inquérito da The Lancet, de 2021, em que Portugal surge mal posicionado, entre 12 países europeus, na qualidade dos cuidados maternos e neonatais durante a pandemia. Este é, de facto, um problema maior em Portugal do que noutros países?

    Sim; esse inquérito é o espelho daquilo que se passa em Portugal. Neste momento, estamos no pódio dos piores, embora a Ordem dos Médicos e os próprios médicos queiram continuar a dizer que somos dos melhores países em termos de competências a nível obstétrico. E somos, tecnicamente; temos profissionais muito bons, mas que estão a ser mal utilizados porque utilizam-nos em partos de grávidas de baixo risco. Em partos de alto risco é óptimo termos obstetras tão qualificados – porque os temos –, mas não precisamos deles nos partos em que não é necessário sequer ter obstetras. E o problema é que isto leva à medicalização e à instrumentalização do parto; e temos ainda uma taxa altíssima de partos instrumentados e de episiotomias. Nesse inquérito da Lancet, aparecemos como os piores também a nível do consentimento informado – as mulheres não são envolvidas nas escolhas, tudo lhes é imposto. Ou seja, apresentam-lhes as intervenções como obrigatórias, e normalmente é isso que fazem. Até porque as grávidas, quando apresentam um plano de parto, há sempre quem lhes diga que, se o querem dessa maneira, têm de procurar outro hospital, porque naquele não fazem assim; e que ali é obrigatório fazer isto ou aquilo. E não é assim. Em Saúde, nada é obrigatório; nós é que decidimos, o corpo é nosso. Mas em Portugal ainda temos muito esta ideia das intervenções obrigatórias. Só que as grávidas têm estado cada vez mais informadas e, portanto, a recusar cada vez mais procedimentos que sabem não serem necessários; ou que, pelo menos, à partida não são necessários. E isto tem criado algum backlash por parte dos profissionais de saúde, porque as grávidas estão a fazer exigências às quais eles não conseguem dar resposta nos hospitais que temos hoje. E está a ser difícil porque temos um desencontro de gerações. A geração que está agora a ter bebés é a geração dos millennials, e a geração que está a prestar apoio ao parto é muito mais velha, são os boomers. Portanto, nós temos informação e queremos fazer uso dela, mas depois quando chegamos aos hospitais, eles dizem que não vão fazer assim, porque não sabem sequer fazê-lo.

    E esta iliteracia que ainda existe sobre estas matérias, não começa desde logo na pouca informação que existe sobre a saúde feminina e o ciclo menstrual? Porque o conhecimento sobre os ciclos, por exemplo, é importante até para datar a gravidez de forma rigorosa. Se for mal datada, pode criar ansiedade e a grávida e os profissionais de saúde podem achar, por exemplo, que já se ultrapassou as 41 semanas de gravidez, e querer induzir o parto, quando não é esse o caso, e não haveria realmente necessidade de intervir.

    Sim, sobre o ciclo menstrual e tudo o resto. Agora, as coisas já estão a mudar um bocadinho, até porque a Patrícia Lemos, por exemplo, escreveu um livro infanto-juvenil sobre o período, e esta informação já tem chegado mais às camadas mais jovens… Mas, de facto, ainda vivemos numa sociedade extremamente católica, em que nos incutem este nojo do nosso próprio corpo. O nosso corpo acaba por ser para o desfrute alheio, para outras pessoas; primeiro, para servir de cabide, porque temos de ser bonitas e usar roupas bonitas, justinhas, mas também não demasiado, porque senão, enfim, vamos para o inferno e coisas assim do género. E, depois, incutem-nos muito esta coisa de não nos podermos tocar, não podermos olhar para o sangue menstrual, não podermos cozinhar quando estamos menstruadas… Enfim, é tanta coisa. E o que é facto é que quando eu comecei nesta área, há quase uma década, lembro-me de as grávidas dizerem, muitas vezes, que não queriam ter um parto vaginal, ou que tiveram um parto vaginal e sabiam que as coisas depois nunca mais voltam a ser iguais no sexo. Porque, supostamente, ficam com a vagina muito larga; diziam elas que é porque a vagina dilata até 10 centímetros. E eu explicava-lhes que não é assim, é o colo do útero que dilata, mas a vagina até pode dilatar mais, e não é por aí. Mas isto para dizer que as mulheres não sabem a distinção entre vagina, colo do útero, útero. Então, quando alguém diz que uma grávida está com uma dilatação de cinco ou seis centímetros, elas não sabem, na verdade, o que é que está a dilatar. Elas nunca tocaram, nunca viram o colo do útero nem sabem para que serve. Então, é sempre esta coisa de só os médicos é que veem e que tocam, e nós estamos completamente na ignorância.

    baby covered with white blanket

    Claro que se nós, desde miúdas, aprendemos que é nojento tocar no corpo, e que o sangue menstrual é nojento; e só podemos aprender as coisas que lemos naquele caderninho da marca de tampões que na altura era a mais utilizada, e que dizia que o ciclo menstrual é assim: ovulamos no dia 14 e depois vamos menstruar no dia 28… Isto não é conhecimento absolutamente nenhum. Eu cresci nos anos 90, e ainda me lembro de querer imenso saber como é que funcionava o ciclo menstrual, e de ir ver às revistas para tentar perceber, e dizerem sempre que ovulamos no dia 14. E eu pensava, como é que isto pode ser assim? Será que somos todas assim tão certinhas? E então, quando há um atraso, é uma coisa anormal, é um problema de saúde? Até que depois vim a descobrir que isto não é verdade, não é assim que funciona; o corpo não é propriamente um relógio que está todo cronometradinho, a ovular e a menstruar como se fossemos todas iguais. Mas sim, eu abordei a questão da data prevista de parto porque as pessoas ainda confiam muito nesta sabedoria de que nós ovulamos todas no 14º dia do ciclo. E eu tenho uma amiga que engravidou e ovulou por volta do 46º dia do ciclo, porque teve um ciclo muito mais longo devido a uma questão de saúde. E os profissionais de saúde olharam para ela com imenso desdém, disseram que era impossível. E ela sabia que estava certa, mas, por causa disto, toda a gravidez dela foi mal datada porque os médicos não acreditaram no que ela disse. Ela sabia exactamente quando é que tinha ovulado e engravidado, mas os médicos fizeram tábula rasa disso, fizeram as contas deles, depois acertaram pela ecografia, e mesmo pela ecografia aquilo não batia certo com as contas dela. E isto no final da gravidez é um problema, porque há um protocolo de indução – que não acontece só em Portugal – às 41 semanas e, portanto, quando chegou a essa altura – nas contas dos médicos –, na verdade ainda não eram 41 semanas.  E depois há muita pressão. Portanto, é importante sabermos também que não existe um deadline, e atingir as 41 semanas não significa que o bebé fique logo em maior risco. Até porque, de facto, eu diria que na maioria das vezes a gravidez não está bem datada.

    Refere também que a violência obstétrica pode mesmo tornar o parto numa experiência traumática para as mulheres. Ao longo destes anos em que prestou apoio, viu muitos casos desses?

    Sim, a maioria tem stress pós-traumático; sonha ou tem pesadelos com a situação, e revive muito estas situações também nos aniversários dos filhos, porque apesar de ser o dia do nascimento do filho, também é o aniversário de uma experiência absolutamente traumática. Eu tenho clientes em que os danos que têm são, muitas vezes, até mais psicológicos do que físicos. Porque os físicos, podem ser, por exemplo, questões relacionadas com a episiotomia, ou até neurológicas, mas há muitos mais casos de danos psicológicos. Temos mulheres que não conseguem conectar-se com os seus próprios filhos, nem criar uma ligação com eles; ou mulheres que desistem de amamentar porque sentem que aquele filho não é delas. Tenho até clientes que acham que o filho foi trocado na maternidade, que não pode ser delas, têm mesmo dúvidas e pedem o processo clínico porque querem ter a certeza de que é impossível ter havido trocas. Ou seja, há aqui um corte naquilo que é a fisiologia e a biologia tão natural no parto, no pós-parto e na amamentação. E quando isto é cortado, depois, tem efeitos nocivos não só para a saúde mental da mãe, mas também para os bebés. Porque são bebés que, depois, não têm uma mãe responsiva, não têm contacto de pele com pele 24 horas por dia, porque as mães não sentem que é o filho delas; ou têm uma mãe que não os amamenta porque simplesmente não consegue sentir essa ligação. E temos bebés que são desmamados precocemente ou que nunca mamaram sequer, e isto é um problema de saúde pública, porque sabemos que os bebés que não são amamentados terão, no futuro, um maior risco de obesidade, de diabetes, de doenças autoimunes, de asma, etc. E na primeira infância também, portanto, é efectivamente um problema de saúde pública. Por isso, devíamos proteger muito mais a gravidez, o parto, o puerpério e amamentação – e ainda não o fazemos em Portugal.

    photo of baby holding person's fingers

    Durante a pandemia, inclusivamente, foram aplicadas medidas que incluíram a proibição de as grávidas poderem ter um acompanhante, a separação das mães dos seus bebés e o uso obrigatório de máscara durante o trabalho de parto. E estas orientações da Direção-Geral de Saúde não tiveram qualquer base científica. Foi um período em que os direitos das grávidas foram violados de forma mais intensa que o normal?

    Eu não diria que foram violados de uma forma mais intensa. O que eu diria é que efectivamente estes direitos já não eram respeitados, mas com a pandemia houve maior visibilidade para estas situações. Se antes havia pessoas que não reclamavam porque tendiam a relativizar e a desvalorizar as situações, durante a pandemia, como tudo isto foi noticiado e as regras estavam em todo o lado, as pessoas começaram a questionar-se e a pensar que aquilo não fazia sentido nenhum – quer dizer, uma grávida não podia ter acompanhante durante o parto, mas assim que saísse, iria estar com ele, e tinha estado com ele também antes de entrar no hospital! Depois, o facto de não poderem amamentar o bebé e não poder estar com ele também não fazia sentido absolutamente nenhum. Até porque a evidência que tínhamos – e a Organização Mundial da Saúde [OMS] foi peremptória nisto –, desde o início, era que os benefícios da amamentação ultrapassavam aquilo que pudessem ser os riscos da covid-19. Aliás, já se tinha percebido que os bebés, à partida, nem sequer eram afectados, ou particularmente afectados; não eram um grupo de risco. Portanto, a amamentação prevalecia e seria sempre mais importante o contacto pele com pele com a mãe; e isto é uma questão de saúde pública, repito. E enquanto a OMS esteve muito bem nisto, e fez vídeos a promover a amamentação e o alojamento conjunto, a verdade é que a maioria das pessoas não tem acesso a esta informação. A informação a que tinham acesso era aquela que estava nos media, e os media passavam a informação dada pela DGS. Portanto, na pandemia, todo o país ficou a acreditar que as mães não podiam ver os seus bebés, nem amamentar – isto é problemático, é violência obstétrica, e também violência neonatal, feita pela DGS. Podem dizer que a DGS é composta por profissionais de saúde, e é, mas não exclusivamente.

    Mas, acho que naquela altura, como houve mais mediatismo relativamente àquilo que estava a acontecer nos hospitais, os casais também começaram a revoltar-se mais e começaram a procurar saber se havia alguma lei que os protegesse e a questionar-se sobre quais eram os seus direitos. E começaram a fazer imensas reclamações. Foi, de facto, uma altura muito boa para as pessoas perceberem que têm direitos; também se fizeram algumas reportagens sobre isto. E foi bom porque as outras pessoas, que ainda não estavam grávidas, e que agora eventualmente estão a engravidar ou a pensar em ter bebé, já estão mais informadas e já sabem que têm direito a ter três acompanhantes, e têm uma série de direitos que efectivamente não foram cumpridos durante a pandemia, e continuam a não ser em muitos hospitais. Ou, quando são, é de uma forma muito difícil.

    woman kissing baby

    E todas essas regras sem nexo, e até prejudiciais para as mulheres e para os próprios bebés, acabam por ter uma impunidade; não houve, nem há ainda, consequências para as autoridades de saúde por essas práticas?

    Depende do que as pessoas fazem. Muitas vezes, as pessoas não reclamam; quando dizem que reclamam, é porque reclamaram na caixinha de comentários do Instagram de alguém que falou sobre o assunto. Para elas, isso já é reclamar porque já tiraram aquilo do peito, mas isso não é reclamar, efectivamente. Depois, há pessoas que só reclamam a alguém no hospital, mas isto também não é uma reclamação – a reclamação tem de ser formalizada. Eu até lancei um guia prático porque percebi que as pessoas não sabem como fazer reclamações, nem a quem dirigir as reclamações, nem o que devem dizer, ou como é que a reclamação deve estar estruturada. Então, lancei esse guia para as pessoas conseguirem orientar-se e poderem reclamar sozinhas, porque não é preciso advogados para fazer as reclamações todas. Mas, de facto, as pessoas ainda reclamam pouco. Quando me chegam, muitas vezes, é porque percebem que querem reclamar, e não querem fazê-lo sozinhas porque têm medo de eventuais represálias, e querem perceber qual é a melhor forma de o fazer, e também se judicialmente podem ter algum ganho ou vantagem; se é possível ganharem aquele caso. E, efectivamente, nem sempre é possível. Nem sempre temos casos assim tão fortes que seja possível levar para tribunal.

