Filipe Sousa, 60 anos, foi co-fundador do partido madeirense Juntos Pelo Povo (JPP), que é hoje a segunda força política na Madeira e o líder da oposição, tendo ultrapassado o Partido Socialista.
Nestas eleições legislativas antecipadas, Filipe Sousa, cabeça-de-lista do JPP, está bem colocado para se tornar num dos novos deputados eleitos para o parlamento, pelo círculo da região Autónoma da Madeira.
A acontecer, será uma estreia do JPP na Assembleia da República e um marco de relevo. Trata-se de um partido regional, o único partido com origem na Madeira, fundado em 2015 por dois irmãos — Filipe e Élvio — a partir de um movimento de cariz cívico. De resto, Filipe Sousa opunha-se à criação de um partido político, mas essa era a condição a preencher se o movimento quisesse reforçar a sua posição no panorama político na Madeira.
Isto porque o também presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz trazia na bagagem uma experiência na política que o desiludiu, pois, antes da criação do JPP, tinha sido deputado eleito na Assembleia Regional da Região Autónoma da Madeira, durante seis anos, pelo PS e foi membro deste partido até 2007.
Filipe Sousa na redacção do PÁGINA UM, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
O madeirense, natural de Gaula — motivo pelo qual os dois irmãos são chamados de ‘gauleses’, como referência ao Asterix — foi presidente da Junta de Freguesia de Gaula entre 1997 e 2007. Foi vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz, tendo sido eleito presidente do mesmo município, em 2013, com maioria absoluta, quando se apresentou como cabeça-de-lista pelo movimento que deu origem ao JPP. Em 2017, renovou o mandato à frente da autarquia, mas pelo JPP, feito que repetiu em 2021.
Nesta entrevista, realizada a 3 de Abril na sede do PÁGINA UM, em Lisboa, Filipe Sousa criticou os principais partidos históricos na Madeira de “elitismo” e de tratarem primeiro dos seus interesses ao invés de encontrarem soluções para os problemas do português comum.
Filipe Sousa também aproveitou para comentar a polémica em torno da investigação judicial, anunciada em 2019, por causa de contratos feitos por ajuste directo pelo município de Santa Cruz com a sociedade de advogados Santos Pereira & Associados (SPA), liderada por Miguel dos Santos Pereira (colaborador do PÁGINA UM). O caso acabou por levar a uma auditoria do Tribunal de Contas que enviou para a autarquia liderada por Filipe Santos um conjunto de recomendações para colmatar os atropelos cometidos ao Código dos Contratos Públicos.
“Nós privilegiamos o concurso público […] salvo excepções. Não podia lançar um concurso público para contratar advogados e ainda bem que o legislador prevê o ajuste directo, até um determinado valor, ou a consulta prévia. Optámos pela consulta prévia com a SPA, e ainda bem, até hoje”, disse o autarca.
O que é certo é que o JPP é hoje o principal partido da oposição na Madeira. “Mas não é para ter mordomias”, garantiu, criticando o facto de haver “banquetes enquanto há pessoas [a viver] na miséria”. “Nós fugimos a tudo isso”, frisou.
Sobre as expectativas em relação às legislativas, o candidato do JPP disse que espera ser eleito e ainda que “quem ganhar não terá maioria, irá sempre precisar de fazer alguma coligação”.
Élvio Sousa na tomada de posse na Assembleia Legislativa da Madeira. Out 2023 (Foto: D.R./JPP)
Questionado, disse que o JPP estará disponível para negociar. “Tudo o que for no interesse da Madeira e no interesse nacional, eu acho que sim [estaremos disponíveis para negociar]”. E defendeu que “na politica, temos que olhar para o interesse colectivo”.
Nesta entrevista, deixou elogios ao antigo primeiro-ministro socialista António Costa, considerando que “foi um bom governante”. Também acredita que o partido Livre vai crescer nestas eleições.
Sobre se a possível estreia do JPP na Assembleia da República poderá reverter a crescente desilusão da população face à classe política, reflectida na alta abstenção, afirmou que “uma andorinha não faz a Primavera”. “Mas que seja uma. Elas vão crescer, com certeza”.
Josep Carles Rius, 69 anos, ‘periodista’ catalão, defensor do Jornalismo enquanto serviço de interesse público e impulsionou o lançamento de meios de comunicação de serviço à comunidade na Catalunha.
Também tem investigado e abordado a crise no Jornalismo e na imprensa, sendo autor dos livros ‘Periodismo y democracia en la era de las emociones’, lançado no ano passado, e ‘Periodismo en reconstrucción’, publicado em 2016.
Na sua carreira como jornalista, foi director-adjunto do La Vanguardia, editor do El Noticiero Universal, chefe de redacção do El Periódico de Catalunya, diretor do extinto jornal Publico na Catalunha (2010-2012), e também trabalhou na TVE.
O jornalista também preside ao Conselho de Informação da Catalunha, um órgão de autorregulação dos jornalistas e que garante a aplicação das melhores práticas de ética e deontologia.
Rius, que dirigiu a Associação de Jornalistas da Catalunha, entre 2007 e 2010, tem um doutoramento em Ciências da Comunicação e Jornalismo. Foi também professor de Jornalismo durante 25 anos na Universidade Autónoma de Barcelona.
Josep Carles Rius / Foto: PÁGINA UM
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada na sede da Associação de Jornalistas da Catalunha, em Barcelona, o jornalista faz uma análise sobre a evolução da crise que tem vindo a afectar a imprensa e o Jornalismo e os perigos que essa crise traz para a democracia.
Josep Carles Rius alertou que a crise na informação chegou ao “fundo do poço” e isso é positivo porque, por vezes, é preciso ir ao fundo para se começar a reagir.
Defendeu que, no campo da informação, vivemos numa nova era em que é preciso “criar ilhas de credibilidade”, designadamente através de projectos de jornalismo independentes — como é o caso, em Portugal, do PÁGINA UM — para voltar a aproximar o público da imprensa e restaurar a confiança e a credibilidade na comunicação social.
Tem investigado a área do Jornalismo e a crise no sector. Não só investigou os problemas, mas também encontrou soluções. E a partir dessa análise que tem nos seus livros, quando é que começou esta crise de credibilidade da imprensa?
Bom, eu penso que a imprensa escrita tem os seus grandes anos na década de 80 e 90, que, tanto em Espanha como em Portugal, coincidem com a recuperação democrática e são anos em que a imprensa tem um grande prestígio. E é esse o círculo virtuoso de ter uma função de serviço público e, ao mesmo tempo, ser um grande negócio. A imprensa foi um grande negócio. E, ao mesmo tempo, havia alguns editores que tinham uma certa consciência social e deixavam os jornalistas trabalhar.
Penso que foi já nos anos 90 que o Jornalismo deixa de ser um contra-poder e começa a perder essa ligação com os cidadãos. Quer dizer, já não se escreve, já não se faz Jornalismo a pensar nos interesses dos cidadãos, mas nos interesses do próprio poder, porque o Jornalismo já tem os seus próprios interesses.
Então, o que acontece é que chega a crise de 2008 e tudo isto é exposto. As pessoas descobrem que a imprensa não tinha falado, por exemplo, do tema da corrupção financeira e de tudo o que acabou por ser a causa da crise. Descobrem que a imprensa não fez o seu papel. E há uma grande crise de confiança que coincide com uma crise tecnológica. As grandes plataformas começam a ter impacto. O que elas fazem é pegar no negócio da publicidade. O negócio da publicidade sai para um intermediário; aquela publicidade que ia diretamente para os media fica nas plataformas.
Livro de Josep Carles Rius publicado no ano passado. / Foto: D.R.
Sim, na altura era o Yahoo!, por exemplo…
Sim. Tudo isto leva à tempestade perfeita. A soma das crises deixa-nos com a crise dos media em 2008. Há também erros dos grupos de media. No caso de Espanha, a sua aposta na televisão privada, o que lhes causou um desgaste económico muito importante.
A soma de tudo isso faz com que a imprensa esteja muito enfraquecida no momento da crise. Ao mesmo tempo, está a ser gerada toda uma nova geração de meios de comunicação, graças às novas tecnologias. No caso de Espanha, o encerramento do jornal Público, em 2012, levou à criação de 10 projectos jornalísticos diferentes. Isso muda o ecossistema mediático.
Tudo o que aconteceu nessa altura ainda está a ser digerido. E, neste momento, temos mais meios de comunicação do que nunca, mais jornalistas a trabalhar como jornalistas do que nunca. Mas há mais precariedade do que nunca e mais fragilidade do que nunca; uma situação de precariedade e de fragilidade. Isto provoca um risco ético, no sentido em que alguns meios de comunicação social e alguns jornalistas recorrem a más práticas éticas para conseguir audiência ou publicidade. Por exemplo, o que estávamos a falar [antes da entrevista] sobre da mistura de publicidade e informação; não que as pessoas não saibam se estão perante publicidade ou informação.
E agora há esta palavra que é ‘conteúdo’ e que vale para tudo.
Sim, sim. Conteúdo promovido. Tudo o que isto faz é degradar a qualidade dos media, de modo que a recuperação da confiança, que é a chave para realmente sair da crise, tem sido muito difícil e muito, muito complicada.
Mas vocês, aqui na Catalunha, conseguiram algo muito importante, que foi terem avançado para a solução. Disse que, no caso do Público, acabou por gerar 10 projectos que foram criados por jornalistas que saíram do jornal e há muitos mais. Quer falar um pouco sobre o que sucedeu aqui, na Catalunha?
Bem, penso que esta crise é uma crise global da imprensa. Um dos principais países afectados foram os Estados Unidos, que tinham uma rede de imprensa local muito importante e coesa. Cada cidade dos Estados Unidos tinha o seu próprio jornal.
E o seu canal de televisão
De televisão e de rádio e tudo isso unia a comunidade. Eram muito importantes para a comunidade. Esta soma de crises — crise tecnológica, económica, crise social — levou ao encerramento de muitos meios de comunicação social nos Estados Unidos e afectou a coesão da sociedade norte-americana.
Site do Catalunya Plural.
Penso que esta crise dos media acaba por explicar — ou é uma das múltiplas causas — a vitória de Trump em 2016. Como? Foi criado todo um mundo paralelo. Tudo e ninguém é informação. Toda uma onda emocional. Sem intermediários, longe dos meios de comunicação… Quer dizer, os meios de comunicação, como os sindicatos, como as instituições, como as ONGs [organizações não-governamentais], actuam como intermediários entre o cidadão e o poder. Se destróis isto e se substitui por redes sociais…
Que falam diretamente, sem filtro.
Certo. Então, o que é que aconteceu em 2016? Trump tinha toda a grande imprensa contra ele — o The Washington Post, o The New York Times — toda a grande imprensa e a maioria das cadeias de televisão. E, em vez disso, ganhou porque dominou este mundo das redes.
Mesmo numa zona mais obscura da ‘web’, onde existia o fenómeno ‘Q’, que tinha muitos seguidores…
Sim, sim. E o papel que as igrejas evangélicas tiveram. Ou seja, foram muitas as causas, mas estava tudo um pouco fora do sistema que até então conhecíamos. Com toda aquela imprensa contra, ele ganha.
E, naquele momento, aquilo teve um efeito positivo, que foi o de uma parte da população valorizar novamente a imprensa e as assinaturas do The New York Times e do The Washington Post dispararam.
E a vitória de Trump foi considerada um acidente histórico. Mas não foi. É um acidente da história que em 2024 volte a ganhar?
Portanto, já não há qualquer efeito benéfico com as assinaturas de jornais. A sociedade anti-Trump norte-americana está em choque, não está a reagir. A imprensa está em estado de choque.
Jeff Bezos intervém no The Washington Post, mas da primeira vez não interveio. Isto agora é muito mais grave. E é o sintoma de uma situação de uma nova era. Na noite em que ele ganhou as eleições, Elon Musk disse ao público: “agora, vocês são os media”. Claramente, uma declaração de intenções.
Livro de Josep Carles Rius publicado em 2026. / Foto: D.R.
