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  • Autor, autenticidade e plágio

    Autor, autenticidade e plágio


    Quando Machado de Assis, no comentário crítico que fez a O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro, acusou este último romance de ser uma simples imitação de La Faute de l´Abbé Mouret, iniciou um processo  retórico de restrições nos códigos de leitura do romance criticado cujas consequências, do nosso ponto de vista, dificilmente poderão ser alteradas.

    Entre estas, a mais evidente é a que leva a associar quase sempre ao romance de Eça a questão do plágio. Contudo, não se trata de uma acusação evidente de plágio a que fez o mestre brasileiro. O processo, como veremos melhor, é insidioso e ambíguo. Em grande parte, podemos admiti-lo, os resultados da acusação foram os esperados por Machado de Assis. Contudo, a dimensão das consequências, na sua globalidade, talvez tivesse ultrapassado não só as expectativas do crítico como as dos leitores seus contemporâneos.

    Machado de Assis (1839-1908)

    De certo modo, o desenvolvimento da nossa argumentação será avaliar, fugindo o mais possível à simples apologética, o conjunto de problemas que o comentário  do escritor e crítico brasileiro levantou, bem como procurar perspectivar, do ponto de vista da teoria da literatura, a importância do conceito “plágio” no interior das abordagens científicas que buscam o conhecimento da literatura.   

    Parece-nos indiscutível que a acusação feita por Machado de Assis a Eça de Queirós, sendo literalmente a de “imitação”, foi, de imediato, lida por outros contemporâneos, detractores e apologistas, como “plágio”.

    Junto com a utilização do termo “imitação”, Machado de Assis introduz outra observação crítica restritiva – a da obediência à “escola”. Sendo a figura tutelar evocada a do chefe de escola, Zola, não é absurdo presumir que o complexo problema que Machado suscita com a sua crítica seja o da mimesis entendida como prática de obediência a um cânone, ou seja, as práticas artísticas segundo a maneira de um mestre que representa uma linhagem, podendo isso ser entendido como incapacidade criativa, ou impossibilidade de originalidade.

    Contudo, não nos parece que o escritor brasileiro estivesse a apelar para um princípio em que a originalidade tivesse de   vir a manifestar-se a partir do nada. Como matéria-prima para a reelaboração, na criação original, ele sugere a “tradição”, entendendo-a não como os ditames de uma escola, mas antes como as indicações difusas a abstrair da prática de mestres que teriam fundado os grandes valores nacionais, entre os quais os do engrandecimento da língua.

    A língua fica entendida, assim, como um reduto patriótico manifesto por alguns discursos literários modelares portadores de valores ideológicos “adequados” a qualidades que se harmonizam, segundo esse decorum, com qualquer coisa como uma alma ou espírito da pátria que se exprime na língua. Que essa língua não seja um sistema, mas, antes, os discursos de autores inseridos no movimento romântico apenas nos vêm mostrar como a acusação de plágio (dita “imitação”, insistimos) tem muito mais a ver com o modelo seguido do que com o facto de se ter seguido um modelo. É relevante, ainda, que Machado tenha necessidade de caracterizar o modelo “imitado”, mas prefira silenciar os traços discretos dos modelos que se deveriam seguir.

    Basicamente, parece-nos, o indiscutível formula-se, sobretudo, pelo não explícito, pelo aludido e difuso. A crença é  o grau máximo da ideologia que tem o fundamento no que se sabe sem formulação, sem explicitação. É nesse interstício de obscuridade que a “certeza estética” formula o seu cânone como um panteão de entidades que não se discutem, que emanam valores de fundação e sobre os quais assenta, inquestionável, a tradição.