    Ainda assim, é útil reclamar, porque tanto a Entidade Reguladora da Saúde [ERS] como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde acabam por guardar registos. E depois, por exemplo, a ERS faz um relatório trimestral, se não estou em erro, em que colocam lá todas as reclamações que são feitas, ou as mais importantes; e também já temos lá reclamações por violência obstétrica, embora não seja a própria ERS a classificá-la dessa forma. São as pessoas que classificam como violência obstétrica; e isto é bom porque, por um lado, notifica-se os próprios serviços de bloco de partos e obstetrícia do que correu mal e do porquê de aquela grávida ter ficado insatisfeita, e do que podem melhorar na equipa – se eles quiserem ter essa discussão em equipa, porque podem não querer. Mas as administrações hospitalares também ficam a perceber o que se passa no bloco de partos, por exemplo; e a ERS tem uma noção de quantas queixas existem pelos mesmos motivos naquele hospital, ou em todos os hospitais do país.  Portanto, as queixas muitas vezes têm resultado – podem é não ter o resultado mais imediato. E, claro, depois, tudo o que seja judicial, que é a parte de receber indemnizações, e de fazer a queixa-crime, etc., aí já é tudo muito mais lento. Mas mesmo muito, muito mais lento.

    Tendo em conta que vivemos numa altura em que se fala muito de feminismo e dos direitos das mulheres, parece-lhe que este tema é suficientemente falado ou, pelo contrário, ainda se discute pouco, nomeadamente em círculos feministas?

    Penso que agora já começa a ser abordado, finalmente. Até 2021, nem por isso, principalmente em Portugal. E desde que temos o Observatório de Violência Obstétrica, que veio fazer imenso pelo movimento, temos cada vez mais associações feministas a referirem a violência obstétrica, e temos mais eventos sobre isso. Neste momento, penso que já não há nenhuma associação feminista em Portugal que não saiba o que é violência obstétrica, e que não a inclua também em todo o tipo de violência de género ou contra as mulheres. Penso que já está mais do que estabelecido que, efectivamente, isto é violência institucional de género, e os movimentos feministas falam cada vez mais sobre isto. Alguns, se calhar, não têm ainda tanta noção do que é, mas estão a começar a apalpar terreno e a tentar perceber; até porque isto veio dar nome àquilo que muitas mulheres já sentiam, e sabiam que tinham passado por isto, mas sem terem ainda um nome para o qualificar.  Eu lembro-me que quando se começou a falar mais sobre isto, e quando surgiu o Observatório de Violência Obstétrica, até nas primeiras manifestações que foram feitas, havia mulheres já com filhos da minha idade – na casa dos 30 – a dizer que passaram por tudo aquilo, mas que na altura não sabiam que tinha um nome. E que ainda hoje têm dores da episiotomia que foi feita, ou ainda têm pesadelos… Portanto, isto fica para sempre; não é por não falarmos nisto que as coisas desaparecem. Simplesmente, não tínhamos um nome para este tipo de violência, e ainda bem que agora temos, e temos pessoas que se identificam c om isto. E há até apoiantes do Observatório de Violência Obstétrica que são mulheres que já passaram pela menopausa, mas que sabem que foram vítimas, e só agora é que perceberam qual era o nome para aquele tipo de violência que sofreram já há 30 ou há 40 anos.

    As fotografias de Mia Negrão são da autoria da fotógrafa Sónia Brito


  • ‘À direita, não houve nenhum líder como Francisco Lucas Pires’

    ‘À direita, não houve nenhum líder como Francisco Lucas Pires’

    Prematuramente falecido aos 54 anos, em 1998, Francisco Lucas Pires é hoje um dos históricos do CDS-PP, a par de Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Adriano Moreira. Mas deixou sobretudo um legado de intelectual, visionário, percursor da direita liberal em Portugal que o advogado e escritor Nuno Gonçalo Poças quis perpetuar através de uma biografia. Para esta extensa biografia do antigo presidente do CDS-PP, que se destacou também como eurodeputado, o seu biógrafo acompanha a vida de Lucas Pires desde que o político conimbricense veio ao mundo, em 1944, até à data da sua morte. Com este O Príncipe da Democracia, Nuno Gonçalo Poças pretende ressuscitar o pensamento e ideais de Lucas Pires para o debate público.


    Francisco Lucas Pires foi presidente do CDS-PP e teve um papel importante na direita portuguesa, mas não é um nome tão sonante como Sá Carneiro ou Adelino Amaro da Costa, por exemplo. Ainda assim, a sua relevância política é comparável?

    Eu não tenho bem a certeza das razões pelas quais ele não é tão lembrado como o Sá Carneiro ou o Adelino Amaro da Costa. Consigo imaginar… As pessoas quase que ainda se lembram mais do Adelino Amaro da Costa do que do Freitas do Amaral, por causa da questão da morte; acho que tem mais a ver com isso. E o Lucas Pires também não foi assim tão recordado pelo CDS porque saiu do partido. Portanto, acho que isso também pesou um bocadinho. Mas, de qualquer das formas, diria que o legado político e partidário, e até mais mediático, do Lucas Pires não é comparável ao de Sá Carneiro, de Mário Soares, de Freitas do Amaral ou até o do Álvaro Cunhal; porque foram as figuras de destaque num período, não de transição, mas de afirmação da democracia. Por isso, apesar de tudo, Lucas Pires foi, politicamente, uma figura mais secundária, e só se tornou uma figura de primeira linha quando se tornou presidente do CDS, pela própria inevitabilidade da posição que tinha. Contudo, intelectualmente, filosoficamente e ideologicamente, acho que ele foi, para o campo da direita democrática, muito mais importante do que qualquer um dos outros.

    Era um política que valia sobretudo pelas suas ideias?

    Sobretudo por causa daquilo que pensava e escrevia, e da maneira como o transmitia. Mas se hoje olharmos para aquilo que foi o programa político da coligação PàF em 2015, do PSD em 2011, e do CDS em 2011, em 2009, em 2005, e em 2001-2, quando o Durão Barroso foi candidato a primeiro-ministro, que tinha um programa mais liberal, e até para o programa da Aliança Democrática [AD] em 2024, não é muito diferente daquilo que era o programa do Grupo Ofir de 1985 – a matriz está lá toda. Depois, há uma série de propostas em concreto que são adaptadas aos tempos, mas a matriz ideológica vem sobretudo dali. E acho que o grande mérito dele é esse, e por isso é que também acho que é importante recuperá-lo. Para quem quiser perceber qual é o campo da direita democrática, ideologicamente e politicamente, e sobretudo numa altura em que a direita se voltou a abrir mais à direita, digamos assim, acho que é importante recuperar a ”fonte” disto tudo. Obviamente que não foi o Lucas Pires que inventou o liberalismo, mas…

    Nuno Gonçalo Poças

    Se fosse vivo, acha que ele poderia identificar-se com um partido como a Iniciativa Liberal?

    Acho que não.

    Porque apesar de ser da direita liberal, tinha ideias mais conservadoras?

    Sim; e antes de mais, o Lucas Pires era católico e tinha uma presença cristã muito forte na vida dele. Acho muito difícil colar um rótulo ao Lucas Pires; é mais fácil dizer que era uma pessoa de direita, e que era liberal, mas isso é uma simplificação muito grande daquilo que era o pensamento dele. Porque acima de tudo, acho que foi um actor político intelectual mais do que a maioria dos políticos foram. A maioria dos políticos que tivemos foram mais intérpretes do que actores, e ele foi um actor e um criador.

    Lucas Pires já defendia, por exemplo, a criação de um Tribunal Constitucional.

    Sim, ele defendia a criação do Tribunal Constitucional já antes do 25 de Abril. E ele tem também um texto interessante sobre o poder local e a maneira como as autarquias se organizam.

    Onde até critica o Partido Socialista?

    Sim, e aquilo é um texto de 1976 que continua actualíssimo, porque não mudou rigorosamente nada. Todas as críticas que ele fazia naquela altura continuam actuais.  E esse pensamento parte de uma base liberal no sentido em que, para o Lucas Pires, toda a base do pensamento é o homem enquanto centro da actividade política.

    A tal antropocracia que defendia?

    Exactamente; a ideia da soberania do Homem antes da soberania do Estado. Por exemplo, em relação a essa questão do poder local, [ele] parte desse princípio da soberania do Homem e da maneira como as próprias cidades e comunidades são organizadas, e de que o homem é o centro do poder político. E, ao mesmo tempo, parte de uma matriz quase social-cristã daquilo que ele acha que deve ser a organização de uma sociedade. Portanto, há aqui uma mistura de influências e também um lado criativo que o leva a apresentar propostas, na maioria das vezes, antes do tempo; antes delas sequer chegarem a ser equacionadas ou implementadas. E estamos a falar de coisas com 10, 20 ou 30 anos de antecipação, e que a maioria delas continua muito actual. Acho, por exemplo, que não teria havido a revisão constitucional de 1982 sem ele; não teria havido o fim do Conselho da Revolução e o regresso dos militares aos quartéis sem o seu papel e sem a força do pensamento dele; e não teria havido a revisão constitucional de 1989, com o fim da irreversibilidade das nacionalizações e a liberalização do sector económico. Portugal também não teria aderido à moeda única sem o papel que ele teve. Talvez tivesse aderido à Comunidade Europeia porque foi uma coisa um bocadinho mais consensual, mas ainda assim, o papel dele foi bastante importante. Em 1974-75, ele era das poucas pessoas que, de facto, entendia que Portugal já estava num bloco europeu e que Portugal devia ser um país europeu. E nessa altura, o país ainda não estava propriamente aí; uma boa parte das pessoas achava que Portugal devia estar sob a esfera da União Soviética, e outra parte do país – talvez uma minoria mais ruidosa – achava que Portugal devia estar na rota do Terceiro Mundo, quase.

    Era um europeísta convicto, e nesse aspecto, até se distanciou de uma direita mais nacionalista?

    Ou de uma direita mais soberanista, que apareceu quase por oposição a ele. Ou seja, se calhar, há uma inversão de termos. Mas acho que o europeísmo dele também partia exactamente desse princípio da soberania do Homem e não da soberania do Estado. E no fundo, ele achava que a construção de uma democracia europeia não podia ser uma democracia com um cariz tecnocrático, e que o Parlamento Europeu devia ter muito mais relevância, muito mais força e mais competências; muito mais poder decisão do que tinha, e até ainda do que tem hoje, precisamente com base nessa lógica – o Parlamento Europeu era, de facto, quem representava o povo europeu directamente, e não os governos representados proporcionalmente no Conselho Europeu.

    Acha que ele veria com bons olhos a União Europeia actual? Corresponde ao modelo que ele defendia?

    Acho que não. Isto é um bocadinho contrafactual e tentar-me pôr na cabeça de uma pessoa que morreu há 25 anos, e já aconteceram imensas coisas que ele não viu. Mas, tendo em conta aquilo que ele pensava e que deixou escrito nos últimos anos, acho que ele não teria deixado de ser um europeísta.

    Ele defendia uma União Cultural da Europa, certo?

    Sim, e percebia que a Europa podia ser um mercado único, mas não podia ser só um mercado único.

    Era apologista de um Estado federal da Europa?

    Não era bem um Estado federal. Acho que, mesmo aqui, reduzir o Francisco Lucas Pires a um federalista também é um bocadinho redutor; porque a visão dele para a Europa é uma visão absolutamente criativa e inovadora, que foge a essa disputa dos soberanistas e dos federalistas. Ele percebia que conseguia afirmar uma espécie de nacionalismo através de uma federação de Estados, numa lógica em que Portugal estaria muito mais representado no espaço europeu, no Parlamento Europeu, do que não estando lá. Ou seja, num mundo em processo de avanço da globalização e de grandes blocos políticos, económicos e até militares, ele percebia que a grande força da Europa dos portugueses só podia ser veiculada dessa maneira. E há algumas coisas interessantes. Por exemplo, aquilo que ele dizia relativamente à necessidade de a Europa ter um poder militar por ela própria e não ficar dependente da NATO, e da importância que isso tinha relativamente àquilo que a Rússia podia vir a sentir à medida que a NATO se ia alargando a Leste – é uma coisa muito interessante, e não é um texto, foi um relato oral que ele fez para uma rádio em 1995. 30 anos depois, estamos exactamente aí.

    E ele começa a divergir do CDS, e sai do partido, em 1991, em colisão com Manuel Monteiro, que tinha uma visão muito mais eurocéptica?

    Ele sai do CDS ainda antes de Manuel Monteiro ser presidente. Ele percebe que o CDS, para continuar a existir naquela altura, tinha de passar a ser outra coisa completamente diferente. Portanto, percebendo que o rumo do CDS só podia ser esse e que ele não se identificaria com ele, resolve sair. E depois, Manuel Monteiro foi eleito presidente e apostou numa política um bocadinho mais soberanista, contra o Tratado de Maastricht, que até acaba por ter sucesso eleitoral. Porque em 1995 o CDS recupera muitos deputados que tinha perdido em 1987 e 1991.

    Quando Lucas Pires esteve à frente do CDS, entre 1983 e 1985, as eleições legislativas não lhe correram muito bem.

    Sim, em 1985. Mas depois foi candidato às eleições europeias em 1987 e teve um bom resultado. Houve eleições legislativas e europeias no mesmo dia e o CDS, com ele, faz uma campanha quase unipessoal, e para as europeias consegue 16 ou 17%, e nas legislativas, no mesmo dia, tem só 4%. Houve claramente uma divergência eleitoral muito grande. E em 1987, como dizia José Miguel Júdice, ele era visto quase como o político do século seguinte. Era a pessoa mais fresca, que trazia mais novidade e mais adaptada ao tempo e àquilo que o futuro aparentava ser.

    E também sofreu um bocado precisamente por ter esse lado visionário, foi mais incompreendido?