Sim, a era em que os jornalistas não são necessários.
Exacto, o Jornalismo não é necessário. É um ataque directo ao papel do Jornalismo. E isto tem réplicas não só nos Estados Unidos. É um fenómeno totalmente novo, a desinformação, que vai contra o Jornalismo tal como o conhecemos e que deixa o Jornalismo numa posição de fraqueza.
Mas não há aqui também um outro problema, que é o facto de os jornais e da imprensa se terem muitas vezes alinhado com o poder? E de não serem contra-poder, não fazerem o seu trabalho?
Sim, sim. Quando falámos da crise de confiança, o que se tornou evidente em 2008 com a crise, foi que as pessoas descobriram que os media não eram um contra-poder: faziam parte do poder. E, de certa forma, quebrou-se a confiança aqui em Espanha. Quando foi o [Movimento] 15-M, os protestos nas ruas, os jovens diziam: “a imprensa não nos representa”. Era uma crítica ao poder político, mas também aos media. E tudo isto ainda cá está, esta desconfiança.
Nos Estados Unidos, estão a salvar alguns destes meios de comunicação locais muito importantes para as comunidades através de organizações sem fins lucrativos e fundações. No mundo anglófono, há uma grande tradição do papel das fundações e elas estão a voltar ao início, a comprar alguns meios.
Muitas rádios, por exemplo, foram comprada por uma organização do magnata George Soros, na altura destas eleições presidenciais.
Sim, sim. E, por exemplo, o principal jornal de Filadélfia, um jornal histórico, foi salvo por uma fundação.
E isso é importante.
Claro. Havia dois modelos: o modelo do The Washington Post, comprado por um magnata, ou o modelo de The Philadelphia Inquirer, que é o jornal histórico de Filadélfia, que foi comprado por uma fundação.
Quiosque de jornais em Barcelona. A imprensa tem vivido uma forte crise económica que não se deve apenas à concorrência das plataformas tecnológicas. / Foto: PÁGINA UM
Então, se estás nas mãos de um magnata, não és livre, porque no momento-chave em que querias apostar na Kamala Harris, ele não deixa, e depois entra na linha editorial. Foi o que ele fez [Jeff Bezos].
Em vez disso, o The Philadelphia Inquirer continua lá, sem essas interferências. Por isso, é preciso tentar procurar elementos positivos. Penso que entender o Jornalismo não como um negócio, mas como um serviço público, e como um serviço sem fins lucrativos, como um serviço social; isso é positivo e isso é uma lição dessa crise. E foi isso que nós aqui modestamente tentámos fazer.
E também, tecnologicamente, as grandes plataformas foram ou são parte do problema. Mas a revolução tecnológica também faz parte da solução, porque permite o lançamento de pequenos projectos liderados por jornalistas, como o vosso.
Isto é um oceano de desinformação, mas depois é crucial ter ilhas de credibilidade, abrigos, e que o cidadão encontre esses abrigos. E esse oceano de desinformação, nós não o vamos mudar. Isto está cá para ficar. Faz parte das redes, porque aquela utopia em que vivíamos de liberdade de expressão para todos… Eles controlam as redes através de algoritmos, através da forma como manipulam. Mas as redes ainda têm um lado positivo para a liberdade de informação. E o grande dever, a grande responsabilidade dos jornalistas, é criar essas ilhas de credibilidade.
E é por isso que é tão importante que haja projectos e esses projectos são agora tecnologicamente mais viáveis. É possível criar um site na Internet e intervir no debate público sem ter grandes recursos. Não tem de ser um grande jornal ou uma grande revista, uma cadeia de televisão. Mas, claro, é uma luta muito desigual, porque tens de estar aqui a lutar com todas estas tendências.
E com grandes máquinas, grandes máquinas de ataque, de desinformação, de ataque aos jornalistas que querem fazer um trabalho sério.
Claro, essas ilhas de credibilidade são ameaçadas por estas ondas.
Josep Carles Rius alerta que, com a nova Administração Trump, nos Estados Unidos, a liberdade de imprensa está em risco, o que é uma ameaça para a democracia. Mas também aponta ‘culpas’ da crise na imprensa aos jornalistas que se tornaram activistas, seguiram ondas emocionais em vez de fazer Jornalismo, e desiludiram o público. / Foto: Jørgen Håland
Sim. E nós temos visto em Portugal que o PÁGINA UM tem sido alvo de um ataque de desinformação. Porque não querem que façamos Jornalismo. Foi algo que nos impressionou e chocou. Não estávamos à espera. Mas estava a falar aqui de projectos, projectos de Jornalismo para as comunidades. Que projectos são e como o avalias?
Claro, quando falo de ilhas de credibilidade… Por vezes, há ilhas de proximidade. Numa cidade pequena há um meio de comunicação que é o espaço de confiança e credibilidade num determinado território. Há outras ilhas de credibilidade em comunidades. Nós concentrámo-nos nas comunidades que estão na linha da frente na defesa dos direitos humanos, dos direitos essenciais, da Educação, da Saúde e do trabalho digno. Nós temos jornais especializados nestas três temáticas.
A nossa experiência — e já estamos a falar de uma experiência de mais de 10 anos —, é muito positiva em em termos de direitos fundamentais. Estas comunidades compreenderam a nossa intenção. Estamos a criar praças, espaços públicos de confiança, onde podem encontrar informação precisa e rigorosa. E, ao mesmo tempo, um espaço de encontro onde podem debater, publicar os seus blogues, publicar os seus artigos e interagir entre si — ou seja, revistas educativas, tanto em catalão como em espanhol.
E disponibilizam isso?
Claro. É onde as opiniões são trocadas, onde a comunidade se conhece. Veja-se o Diário da Educação: quase 50% do conteúdo é gerado pela própria comunidade através de artigos, blogues, reflexões. Acima de tudo, o nosso valor é criarmos o espaço para que ele seja encontrado. Obviamente, fazemos jornalismo especializado em Educação e damos-lhe essa informação. Mas, além disso, é uma praça pública, um local onde a comunidade se reúne e se encontra num clima de respeito e confiança. Os professores, por exemplo.
A informação que os grandes meios de comunicação produzem sobre Educação é altamente condicionada pela necessidade de obter cliques, para terem audiência. Depois, distorcem a realidade da Educação, ou seja, um problema numa escola é ampliado porque isso dá audiência.
Foto: D.R.
Por outro lado, uma experiência positiva numa escola não acontece, não aparece, porque não recebe cliques e agora tudo isso está a acontecer na imprensa mainstream. É tudo uma questão de cliques.
Depois, tem de se criar estes abrigos, com um espaço onde não julgamos. Não procuramos quantidade, procuramos qualidade. O nosso valor é que sejam públicos de professores, de professores universitários, de mestres, que comunicam.
E não está sujeito a algoritmos nem nada.
Claro. São espaços reservados onde, por exemplo, as newsletters são extremamente importantes, porque permitem aceder diretamente sem passar por uma rede social. Fazemos fóruns de cinema, reuniões, também fazemos de eventos presenciais para que a comunidade se possa reunir.
E que tenham confiança no Jornalismo e nos meios, em termos daquilo que é a qualidade da informação. Uma entidade fidedigna, entidades fidedignas em termos de qualidade da informação, que é algo muito importante.
Claro, claro. Este oceano, este mar imenso de desinformação, de discurso de ódio, manipulação, pós-verdade. Tudo isto está aqui: as redes, o TikTok, ou o que quer que seja.
Estamos em 1984, como no livro.
Sim, sim. Completamente. E vamos continuar. Não vamos conseguir mudar.
Então, o que tem de se fazer é criar ilhas [de informação credível]. E depois, criar também a partir da sociedade. Por isso, é importante a Associação de Jornalistas [da Catalunha], o Conselho de Informação da Catalunha. A partir da sociedade civil também; procurar ter uma cumplicidade da sociedade. Para que a sociedade seja consciente, primeiro temos de dar-lhes instrumentos para que encontre essas ilhas de credibilidade, para que saibam que existem e que se pode refugiar ali.
Depois, do ponto de vista político, temos de ser exigentes e pedir, por exemplo, os meios de comunicação social públicos… É importantíssimo que os meios públicos sejam responsáveis e sejam equitativos, transparentes e não sejam instrumentos do poder. Por isso, tem que se lutar pelos meios de comunicação social públicos.
Sim, porque há algo de confusão entre o que é público e a política e o governo, que são separados. O público somos todos nós. Os que pagam os impostos. Isso é público e é necessário apoiar o Jornalismo por aí também; mas não é o governo ou os políticos. Mas tem havido um pouco de confusão. Um pouco não, muita.
Em Portugal, também..
Então, tem que se ter uma exigência constante.
A evolução da tecnologia também trouxe uma oportunidade aos media, e hoje é possível criar jornais e revistas digitais com baixo orçamento e que servem o interesse público. Foto: D.R.
E acredita que esta experiência que é já um caso de sucesso, porque já tem uma década, é importante que seja um exemplo? Por exemplo, para aquilo que será a importância do Jornalismo para a democracia, que é um tema que falou no seu último livro. Por exemplo, mencionou o caso de Trump, mas temos aqui graves problemas também na Europa. No caso de Trump, temos também o problema com os media mainstream, que diziam, por exemplo, que Biden estava muito bem, o que não era verdade, e todos podiam ver isso. Pensa que os jornalistas também têm de seguir mais esse exemplo seu, e não aquele que foi feito nos últimos anos? Fazer jornalismo, não contra algo, mas pela democracia.
Sim, é assim. Claro. Quando falamos das Ilhas de credibilidade, eu entendo que são ilhas de credibilidade onde o que impera é o Jornalismo. Mas pode-se criar ilhas que são refúgios ideológicos. Quer dizer, eu, diante deste mundo, crio um espaço onde só me comunico com os que pensam como eu e juntos defendemo-nos contra o inimigo, que são os que pensam diferente. O risco — e isso estaria mais no activismo — é que o Jornalismo não crie abrigos de Jornalismo, mas sim abrigos ideológicos. Pode haver ideologias que a ti te pareçam melhor, ou ideologias que consideras que, no caso, por exemplo, da extrema-direita, como o fascismo ou o neonazismo, que atentam diretamente contra a democracia. Por isso, penso que no Jornalismo temos de reivindicar ilhas de credibilidade jornalística.
O que é que se passa aqui, o que é que vivemos? Antes de mais, temos de recordar constantemente é que sem democracia não há Jornalismo e sem Jornalismo não há democracia. Vimos isso na Rússia. Putin eliminou o Jornalismo, não foi? E o risco agora nos Estados Unidos também existe, e na Hungria existe e noutros locais.
Temos que ser muito claros que temos que ser militantes da democracia. A democracia é fundamental, porque se não houver democracia, não há Jornalismo, não há liberdade de informação, nem de expressão. Então, isto é básico.
Qual tem sido o grande problema? Nos últimos anos, tem havido uma série de ondas emocionais, estados de emoção. Nós, na Catalunha, experienciámos isso. Muitos jornalistas aderiram à onda de emoção em vez de dizerem: “não, não, temos de manter aqui o rigor da informação e não nos deixarmos levar por esta onda de emoção”.
O caso do Brexit. O Brexit é um caso de uma onda emocional para os nacionalistas britânicos. Disseram à Europa: “nós somos melhores, Europa fora!” E agora estão arrependidos, mas o mal já está feito. No caso dos Estados Unidos, Trump está a cavalgar uma onda emocional que é toda a crise, certo?
Da crise, da classe média americana, especialmente da América profunda, não das zonas costeiras e assim por diante, que está à procura de inimigos. E isso já aconteceu nos anos 30.
Isto é uma repetição?
Certo, e depois procuras o inimigo, procuras o imigrante. O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais; é preciso enfrentar as ondas emocionais, mesmo que a família, o ambiente, os amigos estejam no meio da onda emocional. O que vivemos aqui na Catalunha com o processo foi uma onda emocional.