    O que se evidencia, deste modo, é a problemática renovada de um questionamento milenário no interior da literatura: o da mimesis. Convocá-lo, de novo, para emitir apenas formulações ou reformulações no interior da teoria da literatura, pode ser interessante para observar o estado da ciência literária (essencialmente o conjunto ordenado disciplinarmente dos discursos sobre a literatura, utilizando uma metalinguagem teórica), mas talvez não adiantássemos muito relativamente ao mestre grego da Poética. Contudo, a observação dos elementos comparáveis de duas obras, uma das quais foi acusada de ser plágio da outra, coloca-nos no interior de uma problemática literária que nos parece ser extremamente produtiva.

    Defrontando-se duas poéticas no horizonte dessa acusação, podemos formular através dela e da polémica que gerou quais os horizontes que se abriram num primeiro estádio de teorização – o das argumentações das escolas nas formulações (e práticas) dos princípios genéricos que regeram as suas produções.

    Observar – no sentido em que fala Mignolo (1989:48) – é darmo-nos como tarefa perspectivar as nossas condutas (neste caso literárias) e as de outros seres humanos, como domínios de estudo, nomeadamente as reflexões que fazemos sobre a actividade literária, quer como escritores quer como leitores.

    É nesse sentido que nos parece importante e produtivo determo-nos na observação das práticas artísticas como práticas de relação no interior da série literária (entendida como relação de sequencialidade onde se manifestam relações de intertextualidade), bem como os contextos de outras séries (artísticas, culturais, científicas, políticas) com as quais os fenómenos em questão mantiveram relações interdiscursivas (por exemplo, o anticlericalismo, o discurso político, o discurso científico).

    Esse domínio, ainda que teoricamente bem delimitado, raramente é aprofundado relativamente a objectos concretos que emergem da prática literária. Os casos de reescrita, de imitação, de reformulação de um mestre, ainda que reconhecidos, são eufemisticamente evitados porque, pensamos nós, ao estabelecer-se a relação em profundidade diminui-se o valor de originalidade do autor que se diz ser “imitador”.

    Por nossa parte, julgamos que, indo francamente ao encontro de um caso de “plágio” várias vezes afirmado (e refutado ainda mais vezes), vamos tocar no cerne de uma prática que desde há muito se chama mimesis (a mimese aristotélica, neste caso)e que, inevitavelmente, se tem traduzido (e entendido, portanto) por imitação e por representação.

    Eça de Queirós (1845-1900)

    Esta dupla tradução (e compreensão) remete-nos para a factualidade fascinante do problema: a de que a feitura de um universo textual literário se realiza por operações de  representação (o erguer de um mundo ficcional – narrativo, lírico ou dramático), ou seja, de um objecto que, não sendo o mundo empírico, tem valor de mundo, apesar de tudo; e que, inevitavelmente, essa representação se faz segundo a obediência a processos de reconhecimento, aos códigos e modelos que permitem as relações do homem com o mundo, e dos homens entre si.

    Se posso dizer o mundo, de um modo que é possível transmitir a outro homem que mundo é esse de que falo, também é possível construir segundo processos semelhantes um mundo alternativo, porque as regras de construção para representar e simbolizar são, elas próprias, reconhecidas e transmitidas.

    Sendo assim, pode ler-se uma obra, sobretudo romanesca ou teatral (onde o nível da fábula seja dominante), como o espaço textual em que uma representação de mundo tem uma certa singularidade fenomenológica extra-verbal. Uma convicção forte, nesse sentido, pode argumentar que um romancista, por exemplo, cria um mundo reconhecível e estável no seu romance, de tal forma que toda e qualquer leitura o constituirá como fenómeno sempre idêntico ao de todas as outras leituras praticadas.

    Pensamos que isso é verdade, em grande parte, e que é por essa razão que dois leitores distintos podem discutir com coerência (e com proveito, na esfera dos valores antropológicos projectados) o comportamento de Amaro, julgando-o, e, na sequência dessa discussão, pôr em confronto esse juízo com o que se formula sobre Serge na leitura de La Faute. Contudo, o abuso de uma tal perspectiva pode ser empobrecedor da compreensão que nos deve merecer o modo como cada autor constrói o seu mundo-fenómeno.