    Eu acho que isto é uma coisa muito triste de se dizer, mas em política, normalmente, quem tem razão antes do tempo não ganha nada com isso. Mais vale não ter razão do que ter razão antes do tempo. Mas isso também é o que o distingue, porque o Lucas Pires não foi só um político – foi um político e um intelectual ao mesmo tempo. E não houve muitos. E ele conseguiu sê-lo, ainda por cima, à escala Europeia. Acho que a grande dificuldade dele tem um bocadinho a ver com isso… O Jacinto Lucas Pires [filho de Francisco Lucas Pires] disse-me que ele sofreu sempre um bocadinho porque na política foi sempre visto como um intelectual, e no campo académico mais intelectual, foi sempre visto como um político. E as pessoas em Portugal tendem a deixar estas coisas mais estanques, divididas em caixotes – um académico é um académico, não vai para os jornais dar entrevistas e para as ruas distribuir panfletos, ou discursar para o Parlamento e coisas do género. E na política é exactamente a mesma coisa; parte-se do princípio que um político não está a reflectir sobre o futuro e sobre a organização do Estado, porque, no fundo, está a resolver problemas do quotidiano. Nós criámos um bocado essa imagem e acho que também se percebe isso à medida que se acompanha o percurso dele e o percurso do país: criámos a perspectiva do político como uma espécie de intérprete, de um executante, um director-geral.

    Um burocrata?

    Sim; um tecnocrata, um burocrata, um director-geral que é eleito em vez de ser nomeado ou escolhido por concurso. E que é uma coisa um bocado estranha. Quando se fala da profissionalização da política, acho que é um conceito mais difícil de se materializar… Quer dizer, o Lucas Pires fez política desde 1976, ininterruptamente, até 1998. E podia-se considerar, nesse sentido, que seria um profissional da política, embora não tivesse feito só política; foi jurisconsulto e continuou a dar aulas, etc. Mas a profissionalização da política não tem tanto a ver com o tempo que se dedica à actividade política em si; tem a ver, sobretudo com a forma como ela é exercida. E acho que, nesse aspecto, ele nunca foi um profissional da política. Tal como também foi um líder que nunca teve um ”ismo” atrás dele – o ”pirismo” nunca existiu. Embora houvesse piristas, talvez; pessoas que lhe eram muito leais e que o seguiam com muita dedicação. Mas o pirismo enquanto doutrina, quase como o cavaquismo, o suarismo, ou o passismo, acho que nunca existiu. Porque o Lucas Pires tinha essa condição de personalidade; no fundo, era alguém que prezava a liberdade acima de qualquer outra coisa, e isso incluía necessariamente a liberdade dos outros e o respeito pela opinião dos outros. E esse tipo de personalidade torna muito difícil que uma pessoa seja líder de um movimento seguidista.

    No livro até se diz que ele tinha um “tique do contraditório”.

    Sim, e há uma expressão engraçada que ele tem sobre isso; dizia que a política e a vida, no fundo, era quase como ter uma laranja na mão, uma coisa esférica, e aquilo vai-se rodando e o propósito é mesmo esse: ficar a olhar para uma coisa, rodá-la e perceber que ela pode ser vista de vários prismas, de várias maneiras. E não há uma maneira absolutamente mais certa do que a outra. E ele conseguiu afirmar as suas ideias e, ao mesmo tempo, ter essa noção de que a opinião do outro era importante. Era por isso, também, que ele tinha o hábito de ler os jornais do Avante ao Diabo; e de tentar perceber a perspectiva dos outros, até como fórmula para enriquecer as suas próprias ideias e, depois, tentar responder a isso.

    Era alguém que fazia pontes e era até amigo próximo de comunistas, como Vital Moreira, e de pessoas que tinham visões muito diferentes...

    Sim, mas acho que isso até na faculdade já se notava muito.

    Conseguia não ser ostracizado pelas esquerdas?

    Sim. Aliás, se fizermos um balanço, até acho que, durante muito tempo, talvez a esquerda o tenha admirado mais, embora tenha discordado sempre dele. E a direita, embora tenha concordado mais com ele – embora nem sempre – o admirava menos.  Porque – e talvez esta expressão não seja a mais correcta – ele era menos fiável, no sentido em que não era um chefe de claques. E as pessoas na política gostam muito disso – de sentir que aquela pessoa é um chefe de claques, e não é alguém que está lá para fazer perguntas, para interrogar e fazer ver o outro lado. E é uma qualidade que eu aprecio particularmente – se alguém está com mais de 20 pessoas à mesa, e disser A, e toda a gente a seguir também disser A, eu provavelmente faria o mesmo: teria necessidade de dizer ”então e se fosse B?”. E ele tinha essa capacidade, mas, politicamente, eu percebo que isto possa não ser uma grande vantagem comparativa.

    Mas ele nunca se importou com isso, não tinha uma ambição tão grande de ser um político profissional, como disse, e de ter cargos de maior destaque?

    Eu acho que ele teve essa ambição. Aliás, acho que ele foi talvez o único presidente do CDS que teve a real ambição e perspectiva de liderar o maior partido à direita. Talvez tenha sido mesmo o primeiro presidente do CDS que quis ser primeiro-ministro e não vice-primeiro-ministro – mas exactamente por causa da necessidade de afirmação das suas ideias; por acreditar que aquilo em que tinha pensado, as propostas que tinha e as ideias que tinha desenvolvido com outras pessoas, deviam ser implementadas. E, na verdade, muitas foram. Embora não tenha sido, obviamente, apenas mérito dele porque houve muito mais pessoas envolvidas nos processos.

    E foi também coordenador da primeira AD.

    Sim, embora esse lugar tenha sido um bocadinho vazio de conteúdo; foi quase oferecido para o manter dentro sem lhe dar demasiado gás – para usar uma expressão mais corriqueira.

    Mas, de qualquer maneira, as suas ideias foram fazendo caminho?

    Eu acho que fizeram sempre; embora muitas delas, ainda não. Em boa parte, acho que o legado político-ideológico do Lucas Pires ainda está por cumprir – ao nível das estruturas do Estado, mas também ao nível das estruturas mentais do próprio país, ou da comunidade portuguesa. Há uma série de coisas que estão por cumprir.

    E quais é que destacaria?

    Há uma expressão engraçada, que não sei se é bem dele, mas que acho que fica muito clara em 1985, quando ele se candidata contra o Cavaco Silva. Ele parte do princípio, em quase tudo – mesmo naquilo que é mais discutível – que para o ser-humano ser o mais livre possível, isso traz necessariamente uma responsabilidade acrescida. Portanto, que as pessoas são directamente responsáveis pelos seus actos, escolhas e decisões; e não é o Estado que decide, escolhe e pensa em função delas. Não é o Estado que decide aquilo que as pessoas devem ou não fazer, ou ambicionar. E acho que a vitória do Cavaco em 1985 foi muito por causa disso – porque ofereceu uma visão alternativa a essa, que fazia quase um intermédio entre aquilo que era a visão mais estatista do PS – porque o PS na altura também tinha virado muito à esquerda com Almeida Santos – e do PCP, com a visão mais liberal do CDS. Portanto, aquilo que o Cavaco garantia é que o país podia sofrer uma mudança suave. E esse discurso até voltou um bocadinho, recentemente. Acho que o Cavaco corresponde muito mais àquilo a que eu chamo as pequenas ambições do português médio, e o Lucas Pires estava noutro patamar: aquilo que queria dar às pessoas era total liberdade e total responsabilidade. E acho que continuamos ainda nesse ponto; não somos um país com especial apreço pela liberdade e por assumir a nossa própria responsabilidade. É sempre mais fácil ter o Estado, o burocrata, alguém a decidir aquilo que é melhor para nós, para depois, nós podermo-nos queixar de outra pessoa, e não de nós próprios. Por isso é que digo que, em termos estruturais, da mentalidade colectiva, isso continua por mudar. Tal como também continua por mudar outra coisa de que ele falava: a necessidade de uma revolução cultural para acabar com a “mendicidade rica“, que era a cultura do compadrio e das cunhas. Como vemos, as coisas continuam exactamente na mesma. Mas acho que nunca chegámos aí, também porque o país, e o Estado, nunca fez alterações políticas institucionais que permitissem fazer com que esse espírito de liberdade fosse mais comum do que é.

    Ele também criticava a importância excessiva que se dava aos líderes, e não àquilo que efectivamente se queria para o país.

    Sim, a pergunta do quê, e não do quem. E nós estamos sempre a perguntar pelo quem. Acho que isso ainda hoje é muito evidente. Continuamos sempre a ver quem é o candidato mais simpático…

    Ou o mais carismático…

    Sim, o mais carismático, aquele que está melhor nos debates, ou aquele que está pior… No fundo, não há uma discussão séria sobre aquilo que os candidatos, ou os políticos, defendem.

    Olha-se mais para a embalagem, não tanto para o conteúdo.

    Exactamente; discute-se o rótulo mais do que o produto, como dizia Lucas Pires.

    E como surgiu este título? Porque é que Lucas Pires foi o príncipe da democracia?

    O título surgiu num brainstorming. Eu tinha uma lista muito grande de títulos e não estava especialmente contente com nenhum, e acho que este faz muito sentido e adapta-se muito bem. Primeiro – se quisermos ser um bocadinho mais redutores –, porque o príncipe não governa; e ele, na verdade, nunca governou. Mas se pensarmos naquilo que é a figura de um príncipe, no sentido da elegância, da elevação, da capacidade de unir, de representar – acho que ele foi tudo isso. E da democracia, porque foi na democracia que ele viveu e foi para isso que, essencialmente, contribuiu. E acho que é “O“ príncipe e não “Um“ príncipe, precisamente por causa daquilo que eu estava a dizer no início: em Portugal, em 50 anos, não houve ninguém, excepto ele, que tenha conseguido ser simultaneamente actor, intérprete, e criador da maneira como ele foi. Nesse aspecto, acho que foi um político absolutamente singular.

    Lucas Pires faleceu com apenas 53 anos, em 1998. Acredita que se tivesse vivido mais tempo, teria conseguido materializar mais aquela que era a sua visão, ou o país nunca estaria preparado para as suas ideias?

    Eu acho que continua a não estar. Mas em termos mais práticos… Um antigo secretário-geral do Partido Popular Europeu que eu também entrevistei, diz que se ele não tivesse morrido naquela altura, teria sido provavelmente, o primeiro, e até agora único, presidente português do Parlamento Europeu. Além disso, eu não ponho de parte a hipótese de ele poder ter sido, pelo menos, candidato a Presidente da República; e talvez até tivesse tido sucesso.

    Acha que ele poderia ter sido Presidente da República?

    Acho que podia ter essa ambição, e era um lugar em que talvez até encaixasse melhor.

    Ele defendia, aliás, que o Presidente da República deveria ter um papel mais decisivo.

    Sim, e no meio de tudo aquilo que era o pensamento dele, o Presidente da República encaixava quase como uma espécie de representação do espírito do país e daquilo que achava que o país devia ser. O Presidente da República não tem de ter um programa político eleitoral, no sentido em que não tem de pôr em prática propostas políticas concretas, de resolução de pequenos problemas ou de transformações estruturais do Estado e da sociedade; mas deve ter um programa político lato sensu. Tem de ter uma visão do Estado e da sociedade e deve corporizá-la.

    Nuno Gonçalo Poças, ao centro, na sessão de lançamento da biografia de Lucas Pires. Ao seu lado direito, Martinho Lucas Pires e Francisco Camacho (editor da Oficina do Livro); e ao seu lado esquerdo, os políticos Francisco Assis e Paulo Rangel.

    Não tem de estar tão agarrado àquilo que são as ideias de um partido.

    E nem ter de estar agarrado à espuma dos dias – tem de perceber que tipo de país é que gostava de ter, e no fundo, exercer a sua função nesse sentido. Obviamente, o Presidente da República é uma figura de pontes e de elaboração de consensos, mas também pode ser o contrário. Por isso é que é importante que tenha uma posição política, porque não é neutro; não é a Rainha de Inglaterra.

    No livro, refere que o responsável de marketing da Margaret Thatcher chegou a dizer que achava Lucas Pires demasiado inteligente para liderar a direita em Portugal. Era demasiado inteligente para ser líder da direita, mas poderia almejar ser Presidente da República?

    Se Lucas Pires tivesse mesmo sido Presidente da República, isso teria muito a ver com as dinâmicas eleitorais presidenciais dos anos, em concreto, em que houve eleições: 2001 e 2006. E também não dou por garantido que ele fosse eleito, mas acho que podia ser candidato a Presidente da República. Mas eu percebo o argumento: por causa da barba e por ser demasiado inteligente, não podia liderar a direita em Portugal. Percebo, porque para ter sucesso na política – não só no sentido da ambição pessoal, mas também a nível da implementação de políticas –, acho que é preciso ser inteligente, mas talvez não ajude ser muito inteligente.

    Pois, ser-se um intelectual pode não ser uma vantagem. Talvez seja mais útil ser-se “esperto“.

    Sim, mais hábil, como agora se diz, não é?

    Pois. Como intelectual, deixou um legado de ideias e propostas, que ficaram por concretizar.

    Sim, acho que esse talvez seja o legado mais importante de Lucas Pires. Hoje, 25 anos depois de ter morrido, e quase 80 anos depois de ter nascido, para mim o mais interessante é pegar nisto e perceber que praticamente tudo aquilo que ele escreveu nos últimos 60 anos continua actual.

    Algumas coisas talvez até mais actuais agora do que antes.

    Sim, algumas até mais actuais do que na altura em que ele escreveu.

    Ele já falava, por exemplo, no envelhecimento da população portuguesa…

    Exacto. E também introduziu a questão do direito constitucional europeu, que foi uma coisa que só se discutiu quase 20 anos depois, e mesmo assim não foi uma discussão muito profunda. Em Portugal, foi absolutamente a primeira a pessoa a escrever sobre direito constitucional europeu; e na Europa, se não foi a primeira, foi das primeiras. Quase tudo aquilo que ele trouxe foi novo, e em 2024 é absolutamente actual. É quase como se fosse um futurista na política; alguém que tem um pensamento absolutamente contemporâneo, e que consegue compreender o seu tempo. Mas lá está: para alguém ter sucesso na política, é preciso compreender o seu tempo, e para alguém ser Francisco Lucas Pires, é preciso compreender o seu tempo e para onde se caminhará consoante as decisões que sejam tomadas. E acho que isso é aquilo que o distingue de todos os outros. De resto, era uma pessoa muito apreciada por quase toda a gente.