Josep Carles Rius defende que se devem criar ‘ilhas de credibilidade’ no espaço digital, onde o público pode encontrar informação credível e fiável. Essas ilhas são, por exemplo, projectos de jornalismo independente. / Foto: D.R.
As famílias divididas.
Sim, sim. Não foi uma só. Depois claro, desde o início que eu disse: “não, não. Cuidado!”
Mas vimos a mesma coisa durante a pandemia ou na questão da Ucrânia ou de Gaza. Quase não se pode fazer perguntas ou pedir dados. Na pandemia, alguém era considerado negacionista e anti-vacinas só por pedir dados! E em relação à Ucrânia, és Putinista e, em relação Gaza, és considerado pró-Israel.
Sim, sim.
E isso é perigoso para o Jornalismo e, especialmente quando se trata de jornalistas, por vezes, ir ao encontro dessas emoções.
Como as emoções têm tanto poder e também agora as pessoas têm tantas formas de se exprimirem, porque às vezes as emoções e a manipulação das emoções, mas agora podem exprimir as vossas emoções imediatamente.
Através do Whatsapp ou de memes.
Estamos numa manipulação das emoções, mas há também mais ferramentas para manipular essas emoções: algoritmos, as redes.
Temos problemas ou situações muito antigas, que fazem parte do ser humano. O ser humano não mudou muito nos últimos 3.000 anos. Só que temos uns instrumentos super poderosos, como a inteligência artificial. Tudo isso torna o desafio, que nós jornalistas temos, muito mais complexo e mais importante para intervir e actuar.
Assisti a alguns jornalistas, não só nos Estados Unidos, mas em Portugal, que confundiram um bocadinho, o ser militante da democracia com ser militante de Biden, ou de Kamala Harris ou de Trump. E a democracia pode ser personalizada assim, em partidos? Como um jornalista pode ser militante da democracia e conseguir ver os factos de uma forma não emocional?
Nós aqui, por exemplo, no Conselho de Informação da Catalunha, fizemos uma declaração muito extensa e contundente quando nas últimas eleições locais a extrema-direita teve muitos votos aqui em Espanha e especialmente na Catalunha. Porque aqui temos dois partidos de extrema-direita: o espanhol e o catalão. E muitos jornalistas, sobretudo dos meios de comunicação locais, tiveram pela primeira vez de lidar com porta-vozes e políticos de extrema-direita. Agora estão presentes em quase todas as câmaras municipais. Os jornalistas locais estavam, pela primeira vez, a lidar com um discurso de extrema-direita.
Penso que um jornalista tem de procurar a justiça, a honestidade, tudo para informar, não para ser um activista de uma causa, mas tem de ser claro sobre onde estão os limites.
Estar informado também.
Nesse caso, fizemos uma declaração muito forte, afirmando que não se pode tratar a extrema-direita como o resto dos partidos políticos, porque a extrema-direita no seu programa, no seu essencial, tem o ódio. Quer eliminar uma parte da população. Recorre a mentiras, nega a Ciência, vai contra todas as evidências de topo o tipo.
Portanto, o jornalista tem de confrontar este discurso, não pode simplesmente pôr o microfone e fazer com que isto saia. Penso que há aqui que estabelecer alguns limites.
A tragédia ocorrida em Valência gerou muita desinformação e foi um ‘abre-olhos’ para muitos, em termos da crise actual de informação que vivemos, segundo Josep Carles Rius. / Foto: D.R.
Isso é algo que os jornalistas têm sempre de fazer, certo?
Sim, sim, mas isto realço isso. É claro que outros podem tentar enganar-nos. Mas isto faz parte da política deles, faz parte do programa deles para enganar.
Temos visto, pelo menos em Portugal, que muitos media se limitam a ser pé de microfone com a generalidade dos políticos. Não é também um mau hábito do jornalista? Porque colocam o microfone e esperam que o político fale. Mas agora o político é outro…
Sim, sim, certo.
Também é um despertar para muitos jornalistas.
Sim, sim. Por isso, no caso da Catalunha, dos jornalistas, sobretudo dos jornalistas mais locais, foi um despertar absoluto. Porque de um dia para o outro encontraram-se com interlocutores que nunca tinham enfrentado antes. Que estavam a quebrar as regras.
Então, o hábito de pôr o microfone e deixá-los dizer o que quiserem, estava a começar a ser perigoso, porque o que eles estavam a defender é a expulsão dos meus vizinhos, que são negros. Cuidado, isto é perigoso.
E muitas vezes com mentiras ou com algo manipulado, com muitas imagens.
Penso que houve uma mudança no caso de Espanha, nas últimas eleições locais, em que a aliança catalã, que é um partido pró-independência, mas de extrema-direita, entrou em cena. E o VOX consegue muitos deputados. Há uma mudança. E nós, no Conselho de Informação da Catalunha, produzimos um documento muito, muito duro e que não foi compreendido por toda a gente. Havia pessoas que diziam: “não, não, não; tens de tratar toda a gente da mesma forma”. Ou dizem que a extrema-esquerda está a fazer a mesma coisa. Não, a extrema-esquerda não quer expulsar os teus vizinhos. Ela pode ser muito rude, mas isto não.
Sim, claro que não é a mesma coisa. Em todo o caso, por exemplo, na pandemia, testemunhámos a existência de discurso de ódio de políticos de extrema-esquerda, de políticos de extrema-direita, de centro, contra grandes cientistas mundiais. Cientistas que alertavam que o caminho a seguir era o da Suécia, que estava a fazer melhor a gestão da pandemia. Depois, as emoções tomaram conta de muitos jornalistas, que deixaram de ser isentos e independentes – um tema de que fala no seu livro. Temos de ter muito cuidado para não emitirmos involuntariamente discursos de ódio com o nosso ‘microfone’.
Sim, sim.
Durante a pandemia, foi um choque ver pessoas a ser vítimas de perseguição e de censura, porque não estavam alinhados com os políticos e com a onda emocional. Para os jornalistas é um desafio.
Sim. Nós vivemos algumas situações que colocaram o Jornalismo à prova.
Mas é positivo. Pensas que há um bom futuro para o Jornalismo e para os jornalistas?
Penso que sim, mas sendo claro que o desafio é muito difícil. Não se pode ser incauto. Isso e vai depender da determinação e da vontade dos próprios jornalistas de encontrarem também cumplicidades com a sociedade, de ser exigentes politicamente.
Agora há uma boa oportunidade com as novas leis europeias. A directiva de liberdade de imprensa [Media Freedom Act] é um bom marco. Mas cada Estado tem de a aplicar e veremos como será aplicada. E aqui temos que ser exigentes, temos de acompanhar e temos feito muitas coisas aqui. Estamos muito envolvidos na tentativa de fazer com que o governo use bem isto, aplique bem este quadro jurídico europeu.
Porque pode ser bem aplicado ou mal, dependendo do uso que o poder político lhe quer dar.
Claro que depende da vontade política.
Para Josep Carles Rius, o jornalista não pode ser apenas um pé de microfone. / Foto: Kane Reinholdtsen.
E com toda esta crise de Informação, esta quebra de confiança que houve entre o público e os meios de comunicação social clássicos, pensa que há um futuro positivo, no sentido em que vamos conseguir sair disto com uma imprensa credível e com a população a entender que tem de a apoiar?
Penso que, às vezes, temos que bater no fundo do poço para começar a agir.
Pensa que chegámos ao fundo do poço?
Penso que sim. Por exemplo, no caso da tragédia de Valência, toda a desinformação que houve… Foi um abre-olhos para muita gente.
No caso do Trump, foi uma desgraça; está a ser um abre-olhos também. A situação na Sala Oval com Zelensky, teve impacto. O papel do Elon Musk também é revelador.
Tem de estar a correr algo muito mal para começarmos a perceber que temos de reagir. E a chave aqui é a Europa. A Europa tem a capacidade de reagir, certo?
Porque, nos Estados Unidos, os democratas e todas as pessoas que sentiram que perderam as eleições ainda estão em choque, mas vão reagir. Acredito que sim, e haverá decisões judiciais. E o The New York Times está a resistir.
Para chegar aos jovens, a melhor forma é através dos professores e da comunidade educativa, designadamente via publicações especializadas, defende Josep Carles Rius.
Mas claro, é preciso de mais pessoas reajam. Aqui, por exemplo, a onda emocional que tivemos com o processo que nos levou a uma situação muito difícil, abriu muito os olhos das pessoas. E penso que a repetição do que aconteceu aqui seria impossível agora, porque muitas pessoas não aceitariam, sentiram-se enganadas.
E o Brexit? O mal está feito, mas a sociedade agora aceita que estavam errados, que foram enganados por tudo isto.
Bem, eu sou um optimista por natureza e penso que a sociedade vai reagir, mas nós temos um papel muito importante, como jornalistas, para manter os padrões éticos e criar estas ilhas de credibilidade.
E os jovens, temos de pensar nos jovens que já não leem os meios de comunicação clássicos, nem veem televisão nem nada; é tudo TikTok.
É por isso que penso que é muito importante chegar aos professores, para ajudar a formar os jovens. Chegar diretamente aos jovens, é muito difícil, mas há pessoas que, durante 6 horas por dia, chegam aos jovens e que são os professores. Por isso, é preciso cuidar dos professores, dar-lhes instrumentos para isso.
Por isso, criámos há mais de 10 anos duas publicações de Educação para os professores, que dão aos professores ferramentas para formarem mediaticamente também os seus alunos. Os jovens que com 15, 20 ou 25 que estão no TikTok, quando chegarem perto dos 30, deixem o TikTok e passem para um jornal ou se informem melhor.
Talvez o jornalismo também possa entrar um bocadinho nessas plataformas.
Sim, sim. Isto é um desafio, mas penso que há três formas de chegar aos jovens: através do TikTok; através das famílias; e através dos professores — do mundo docente, não diria só professores, mas toda a comunidade educativa.
Não se pode dizer que Craig Unger seja um jornalista norte-americano sem currículo. Nasceu a 25 de Março de 1949 e trabalhou, entre outras, em publicações como Vanity Fair, The New Yorker, Esquire, The Guardian, The New York Times, The Washington Post e The New Republic. Em 2004, escreveu o livro “House of Bush, House of Saud”, onde investigou as relações entre a família Bush e a dinastia Saud, da Arábia Saudita.
Anos mais tarde, seguindo o sucesso da primeira obra, assinou, em 2018, o livro “House of Trump, House of Putin”, onde relatou as relações entre Donald Trump e a Mafia russa, tendo ainda escrito, em 2021, “American Kompromat”, onde o agora reeleito presidente Donald Trump era acusado de ter colaborado com os serviços de informação russos e de ter estabelecido uma aliança com pessoas próximas do Kremlin desde os anos 80.
Todos esses livros, de uma forma ou outra, tiveram ampla aceitação e divulgação pública. Entretanto, Craig Unger, lançou recentemente, em Outubro de 2024, a obra “Den of Spies”, que se pode traduzir para algo como “Covil de Espiões”, e tem ainda como subtítulo: “Reagan, Carter e a História Secreta da Traição que Roubou a Casa Branca”. Mas a receção junto da Imprensa, ao contrário dos outros livros, não suscitou grandes linhas de divulgação e análise sobre o seu conteúdo, demonstrando que o tema continua a ser incómodo para a generalidade dos jornalistas.
A Casa Branca. / Foto: D.R.
O jornalista norte-americano, que seguiu ainda as pistas de um falecido jornalista que também dedicou parte da sua vida profissional à investigação do caso, Bob Parry, demonstra como a reeleição falhada do recém-falecido presidente dos EUA, Jimmy Carter, a 4 de Novembro de 1980, foi o resultado de uma traição da parte da candidatura republicana, encabeçada por Ronald Reagan, com o antigo chefe da CIA, George Bush como vice-presidente e o futuro chefe da CIA, Bill Casey, como diretor de campanha.
Craig Unger comprova nesta obra como a crise dos reféns de Teerão, que começou com o assalto à embaixada dos EUA no Irão, a 4 de Novembro de 1980, e deu origem à crise dos reféns, levou a várias negociações secretas entre republicanos e iranianos, no sentido de manter os reféns em cativeiro até às eleições presidenciais de 4 de Novembro de 1980.