    A semelhança do representado não deve apagar a singularidade do processo de representação. O plagiador, para uma perspectiva que apague o dizer pela enfatização do dito, seria aquele imitador cuja obra não seria uma autêntica representação (capaz de remeter para o mundo – mantendo-se na sua alteridade como possibilidade de uma realidade nova) mas sim uma imitação em que o que ficaria patente não seria o mundo mas o gesto imitador[1].

    Não seria autor (gerador de mundos representados) mas simulador (reprodutor de imitações). Para nos reportarmos aos termos da semiótica decorrente de Peirce, poderíamos dizer que tal crítica veria o escritor “autêntico” como criador de referentes unívocos emergentes dos significados da sua obra e o plagiador como um mero reprodutor de referentes alheios. Quase sempre, como se verá, as opiniões que vêem em Eça um autor fraco em “invenção” padecem desse tipo de reducionismo.

    O curioso, numa polémica de escolas ou de modelos autorais, é verificar através dela como o desenvolvimento literário se tem sempre realizado por confronto entre as regras e os modelos resultantes dessas regras. Um discípulo genial, diria Bloom (cf.1973:5), participa da “história poética”, na medida em que se relaciona com a sua figura tutelar por uma influência, no domínio da qual pratica uma má-leitura (misreading). O que nos colocaria perante a hipótese de o plagiador ser eventualmente o discípulo fiel, o que apenas lê bem, não “cria” a partir do erro ou da má leitura.  A esta dimensão estimulante de uma interpretação psicanalítica do processo histórico-literário, aqui fica, apenas, a sugestão.

    Dentro destes horizontes que postulamos, parece-nos interessante e pertinente ver qual a matéria imitada quando se percebe (numa leitura posterior) o plágio; qual o valor de tal conceito no interior da reflexão e da observação teóricas; e, essencialmente, dentro dessas valorizações (ou desvalorizações) assim formuladas, como se manifesta o processo da mimesis que, inevitavelmente, emerge persistentemente quando se aborda um processo de relação intraliterária tão intenso que se assume ser plágio.

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    É evidente, logo que a questão se coloca, que a entidade fundamentalmente posta em causa é a do autor. Ele é entendido quer como criador de mundos quer como proprietário de uma matéria verbal que representa esses mundos. A entidade autoral, contudo, põe-nos vários problemas teóricos e metodológicos.

    Por um lado, a nossa opção de comparação dos elementos textuais recomenda-nos que, para falarmos à vontade sobre a existência ou não de plágio, confrontemos tão minuciosamente quanto possível os textos que estão em causa. Só segundo essa análise, nível a nível, é possível dizer se há ou não aproximação de elementos textuais nas obras consideradas que nos permita falar de uma semelhança que, a não ser total eipsis verbis, pelo menos se aproxime quantitativamente dessa totalidade de semelhanças, elemento a elemento, ou inversamente, por não existir, nos permita refutar tal hipótese.

    Para efectuar essa análise temos de recorrer, forçosamente, a modelos teóricos de compreensão do texto literário e, nomedamente, de narratologia.

    Ora, acontece que as propostas teóricas formalmente mais seguras  de abordagem do texto narrativo que conhecemos, nomeadamente as de Genette (1972) e de M. Bal (1987), por imperativo de abordagem do texto afastam do centro das suas preocupações a questão do discurso. Entendemos por discurso, neste caso, a produção textual como acto retórico, histórica e socialmente inserido e enquadrado. A figura que imediatamente é anulada é a do autor, dado que, como Genette estabelece, o acto narrativo que o narratólogo (poeticista ou teórico do texto literário narrativo) estuda é o do narrador (cf. 1972:73).