    Não era alguém que semeasse ódios?

    Não, mas como morreu precocemente, as pessoas têm muita dificuldade em criticar quem já cá não está. Mas ele teve os seus conflitos partidários, e, tal como também dizia, o CDS não é um clube de escoteiros. Portanto, essas coisas fazem parte, e ele teve as suas zangas e conflitos; é normal. Mas, feito um balanço, creio que toda a gente reconhece que o lugar dele é inquestionável. Também por isso é que resolvi escrever o livro –  acho que é importante recuperá-lo nesta fase da nossa vida colectiva, e quase obrigar as pessoas a olhar para isto e perceber que, se calhar, há uma série de coisas que podíamos ter feito de outra maneira e não fizemos. No final dos anos 1990, antes de morrer, ele diz que, pela maneira como as coisas estavam a nível europeu e português, muito provavelmente daqui uns tempos nós estaríamos a queixar-nos por não termos feito as reformas necessárias para entrarmos na moeda única, e que estaríamos a queixar-nos do Banco Central Europeu [BCE] em vez de nos queixarmos de nós próprios por causa daquilo que não fizemos. Acho que isso é muito evidente e, de facto, essas coisas aconteceram. Portugal continua a fazer exactamente a mesma coisa que ele sempre apontou. Nós preferimos sempre escudarmo-nos nos outros, pelas nossas próprias falhas; continuamos a não fazer aquilo que é preciso fazer para sermos um país com mais sucesso, e apontamos sempre a responsabilidade por essas falhas a terceiros: à crise financeira internacional, aos mercados, ao BCE, à Comissão Europeia, às agências de rating, aos imigrantes, ou seja ao que for. E não somos capazes de perceber que, se as coisas não resultaram, foi por responsabilidade nossa, porque nós não fizemos esse trabalho. Porque há outros países que fazem.

    Há uma desresponsabilização crónica na sociedade portuguesa?

    Sim; por isso é que o princípio dele é sempre este: o Homem é o centro da vida colectiva, da actividade política, e é mais do que o Estado. O Estado é uma construção filosófica, e só existe depois do Homem. O Estado existe porque o Homem pensou nele enquanto mecanismo de organização colectiva. E, seguindo esta lógica, não faz sentido que seja o Estado a decidir como vai ser a vida das pessoas, precisamente porque o Estado não é uma entidade abstracta; são outras pessoas. São burocratas, tecnocratas, etc., a decidir por terceiros aquilo que é melhor para a vida das pessoas.

    Em Portugal, o Estado ainda tem muito peso.

    Sim, nós estamos em 2024 e continuamos a discutir exactamente isso. Esse talvez seja o grande ponto da campanha eleitoral de 2024: é estatismo contra a contra o não estatismo, digamos assim.

    Por falar na campanha eleitoral para estas legislativas, e é uma questão meramente especulativa, mas tendo em conta aquilo que já sabe sobre Lucas Pires, acredita que se ele fosse vivo, seria um dos apoiantes desta nova AD? Tendo ele sido um inconformado, talvez esta AD ainda não materialize o fundamental das suas ideias…

    Talvez não, mas eu acho que ele sempre compreendeu também em que ponto é que o país estava, e qual era a direita possível. Penso que ele não era um liberal no sentido mais libertário, precisamente por causa da influência cristã na vida dele; tinha uma perspectiva mais liberal-conservadora do que liberal-liberal. Por outro lado, não era de todo um autoritário; era um cosmopolita, um europeísta, e não era estatista. Portanto, em 2024 – digo eu, mas é uma opinião muito pessoal –, não faça uma manchete a dizer que Lucas Pires votaria na AD, porque não sei se é verdade, mas acho que fosse talvez o campo mais natural; e até porque a AD representa um campo de maior amplitude ideológica, cabe lá muita gente. E nós vimos isso ao longo da campanha: a AD vai de Rui Rio, que dizia que o PSD é um partido de centro-esquerda, a Adolfo Mesquita Nunes – essas pessoas estão todas no mesmo sítio. Portanto, tem uma amplitude ideológica grande o suficiente para eu achar que ele podia lá caber. Mas acho muito arriscado responder a isso [risos].

    E como foi o processo de escrita do livro?

    Foi uma viagem muito gira. Eu tinha alguma admiração por ele, já conhecia os trabalhos do Grupo de Ofir… Demorei dois anos e meio a escrever, porque também tenho de trabalhar. Mas falei com muita gente e conheci a família dele. E no final, a sensação que eu tenho, é de ter ganhado, talvez não um amigo, mas pelo menos um professor, um mestre-escola; aprendi imenso com ele, directamente: a ouvir aquilo que dizia, a ler aquilo que escrevia. Durante este período todo, houve uma fase em que eu simplesmente deixei de trabalhar porque já não suportava ouvir a voz dele, aquilo já me cansava, de tão absorvido que estava. Mas depois reequilibrei-me. Porque no início começa-se com muito entusiasmo, sempre a recolher informação, e ganha-se um fascínio muito grande. É quase como os casamentos, mas há que saber sobreviver a isso, e criar uma relação um bocadinho mais estável. Às vezes, quase que me é natural tratá-lo por Francisco, como se tivesse andado na escola com ele.

    Mas não por Chico? [risos]

    Não, não chega a tanto. Acho que só as pessoas que estiveram com ele em Coimbra, e que o conhecem na fase de adolescente ou jovem adulto, é que o tratam por Chico Lucas Pires; como o José Miguel Júdice, ou alguns amigos mais antigos como o Vital Moreira, o Luís Cunha, e a irmã também o trata por Chico às vezes, mas é muito raro. A maior parte das pessoas trata-o por Francisco, e nos casos de maior formalidade, por Lucas Pires. Mas isso é muito giro de observar. Já não sei quantas pessoas entrevistei ao todo, mas foi muito giro perceber as dinâmicas pessoais entre os que o rodeavam. Algo comum que percebi é que toda a gente o admirava muito; alguns sentiam quase um fascínio, e outros menos, também por causa da questão política, nomeadamente aqueles que estavam em campos opostos. Também foi giro entrar na dinâmica familiar. Ele tem quatro filhos, e entrevistei os quatro, para além da mulher e da irmã.

    No campo da direita, pelo menos, não houve nenhum outro líder em Portugal como Lucas Pires?

    Eu acho mesmo que não. Daqui a 50 anos, se alguém quiser olhar para trás e ver quem foram as pessoas realmente importantes da democracia, acho que são o Soares e o Cavaco. O Cavaco governou 10 anos, foi primeiro-ministro no período de maior transformação e crescimento da economia nos primeiros 50 anos de democracia, e o Soares foi o responsável pela afirmação da democracia do tipo ocidental e não soviético. Portanto, são, talvez, as duas grandes figuras. Depois, há uma série de figuras secundárias, que foram importantes em alguns momentos, e nas quais se inclui, por exemplo, Sá Carneiro. Sá Carneiro foi importante na afirmação de uma alternativa ao poder do PS e do fim da tutela militar. O Freitas do Amaral também teve uma importância em todos estes momentos. Mas, o Lucas Pires tem outra coisa a favor dele: foi, de longe, o mais criativo. E não me admirava que, daqui a 50 anos, se voltasse a pegar nisto, percebesse que a maioria das coisas que ele dizia continuariam actuais.


  • ‘Ao longo de 21 a 22 horas por dia, Julian Assange está confinado a uma única cela de seis metros quadrados’

    ‘Ao longo de 21 a 22 horas por dia, Julian Assange está confinado a uma única cela de seis metros quadrados’

    Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, não tem dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, afirma que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. A decisão na Justiça britânica será conhecida em breve, enquanto o estado de saúde físico e mental do jornalista se deteriora devido às condições de detenção. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?

    Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.

    Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM.
    (Foto: PÁGINA UM)

    Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?

    Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.

    Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?

    Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.

    Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.

    Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.

    Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)

    E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?

    Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.

    Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.

    Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.

    Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.

    a picture of a burger with a free assange sign on it

    E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.

    Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.

    Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.

    E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?

    Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…

    Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)

    Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?

    Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.

    É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.

    Entrevista traduzida e editada para português


    A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube


  • ‘Julian Assange tem sido um canário na mina de carvão’

    ‘Julian Assange tem sido um canário na mina de carvão’

    Num momento em que a Justiça britânica está a decidir se extradita para os Estados Unidos o jornalista Julian Assange, o fundador da Wikileaks, o PÁGINA UM entrevistou a sua mulher Stella Assange. A advogada e activista dos direitos humanos não tem dúvidas de que o pico da era de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão no mundo ocidental já passou e avisa que o mundo ocidental tem vindo a cair numa espiral de censura, cada vez mais sofisticada. Julian Assange, actualmente com 52 anos, foi detido há quase cinco anos, encontrando-se numa prisão de alta segurança em Londres e num estado muito debilitado, física e psicologicamente. O pedido de extradição dos Estados Unidos serve para julgar Assange por ter publicado em 2010 no Wikileaks informação confidencial que denunciava crimes de guerra. Um dos desejos de Stella, confessou ao PÁGINA UM, depois da desejada libertação de Julian Assange – que recentemente recebeu o apoio do chanceler alemão Olaf Scholz – será uma visita conjunta a Portugal.

    O PÁGINA UM divulga já na íntegra o vídeo da entrevista a Stella Assange conduzida pela jornalista Elisabete Tavares, em inglês, estando também na plataforma Spotify. Ainda hoje, o PÁGINA UM publicará a entrevista editada em português, em formato de texto.


    Veja aqui o vídeo completo da entrevista a STELLA ASSANGE conduzida pela jornalista Elisabete Tavares.


    Se preferir, pode ouvir aqui a entrevista integral a STELLA ASSANGE no Spotify.


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  • ‘O meu conselho para os jovens: votem com os pés. Saiam do país. Portugal não vos vai dar um futuro decente’

    ‘O meu conselho para os jovens: votem com os pés. Saiam do país. Portugal não vos vai dar um futuro decente’

    Já vai na quarta edição e é o livro do momento, mas deveria ser o ‘livro de sempre’. As causas do atraso português, escrito por Nuno Palma, economista e professor na Universidade de Manchester, merecia lançar o país numa discussão assaz pertinente: porque é que Portugal não sai da cepa torta? Porque divergiu da Europa Ocidental, e parece não haver meio de acertar o passo, estando até a ser ultrapassado pelos países do antigo Bloco de Leste? Sendo obra de divulgação histórica e científica, o livro choca de frente com muitas ideias e ‘mitos’. Em entrevista ao PÁGINA UM, Nuno Palma falou sobre algumas das ideias mais polémicas, como a considerável recuperação económica durante o Estado Novo e a “maldição” do ouro no Brasil no século XVIII, que equipara aos fundos europeus. E, claro, aborda, de forma desassombrada, os impostos, o Estado, a corrupção, a censura à imprensa pelos reguladores, e até os principais problemas da ‘direita’ portuguesa. Quase nada fica por dizer, e o que diz é para fazer (uma merecida) ‘mossa’, nem que seja nas consciências.


    Em As causas do atraso português defende que “não podemos deixar a memória colectiva nas mãos dos que nos têm falhado”. Este livro constitui uma tentativa de resgatar essa memória colectiva, ‘desfazendo’ muitos mitos sobre o atraso de Portugal em relação ao resto da Europa Ocidental?

    O meu livro tem o objectivo de fazer divulgação científica de certas matérias; algumas delas que já eram conhecidas dos especialistas das diferentes épocas, porque têm sido publicadas em revistas científicas internacionais. Mas a natureza desses estudos é foco numa época específica, e numa pergunta específica. E o que eu tento fazer no livro é um esforço de síntese, em que, no fundo, as diferentes peças do puzzle são reunidas de forma a dar uma imagem completa da história de Portugal nos últimos séculos, até ao presente. E de quais as origens históricas de o país ser tão atrasado; porque não era tão atrasado, em termos relativos, em séculos anteriores. E o país, a certa altura, perdeu um comboio de desenvolvimento, e eu explico quais foram as causas históricas.

    Relativamente à questão dos mitos: num país que se torna tão atrasado, os diferentes regimes tentam construir narrativas para explicar quais os motivos do atraso, e muitas dessas narrativas têm motivações políticas. E, normalmente, tentam desresponsabilizar quem está no poder, arranjando bodes expiatórios. Isso acontece claramente no presente. Para este regime, que temos vivido nas últimas décadas, o principal bode expiatório é o regime imediatamente anterior. O Estado Novo é o culpado por tudo o que está mal no país. E essa é uma opção, do meu ponto de vista, preguiçosa, porque tenta desresponsabilizar várias gerações de eleitores e de políticos que, nas últimas décadas, têm governado o país, e que nos têm falhado. E, como tal, precisam de arranjar desculpas para o seu falhanço, e a forma mais fácil de o fazer é dizer “a culpa é dos que vieram antes de nós, eles é que deixaram isto tudo mal”. E se o Estado Novo é efectivamente culpado num plano político, por ser um regime que oprimia a liberdade, na minha ótica – e toda a evidência científica que nós temos o sugere –, não foi, de todo, um regime responsável por atrasar o país; pelo contrário. Em termos económicos, foi o regime no qual se deu a grande recuperação do país relativamente à Europa; que não foi “completa”, nem podia ter sido, mas foi uma grande recuperação parcial. Portanto, pôr a culpa do atraso no regime que foi responsável pela grande recuperação é bizarro e tem uma motivação óbvia. Assim, o que eu tento fazer é livrar a História da propaganda; é despolitizar a História. É isso que eu tento fazer neste livro, com base na investigação científica e nos dados concretos que existem.