O principal responsável, aponta o jornalista, foi o chefe de campanha da candidatura republicana, antigo agente secreto da II Guerra Mundial e futuro chefe da CIA, Bill Casey, que teve reuniões secretas com iranianos em Madrid, em Junho e Agosto de 1980, mais ainda um encontro em Paris, em Outubro, dias antes das eleições de 4 de Novembro de 1980.
O tráfico de armas para o Irão, resultante dessas negociações, era então ilegal quando, a 4 de Dezembro, faleceram em Camarate o primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro e o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, na queda de um avião através da explosão de uma bomba, como ficou demonstrado nas investigações levadas a cabo pelas várias comissões de inquérito da Assembleia da República.
Jornalistas a escutar, em directo, o discurso de Jimmy Carter acerca do salvamento falhado dos reféns no Irão (1980). / Foto: Marion S. Trikosko
Os reféns norte-americanos foram libertados minutos depois da tomada de posse de Ronald Reagan, a 20 de Janeiro de 1981. Segue-se a entrevista com o autor de Den of Spies, feita via telefone, entre Lisboa e Brooklyn, onde Craig Unger reside.
Este livro chama-se Den of Spies [Covil de Espiões], que era o nome dado pelos iranianos à embaixada dos EUA em Teerão, mas era para ter um título diferente: Original Sin [Pecado Original]. Porquê esse outro título e por que não o usou?
Para mim, as palavras mais bonitas da fundação dos Estados Unidos foram escritas por Thomas Jefferson na Declaração da Independência, em 1776: “Todos os Homens são criados de forma idêntica”. É bonita, mas era uma mentira, pois naquele tempo havia escravatura e as mulheres não podiam votar. Jefferson nem sequer deu direitos de igualdade aos seis filhos que teve com uma das suas escravas, Sally Hemings.
Do meu ponto de vista, foi sempre uma mentira. Mesmo depois do fim da Guerra Civil [1861-65], reconstruímos o Sul e tudo iria estar bem com os afro-americanos, e também isso foi uma mentira.
Portanto, no fim, decido não usar o título de Pecado Original por estar demasiado próximo da raça e o meu livro não é sobre isso. Mas acho que o meu país foi fundado em mentiras e sempre as negamos.
Neste livro, como sabe, concentro-me na História Contemporânea, onde os Republicanos, repetidamente — em 1968, em 1972, em 1980, em 2000 e 2016 —, uma e outra vez, levaram a cabo uma espécie de traição.
O antigo presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter com o então primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin (1977). / Foto: Marion S. Trikosko
Esta entrevista acontece poucos dias após a morte do presidente Jimmy Carter, a pessoa que foi mais prejudicada por esta traição. Pensa que ele conhecia toda a verdade quando morreu?
Penso que ele soube o que aconteceu. Mandei-lhe o meu livro e não sei se teve a oportunidade de o ler enquanto estava no hospital. Mas, mesmo em 1981, ele encorajou o Congresso a investigar e foi bastante vocal em relação a isso, e não creio que não o teria feito se não soubesse a resposta.
Vamos então à origem do caso de 1980. No fim de Outubro de 1979, o Xá do Irão, que estava exilado na América Latina desde Janeiro, deu entrada num hospital de Nova Iorque para tratamentos oncológicos. Tanto David Rockfeller como Henry Kissinger foram os principais promotores desse internamento, alegando razões humanitárias. Jimmy Carter opunha-se, pois temia um ataque à embaixada em Teerão. Ora, foi precisamente isso que aconteceu dias depois, a 4 de Novembro, quando os estudantes atacaram a embaixada e derem início à crise dos reféns. O facto de o ataque ter sido a 4 de Novembro, um ano exacto antes das eleições presidenciais de 1980 — data já conhecida no dia do ataque, pois as eleições ocorrem sempre de quatro em quatro anos, na primeira terça-feira de Novembro, entre os dias 2 e 8 — podemos falar de uma coincidência ou de um acto premeditado?
Bem, se estamos a falar do que aconteceu da parte dos iranianos, ao tomarem de assalto a embaixada a 4 de Novembro, isso não sei. Simplesmente não sei. Agora, não há dúvidas de que a vinda do Xá para os Estados Unidos foi o que os levou a atacar a embaixada.
Jimmy Carter estava contra a ideia de admitir a entrada do Xá nos Estados Unidos, mas enfrentou uma poderosa oposição de David Rockfeller, Henry Kissinger, uma grande parte do sistema de serviços de informação e até do seu secretário de Estado, Zbigbnew Brzezinsky.
Pode ter sido uma coincidência que o ataque tenha acontecido a 4 de Novembro. Realmente, não sei dizer, mas foi a partir do momento em que o Xá foi admitido nos Estados Unidos que decidiram tomar a embaixada. E esse é um facto que temos de assumir como verdadeiro. Coincidência ou não, quem sabe?
No livro, diz que não foi a gestão da crise que preocupou os serviços secretos, mas sim o facto de haver uma crise. Pensa que aconteceu porque o presidente dos Estados Unidos era fraco e, se fosse outro presidente, com outro domínio dos serviços secretos, a crise teria sido resolvida de forma diferente?
Jimmy Carter tinha alienado de forma irrevogável a comunidade dos serviços de informação. Parte do problema foi ter nomeado Stansfield Turner chefe da CIA.
Após ter despedido George Bush…
É normal um novo presidente substituir o director da CIA quando assume o cargo. Bush demitiu-se poucos dias antes da tomada de posse de Carter — que aconteceu a 20 de Janeiro de 1977.
Mas o nome de Carter está ainda associado, depois da demissão de Bush, com uma série de despedimentos dentro da CIA, certo?
Certo. Quando Turner era chefe da CIA, mais de 800 pessoas foram demitidas. Foi um ‘massacre’ e alienou completamente a CIA contra Carter. E esse era o verdadeiro problema que o enfraqueceu enormemente.
Foi também com Carter, no início de 1978, que foi nomeado para número dois da CIA, como director-adjunto, uma pessoa chamada Frank Carlucci e que era, desde 1975, embaixador norte-americano em Lisboa. E, durante a sua estadia em Portugal, sempre se suspeitou que ele estava intimamente relacionado com a CIA. Este nome diz-lhe algo?
Escrevi um pouco sobre Carlucci num dos meus primeiros livros, House of Bush, House of Saud, e foi sobre a sua ligação ao grupo Carlyle. Neste livro não.
As circunstâncias em que ocorreu a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, numa explosão do avião em que seguia com o seu ministro da Defesa, suscitam ainda hoje muitas interrogações. / Foto: D.R.
Carlucci não surge neste seu recente livro e a investigação centra-se no papel de Bill Casey, o homem que era o chefe de campanha da candidatura Republicana de Ronald Reagan e George Bush e que, depois das eleições, tornou-se no chefe da CIA. Ele dizia que o mais difícil de provar era o óbvio. É esse o problema deste caso? Ser óbvio?
É uma daquelas coisas inteligentes que se dizem. No prólogo do meu livro menciono a revista satírica The Onion, que no seu número de resumo do século XX, quando se refere ao dia da tomada de posse de Reagan, apresenta uma capa falsa do The New York Times com o título: “Reféns libertados; Reagan apela ao povo americano a não somar dois mais dois”. Claro que toda a gente viu os reféns regressarem aos Estados Unidos, literalmente, cinco minutos após Reagan ter prestado juramento. E, claro, ele não poderia ter negociado a libertação nesses cinco minutos porque estava a fazer o discurso no pódio. E tinha de haver contactos. É difícil acreditar que os iranianos iriam devolver os reféns sem falarem com a administração Reagan. Portanto, a negociação tinha de ter começado mais cedo.
Provavelmente, um jornal satírico como o The Onion estava a dizer mais do que a imprensa de referência. Menciona no livro que, no caso Watergate, Bob Woodward e Carl Bernstein tinham o princípio de escreverem algo que tivesse sido confirmado por duas fontes diferentes. Neste caso, por vezes, havia cinco fontes e nem assim se escrevia a informação. Como explicar o silêncio dos jornalistas em relação a este caso?
Usei esse número quando mencionei a possibilidade de George Bush ter estado na reunião de Paris, entre os dias 18 e 19 de Outubro de 1980. Havia cinco pessoas que me diziam que tinha estado, mas nenhuma como fonte directa. Por exemplo, o espião israelita Ari Ben-Menashe disse-me que ouvira dizer que Bush esteve lá, mas não tinha a certeza. Era um tipo de informação que não era conclusiva e, na altura em que estávamos a fazer essa investigação, Bush era candidato à reeleição e, na época, era necessário ter mais fontes, dependendo do quão sério aquilo era. Continuo a ser agnóstico sobre Bush em Paris.
Mas, no caso de Casey, ele estava em Madrid no Verão de 1980, a negociar com iranianos?
Sim, absolutamente.
E a prova disso, a tal “arma fumegante”, é um telegrama diplomático onde a embaixada norte-americana em Madrid informava o Departamento de Estado sobre a presença de Casey na capital espanhola, numa altura em que, oficialmente, deveria estar a dar uma palestra em Londres, certo?
Certo. E também entrevistei um antigo agente, chamado Robert Sensei, que me confirmou que viajou até Madrid, em Agosto de 1980, com Bill Casey. E Casey tinha três álibis que foram caindo, um por um. Quando isso acontece, aproximamo-nos cada vez mais da verdade. Se eu tivesse de ser presente a um júri diria que, sim, Casey estava no meio do caso e era culpado. Mas, quanto a Bush ter estado na reunião de Paris, isso ainda está por confirmar. Sim, gostaria de ter mais provas.
Talvez os telegramas diplomáticos do embaixador norte-americano em Paris pudessem ajudar a esclarecer isso. Pediu ao Departamento de Estado para os consultar?
Tanto quanto sei, não havia telegramas diplomáticos relacionados com Bush em Paris.
Este livro, ao contrário de outros que já escreveu, não parece estar a ter a mesma divulgação junto da imprensa norte-americana. Porquê?
Penso que este caso é um dos episódios mais escandalosos da história da imprensa norte-americana, mas não é apenas ignorarem a história, mas terem-na tratado da forma errada. Investigaram a história de forma agressiva, como se não quisessem que fosse publicada. E penso que houve duas forças que contribuíram para isso. Uma é aquilo que chamo de “jornalismo de acesso”. Explico no livro que os jornalistas têm um acesso diário a estas pessoas e, por isso, não vão querer dizer nada crítico em relação às pessoas às quais precisam de aceder. Não sei se em Portugal acontece o mesmo…
Sim, em Portugal também temos disso, sim, temos e muito…
Pois (risos)… A segunda força, e uma das conclusões do livro que, para muitas pessoas é difícil de aceitar — e, a propósito, sou judeu e já fui acusado de antissemita por reportar isto — mas não se pode ler o meu livro sem concluir que Israel desempenhou um papel central numa operação secreta de sabotagem nas eleições norte-americanas e isso é uma violação da nossa soberania.
O actual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. / Foto: D.R.
Isso leva-me, então, a uma outra questão: quando juntamos aquilo que escreveu sobre Trump poder estar comprometido com os russos — sobretudo desde o seu casamento, nos anos 80, com uma pessoa oriunda de um País de Leste —, e o facto de Putin, antigo agente do KGB, conhecer como os republicanos conquistaram o poder em 1980 e como, desde então, têm gerido a traição a Carter, então Putin sabe bem como é frágil a democracia norte-americana. Fiz uma leitura correcta da situação actual, não?
Oh, sim! Absolutamente! (Riso nervoso. Isso é o foco do livro. Aquilo que funcionava com o compromisso era o que não se usava, que ficava nos bastidores. Mas Trump é um sem-vergonha e não há nada que lhe faça dano, se percebe o que quero dizer.