    Se Genette, cautelosamente, considera que o estudioso e teórico da narrativa deve ter apenas em conta a narração na sua relação com a narrativa, encarando a produção autoral como um facto histórico com que a teoria da literatura não tem de se preocupar primordialmente, M. Bal inclui totalmente a enunciação narrativa no texto, considerando que seja qual for a voz que origina a narrativa ela se designa apenas por narrador dado que a referência ao autor arrasta de imediato ora a entidade histórica extra-literária, ora o risco de se confundir a inferência resultante da leitura com a “fonte” do significado do texto (cf. 1987:125:126).

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    O facto de assentarmos nos conceitos utilizados por estes autores a base da nossa metodologia para a comparação, por nos parecer que eles são quem nos fornece a melhor “gramática” do texto narrativo – a que resolve com maior simplicidade e rigor o maior número de problemas textuais que a narrativa literária nos coloca – arrasta-nos, inevitavelmente, para que também nós pratiquemos, com alguma má consciência, uma excessiva minimização da entidade autoral.

    Essa impressão de incompletude não se manifestaria se, no caso presente, a minimização do autor não se revelasse paradoxal e incómoda para a abordagem de quase todos os problemas que o plágio levanta. Com efeito, se alguém é acusado de plágio é Eça de Queirós e não o narrador textual de O Crime do Padre Amaro.

    Se alguém se revela leitor de Zola (e não leitor do narrador de Zola apenas) é Eça. Se existem três versões de O Crime não podemos atribuir tal facto a uma entidade textual, de “papel”, que se tivesse rebelado contra o autor histórico, demoniacamente roubando-lhe o texto para o reescrever nos universos textuais em que existe.

    Perante tais factos, não podemos deixar de ter em conta essa entidade, incómoda para uma abordagem formal do texto, mas fundamental para a compreensão do discurso, das suas estratégias retóricas e para compreensão do próprio texto como entidade histórica. Por isso, evidentemente, as abordagens que fazemos ao relacionamento dos textos de Eça e de Zola com os outros discurso da época e com as correntes filosóficas e as mentalidades do seu tempo têm em conta a actividade do autor como escritor.

    No entanto, mesmo reconhecendo tais factos, não é nossa intenção  reactivar o “fantasma” herdado da crítica oitocentista – fantasma esse que resulta, em grande parte, de uma teorização radical e aberrante da entidade autoral pela qual os naturalistas tanto se bateram – que surgia como guardião do sentido unívoco do texto, obviamente. Esse autor, misto de entidade histórico-biográfica e de autoridade enciclopédica, não nos faz falta no centro de nenhuma perspectiva segundo a qual queiramos abordar o texto ou o discurso literário com alguma segurança teórica.

    Quando muito, tal figura existencial e “pedagógica” completa, dentro de um saber especializado (filológico ou de crítica textual), o autor que inevitavelmente temos de postular na origem de um texto. Ou seja, para retomarmos os termos que Adam (1985) emprega na sua concepção que, embora de raiz bakhtiniana, deve bastante à formulação de Lintvelt (1981), o autor concreto é uma entidade do mundo capaz de, entre outras coisas que normalmente não sabemos, ter uma determinada experiência afectiva, intelectiva e cultural que directamente o leva a interessar-se pela literatura, a actuar, por hipótese, como transformador do horizonte de expectativas do leitor concreto (cf. Adam, 1985: 174).

    Eça é um caso que, quanto a esse aspecto, nos pode servir de exemplo, dado ser uma entidade histórico-cultural concreta que efectuou tal operação no universo específico da literatura e da cultura portuguesas, pelo menos. Não poderíamos postular a sua posição intencional no naturalismo, a subjacência de uma tese sobre a doutrina cristã e a natureza em O Crime, sem abordarmos a sua identidade histórica, politicamente empenhada.

    No entanto, a entidade autoral fundamental definida por Adam no mesmo local é a de autor abstracto. É ela que, de um modo geral, define a ideologia da obra (Adam, 1974:175). Contudo, é bom notar-se que se essa entidade resulta como momento final da actividade de escrita, ela depende também da construção feita pela leitura. Mas não podemos, ainda assim, cavar um fosso entre um autor concreto e historicamente determinado, e um leitor que escapasse, por ser uma entidade sobretudo discursiva ou mesmo textual, à actividade autoral concreta.