    Falou do Estado Novo, e de como, ao contrário do que se diz, este regime não foi responsável pela divergência do país no contexto europeu. Na sociedade portuguesa, seja na Academia ou mesmo nos comentadores convidados para os órgãos de comunicação social, acha que a ideologia é muitas vezes um entrave a uma análise rigorosa dos factos?

    Todos nós temos, de alguma forma, as nossas ideologias. Isso é natural. Uma ideologia tem a ver com a forma como nós interpretamos o mundo, e até mesmo a evidência científica rigorosa que exista. Uma coisa são os factos, e outra coisa é, depois, a interpretação que damos aos factos. Agora, há casos em que a ideologia toma completa precedência sobre os factos, e são dadas opiniões e são defendidas posições que não têm qualquer base factual. Há outros casos em que há uma forma transparente, em que há uma interpretação com base nos factos rigorosos que, em princípio, são largamente independentes da ideologia, mas que, depois, pode ir além dos factos em si. Ou seja, eu posso interpretar, por exemplo, factos sobre as desigualdades. Digamos que um país é muito desigual, e isso é um facto, que pode medir-se com índices como o Índice de Gini. Podemos medir se um país é mais ou menos desigual nos rendimentos ou na riqueza ou em várias outras dimensões. Mas, depois, o que é que nós devemos fazer quanto a isso? E se isso é um problema, como resolver esse problema? Nem sempre há uma resposta científica absoluta, até porque às vezes há trade-offs, entre termos uma sociedade mais rica, mas mais desigual, ou uma em que, em média, as pessoas são mais pobres, mas há mais igualdade. Nem sempre estes trade-offs existem, mas em certas circunstâncias podem ocorrer. E, portanto, aí entra a ideologia; dás mais valor à igualdade, sendo todos pobres, ou dás mais valor a uma sociedade mais rica, em média, mas mais desigual? E as pessoas podem ter, e é legítimo que tenham, preferências, e a democracia também serve para que nós colectivamente, façamos uma escolha sobre essas matérias.

    Agora, no caso dos comentadores, sobretudo em Portugal, dá-se uma situação algo estranha e que não é normal noutros países, especialmente noutros países ocidentais ricos e mais desenvolvidos, e que é os comentadores serem eles próprios políticos, ou quererem ser políticos. A maior parte deles. E, portanto, eles estão a defender interesses e lobbies que normalmente não declaram. Quando alguém vai falar nos meios de comunicação social, aparece denominado como “comentador”, quando deveria aparecer “militante do Partido X ou Y”, porque é isso que eles são e é esse o papel que estão a fazer. Toda esta cultura dos comentadores – o próprio Presidente da República é presidente por ter sido comentador – é uma coisa, a meu ver bizarra. Eu próprio tenho muitas vezes convites para ir à Televisão, e em 90% dos casos rejeito. Não me interessa ir “mandar umas bocas”, ou uns soundbites para a Televisão; não é uma discussão séria sobre os assuntos. E, portanto, acho que toda essa cultura também reflecte o baixo capital humano da população portuguesa, que nem sempre é capaz de separar o trigo do joio e de perceber que aquelas pessoas não são comentadores independentes, nem estão a fazer uma análise independente da sociedade. Na esmagadora maioria dos casos, estão a defender interesses específicos, sendo pagos para isso directa ou indirectamente, ou consideram que a sua própria progressão política ou sucesso financeiro depende do sucesso com que passem a sua mensagem.

    Em relação à Academia, depende muito das áreas. Em certas áreas das ciências sociais, na minha óptica, o que se faz não é Ciência, é ideologia disfarçada. Em Economia também existe, por vezes, isso, mas em muito menor grau, e há muitas pessoas que estão a fazer um trabalho sério e objectivo. No meu caso pessoal, por exemplo, é ao contrário o que eu tenho descoberto em termos científicos tem, de alguma forma, moldado a minha ideologia, se entenderes “ideologia” como uma compreensão sobre quais as políticas públicas certas para desenvolver uma sociedade. Ao longo dos anos, mudei de ideias sobre certas coisas, por compreender melhor o processo de desenvolvimento económico e o processo histórico de desenvolvimento. E na minha óptica, é assim que deve ser. Mas reconheço que é verdade que, na maior parte das chamadas “Ciências Sociais” e “Humanidades”, especialmente fora da Economia, a ideologia cega é completamente dominante em relação à evidência científica. E a meu ver, as pessoas não estão lá para fazer Ciência, nem para compreender melhor, e de forma objectiva, a sociedade, mas para defender interesses políticos e tentar empurrar a sua agenda ideológica, que normalmente é bastante à esquerda. E, portanto, diria que o trabalho supostamente científico que fazem tem muito pouca qualidade.

    Aponta, como um factor central do nosso atraso, a denominada “Maldição dos Recursos”, e que remonta à descoberta do ouro no Brasil. Argumenta que, para Portugal, a descoberta do ouro teve efeitos mais nefastos do que benéficos, resultando, por exemplo, na desindustrialização do país. Em que consiste este fenómeno, que ‘transforma’ uma enorme abundância em algo tão pernicioso?

    Talvez ajude começarmos com um exemplo contemporâneo: a Venezuela. Vamos imaginar uma Venezuela que não tinha petróleo: estaria hoje melhor ou pior do que está? Um momento de reflexão leva-nos facilmente à conclusão que a Venezuela está muito pior do que teria estado sem petróleo. E este fenómeno da maldição dos recursos está bem estudado na Economia do Desenvolvimento – existem outros casos para além da Venezuela –, e tem uma dimensão económica e uma dimensão política. A dimensão económica tem a ver com estes países que concentram recursos naturais ou dinheiro, em grandes quantidades, através de uma fonte específica. Isso distorce o sistema produtivo das suas economias, levando a que seja muito mais fácil para estes países importar bens, e muito mais difícil exportá-los. Portanto, torna-se uma economia menos competitiva; o que se chama o sector transacionável – das exportações – torna-se menos competitivo. Os economistas falam disto em termos de os bens transacionáveis e os não transacionáveis; dá-se uma subida de preço relativo dos bens não transacionáveis, como por exemplo o imobiliário, relativamente aos bens transacionáveis, como é o caso do sector exportador da economia. Portanto, isto é um mecanismo bem estudado, e é um dos dois principais mecanismos da “maldição dos recursos”, que tem a ver com a transformação da economia. E, depois, há um mecanismo político que, a meu ver, talvez seja ainda mais importante, que tem a ver com a captura do Estado por interesses: torna-se mais fácil, neste tipo de economias, certas elites políticas tomarem conta do Estado, usando-o a seu favor para se manterem no poder. Portanto, são sociedades em que os ‘freios e contrafreios’ – os checks and balances anglo-saxónicos – se tornam menos relevantes, e quem manda no Estado pode utilizar esses recursos adicionais para pagar a clientelas para se manter no poder.

    Esse mecanismo, que é absolutamente evidente na Venezuela, nas últimas décadas, é condicional à sociedade que recebe esses fundos; a forma como opera na Venezuela, na Nigéria, ou em Angola, não é igual à forma como opera na Noruega, por exemplo, que também teve muitos fundos de petróleo. Porque a Noruega tinha instituições políticas fortes e capital humano, e os níveis de literacia, inclusive a literacia económica e política da população, é suficiente para a Noruega conseguir utilizar bem os fundos do petróleo, investindo num fundo soberano, não gastando tudo de uma vez, e investindo o dinheiro de forma diversificada. Ou seja: há sempre uma condicionalidade na forma como fundos desta natureza destroem, ou não, uma sociedade.

    No caso de Portugal, no final do século XVII, havia ainda um sistema político que, para a época, até não estava atrasado. Mas claro que, como qualquer sistema político da altura, era ainda muito menos desenvolvido do que o que veio a acontecer nos séculos seguintes. Mas existiam checks and balances; eu mostro no meu livro que nas décadas finais do século XVII, a indústria portuguesa das manufacturas estava-se a desenvolver, e também o sistema político tinha estes freios e contrafreios, existiam parlamentos, as cortes reuniam e tinham poder, o Rei não podia pôr e dispor, ou fazer o que queria.  E tudo isto vai desaparecer no século XVIII, porque todas estas receitas do ouro do Brasil vão distorcer a Economia e o sistema político, fazendo com que, nomeadamente, o Rei não precisasse de negociar e tivesse acesso directo a dinheiro de impostos. Não só o quinto, que é um dos impostos mais conhecidos; houve outros. A própria base da Economia cresceu durante algum tempo, em termos líquidos; isto é sempre um efeito líquido. Foi possível ter a Indústria a ser destruída, mas ao mesmo tempo, em termos líquidos, estava a entrar mais dinheiro, portanto no curto ou médio prazo a Economia até estava aparentemente a enriquecer, havendo mais rendimento por pessoa. Mas, a prazo, isto levou à concentração do poder e ao aparecimento do absolutismo, e foi isso que “estendeu o tapete” para alguém como o Marquês de Pombal aparecer, e que, eu argumento, foi talvez o pior político da nossa História, e o mais directamente responsável pelo atraso profundo do país em termos educativos nos séculos seguintes.

    Então, na sua opinião, não deveríamos ter uma estátua do Marquês de Pombal numa praça de Lisboa [risos].

    Em geral, eu sou contra deitar estátuas abaixo, pelo menos de uma forma pouco reflectida, como muitas vezes se faz. Mas reconheço que houve casos históricos em que se deitaram estátuas abaixo com legitimidade. Aconteceu, por exemplo, no caso das revoluções que acabaram com o comunismo na Europa Central e do Leste; atiraram-se muitas estátuas abaixo de forma espontânea. A seguir ao 25 de Abril também se acabou com estátuas que havia, pelo menos havia uma, de Salazar, e mudou-se o nome da ponte Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril. Parece-me legítimo em certos contextos. Neste caso, ter numa rotunda com uma importância tão simbólica para o país uma estátua do político mais directamente responsável pelo nosso atraso, e que mais mal nos fez, parece-me, de facto, despropositado.

    Referiu que as receitas e os recursos de um país não bastam para explicar um eventual atraso, e que é preciso ter em conta também a qualidade das suas instituições e a capacidade de gerir os recursos. Se Portugal sofreu, nos últimos séculos, uma certa “corrosão” das suas instituições, os fundos europeus – dos quais é muito crítico – funcionam agora como uma espécie de novo ouro do Brasil?

    Eu não quero fazer uma analogia absolutamente directa, porque a Economia e o sistema político hoje são muito diferentes do que eram no século XVIII; mas a analogia é simplesmente sugestiva. Tal como o ouro do Brasil não desenvolveu a economia portuguesa, e teve exactamente o efeito contrário ao que se poderia esperar; foi dinheiro “caído do céu”, digamos, de forma um pouco simplista… E é o que está a acontecer agora com os fundos europeus. Supostamente, o objectivo dos fundos é fazer o país convergir com a média europeia; mas Portugal está a receber estes fundos há quatro décadas, e nessas quatro décadas, não convergiu. Tem estado até a divergir, já há algumas décadas. Portanto, quando é que nós dizemos “se calhar, é melhor mudar a estratégia”? Porque esta estratégia claramente não está a resultar. E não digo só que não está a resultar: está até a ter o efeito contrário ao desejado. Esta política de ajudas europeias é uma das causas que está a impedir a convergência. E está a impedi-la, exactamente pelo mesmo tipo de mecanismos que o ouro do Brasil atrasou a economia no século XVIII, e que depois foi uma maldição que, aliás, continuou a ter efeitos indirectos nos séculos seguintes.

    Os fundos europeus distorcem o sistema produtivo da economia portuguesa, transformando e “inchando” o sector não transacionável. Portanto, têm um efeito negativo na competitividade externa da economia, por um lado, e por outro lado, ajudam quem está no poder a manter-se no poder, a ter dinheiro para distribuir às suas clientelas e para pôr pensos rápidos em várias partes da economia. Dinheiro que devia sair do Orçamento do Estado, mas que o Orçamento do Estado não teria capacidade de pagar porque a Economia não tem a capacidade produtiva para pagar, porque as políticas públicas são más e muitas são feitas, de facto, para avançar certas agendas políticas e não para desenvolver a sociedade. Por isso, têm efeitos muito negativos na Economia e prejudicam as pessoas e, em particular, os jovens, que praticamente não têm voz em Portugal. Porque o apoio ao partido dominante do regime vem de uma população muito envelhecida, e as estatísticas mostram-no de forma absolutamente clara. E, portanto, quem está a ser mais prejudicado não tem voz mas, depois, as consequências disso na população não se sentem de forma tão aguda como se iriam sentir, porque o Estado tem dinheiro para ir pondo pensos rápidos e dar “aspirinas” que escondem os sintomas da doença e as consequências das más escolhas que estão a ser feitas. Assim, como o povo não sente na pele, suficientemente, as más decisões que são tomadas, as coisas vão andando, e vão votando nos mesmos. A abstenção é muito alta, cerca de 50% nas legislativas, e portanto, um partido pode ter maioria absoluta com cerca de um quarto da população, apenas, a votar nesse partido.