Falo agora em relação a Portugal. O meu país investigou um negócio de tráfico de armas para o Irão durante o tempo em que se deu a traição a Jimmy Carter, como parte do móbil do assassinato do primeiro-ministro de Portugal e do ministro da Defesa. E sabemos aqui que houve movimentações nesse sentido. Agora, encontrou algo sobre Portugal na sua investigação?
Não há dúvida de que há um episódio interessante que parece ser mais do que uma coincidência. Henry Kissinger era, claramente, um jogador central ao conseguir que o Xá do Irão fosse admitido nos Estados Unidos. Ele, os Rockfeller com o seu Chase Manhattan Bank e o antigo sistema de informação, pressionaram Carter a admitir o Xá. E, depois, claro, isso desencadeou a crise dos reféns. Então, logo após a vitória de Reagan, em Novembro de 1980, quando é preciso mandar armas para o Irão e Jimmy Carter ainda é presidente, temos Kissinger a fazer uma viagem até Portugal. O que foi ele fazer? Haverá carregamentos de armas para o Irão a chegar através de Portugal e esperamos que os deixem passar? Quem sabe?
Pensa que, com Donald Trump — e vendo as promessas de trazer à luz determinados documentos secretos, como aqueles envolvendo a morte de J.F. Kennedy —, ele poderá revelar algo sobre o que aconteceu em 1980?
Penso que qualquer coisa que ele faça em relação a segredos será para o seu próprio interesse. E penso que não vai abrir a porta para que a nossa democracia fique mais saudável.
Mais de 2.100 pessoas assinaram a ‘Petição Por um Programa do Estado Português de Indemnização das Vítimas de Reações Adversas a Vacinas contra a Covid-19’. A autora da iniciativa é a médica cardiologista Teresa Gomes Mota. Em entrevista ao PÁGINA UM, a antiga vogal do conselho de administração da Fundação Portuguesa de Cardiologia alerta que o país está num estado de negação por não reconhecer sequer que existem portugueses que sofreram reacções adversas às vacinas contra a covid-19. Também sublinhou que, nas actuais condições, seria de recomendar que, na hora de vacinarem contra a covid-19, todas as pessoas tivessem acesso aos riscos que incorrem. A cardiologista também deixou fortes críticas à falta de transparência em torno do processo de vacinação contra a covid-19, com o Infarmed a divulgar alguns dados mas sob ordem judicial.
Para a experiente médica, os portugueses que tiveram reacções adversas às vacinas contra a covid-19 foram deixados ao abandono. Portugal é dos poucos países na Europa sem um programa de indemnização àquelas vítimas.
Teresa Gomes Mota, cardiologista, na sede do PÁGINA UM, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, Teresa Gomes Mota destaca que, para já, seria positivo que o país e as autoridades reconhecessem que existem vítimas das vacinas contra a covid. Para a cardiologista, o país está num estado de negação, nem sequer reconhecendo que aquelas vítimas existem.
Por outro lado, também defende que maior transparência em todo o processo de farmacovigilância e criticou o Infarmed, por apenas ter divulgado alguns dados depois de o PÁGINA UM ter avançado com acções na Justiça para aceder a dados do regulador do sector farmacêutico.
Defendeu também a importância de ser dada informação clara aos que decidem tomar as vacinas contra a covid-19, para que possam, verdadeiramente, fazer uma escolha
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Na vigésima segunda sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com o jornalista e escritor Tiago Salazar.
Contador de histórias por natureza, e por excelência, Tiago Salazar encontrou no jornalismo e na literatura as suas formas de expressão privilegiadas, embora também percorra as estradas alfacinhas mostrando as estórias e vivências de Lisboa, que já lhe serviam de mote para livros.
Formado em Relações Internacionais, estudou Guionismo e Dramaturgia em Londres, mas durante anos o jornalismo ‘conquistou-o’, colaborando com o Diário de Notícias, a revista Grande Reportagem, e, mais tarde, a Time Out Lisboa.
Viajante incansável, muitas das suas ‘aventuras’ acabaram em livro, como são os casos de ‘Viagens sentimentais’ (2007), ‘A casa do Mundo’ (2008), ‘As rotas do sonho’ (2010), ‘Endereço desconhecido’ (2011), partindo de um programa de televisão, e ‘Crónica da selva’ (2014).
Mas tem sido no romance que Tiago Salazar se tem destacado, designadamente com ‘O baú contador de histórias’ (2014) e ‘A escada de Istambul’ (2016), a que se juntam, mais recentes, dois romances do género histórico: ‘O Magriço’ (2020) e ‘O pirata das Flores’ (2021).
Tiago Salazar fotografado no PÁGINA UM.
Nesta conversa com Pedro Almeida Vieira para a Biblioteca do PÁGINA UM, Tiago Salazar conversa sobre a sua paixão pelas viagens, pelo jornalismo e também pelas personagens que encontra ou (re)cria nos seus romances. E a conversa também para as dificuldades da escrita em Portugal, até por via de Tiago Salazar estar agora a escrever com o apoio de uma bolsa literária. Mas também fala da vida e da anarquia…
Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Tiago Salazar recomenda os romances ‘O Grande Cagliostro’, de Carlos Malheiro Dias, publicado em 1905, ‘Hora de Sertório’, de João Aguiar, publicado em 1994, e ‘A casa do pó’, de Fernando Campos, publicado em 1986.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Tiago Salazar.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Na vigésima segunda sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a jornalista e escritora Mónica Bello.
Iniciou-se no jornalismo em 1988, n’O Independente, onde editou o Caderno 3, tendo regressado, anos mais tarde, para assumir o cargo de directora-adjunta, e, em mais de três décadas, Mónica Bello desempenhou mais cargos de edição executiva: na revista Volta ao Mundo, no jornal Diário Económico e no site de informação Dinheiro Vivo.
Integrou ainda a equipa fundadora do jornal i, como subdirectora, e foi ainda directora-adjunta da revista Grande Reportagem e do jornal Diário de Notícias.
As suas vivências jornalísticas levaram-na também ao mundo dos livros. Em 2006, publicou ‘A costa dos tesouros’, sobre navios afundados e património cultural subaquático na costa portuguesa. E em 2020, publicou também ‘A vida extraordinária do português que conquistou a Patagónia’, sobre um português aventureiro no extremo meridional do continente sul-americano. De permeio, em 2012, escreveu, em co-autoria, dois livros de receitas para crianças, Este mês estreou-se, finalmente, no romance, com ‘A jóia que o rei não quis’, que ficciona uma história verdadeira envolvendo um punhal do século XIX, que pertence agora à Fidelidade, a mais antiga seguradora portuguesa em actividade.
Mónica Bello fotografada no PÁGINA UM.
Nesta conversa com Pedro Almeida Vieira – um reencontro depois de se terem cruzado na revista Grande Reportagem no final dos anos 90 –, Mónica Bello fala do seu percurso jornalísticas e duas suas aventuras nestas lides que a levaram a conhecer alguns dos temas que transpôs para os livros, bem como da ‘feitura’ do seu primeiro romance.
Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Mónica Bello recomenda os romances ‘Uma fazenda em África’, de João Pedro Marques, publicado em 2012, ‘O cemitério dos eternos prazeres’, de Domingos Amaral, publicado em 2024, e ‘Equador’, de Miguel Sousa Tavares, publicado em 2003.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Mónica Bello.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Com o espírito irreverente e mordaz de Brás Cubas, esta entrevista imaginária com o Pai Natal é um mergulho numa sátira mordaz ao estado do mundo. Num diálogo que oscila entre o humor ácido e a crítica social, o velho símbolo natalício revela uma visão cada vez mais desanimada sobre o presente e o futuro, mas sem nunca perder a centelha de esperança que carrega no seu mítico saco, excepto a partir de momentos em que lhe falam dos seus conflitos em terras eslavas.A partir de um optimismo, embora cauteloso, garantindo que o seu saco está cheio – nem que seja de esperança –, rapidamente a conversa descamba…. Eis uma conversa que desafia o riso e o desconforto, expondo verdades universais sob o véu da sátira. Uma leitura natalícia para quem ainda acredita – ou quer acreditar – na magia da bondade humana.
BRÁS CUBAS – Meu caro Pai Natal, que honra tê-lo comigo. Comecemos pelo básico: o saco ainda vem cheio de presentes este ano, ou as coisas andam escassas por conta da inflação?
PAI NATAL – O saco está sempre cheio, Brás Cubas, nem que seja de esperança! Ainda há quem acredite que o espírito natalício é mais forte do que qualquer crise. Afinal, há sempre algo que não se compra: amor, saúde, união…
Amor e saúde? Em 2024? Confesse, não trouxe desses presentes para o pessoal do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, pois não?
Ah, Brás, eu bem tento, mas a lista de espera para receber saúde é maior do que a minha lista de meninos bons! Mas acredito que com diálogo e boa vontade, as coisas se resolverão.
Boa vontade? Essa gente na política portuguesa acha que é coisa que se embrulha? Diga-me, no seu trenó, já viu mais promessas não cumpridas do que crianças a dormir à meia-noite, certo?
Bom, promessas são como flocos de neve: bonitas de longe, mas derretem depressa. Ainda assim, prefiro acreditar que há políticos que querem fazer o bem… Não me peça nomes, que estou cansado de decorar listas.
Conversa imaginária entre Brás Cubas e o Pai Natal para o PÁGINA UM,
Passemos a temas internacionais. Tem visitado Israel e a Palestina nestes dois últimos anos? Sei que não haverá muitos cristãos que o acolham. Além disso, não deve haver muitos motivos para as crianças brincarem, não é?
Ah, Brás, essa é uma das paragens mais difíceis. Levo para lá alguns brinquedos, sim, mas também muitas orações. Infelizmente, cada ano que passa, parece que entrego mais esperanças que se quebram. Já começo a achar que o meu saco anda cheio de ilusões e não de soluções…
E sobre a guerra na Ucrânia?
Não me quero pronunciar.
Ouvi dizer que, nos últimos anos, anda em guerras por terras eslavas com o Ded Moroz, que já conseguiu expulsar de partes da Ucrânia. Tem planos para invadir a Rússia para o expulsar daí também?
A conversa estava a correr tão bem, Brás…
Certo. Como estamos em espírito natalício, não abordaremos esses seus pecadilhos beligerantes… Falemos então dos outros políticos que lutam mais pela guerra do que pela paz. Que lhes tem para oferecer?
Ai, ai… Carvão” E não chegaria para tanta gente. Entre líderes que jogam à roleta com vidas humanas e países que fazem discursos e vendem armas ao mesmo tempo, quem sobra são os inocentes. Aliás, ando com vontade de trocar o trenó por um tanque!
Vamos então ao ambiente, que é tema quente. O Ártico, a sua casa, continua a derreter? Mas gostava também de lhe perguntar o que sente ao ver os políticos portugueses preocupados com o plástico nos areais, mas esquecidos do betão nas falésias?
Ah, Brás… Até as renas já me pedem um plano de contingência! Mas a hipocrisia também é muita. Portugal, tal como outros países, gosta de dar umas voltas às políticas ambientais, mas aquilo que gostam é de plantar árvores em conferências e deixar depois as florestas arderem…. Enquanto isso, temo que as minhas renas precisem de aulas de natação nos próximos tempos…
Pai Natal em luta contra Ded Moroz, algures em terras russas.
Falta de educação, é o que é… Mas falemos então do ensino em Portugal. Vai entregar livros escolares gratuitos ou não acha que seria mais prioritário ensinar mais ética política às crianças?
Os livros gratuitos são uma ideia bonita, mas ética política? Ai, Brás, essa é uma utopia que nem eu consigo fabricar na oficina. Entre uma criança que acredita em mim e um deputado que acredita no povo, prefiro a primeira.
Falando em acreditar: acha que o Almirante Gouveia e Melo faz bem em acreditar que vai ser o novo Presidente da República em 2026?
Brás, ó pá, estás a querer que eu entre na política portuguesa de vez? Olha, se o Gouveia e Melo quiser ser Presidente, que me leve as renas a tiracolo. Ao menos são honestas e sabem trabalhar em equipa, não se importando com a falta de ética.
Será ele um Marcelo Rebelo de Sousa ao contrário?