    E esse dinheiro muitas vezes acaba por ser canalizado de forma duvidosa. No livro dá alguns exemplos dessa má utilização, que inclui a construção de estádios que ficam vazios, ou a imensa rede de estradas do país. No PÁGINA UM, fazemos um escrutino diário aos contratos públicos e conseguimos ver, precisamente, casos de má gestão, despesismo ou favoritismo, através de um recurso frequente a ajustes directos, que sempre dão menos trabalho do que os concursos públicos…

    E não é só dar mais trabalho. Abrir concursos também implica alguma meritocracia a quem são dados os projectos, quando o objectivo é exactamente o contrário: é “pagar” apoios e “premiar” pessoas de confiança política. E em alguns casos, pode ser mesmo corrupção. Se houver concursos, não pode ser, tão facilmente, assim. Isso acontece não só nesses ajustes directos, mas também no caso das contratações. Foi o caso da CReSAP [Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública]; a CReSAP é uma boa ideia do ponto de vista teórico, mas depois transformou-se numa coisa a fingir. A CReSAP, o MENAC [Mecanismo Nacional Anticorrupção]… É tudo a fingir. Estas instituições existem no papel, na lei, mas depois são completamente subvertidas e transformadas numa coisa só para inglês ver. Ou para União Europeia ver [risos].

    Falemos agora no Portugal do pós 25 de Abril. Argumenta que a revolução criou um ambiente hostil à iniciativa privada e à concorrência, e tornou a direita muito ‘tímida’, com medo de se posicionar, devido ao preconceito que se entranhou. Compara até com o caso da Espanha, que teve uma transição mais negociada e, portanto, não sofreu tanto esses “efeitos colaterais”. Se não tivéssemos feito um corte tão radical com o regime anterior, considera que o país teria evoluído mais?  

    Sim, genericamente, mas tenho de fazer uma ressalva: também é preciso reconhecer que a direita em Portugal muitas vezes também não é uma direita muito liberal. Ou seja, é uma direita que frequentemente confunde liberalizar com privatizar, o que não é a mesma coisa. Porque, por exemplo, uma empresa pública que seja privatizada, e passe de ser um monopólio público para ser um monopólio privado, isso não é necessariamente bom para os consumidores. É preciso é promover a concorrência, porque a livre concorrência é que, em última análise, vai beneficiar os consumidores. E esta concorrência, já agora, e falo disto no contexto do PÁGINA UM, às vezes implica não deixar haver censura. Porque parece-me absolutamente claro, em Portugal, que uma entidade como Entidade Reguladora para a Comunicação Social [ERC], na prática, muitas vezes é isso que faz. Noutros países da Europa, desconheço entidades equivalentes que estejam a fazer o mesmo tipo de papel que a ERC tenta fazer em Portugal, que, muitas vezes, é censurar. A ERC não serve para garantir concorrência no mercado – isto é competência da Autoridade da Concorrência – nem para garantir acesso a conteúdos digitais, que é da ANACOM. Logo, tudo indica que o real propósito da ERC é a promoção da falta de concorrência. Serve para manter as rendas protegendo os meios de comunicação tradicionais, muitos dos quais têm, a meu ver, baixa qualidade mas se consideram como “de referência”. Certas entidades, nos moldes actuais, como a ERC e até a LUSA, são, na minha óptica, antidemocráticas, e não deviam existir; pelo menos, não nos moldes em que existem. Porque estão a fazer um papel de Ministério da Verdade, querendo determinar o que é ou deixa de ser “desinformação”, e isso parece-me uma coisa bastante antidemocrática.

    Mas, para concluir a questão anterior, eu acho efectivamente que se Portugal tivesse tido uma transição negociada, ou se Marcello Caetano tivesse conseguido fazer uma transição para a democracia; se o próprio regime tivesse sido capaz de se reformar, as coisas teriam acontecido de forma diferente. Talvez se Marcello Caetano tivesse acabando com a ditadura e com a polícia política, e convocando eleições livres… Hoje seria um herói; não teria de se ter exilado no Brasil, porque nunca mais pôde voltar ao país. Claro, tinha de ter acabado com a guerra, porque não era possível continuar com aquela guerra num contexto democrático, de certeza. Até porque já durava há muito tempo, e não havia solução à vista. Mas não sei se essa transição seria possível politicamente, e não é por acaso que ele não a fez; portanto, isto são contrafactuais difíceis de avaliar, podíamos estar aqui uma hora inteira só a falar disto. Mas o ponto é: se a transição tivesse sido negociada, como foi em Espanha, ou se o próprio regime tivesse conseguido reformar-se e transitar para uma democracia, parece-me que a História do país, nas décadas seguintes, teria sido muito diferente. A natureza da revolução que existiu, que foi uma revolução a sério, apesar de com pouco sangue; foi um corte radical. E por ter sido um corte radical – como disse e bem, não sei se usei essa palavra no livro, mas foi bem escolhida – criou um ‘preconceito’ contra a direita. Criou a ideia de que a direita não quer desenvolver o país, e que o quer atrasar, portanto, em Portugal há preconceito contra ser-se de direita. Quando devia ser evidente para qualquer pessoa que a direita e a esquerda em si – que até são termos que eu nem gosto muito de usar, são um bocado limitados, mas enfim, para simplificar -, nenhuma delas é moralmente superior à outra, nem nenhuma é naturalmente mais a favor do desenvolvimento económico do que a outra, ao contrário do que tanta gente pensa em Portugal – país onde a esquerda considera ser moralmente superior. Esquerda e direita têm, isso sim, diferentes estratégias de como desenvolver uma sociedade. E, normalmente, digamos assim, a esquerda é mais “romântica”, acha que as intenções vão muito longe. A direita é tendencialmente mais cínica, ou realista, em relação à natureza humana.

    Mais pragmática?

    Mais pragmática e tenta julgar as políticas pelos seus resultados, e não pelas suas intenções, porque nós sabemos o que é que está cheio de boas intenções…

    [risos] No livro defende que a verdadeira dicotomia está no quanto um regime é favorável ou desfavorável à concorrência, e que tanto a esquerda como a direita, muitas vezes, são desfavoráveis à concorrência. A direita supostamente é mais ‘amiga’ da concorrência, mas acaba por fomentar a criação de monopólios ou oligopólios. Nesse sentido, a nossa direita pós 25 de Abril é muito corporativa?

    Sim, antes de mais, é uma direita envergonhada, como estávamos a dizer. Muitas vezes, não quer assumir as suas posições de forma clara. Certamente não quer dizer que é de direita, e isto é sistemático nos líderes do chamado “centro”; no máximo, diz-se “centro-direita”, mas às vezes nem isso. Muitas vezes, o partido que em Portugal é de centro-direita, o PSD, vemos constantemente os seus líderes dizerem que é um partido de esquerda.  Aconteceu com Sá Carneiro, recentemente Balsemão disse o mesmo… E isto não é normal, a nível europeu. No actual Parlamento, que agora acabou, só há um partido que se assume como sendo de direita, e é um partido, a meu ver, bastante populista e um bocado extremista em certas coisas, que é o Chega. Por aí se vê logo que é uma situação anormal a nível europeu, entre os oito partidos no Parlamento, apenas haver um que se diz de direita; não conheço casos equivalentes na Europa. Aliás, na verdade, conheço: existe o efeito “espelho” disto, que é em vários países da Europa do Leste, não haver ‘esquerda’. Ou seja, países que tiveram longas ditaduras numa direcção, muitas vezes são atirados para a direcção contrária em termos políticos e culturais. Na Polónia, por exemplo, a oposição é entre o que seria o PSD e o Chega locais, com as devidas diferenças; o ponto é que há uma direita moderada contra uma direita radical. Portanto, nestes países não existem partidos comunistas, ou “bloquistas”, com peso relevante, porque eles foram ‘vacinados’ contra essas loucuras. E Portugal é um país onde, culturalmente, as pessoas não estão bem informadas, vivem no seu contexto e ouviram as histórias familiares, por aí fora… Muitas vezes deixam-se influenciar por esses exércitos de comentadores e por essas elites todas, a meu ver um bocado patéticas, na maior parte dos casos. Portanto, gerou-se um ambiente cultural que, 50 anos depois do 25 de Abril, continua muito vivo, e que romantiza excessivamente a intervenção do Estado. Aliás, por isso é que as taxas de vacinação em Portugal eram tão altas durante a covid; resulta dessa grande confiança que a população portuguesa tem no Estado, que claramente não acontece da mesma forma na Europa do Leste, em que há uma muito maior desconfiança em relação às boas intenções do Estado. Em Portugal, as pessoas confiam muito no Estado, e a meu ver, confiam demasiado. Até porque existe uma certa contradição em confiarem no Estado mas não nos políticos.

    O nosso Partido Socialista, por vezes, é criticado pela ‘esquerda’, e acusado de ser, na verdade, de centro ou de direita. No seu entender, Portugal é um país mais à esquerda ou à direita? Ou é difícil encaixá-lo num dos rótulos?

    Não, sem qualquer dúvida que o regime é à esquerda, e até a direita é bastante à esquerda. Mas, em cima disso, a direita também é bastante corporativa. É este o ponto; é muito contrária à concorrência. E isto não é uma questão de opinião, eu gostaria de ser absolutamente claro: o meu livro cita estudos científicos que medem os níveis de concorrência na economia portuguesa, e os níveis são baixos. Em certos sectores, são bastante baixos até. E as pessoas conseguem ver isso, nos preços dos bens e serviços. Os preços em Portugal são bastante altos relativamente à qualidade dos produtos e aos salários das pessoas, que não só são baixos em termos nominais, como também em termos reais. O que é que esses salários conseguem comprar? Eu posso dar exemplos quanto à baixa concorrência de vários sectores da nossa economia, mas hesito um bocadinho, porque senão parece que só estou a pôr ênfase num ou noutro em específico, quando na verdade isto é bastante transversal – apesar de também ser verdade que há áreas em que a concorrência funciona melhor que outras. As elites rentistas vivem dessa baixa concorrência, que prejudica a população como um todo. Quem beneficia dessas rendas tem um grande incentivo a manter essas rendas intocadas, para que as coisas fiquem como estão. Portanto, há um grande incentivo para fazer lobbying, inclusivamente através da proximidade ao poder politico, enquanto a população paga esse custo. E embora o custo colectivo seja enorme, o custo individual, para cada pessoa, é relativamente pequeno. Portanto, a situação acaba por se ir arrastando durante anos e décadas, infelizmente. 

    E para criar riqueza já afirmou que não é suficiente baixar impostos, como a direita, sobretudo a mais liberal, costuma a defender. Acredita que a solução passa mais por empreender reformas e discutir como se pode aumentar o ‘bolo’, e não apenas por reduzir a carga fiscal?

    Exactamente, porque isso é pôr a carroça à frente dos bois. Faz-me muita impressão como em Portugal se fala tanto de distribuição, e tão pouco de criação de riqueza. Porque se houver criação de riqueza, cresce o bolo, e depois já haverá mais para distribuir, mais fatias para todos. Não precisam de estar todos a lutar por uma fatia um bocadinho maior que a do vizinho. Todos a lutar também destrói o bolo [risos]. Em vez de falarmos tanto de distribuição, vamos falar de criação de riqueza. Quais são as políticas que podem fomentar a criação de riqueza? Muitas vezes, o problema é que as políticas que podem tornar o bolo maior, vão dar fatias mais pequenas a certas pessoas que estão a comer fatias muito maiores do que deviam. E lá está, essas pessoas têm todo o incentivo para fazer lobby, para que tudo se mantenha igual.  

    Mas sobre os impostos, eu sou bastante crítico em relação ao ênfase que se dá a essa questão, em Portugal. Genericamente, a ‘direita’, e a Iniciativa Liberal… O liberalismo não é uma ideologia de esquerda ou de direita na maior parte dos países europeus. Aliás, o liberalismo é considerado uma ideologia centrista, centro-esquerda, mais ou menos; tanto que, no Parlamento Europeu, senta-se ao centro-esquerda. Enquanto no Parlamento português, senta-se quase à extrema-direita, em termos físicos. Mais uma vez, isto tem a ver com a conversa que estávamos a ter. Mas isto para dizer: esta ênfase nos impostos, do PSD e da IL, pode valer votos, há pessoas que estão cansadas de pagar tantos impostos, e eu compreendo isso.

    Sobretudo tendo em conta a pobre qualidade dos serviços que recebem por eles…

    Exactamente, é isso que eu tenho sempre dito. A carga fiscal em Portugal está a níveis normais em termos europeus, e em percentagem do PIB [produto interno bruto]. Há uma medida alternativa que é o “esforço fiscal”, mas é um bocadinho obscura. Lá está; num contexto de maior crescimento económico, o esforço fiscal português não seria assim tão alto. Essa é que é a discussão importante. Porque, para já, quando se fala em baixar impostos, nem sempre é explicado como é que isso vai ser feito na prática. Parece que, por magia, pode-se baixar impostos e o crescimento que isso vai gerar, sem fazer reformas fundamentais, vai ser suficiente para compensar a perda de receitas. E isso não tem qualquer credibilidade. Portanto, a Iniciativa Liberal tem uma postura anticientífica quando argumenta isso. A Curva de Laffer, como os economistas lhe chamam, tem a ver com a possibilidade de estarmos para além de um ponto em que, ao descer os impostos, na verdade as receitas fiscais sobem ou ficam inalteradas; porque as pessoas fazem mais esforço, trabalham mais, etc. Empiricamente, não há qualquer possibilidade de isso poder acontecer num país como Portugal. Portanto, eles têm que dizer claramente, em troca da descida de impostos, quais são os cortes ou as reformas que vão fazer, que de forma credível, gerem um crescimento que compense essa perda de receitas fiscais. E se são reformas, então essa é que é a discussão fundamental, e a dos impostos é secundária; ainda que acabar com a burocracia e confusão das taxas e taxinhas fosse sem dúvida positivo. Ou então, têm que assumir que vão aumentar o défice, ou a dívida, ainda mais, para as gerações futuras. E eles não fazem isso. Portanto, parecem-me pouco sérias as propostas que normalmente são feitas à ‘direita’. E mais uma vez, estou a simplificar com o termo ‘direita’, a referir-me ao PSD e à IL. Porque o Chega, em termos económicos, tudo o que diz é pouco sério, portanto, nem vale a pena falar disso.

    Mas, portanto, parece-me que há um grande equívoco. Aquilo que tem de se falar não é descidas de impostos, embora eu acredite que isso valha votos. Enquanto outros temas muito mais importantes para a sociedade portuguesa se calhar não valem tantos votos, e é o caso da reforma dos tribunais e da Justiça, que é absolutamente essencial… Mas a maior parte das pessoas não tem um conctacto muito directo com a Justiça, por isso não estão tão conscientes do profundo atraso em que o país está nestas matérias. Eu aconselho sempre às pessoas a lerem Nuno Garoupa, e tudo o que ele diz e escreve sobre estas matérias – a ineficiência da justiça portuguesa é uma causa absolutamente essencial do atraso no país. Mas os partidos políticos não falam com seriedade destas matérias, até porque, lá está, não valem tantos votos a curto e médio prazo. Os partidos políticos estão sempre muito focados em tentar ganhar as próximas eleições, ou em ganhar mais deputados. Portanto, têm uma grande miopia em relação às políticas que possam fazer desenvolver o país a prazo.  Preferem alimentar as suas clientelas e arranjar tachos [risos]. E não digo que, nalguns casos, também não possam acreditar realmente que as políticas que defendem possam desenvolver o país, mas em muitos casos estão enganados. Objectivamente, em matéria de impostos, as receitas que Portugal tem está a níveis normais em termos europeus. Mas  depois, se virmos o que os cidadãos recebem em troca dessa receita pública, efectivamente a qualidade dos serviços públicos tem-se estado a deteriorar muito. A qualidade da escola não era má em termos pré-universitários; em termos universitários, sempre foi má. Portugal é um país desastroso em termos universitários, embora haja, evidentemente, excepções. É evidente que há exceções, mas em termos médios, estatísticos, Portugal continua a ser um desastre. No ensino pré-universitário, o país até não estava a fazer uma evolução má, agora já tem estado outra vez a piorar. Mais uma vez: isto não são opiniões minhas. Há estudos científicos internacionais que eu cito no livro, que mostram isto através de estatísticas comparadas. Recentemente, as estatísticas dos testes PISA mostraram o mesmo.

    Em relação ao Serviço Nacional de Saúde, efectivamente não funciona bem. Há milhares e milhares de pessoas sem médico de família. Por exemplo, aqui no Reino Unido, ir ao dentista faz parte do Serviço Nacional de Saúde, e em Portugal não faz. Está a começar agora, mas de uma forma muito ineficiente. Mais uma vez, tudo é anunciado e prometido, tudo existe no papel, mas nada existe na realidade, nada sai das gavetas. Como os pacotes anticorrupção, que já foram uma data deles, mas a sua aplicação efectiva, é esperar para ver. Até anunciarem o próximo daqui a uns anos. Tudo serve para fazer capas de jornais, é tudo a fingir. Em suma, o problema está no que os cidadãos recebem em troca dos impostos que pagam. Eu até reconheço que são altos, e as taxas marginais são bastante altas. Em relação ao Reino Unido, não só são mais altas as taxas de IRS, no escalão mais alto, mas também o nível de rendimento a partir do qual se começam a aplicar as taxas mais altas, é muito inferior em Portugal. Portanto, o Estado é mais pesado nos impostos em Portugal, sem dúvida, mas isso resulta da falta de capacidade da Economia criar crescimento. Os governos têm de arranjar maneira de conseguir arranjar receitas fiscais e, portanto, vão aumentando os impostos, vão inventando taxas e taxinhas. Mexer nos IVAs, nos indirectos, nos directos, o IRC… Tudo isso são formas de continuar a alimentar a máquina do Estado; em grande parte, altamente ineficiente, que não dá às pessoas o que elas precisam, mas que compra clientelas políticas e vai aguentando o barco para quem está no poder.

    Tem sido uma pescadinha de rabo na boca [risos]. Achei curioso que diga no livro que Portugal tem uma Constituição “terceiro-mundista”, que cria expectativas irrealistas na população em relação ao Estado, por prometer demasiado. Face a esta cultura, e ao acentuado envelhecimento do país, não consegue ver uma luz ao fundo do túnel, num futuro próximo?

    O meu conselho, em Portugal, para os jovens, é: votem com os pés. Saiam  do país se querem um futuro melhor para vocês. Portugal não vos vai dar um futuro decente. Aproveitem o facto de serem cidadãos da União Europeia, que vos dá oportunidades diferentes. Eu sei que implica uma certa coragem sair; não é fácil, tanto em termos familiares como financeiros, também. Há custos. Mas em Portugal, o único elevador social que me parece que está a funcionar neste momento, é o dos tachos dos partidos políticos. As pessoas muitas vezes vão para a política, não como um acto cívico, que é o que a política devia ser – uma profissão nobre -, mas como forma de elevador social. Mas aqui também há uma selecção negativa: as pessoas que não têm escrúpulos, por não os terem, são as que muitas vezes têm sucesso na política. Especialmente em certos partidos, mas repare-se que até o partido supostamente do mérito, que era a Iniciativa Liberal, as figuras tristes que tem feito, com perseguições por delito de opinião, a quem não segue cegamente o líder, como Carla Castro, e foi corrida dos lugares elegíveis das listas, de uma forma muito antiliberal, por um partido que de liberal só tem o nome. Isto não é para atacar um partido em particular, mas o que eu estou a dizer é que o contexto explica muito do país.

    Em Portugal, muitas vezes, a tal direita está convencida de que a fonte de todos os problemas é o Partido Socialista. Mas o Partido Socialista reflecte também o que é o país, tal como a direita, incluindo a Iniciativa Liberal – e é por isso que digo isto – também reflete o que é o país. Reflectem forças mais fundamentais que muitas vezes tomam precedência sobre qualquer ideologia, por isso, a natureza profundamente iliberal da sociedade portuguesa, sente-se até na própria Iniciativa Liberal [risos]. Mas isto não tem saída, o país está bloqueado e não há desbloqueios à vista. Jovens, se tiverem coragem de o fazer, saiam do país, porque vão ter uma vida melhor assim. Para as pessoas mais velhas, o meu conselho é: se querem a vossa família, os vossos jovens ao pé de vocês, têm de reflectir sobre a forma como votam. Pensar melhor nas pessoas que põem no poder, porque se não exigem mais dos políticos e se não exigem escolhas melhores e políticas públicas melhores, Portugal vai tornar-se um país absolutamente lamentável, envelhecido e triste.  

  • ‘Nos últimos dois anos de vida, Salazar viveu num mundo de fantasia’

    ‘Nos últimos dois anos de vida, Salazar viveu num mundo de fantasia’

    Como seria a autobiografia de Salazar, se existisse? Não sabemos, e apenas podemos imaginar. Foi o que fez Carlos Ademar, historiador, escritor e antigo inspector da Polícia Judiciária, que ‘encarnou’ o antigo chefe do Estado Novo e escreveu um livro de memórias na primeira pessoa. Mas com um twist. Nesta Autobiografia do doutor Oliveira Salazar, encontramos o ditador num estado vulnerável, perto do fim, a confrontar-se com o passado e com os seus fantasmas – que são muitos, e implacáveis. O PÁGINA UM falou com o autor sobre esta obra que alia factos com ficção, e que, apesar do título, tem um objectivo bem delineado, muito além do seu cariz biográfico: “destruir” o mito por trás do homem.


    Sei que a ideia para este livro surgiu da Autobiografia do General Franco, de Manuel Vázquez Montalbán, lançada há uns bons anos. Durante este tempo, foi amadurecendo o “projecto”?

    Sim; na verdade, o ‘clique’, digamos assim, foi-me dado pelo Montalbán, quando li essa obra, já para aí há uns 15 anos. Como é natural, eu não queria replicar totalmente a sua ideia. Aquilo que retirei foi confrontar o nosso “ditador-mor”, como eu lhe costumo chamar. E de facto tem razão, porque ao longo dos anos eu andei à procura de… também andei à procura de tempo, que não tinha [risos], porque é uma obra muito exigente em termos de pesquisa. E, portanto, não era coisa que se fizesse em três ou quatro meses. Precisava de muito tempo, e só agora há dois anos, quando mudei de estatuto profissional, é que passei à disponibilidade [risos].  Ainda não estou reformado, mas estou a caminho da reforma.

    Como inspector da Polícia Judiciária?

    Sim. Eu estava na Escola, no agora Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. E dos vários projectos que tinha em mente, agarrei-me a este porque era o mais apaixonante. Foi aquele que me seduziu mais, não obstante o trabalho que teria pela frente. Ao longo dos anos, fui burilando a ideia, para arranjar uma forma de a trabalhar, e não replicar exactamente aquilo que o Montalbán fez. Ele pôs o general Franco a fazer o discurso oficial do regime, e eu também o fiz relativamente ao meu “Salazar A”. Depois, o Montalbán faz o contraditório do discurso. E eu encontrei aqui uma fórmula que acho que não me correu mal, modéstia à parte, porque me agarrei a um facto da vida real do Salazar, que tem a ver com aquele período de 1969/70. Ele fica doente em 1969, e está no hospital durante largos meses, e em Fevereiro regressa a São Bento, já não como Presidente do Conselho. Mas pensa que ainda é, e morre depois em Julho de 1970. Aquele é um período em que ele anda entre a lucidez e a perturbação. Tem momentos de lucidez, que lhe permitem dar entrevistas, designadamente a que deu ao jornalista do L’Aurore, em Agosto de 1969, e preparar com o seu próprio punho um pequeno discurso para dirigir aos portugueses por ocasião do seu 80º aniversário. E eu explorei esta fase da sua vida, colocando-o a fazer o discurso oficial quando está lúcido, e o contraditório quando está perturbado. Portanto, podemos dizer que temos uma autobiografia na verdadeira acepção da palavra, ainda que sempre com aspas, obviamente [risos]. Porque apesar de ser ficção, é sempre a personagem, Salazar, a escrever em ambos os discursos.

    E preferiu fazer esta autobiografia ficcional, em vez de uma biografia, como já fez, por exemplo, com o ‘capitão de Abril’ Vítor Alves?

    Sim. Biografias, já há várias de Salazar. Aliás, saiu agora uma recentemente, da qual soube já depois de publicar o meu livro. Mas há muitas, e há uma monumental que me serviu, de facto, de base de trabalho. Foi feita por alguém insuspeito, no sentido em que era um incondicional apoiante de Oliveira Salazar, e foi seu ministro dos Negócios Estrangeiros na década de 1960; estou a falar de Franco Nogueira. Franco Nogueira tem uma obra monumental de seis volumes grossos só sobre a vida de Salazar. E apesar de ser um seu admirador e da sua obra, não se coibiu de contar determinados episódios que não abonam muito a seu favor. Eu usei sobretudo os dois primeiros volumes da obra, que se reportam às primeiras décadas de vida, e particularmente o primeiro volume, que vai até ao momento em que ele chega a Ministro das Finanças, e não há assim tanta coisa escrita sobre esse período. Esse primeiro volume foi muito importante para encontrar determinadas histórias e episódios que me foram muito úteis para fazer o próprio contraditório; para contrariar o discurso social de Oliveira Salazar.

    Nesse ‘contraditório’, Salazar é muito duro consigo próprio; como se se achasse uma fraude absoluta, desde a sua aparente modéstia às origens humildes. Para construir este monólogo interno, embora se trate de ficção, serviu-se de alguns factos? Há motivos para crer que ele se sentia assim?

    Nós, obviamente, nunca saberemos, porque ele não deixou memórias. Deixou os seus discursos; mas relativamente a essa questão, nunca saberemos. Agora, do ponto de vista da pessoa interessada por este período e por esta personagem, pelo seu tempo e por aquilo que fez e não fez, penso que não é completamente descabido pensar que neste período, particularmente em 1969/70, em que ele estava muito abandonado…  Ele, de facto, nos últimos dois anos de vida, viveu num mundo de fantasia. Havia ministros antigos dele que iam a São Bento pedir autorização para fazer uma viagem a Londres, por exemplo. Esta é uma história contada pelo Joaquim Vieira, se não estou em erro, no livro sobre a governanta de Salazar, a dona Maria. Salazar não diz nada, está naqueles momentos em que está em baixo, e é a dona Maria que se aproxima dele, lhe segreda algo ao ouvido, e depois diz ao ministro que está autorizado a ir a Londres. E ele está sujeito a isto.  Digamos que não ‘enobrece’ muito uma pessoa chegar ao fim de vida e passar por estas situações.  

    Mas relativamente ao que me perguntou, eu não tenho dúvidas de que ele próprio, neste isolamento e solidão, se tenha debatido com determinadas coisas que fez ou que não fez. Sobre o facto de ele ser dissimulado, isso não há dúvida absolutamente nenhuma, e basta dar-lhe o exemplo do assassinato de Humberto Delgado. O livro do Fernando Dacosta, Máscaras de Salazar, fala neste episódio, e depois há o Joaquim Vieira, no livro sobre a Micas, que era uma das raparigas que foi viver lá para casa e manteve uma relação de proximidade com Salazar, que conta a mesma história. Portanto, digamos que há várias fontes que dão a mesma informação.

    Em que caso, por exemplo, isso se observa?