Credo! Eu não quero chamar o diabo para escolhas. Este tipo pareceu-me sempre um duende hiperactivo: sempre em todo o lado, sempre a apertar mãos, sempre a dar abraços e sempre a distribuir simpatia até à exaustão. Não dele, mas de quem o recebia. Não deve haver português que não tenha uma selfie com ele… Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me.
E a Justiça? Com tantas operações policiais, mas depois tudo a ficar em banho-maria, não acha que daqui a nada vai haver mais prescrições do que quilos de bacalhau na Consoada?
Justiça em Portugal? Oh, Brás, aqui vou ser sincero. A justiça portuguesa anda tão lenta que as renas já se oferecem para puxar o sistema judicial. Mas só se for mesmo, mesmo urgente, porque temos as férias judiciais a respeitar, claro.
Pai Natal, está-me a parecer afinal desanimado. Começou nesta entrevista a falar-me do seu saco estar cheio de esperança… Daqui a nada ainda me diz que os portugueses nem têm espírito natalício, que é tudo negócio
Brás, o português tem espírito natalício… para sacar o décimo terceiro mês, que é até o décimo quarto salário… e até à fatura da luz de Janeiro. Aí, transforma-se num pequeno Grinch a resmungar sobre subsídios e impostos.
Agora falemos em aspectos mais prosaicos. Sei que tem sido pressionado por associações de defesa dos animais por causa da exploração das renas. Já equacionou pedir apoio do Estado português para eletrificar o trenó?
Apoio? Ah, Brás, até parece que não me conhece! Se pedisse apoio ao Estado, ainda estava a preencher formulários quando o Natal de 2030 chegasse.
Estou a ficar preocupado com o rumo desta entrevista. Acho que será melhor ficarmos por aqui… Mas antes de terminar: se pudesse dar um presente ao Mundo, qual seria?
Ah, meu caro… Antes eu diria “Paz e Amor”. Agora? Talvez um bom par de chapadas bem dadas em certos líderes mundiais. Que tal?
Pai Natal, atrevo-me a perguntar: está a ficar com mau feitio?
E quem não ficaria, Brás? Ano após ano a mesma ladainha: promessas não cumpridas, injustiças que se multiplicam, gente que só quer enganar o outro. Quer saber? Já nem saco trago no próximo ano! Dou-lhes é um… Bom, deixa… Que vá tudo pastar no deserto, incluindo os meus duendes! Raios que partam todos.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Na vigésima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora Teolinda Gersão.
Reconhecida e consagrada como uma das grandes vozes da literatura contemporânea portuguesa, Teolinda Gersão tem construído uma obra marcada pela sensibilidade e pela capacidade de explorar os meandros mais profundos da experiência humana. A Literatura, em si, é mais do que um veículo de expressão pessoal; é uma ferramenta para dar forma às múltiplas dimensões da vida, onde memória, história e identidade convergem.
Embora oficialmente a sua estreia seja apontada ao ano de 1981 com “O Silêncio”, romance logo amplamente elogiado pela crítica, Teolinda Gersão teve uma juvenil incursão, aos 14 anos, com um livro de contos, ‘Liliana’, em 1954, cujo exemplar está patente na Biblioteca do PÁGINA UM, e que, embora não reconhecida na sua bibliografia, surge como um ponto de partida para esta longa, mas admirável conversa com Pedro Almeida Vieira.
Teolinda Gersão fotografada no PÁGINA UM.
Além de ser abordada uma carreira literária ímpar – que cruza fronteiras culturais e psicológicas, onde se destacam obras como ‘A Casa da Cabeça de Cavalo’, ‘Os Guarda-Chuvas Cintilantes’, A Cidade de Ulisses’ e o mais recente ‘Autobiografia não escrita de Martha Freud –, Teolinda Gersão fala do seu percurso de vida e da forma com a sua trajetória criativa se foi cruzando com o percurso académico, até lhe ter ganhado primazia.
Nesta conversa, Teolinda Gersão revisita também as influências que moldaram a sua visão literária e pessoal, desde os anos que viveu em Berlim até à sua incursão pela literatura africana, e a visão que foi moldando sobre Portugal e os portugueses. E mostra sobretudo ser uma mulher de paixões, que se desvendam na forma como fala de determinados temas ou assuntos. Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Teolinda Gersão decidiu escolher ‘Adoecer’, de Hélia Correia, publicado em 2010, ‘Fanny Owen’, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1979, e a chamada ‘trilogia da mão’, de Mário Cláudio constituída por ‘Amadeo’. ‘Guilhermina’ e ‘Rosa’, publicados originalmente entre 1984 e 1986.
Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Teolinda Gersão.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
É uma figura pública reconhecida pelos portugueses e acaba de ganhar um importante caso na Justiça. António Garcia Pereira, advogado e antigo candidato à Presidência da República, defendeu em regime ‘pro bono’ Renata Cambra num processo contra dois réus, um deles Mário Machado, que está ligado à extrema-direita e ao neonazismo. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação de Machado a uma pena de prisão efectiva de 2 anos e 10 meses, num caso que envolve incitamento à violência e ao ódio contra mulheres de ideologias de esquerda, designadamente contra a ex-dirigente do Movimento Alternativa Socialista. Esta vitória segue-se a outra: Garcia Pereira foi homenageado, em Maio, com o Prémio Nelson Mandela pela sua “coragem em denunciar excessos” de entidades “com capacidade de intimidação”. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, no seu escritório, em Lisboa, Garcia Pereira falou sobre os limites à liberdade de expressão mas também sobre a cultura de cancelamento de que tem sido alvo na comunicação social, desde que criticou as medidas ilegais que foram adoptadas pelo governo na pandemia. O Tribunal Constitucional acabou por lhe dar razão, mas a cultura de cancelamento mantém-se. O advogado afastou um regresso à vida política activa mas deixou críticas aos partidos de esquerda. Deixou também um alerta: o Almirante Gouveia e Melo, que não tem afastado ser candidato às eleições presidenciais, tem um perfil autocrático que beneficia dos tempos actuais de ascensão do populismo e do facto de o povo não ter memória.
António Garcia Pereira luta há muito contra o fascismo e tem sido um rosto em defesa da democracia e dos direitos fundamentais. Agora, o conhecido advogado e antigo professor universitário, acaba de celebrar uma relevante vitória na Justiça: a confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa da condenação a pena de prisão efectiva de Mário Machado, ligado à extrema-direita e ao neonazismo. Machado e outro réu, Ricardo Pais, foram condenados por terem incitado à violência e ao ódio contra mulheres de esquerda, designadamente Renata Cambra, antiga dirigente do Movimento Alternativa Socialista.
Apesar de poderem recorrer da sentença, Garcia Pereira está confiante de que Machado vai mesmo cumprir os dois anos e 10 meses de pena de prisão, admitindo que um eventual o recurso para adiar o cumprimento da sentença venha a ser rejeitado.
Mas, nesta entrevista ao PÁGINA UM, no seu escritório em Lisboa, Garcia Pereira, de 72 anos, alertou que “evidentemente que a luta contra os fascistas e os neonazismo não se faz apenas nos tribunais”. Para o reputado mestre e doutor em Direito, tem existido alguma complacência com situações em que há ataques ao bom nome e dignidade das pessoas, nomeadamente nas redes sociais. E citou a “própria jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem” que tem alimentado abusos do direito à liberdade de expressão.
António Garcia Pereira. / Foto: D.R.
Para o advogado, “a liberdade de expressão de pensamento é um valor fundamental, mas a liberdade de expressão de pensamento está aliada a uma coisa que Gabriel García Márquez escreveu na sua carta, considerado o seu testamento: um homem só deve olhar de cima para baixo, para outro homem, para ajudar a levantar-se no chão”.
Para Garcia Pereira, “há uma desvalorização de valores imateriais, como o bom nome e a dignidade das pessoas”, que é fruto “da época do capitalismo” em que há uma depreciação do respeito pela pessoa, “do respeito pelo outro, da solidariedade”.
O advogado e histórico combatente contra o fascismo, alertou que se está a assistir a uma repetição da História, em que o excesso e abuso da liberdade de expressão poderão levar a um outro extremo, que é a punição, não só de comportamentos abusivos mas também de todos, incluindo aqueles que são verdadeiramente de liberdade de expressão. “E nós já tivemos essa experiência durante o período da covid-19”, em que houve censura de cientistas e de todos os que suscitaram dúvidas sobre muitas das medidas impostas por governos.
Garcia Pereira chegou a alertar para o facto de algumas medidas do governo serem ilegais, o que lhe valeu ser cancelado pela comunicação social. “A minha voz, como a de muitos outros, foi eliminada na comunicação social”, lamentou. Um ‘cancelamento’ que se mantém até hoje. Garcia Pereira era um convidado assíduo e era regularmente chamado para fazer comentários em diversos canais de TV. Deixou de ser convidado. “Este ponto de vista que eu estou a defender ser imediatamente silenciado e, pior do que isso, ser insultado, é evidentemente uma demonstração da época que vivemos”, disse.
Mas o Tribunal Constitucional deu-lhe razão, com mais de duas dezenas de acórdãos a confirmar a inconstitucionalidade de medidas impostas indevidamente e de forma desproporcional na pandemia. “Na pandemia, foi usada a velha teoria de que os fins justificam os meios e que quem conhece a História sabe perfeitamente que esse é um dos alicerces da teoria de legitimação do direito e do Estado do III Reich”, afirmou. Lembrou que chegou a haver quem tivesse sido alvo de processos disciplinares por ter posições diferentes das do governo.
O advogado com os filhos Tiago, Ricardo, Manuel e Rita, na cerimónia em que recebeu o prémio Nelson Mandela. / Foto: D.R.
O antigo candidato à Presidência da República afastou um regresso à vida política activa. Mas deixou críticas aos partidos de esquerda, os quais considera serem os responsáveis pelo populismo. “Em meu entender, não há nenhuma força política verdadeiramente de esquerda [em Portugal] e isso é, em larga medida, responsável pelo pântano em que nos encontramos hoje”, com a população a não ver nos partidos diferenças substanciais sobre as grandes questões que afectam o país.
E deixou um alerta sobre a ascensão da figura de Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada. “É aí [nas crises] que sempre, historicamente, surgem os salvadores da pátria. As soluções dos dos [falsos] Messias que aparecem, apresentando-se supostamente acima das classes e dos partidos políticos, com um discurso que é sempre igual”, de que vai acabar com “a bandalheira e a corrupção”. Alguém que diz que “isto está muito mal, é preciso uma pessoa com autoridade”.
Garcia Pereira criticou Gouveia e Melo por estar há um ano a “a fazer uma campanha usando inclusivamente os meios da Marinha e a farda”. E deu o exemplo recente de um podcast em que o Almirante participou, que decorreu “nas instalações da Marinha, no Centro de Inovação da Marinha”, no qual “não só se pronuncia, por exemplo, sobre o caso do NRP Mondego, como se pronuncia sobre uma série de matérias, inclusivamente políticas, o que um militar no activo não pode fazer”.
Para o advogado, o anúncio de que André Ventura poderá ser candidato nas eleições presidenciais não passa de uma manobra que “destina-se pura e simplesmente a marcar um certo distanciamento do Chega, de que o próprio Almirante Gouveia e Melo necessita”. Isto porque o Chega foi o partido que se manifestou ser favorável a apoiar Gouveia e Melo, o qual aparenta ter uma proximidade evidente ao CDS-PP.
Garcia Pereira não tem dúvidas de que Gouveia e Melo é uma “solução perigosíssima” para o cargo de Presidente da República, porque “representa aquilo que representaram todos os [falsos] Messias da História”. Sublinhou que, tudo aponta que o Almirante “é uma personalidade ultra-reaccionária, com um timbre da atuação que é violentamente autocrático”.