    No caso do assassinato de Humberto Delgado, há um telefonema que Salazar recebe na madrugada, pelas 2 hora ou 3 horas. Ninguém telefonava para São Bento a essa hora. E é a dona Maria que vai atender, e quem estava do outro lado era o Jorge Silva Pais, o director da PIDE. E ele diz que precisa de falar urgentemente com o senhor Presidente do Conselho. Entretanto, a dona Maria chama o doutor Salazar, e uma hora depois estão os dois sentados no gabinete a conversar sobre o que se terá passado naquele dia; coisa tão grave que levou, primeiro ao telefonema, e depois à viagem do Silva Pais a São Bento, e fez levantar Salazar e vestir a sua farpela, porque o recebeu de fato e gravata àquelas horas da madrugada. O que é certo é que Salazar ordena silêncio total sobre o assunto; não se fala nisso, acabou, não sabemos de nada. Entretanto, cerca de um mês e meio depois, os corpos do General Humberto Delgado e da sua secretária aparecem em Espanha e são identificados. E Salazar faz um discurso na televisão dirigido à Nação, dizendo que não sabe nada, e que a ‘nós’ não nos interessava a morte dele; a outros, sim, poderia interessar, mas ‘nós’ não sabemos nada. Ou seja, sobre o ser dissimulado que ele era, não há absoluta dúvida. Sempre foi assim. Aliás, a alcunha que o ‘Salazar B’ lhe aplica, muitas vezes, no livro, é o ‘Manholas’, que era a alcunha do pai dele, António ‘Feitor’. Feitor, porque era feitor da família mais rica entre Coimbra e Viseu, os Perestrelo. Mas ele, além de feitor, também era comerciante, e vendia propriedades num bairro que estava a nascer à volta da estação de comboios da CP de Santa Comba. Comprava e vendia terrenos, e a alcunha de Manholas vem daí.  E depois, penso que é o Henrique Galvão que lhe adapta, e chama a Salazar o ‘Manholas filho’. E eu uso muito, porque de facto, se alguma coisa o caracteriza é isto. Era um ser muito dissimulado, calculista. Conhecia e sabia ler muito bem – enfim, mérito dele – os homens, e sabia muito bem o que fazer e o que não dizer. A gestão dos silêncios, tudo isto ele fazia muito bem, sempre com o objectivo de levar a água ao seu moinho.

    Como foi o exercício de se colocar na ‘cabeça’ de Salazar?

    A parte menos agradável foi fazer o discurso oficial. Mas até isso me deu algum gozo. O discurso oficial é baseado, naturalmente, nos seus discursos, ou de pessoas que estavam muito próximas; no fundo, eram as ideias defendidas e aplicadas pelo Estado Novo. Mas, sobretudo quando estava a rever texto, deu-me algum gozo porque quase que estava a ouvir a voz dele, aquela sibilante que ele tinha por ser de lá de cima da zona de Viseu. Mas muito mais gozo deu-me fazer o contraditório, como será bom de ver.

    E porquê?

    Porque eu sou um amante da liberdade e da democracia, e dá sempre algum prazer arranjar argumentos para destruir determinadas teses. E neste caso, não era muito difícil. Portanto, conseguir ‘destrunfá-lo’, desarmá-lo, e provar por A mais B que ele era mentiroso, aldrabão… Desde logo, tendo em conta o exemplo que lhe dei, e muitos outros episódios. Deu-me, de facto, muito prazer. Enfim, estamos a falar nisto e estão a aparecer-me algumas histórias e descobertas que eu fiz; quer dizer, quem tenha lido a biografia do Franco Nogueira sabia. Eu não sabia porque nunca a tinha lido e li-a de propósito para este trabalho. Mas descobrir que Salazar tinha sido um poeta, nos seus primeiros tempos de professor, e chegou até a publicar um livro de poesia. Eu dou alguns exemplos, que fui também buscar ao Franco Nogueira…

    Essa é uma faceta pouco conhecida dele…

    Pois é [risos]. E aquilo era tão mau [risos]. Ele era um escritor exímio, um grande prosador. Aliás, António José Saraiva tem um texto num extinto jornal, se não estou em erro, em que o elogia como um grande prosador da política portuguesa, talvez o maior, dizia ele. E isso é inquestionável. Mas depois vamos ver aquela poesia, e aquilo é uma coisa aflitiva, até. E desmascará-lo, colocar essa poesia aí, é interessante. Porque ele teve o cuidado, quando começou a perceber que podia vir a ter um futuro político – ele era um tipo inteligentíssimo, obviamente… Estava inserido no meio católico, e começa por fazer o seminário, como é sabido, e depois vai dar aulas para um colégio religioso em Viseu enquanto está à espera de ter idade para tomar as ordens maiores. Depois acaba por não as tomar, e vai para Coimbra para fazer o curso de Direito, e aí já está convencido de que o seu futuro não é ser padre. Ele achava que poderia ser muito mais útil à Igreja na vida política, do que propriamente na vida eclesiástica. E não quer dizer que tenha sido só ele a autoconvencer-se; o director do seminário e do colégio são pessoas com alguma influência na Igreja, e encaminham-no nesse sentido.

    Quando ele chega a Coimbra, leva cartas de referência desta gente toda e é inserido no meio católico de Coimbra, que também era um meio muito forte, sobretudo a Universidade e a Faculdade de Direito, onde ele vai estudar. Rapidamente se destaca, e cá está a vertente “manholas” a vir ao de cima mais uma vez. E veja este exemplo. No primeiro ano em que chega a Coimbra, não tem praticamente contactos nenhuns em na política. Eu recordo que, quando ele chega a Coimbra, estávamos no início da Primeira República, instaurada a 5 de Outubro de 1910, e ele começa as aulas em meados desse mês. Como sabemos, a República caracteriza-se por um sentimento anticlericalista do mais feroz que possamos imaginar. E todo aquele núcleo católico une-se em torno de um inimigo comum, que é a República. No primeiro ano, ele não faz grandes contactos, é sobretudo estudar e aplicar-se para que, no fim do ano, quando as notas fossem conhecidas, ele entrar naquele meio já ‘por cima’; ou seja, não como um soldado raso, mas já um ‘oficial de topo’. Porque ao aperceberem-se das notas e do potencial daquela figura, havia que o catapultar. E ele quando adere, já é reconhecido como alguém que pode vir a ter um futuro na vida política, em defesa da Igreja, para tentar repor o domínio da Igreja, que a existia até à implantação da República, em praticamente toda a sociedade. O papel de Salazar vem a ser este. E à medida que se vai destacando, vai sempre subindo na hierarquia do grupo católico de Coimbra; ao ponto de, já enquanto professor, a Igreja o convidar para abrir e encerrar sessões. Davam-lhe sempre o papel principal, e ele era um ‘mero’ professor de Direito. Portanto, a Igreja tem um papel fundamental na sua ascensão.

    Foi o calculismo de Salazar, como diz, aliado ao seu conhecimento do povo português, que lhe permitiu ser um ditador bem-sucedido?

    Sim, não tenho dúvida absolutamente nenhuma. Eu já fiz essa referência relativamente ao conhecimento do Homem e do povo português, particularmente. Porque ele usa, e bem, o facto de termos vivido uma primeira República muito tumultuosa. Foram 16 anos de verdadeiro tumulto, com 40 e tal governos; não havia estabilidade, e isto foi péssimo para a democracia e para a liberdade. Os republicanos não souberam aproveitar a oportunidade que tiveram e desperdiçaram-na, e ele aproveitou isso. De facto, ele é quem acaba por encabeçar esse movimento. A astúcia dele passa por aí. Quando chama Estado Novo ao regime que criou em 1933, já é um bocadinho isso; ou seja, é acabar com o “estado velho” para começar uma coisa nova. É o mesmo exemplo do que o Sidónio Pais tinha feito, quando tomou o poder num golpe de Estado em 1917 e chamou ao seu regime ‘República Nova’. Esta ideia de começar de novo. E Salazar não escolheu a palavra “República”, porque não o deixava muito confortável. Porque grande parte dos apoiantes dele nem republicanos eram, eram monárquicos [risos]. De facto, quem faz o 28 de Maio, que depois acaba por levá-lo ao poder, é uma mescla, gente de variadíssimas tendências: monárquicos, fascistas, até republicanos moderados havia. Portanto, ele procura não beliscar as sensibilidades que lhe estão mais próximas, e de quem mais o apoia.

    Por volta do 28 de Maio de 1926, ele vai escrevendo também para jornais católicos, vai fazendo crítica particularmente à política económica e financeira, e vai-se tornando também notado pelos escritos que vai produzindo. E há uma altura já em plena ditadura, em que Portugal precisa desesperadamente de um empréstimo. E esse empréstimo é negociado à exaustão, as exigências são muitas porque ninguém confia na ditadura, nem na política económica que estava a ser seguida pelos generais, e o empréstimo acaba por não chegar. Mas ao longo deste processo, Salazar vai sempre criticando duramente o empréstimo. Quando ele é convidado para ser Ministro das Finanças, a Igreja tem um papel importante a catapultá-lo. Mas ele depois vai ter um outro apoio muito importante, que é o Presidente da República, o general Óscar Carmona, que quando vê nele uma solução, afasta os militares das Finanças, e mete Salazar como ministro das Finanças. E quem disse que a pessoa ideal para ocupar o lugar era o Dr. Oliveira Salazar, foi nem mais nem menos do que o Cardeal de Lisboa de então – que ainda não era Manuel Gonçalves Cerejeira, que só vem mais tarde –, António Belo. Mas quando Salazar começa a trabalhar, rapidamente se apercebe que o empréstimo dava muito jeito. Ele tinha escrito vários artigos contra o empréstimo, e para não ficar mal na fotografia, fala com o seu mais antigo e fiel amigo, Mário Figueiredo; um verdadeiro nazi, como se veio a saber pela altura da Segunda Guerra Mundial. Salazar incumbe-o de fazer um périplo pelas principais capitais europeias, no sentido de conseguir o tal empréstimo. Mas tudo em segredo. A verdade é que as coisas não correm bem, e o empréstimo acaba por não vir na mesma. E era suposto que ninguém soubesse, mas alguém soube desse pedido de empréstimo, e fez sair um artigo em Espanha, ao nível das elites. E soube-se assim que Salazar tinha feito aquilo que tanto tinha condenado. E isto é mais uma demonstração da sua forma de ser. Era um tipo que não olhava a meios para atingir os fins, e que tudo fazia para salvaguardar a sua imagem – isso para ele é que era o fundamental. A imagem do pobre, honesto, era sagrada.

    Quando é que acha que ele percebeu que podia mesmo ter um papel importante nos destinos do país?

    É um processo progressivo, que demora algum tempo, mas ele à medida que se vai envolvendo nos meandros políticos de Coimbra, tem um grande amigo que é também um dos grandes responsáveis pela sua inteligência e por aparecer como um hipotético Salvador da Pátria: o então padre Cerejeira. Mal ele acaba o curso de Direito, Cerejeira convida-o para ir para o antigo Convento dos Grilos – que os saudosistas continuam a chamar uma “república”. Mas esse Convento não tem nada a ver como uma república; era uma casa muito grande, cada um tinha o seu espaço, salas de estudo, e ali recebiam amigos e convidados, faziam reuniões do Movimento Católico… Portanto, aquilo era muito mais, e tinha mais condições do que qualquer república coimbrana. Salazar vai para lá por volta de 1915/16 e só sai em 1928. E à medida que se vai percebendo que poderia vir a ser alguém, o padre Cerejeira terá convencido Salazar a procurar o livro de poesia que ele tinha publicado com tanto amor e carinho, e que se chamava “Ais”… E ele recupera os livros todos que consegue, e destrói aquilo. Ao ponto de, quando Franco Nogueira faz o primeiro volume da biografia dele em 1977, ter andado à procura de um livro para ter um poema ou outro para decorar a biografia, e já não encontrou. Falou com velhos camaradas de Coimbra; um ou outro lembrava-se do livro, mas disseram-lhe que tinha desaparecido. E então, os poemas com que Franco Nogueira nos dá uma amostra das “capacidades poéticas” de Salazar, vai buscá-los aos jornais para onde ele tinha escrito alguns poemas. Enfim, este aspecto ilustra bem a importância que a preservação da imagem tinha para Salazar. Ele convenceu-se de que aquele livro poderia prejudicá-lo.

    Não se queria expor ao ridículo…

    A última coisa que ele quereria era isso!

    Recomendaria este livro a alguém que simpatize com Salazar?

    Eu, francamente, recomendaria este livro a muita gente, particularmente a quem nós vamos chamando de ‘saudosistas’. Porque, de facto, de há uns anos a esta parte, está a crescer uma onda de saudosismo, como se o regresso ao passado e a emergência de uma figura do tipo de Salazar fosse a Salvadora da Pátria; como dizem que ele foi quando entrou em 1928. Obviamente, este livro nunca pretendeu ser um livro académico, é um livro de ficção. Embora eu não tenha gostado da palavra “ficção”, que está na capa, e que foi uma exigência do departamento comercial. Mas a verdade é que era preciso pôr ali qualquer coisa para que as pessoas nas lojas soubessem onde arrumar o livro. Romance não era, ficção histórica também não, e então ficou só ‘ficção’ debaixo do título. Mas nunca me agradou.

    Mas se tem uma componente ficcional…

    De ficção só tem a estrutura, tudo o resto é História. Não consultei arquivos, mas fui consultar o que está publicado, e tive o cuidado de ir buscar autores que foram amigos dele e pessoas que colaboraram com ele, assim como pessoas que não gostavam dele. E, portanto, além de serem muitas as fontes, são diversificadas também a este nível. Respondendo à sua pergunta, o livro é recomendado a todos porque de facto dá-nos uma imagem muito mais real do Salazar do que o mito que foi criado. Daí que eu goste de dizer que o livro desconstrói o mito do Salazar. De facto, é disso que se trata. E nos dias de hoje, este livro também nasceu para fazer frente à tal onda de saudosismo que está instalada e que tem vindo a crescer nos últimos tempos. Por isso, para quem quiser conhecer melhor o Dr. Oliveira Salazar – é a minha opinião e eu sou suspeito porque sou o autor –, é um livro altamente recomendado.