Disse que a aparente popularidade de Gouveia e Melo é explicada pelo facto de haver um povo sem memória. “Um povo sem memória é um povo sem futuro e nós não nos devíamos esquecer para onde é que conduziram experiências políticas anteriores a essa [de Gouveia e Melo]”.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Martin Kulldorff foi professor de Medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas. O trabalho desenvolvido pelo proeminente epidemiologista e bioestatístico sueco é amplamente reconhecido. Membro de uma comissão da norte-americana Food and Drug Administration (FDA) dedicada à segurança de medicamentos e gestão de risco, os seus modelos de software são muito utilizados, nomeadamente pelo CDC, nos Estados Unidos, para a rápida detecção de surtos de doenças infecciosas e de reacções adversas graves a vacinas. Durante a pandemia da covid-19 foi uma das vozes a favor de uma estratégia que salvasse vidas sem deixar danos colaterais graves na saúde pública e na sociedade. Foi um dos três reputados professores que escreveram a histórica Declaração de Great Barrington. Mas suas posições valeram-lhe a censura, insultos e difamação. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, Kulldorff fala sobre as lições da pandemia e a sua esperança de que, na Ciência e nas políticas de saúde pública, se vai voltar aos factos e às decisões baseadas na evidência científica. Também revelou que prepara o lançamento de uma publicação científica na qual os cientistas poderão publicar os seus estudos e artigos, com transparência, criando o espaço para o debate.
Os ventos são de mudança e a ‘idade das trevas’ da censura e perseguição de cientistas, que regressou com a pandemia de covid-19, parece estar moribunda e cada vez mais perto do fim. Que o diga Martin Kulldorff, proeminente epidemiologista e bioestatístico, que foi professor de medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas, mas que se viu a ser alvo de censura e difamação por ter feito o seu trabalho e defendido a medicina baseada na evidência.
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada por videochamada, num Sábado, em vésperas do Dia de Acção de Graças, Kulldorff afirmou que não se arrepende de ter sido uma voz em defesa da Ciência, contra os dogmas e o falso consenso promovido pelas autoridades nos Estados Unidos, durante a covid-19. “Percebi, logo no início, que a minha carreira estava em jogo por estar a falar. Mas como posso ser cientista se não falar?” Contudo, sendo um epidemiologista, Kulldorff viu-se forçado a falar. “Não tive escolha, senão não conseguia olhar os meus filhos nos olhos”, afirmou.
Martin Kulldorff é um proeminente epidemiologista e bioestatístico sueco. Foi professor de medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas e fundou a Academy of Science and Freedom. É consultor da FDA como membro da comissão ‘Drug Safety and Risk Management Advisory Commitee’. Os programas que desenvolveu para detecção de surtos de doenças infecciosas (SaTScan) e para detectar reacções adversas graves a medicamentos e vacinas (TreeScan) são amplamente usados, nomeadamente pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention).
Martin Kulldorff / Foto: D.R.
Nos últimos anos, ficou também conhecido por ter sido um dos três reputados professores de respeitadas universidades que escreveram a Declaração de Great Barrington. Escrita em Outubro de 2020, em plena pandemia, o texto defendia uma resposta à covid-19 centrada na protecção das pessoas mais velhas e vulneráveis e alertava que os confinamentos e medidas mais restritivas iriam causar danos graves em termos de saúde pública, no curto e no longo prazo, prejudicando, sobretudo, a classe trabalhadora e as crianças e jovens. Além de Kulldorff, escreveram a Declaração o professor Jay Bhattacharya, da Universidade de Stanford − que foi nomeado para director do National Institutes of Health (NIH) na nova administração Trump −, e a professora Sunetra Gupta, da Universidade de Oxford. O documento criado a 4 de Outubro de 2020 conta com 940 mil assinaturas.
Em Março deste ano, e após duas décadas como professor de medicina na Universidade de Harvard, Kulldorff anunciou que tinha sido dispensado, numa confirmação do estado dogmático e da ‘idade das trevas’ que atingiu o mundo científico e académico, pautado pelo ‘cancelamento’, censura e até perseguição de cientistas e professores devido às suas posições distintas, num mundo que ficou fechado ao debate. Kulldorff escreveu, nessa altura, um artigo, que foi publicado também em português no PÁGINA UM com o título ‘Universidade de Harvard espezinha a verdade‘.
Kulldorff salientou que, com a pandemia, se aprendeu que “temos de seguir os princípios da saúde pública e da medicina baseada na evidência”, o que não aconteceu na covid-19, com medidas que deixaram um rasto de danos colaterais gigantescos na saúde pública, na sociedade e na economia. Outra lição da pandemia é de que “nunca devemos permitir a censura, o ‘bullying’ ou a calúnia”, que foi uma realidade para muitos cientistas e médicos de topo desde 2020. (Em Portugal, vale a pena recordar que comentadores nas TVs, políticos e jornalistas insultavam – e ainda hoje insultam – os defensores de medidas baseadas na evidência científica, classificando-os de ‘negacionistas’ ou ridicularizando-os com nomes como ‘chalupas’.)
Nesta entrevista, Kulldorff também revelou que vai lançar, nos próximos meses, uma publicação científica através da qual os cientistas podem divulgar os seus estudos e artigos científicos, de uma forma mais transparente. Recorde-se que várias das principais revistas de natureza científica falharam na pandemia, ao cederem a políticas enviesadas e censurando cientistas, que se viram em dificuldades para conseguir publicar o resultados dos seus trabalhos de investigação. Enquanto isso, alguns cientistas próximos da ‘narrativa’ oficial conseguiam publicar em tempo recorde, mesmo se o seu trabalho estivesse rodeado de muitas dúvidas. “Precisamos de ter uma forma diferente de publicar resultados científicos”, disse Kulldorff, frisando que é crucial que haja debate científico livre e aberto.
O epidemiologista sublinhou que, para que se possa restaurar a confiança na Ciência e nas universidades, “o primeiro passo é restaurar a integridade da comunidade científica”. “Penso que os cientistas de base vão conseguir dar a volta, mas o fundamental é que haja uma nova liderança”, frisou, destacando que a nomeação de Martin (Marty) Makary para liderar a FDA é um sinal de esperança. Kulldorff também manifestou a esperança de que Bhattacharya fosse nomeado director do NIH, o que se confirmou já após a entrevista.
Segue a transcrição em português da entrevista feita em inglês.
Foi professor em Harvard, na escola de Medicina de Harvard, durante duas décadas, até Março passado. E em que está a trabalhar agora? Qual é o seu dia-a-dia?
Trabalho como consultor, na detecção de surtos de doenças infeciosas. Trabalho com vacinas. Faço um trabalho semelhante ao que fazia antes, mas não fazendo parte da Escola de Medicina de Harvard.
E desenvolveu um software importante, uma ferramenta de recolha de dados. Um software que permite a detecção de surtos em hospitais, por exemplo, e em termos geográficos, e também software na área de monitorização de segurança de vacinas.
Sim. Criei dois softwares: SaTScan, que é geográfico, para detectar rapidamente surtos de doenças infeciosas, que podem ser a salmonela ou a doença do legionário. Também criei um software que se chama TreeScan, que detecta reações adversas inesperadas a medicamentos ou vacinas, porque, uma vez que o medicamento ou a vacina é aprovado, sabemos em última análise que está a funcionar, mas é impossível saber se há reacções adversas raras graves. Temos de fazer essa vigilância, depois de [as vacinas ou medicamentos] terem sido aprovados pela FDA, ou a EMA [European Medicines Agency], na Europa.
Os autores da Declaração de Great Barrington: Martin Kulldorff (Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford). A Declaração dos três professores e cientistas detende uma resposta à pandemia de covid-19 focada nas pessoas mais vulneráveis e alerta para os efeitos devastadores que os confinamentos e restrições duras têm na saúde pública a curto e longo prazo, afectando desproporcionalmente a classe trabalhadora e as crianças e os jovens. Os três reputados professores acabaram por ser alvo de campanhas de difamação e perseguição pelas autoridades de Saúde nos Estados Unidos e os media ‘mainstream’. / Foto: D.R.
E o professor também trabalha com a FDA e um dos seus softwares é usado pelo CDC, na detecção de reacções adversas a vacinas.
Sim. Esses dois métodos são amplamente utilizados pelo CDC e a mineração de dados também é usada pela FDA. E também são usados por departamentos de saúde estaduais e municipais.
Muitos não sabem o trabalho que é necessário para detectar não só surtos de doenças, mas para monitorizar as reacções adversas. É necessário muito trabalho envolvendo software e mineração de dados.
Sim. Por exemplo, na detecção de novos casos de salmonela, por exemplo: iremos querer saber se, de repente, há um pico de doença num determinado bairro, com mais casos do que seria o esperado. Por acaso, pode haver a indicação de que talvez um restaurante esteja a servir algum alimento contaminado ou que alguma mercearia está a vender frango que foi contaminado. Então, vai querer saber-se o mais rápido possível. Porque, mesmo se for detectado mais rápido, isso pode salvar pessoas de ficarem doentes e, às vezes, de morrerem. É importante poder ter este tipo de sistema automatizado e rápido para detectar rapidamente quando há esse tipo de problemas.
Sendo um especialista nestas áreas, ficou surpreendido com as políticas que foram implementadas na pandemia de covid-19? O professor foi um dos três autores da Declaração de Great Barrington, que defende uma abordagem focada para se salvar vidas. Esperava o tipo de comportamento que as autoridades adoptaram em resposta à covid-19?
Não, eu fiquei extremamente surpreendido. Porque a forma como lidámos com a covid-19 ignorou os princípios fundamentais da saúde pública, bem como a medicina baseada na evidência. Ficou claro, logo no início de 2020, que qualquer pessoa poderia ser infectada com a covid-19. E o risco dependia da idade. As pessoas mais velhas tinham um risco de morrer 1000 vezes maior do que as pessoas mais jovens. Portanto, a única coisa que havia a fazer era proteger as pessoas mais velhas, permitindo que as escolas permanecessem abertas e permitindo que os jovens adultos prosseguissem com as suas vidas, perto do normal. E um dos princípios da saúde pública é que não se pode estar focado em apenas uma doença, tentando eliminar a covid-19, porque causaria enormes danos naturais colaterais em outras áreas da saúde pública, como no caso das doenças cardiovasculares ou diabetes ou pessoas com cancro. Na verdade, no caso do cancro, estava a diminuir, mas não porque as pessoas não estavam a ter cancro, mas porque não estava a ser detectado. Se não é detectado, não pode ser tratado. Vamos ter de viver com esse tipo de coisas. Há pessoas que vão morrer mais cedo porque o seu cancro não foi detectado. E, claro, houve problemas com a saúde mental e a educação, com o encerramento das escolas. Houve enormes danos colaterais de saúde pública devido a estas medidas de resposta à covid-19, porque as autoridades estavam unicamente focadas na covid-19 e ignoraram tudo o resto. E isso não se faz na saúde pública.
Nasceu na Suécia, é um cientista sueco. Na Suécia, a abordagem foi completamente diferente. Os números relativos ao excesso de mortalidade são muito melhores do que no resto do mundo, nomeadamente face aos de Portugal, onde os números de excesso de mortalidade são enormes. Porque é que a maioria dos países ocidentais seguiu uma abordagem e a Suécia seguiu uma abordagem diferente?
Não sei. Acho surpreendente que a Suécia tenha sido o único país a adotar uma abordagem baseada na evidência, durante a epidemia, e entre os principais países ocidentais. Alguns outros locais também seguiram a mesma estratégia [da Suécia], como as Ilhas Faroé, por exemplo. Mas não sei porquê. É muito surpreendente. O que aconteceu na Suécia é que houve, realmente, um debate robusto sobre os prós e contras das diferentes abordagens. Os grandes jornais tinham pessoas a debater as duas abordagens, a abordagem sueca de protecção focada, bem como a abordagem de confinamentos severos em outros países. Penso que foi algo bom que houve na Suécia. Nos Estados Unidos, esse debate foi esmagado. Os que tentaram falar sobre a protecção focada, em vez de se fazer confinamentos, foram caluniados ou ridicularizados. Demorou muito, muito tempo até conseguirmos chegar ao público e informar o público de que não existia um consenso científico para esses confinamentos.
Não apenas na comunidade científica, mas também nas universidades, existiu uma enorme onda de censura nos Estados Unidos e também em outros países. Ficou surpreendido com isso? Para mim, nunca pensei vir a ter de enfrentar a censura. Mas enfrentámos censura. Por que é que isso aconteceu?
Sim, fui censurado pelas redes sociais por fazer afirmações cientificamente factuais sobre a pandemia. Fui censurado pelo Twitter, pelo Facebook, YouTube, LinkedIn, Tiktok. E eu fico chocado. Se me tivessem dito que isso iria acontecer cinco anos antes, eu não teria acreditado. Pensava que a liberdade de expressão estava enraizada na cultura ocidental, na Europa Ocidental e na América do Norte. Mas foi como se estivéssemos na União Soviética ou num país fascista e não em países do Ocidente. Fiquei completamente chocado. Fui censurado, a mando do governo norte-americano, bem como muitos outros cientistas e indivíduos.
E, recentemente, o Professor Jay Bhattasharya escreveu no X sobre o facto de a Universidade de Stanford ter votado para manter a censura aplicada ao professor Scott Atlas. Não têm a consciência pesada e ainda pensam que a censura foi acertada. Poderíamos esperar que, de alguma forma, universidades como Harvard ou Stanford reconhecessem que erraram, mas parecem não ter uma consciência culpada.
Sim. E, na verdade, há quatro anos, quando escrevi a Declaração de Great Barrington com o Dr. Bhattacharya, de Stanford, e a Dra. Sunetra Gupta, de Oxford, tivemos um debate. Eu disse: com algumas excepções, iria ser muito difícil convencer os políticos e os jornalistas ou os principais cientistas, mas conseguiremos convencer o público. E depois, como o público é que estava a ser afectado por todos os danos colaterais, acabariam por convencer os políticos e, eventualmente, os media. Os cientistas de base foram sempre muito razoáveis, mas foi a liderança científica que fez de tudo para houvesse esses confinamentos. Eu disse-o há quatro anos e ainda penso que nunca, nunca os vamos convencer, nunca seremos capazes. Nunca irão admitir que estavam errados sobre a pandemia. Há um ditado na Ciência que diz: A Ciência prossegue um funeral de cada vez. A próxima geração na Ciência vai perceber o enorme erro que isto foi, mas penso que a liderança atual, como [Anthony] Fauci ou [Francis] Collins ou [Ralph] Baric ou vários professores universitários ou editores dos grandes jornais científicos, nunca vão admitir que erraram totalmente e que impuseram pseudociência em vez da medicina baseada na evidência.
Mas acredita que ainda é possível salvar a credibilidade e a confiança na Ciência e nos académicos depois do que aconteceu? Acha que há esperança nisso?
Espero que sim, porque acho que é muito importante. Mas o primeiro passo, antes da confiança, o primeiro passo é restaurar a integridade da comunidade científica. Acho que os cientistas de base vão conseguir dar a volta. O fundamental é que haja nova liderança. Um sinal de esperança, por exemplo, foi ontem o Dr. Martin (Marty) Makary ter sido nomeado para ser o próximo diretor da Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos. É preciso voltar à tomada de decisões baseadas na evidência. E penso que o Dr. Makary vai fazer isso. Esse é um sinal de esperança. Há outras pessoas que fazem ouvir a sua voz. Ele foi uma das pessoas que falou e há muitos outros que o fizeram. Por isso, espero que estas pessoas possam chegar a alguns dos cargos de liderança da comunidade científica.
Kulldorff, Scott Atlas (radiologista e antigo professor na Universidade de Stanford) e Jay Bhattacharya. / Foto: D.R.
Mas mesmo essas pessoas, aquelas novas nomeações que a administração Trump tem vindo a fazer, por exemplo, aqui em Portugal, na comunicação social, estão sendo difamados. Nos media ‘mainstream‘ ainda continua a impor a narrativa daqueles que foram responsáveis por políticas que levaram ao enorme excesso de mortalidade e tudo o que mencionou.
Isso é verdade. Ontem houve um artigo na NBC News, nos Estados Unidos. Estavam a criticar o Dr. Martin Makary por ter acreditado na imunidade natural, que é algo que conhecemos desde 430 a.C. Então, criticar o nomeado para a FDA por acreditar na imunidade natural é como criticar o chefe da NASA por pensar que a Terra é redonda e não plana. Penso que é inacreditável que isso ainda esteja a acontecer. Simplesmente surpreendente.
Talvez demore algum tempo também para alguns jornalistas e outros de reconhecer que estavam enganados, e talvez tenham sofrido uma lavagem cerebral com toda a programação e a repetição de disparates que vimos durante a pandemia, nomeadamente, em relação à imunidade natural.
Sabe, isso já começou a acontecer, na verdade. Tive alguma interacção com alguns jornalistas que estão agora genuinamente interessados no que estivemos a dizer nos últimos quatro anos. Eles começam a perceber que o que acreditavam não era verdade. Estão interessados em descobrir e aprender sobre a pandemia e epidemiologia e saúde pública. Penso que as coisas estão a mover-se nessa direcção, o que é esperançoso.
São óptimas notícias. Posso supor que está optimista que a administração Trump vá trazer, de algum modo, uma nova política de saúde pública, mais baseada na evidência e defendendo a Ciência e os académicos.
Estou com muita esperança na FDA. É uma excelente escolha, com o Dr. Martin Makary a ser o próximo director da FDA. Vamos ver quem é que é nomeado para o NIH. A minha esperança é que seja o Dr. Jay Bhattacharya, de Stanford, mas ainda não sabemos isso. [Entretanto, após a entrevista, Jay Bhattasharya foi nomeado para liderar o NIH].
Seria bom ver que essas áreas não estarão nas mãos nem de políticos nem de burocratas. Será bom que sejam lideradas por cientistas e especialistas nessas áreas.
Nos últimos anos, tem havido portas giratórias entre a FDA e a indústria farmacêutica. Por exemplo, o ex-diretor da FDA Scott Gottlieb entrou para o conselho de administração da Pfizer. Esse é apenas um dos muitos, muitos exemplos. Isto acontece tanto ao mais alto nível como ao nível intermédio. Pessoas que trabalham na FDA e depois vão para a indústria farmacêutica. Isso cria um problema porque se o papel da FDA é ser o ‘watchdog’ da indústria para se certificar de que os produtos têm a eficácia que afirmam ter e que não provocam reacções adversas e para remover [do mercado] qualquer medicamento ou vacina que seja perigoso. Espero que haja melhorias na FDA, agora.
Caso contrário, a FDA não é um ‘watchdog’, mas um ‘petdog’. Pensa que é necessário que haja nova legislação para acabar com estas portas giratórias?
Sim. O que for preciso para acabar com isso. Outra questão são as comissões consultivas da FDA. Muitos membros das comissões consultivas são também remunerados por farmacêuticas, como investigadores recebem bolsas de empresas da indústria farmacêutica. Não podem receber de empresas cujos produtos eles estejam a analisar. Isso é bom, mas penso que é melhor que as regas sejam mais amplas, para que os membros das comissões sejam, realmente, completamente independente das farmacêuticas.
Especialmente, quando existem grandes empresas, tanto na indústria farmacêutica como na indústria alimentar, e essas empresas poderiam estar a conceder financiamento para pesquisa em várias áreas. Penso que é difícil monitorizar tudo.
Sim, é verdade.
E, em relação, à covid-19, quais são as lições que se aprenderam para o futuro e as que talvez não tenham sido aprendidas até agora?
Bem, o quadro geral, é que temos de seguir os princípios da saúde pública e da medicina baseada na evidência. E nunca devemos permitir a censura, o ‘bullying’ ou a calúnia. É prejudicial. E, por exemplo, na Suécia havia um debate aberto. Havia pessoas a publicar artigos nos jornais a criticar a abordagem sueca. Apesar de discordar 100%, estou realmente muito feliz que escreveram, porque fizeram um serviço ao país e à saúde pública. Isso significou que houve um debate público, e isso foi muito importante, para que as pessoas pudessem realmente ouvir esses lados da história, e decidir o que era mais razoável. Outros países fizeram as coisas de forma diferente. Por isso, estou muito grato. E estou grato aos jornais que publicaram esses artigos com opinião oposta.
Pensando numa nova pandemia ou numa crise de saúde pública, o que pode ser feito agora para gerir melhor uma nova crise no futuro? Para que não caiamos nos mesmos erros que foram cometidos na covid-19 e também para proteger todos, se possível?
Sim, vamos ter outra pandemia, porque tivemos pandemias ao longo da história. Se vai ser daqui a cinco ou 50 anos, não sei. Mas haverá outra pandemia. E a minha esperança é que aprendamos com os erros. Penso que se houver uma nova pandemia dentro da próxima década ou duas, será impossível cometer o mesmo erro que se cometeu na covid-19 porque há muitas pessoas entre o público que se iriam opor a isso. Porque no início da covid-19, as pessoas estavam confusas. A maioria das pessoas não tinham estudado epidemiologia. Era natural para a maioria das pessoas acreditar em Anthony Fauci, apesar de ele estar errado e apesar de ter posto de lado os cientistas que sabiam mais sobre saúde pública. As pessoas confiaram nele. Mas não penso que as pessoas irão fazer isso da próxima vez. Tenho esperança que faremos melhor da próxima vez.
Em relação ao seu trabalho, tem ressentimento por ter sido demitido de Harvard? Foi justo? Trabalhou duas décadas e deu tanto. Como vê Harvard neste momento?
Não acho que foi justo. Acho que erraram e estão em pior situação por causa disso. Espero que se recomponham algum dia. Não fui o único que foi demitido. Espero que façam algo para recuperarem a sua integridade e a sua posição. Mas não vejo nenhuma evidência disso neste momento. Veremos o que acontece.
Em termos da sua vida e do seu trabalho, vê que está melhor agora? Talvez tenha algum tempo para se concentrar em algum projecto que queira fazer? Como se vê nos próximos anos?
Bem, eu sou uma pessoa de sorte no sentido de que eu sempre pareço encontrar problemas científicos interessantes para trabalhar. Em termos dos colegas com os quais colaboro, tenho uma boa relação com a maioria. A maior parte deles pensa que eu estava certo sobre a pandemia. Não disseram nada porque não queriam ser atacados ou caluniados, o que eu entendo. Mas continuei a trabalhar com os meus antigos colegas e gosto disso. Estou a fazer algumas das mesmas coisas que fazia em Harvard, mas agora como consultor privado. E também tenho a oportunidade de estar a fundar uma nova revista científica sobre saúde pública, que esperamos que seja lançada nos próximos meses para combater os problemas que existem com as revistas científicas. Sabia que era algo problemático há muitas décadas, mas foi algo que veio mesmo à tona durante a pandemia. Precisamos de ter uma forma diferente de publicar resultados científicos.
Para que possa haver um escudo face a outros interesses, ideologias ou políticas.
Sim. Temos um processo de publicação mais aberto onde se podem publicar, onde os cientistas podem publicar coisas que eles acham que são importantes. E agora o sistema de revisão pelos pares [‘peer review’] é escondido, é secreto. Penso que deve aberto. Queremos publicar os ‘peer reviews’. Isso é uma forma de abrir o debate científico.
Isso seria muito importante. Arrepende-se de ter sido uma voz que falou sobre a pandemia e todas as políticas, a forma como as políticas erradas estavam a ser implementadas? Porque mencionou que alguns colegas não se manifestaram porque tinham medo de serem insultados e difamados.
De maneira nenhuma. Percebi logo no início que a minha carreira estava em jogo por estar a falar. Mas como posso ser cientista se não falar? Sou um epidemiologista de doenças infeciosas por isso tenho de falar sobre essas coisas. É a minha área. Se fosse um professor de química poderia ter ficado em silêncio. Mas eu não era. Por isso tinha de falar. Não tive escolha, senão não conseguia olhar os meus filhos nos olhos. Por isso, não me arrependo, de todo.
NOTA: Transcrição editada e adaptada para português de entrevista feita em inglês.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.