    Entre o autor compreendido como aquele que escreve e o “eu que apenas se manifesta nos seus livros”, como defende Proust em Contre Sainte-Beuve (cf. Adam, 1985:174), existe o autor-leitor que constrói a sua intencionalidade literária lendo outros e lendo-se a si; transformando e assimilando textos de outros e os seus próprios; persistindo num trabalho de escrita e de reescrita que é forçar o seu querer-dizer como trabalho de escrita-leitura-crítica-reescrita – fundando uma rescrita que é, no fundo, um escrever novo no exercício só aparentemente repetitivo de escrever de novo.

    Só desse modo podemos perspectivar a actividade que vai da génese de um texto (os planos, os esboços – em Zola – as versões – em Eça)  que não é conjectural mas documentada (o material genético de Zola e de Eça), ao texto final que diz de outro modo o já anteriormente dito.

    Emile Zola (1840-1902)

    Se concordamos na quase totalidade com a posição de Foucault, quando diz que “a função autor é […] característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”[2], devemos notar que é a geração naturalista que dá a essa função um estatuto poderoso pelo menos na articulação argumentativa de uma ética profissional com os códigos de propriedade que os românticos defendiam.

    É ela que arranca a função à esfera mítica da criação espiritual, para a fazer coexistir com outras formas sociais de trabalho reconhecido, valorizável na sociedade capitalista como produto integrável no circuito das mercadorias – ou então como resultado de uma actividade procriativa, existindo como bem do mesmo modo que existe a prole. Quanto a este último aspecto é muito curioso o que Oliveira Martins diz de O Crime, considerando-o o único romance que Eça “trouxe no ventre” (cf. Fialho de Almeida, 1923:138). Por essas razões, embora pensemos que a função autor resulta parcialmente de uma mitificação, ou pelo menos de uma operação ideológica de fundamentos político-económicos desenvolvida na sociedade europeia a partir do romantismo, reconhecemos nela, também, uma realidade cultural, ética e psicológica.

    O romancista (ou qualquer outro escritor) empenha-se, de facto, dramática, emocional e cognitivamente, na produção da sua obra. Que isso não lhe dê direito de ser o guardião do seu sentido é perfeitamente aceitável, nos termos de qualquer crítica que tenha sido atenta aos argumentos do formalismo russo e do estruturalismo francês, pelo menos.

    Mas parece-nos que, apesar de tudo, o autor tem uma palavra importante a dizer sobre esse mesmo sentido. E isso, se é verdade para qualquer escritor, em qualquer época, mais verdadeiro se torna para uma geração como a naturalista, tão atenta à escrita como ofício, à circulação económica, cultural e retórica das suas produções.

    Enfatizamos essa dimensão da entidade autoral, tanto quanto isso nos é possível, num ponto que integramos dentro da questão da temática. Procuramos desenvolver aí a representação que os naturalistas faziam da entidade produtora do discurso, em paralelo com as concepções do mundo e as perspectivas ideológicas que os seus textos narrativos apresentam através das estruturas narrativas e segundo os processos de narração assumidos.

    Também na análise do nível da narração, a questão autoral surge de novo para aí tentarmos relacionar os dados do texto com a problemática da enunciação autoral. A atenção reduzida  que o nosso modelo de análise nos levou a dar às instâncias extra-textuais  conduziu-nos, quase sempre, à menção da entidade textual mais facilmente formalizável de narrador, mesmo quando o que estava em causa era o campo de cognição do autor – pelo menos de acordo com o que os cotextos das restantes produções dos autores em causa ou o contexto dos discursos da época nos deixavam perceber.

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    Entre um problema epistemológico de fundo que se nos colocava e a metodologia, que nos parece fundamental para estabelecer com o mínimo rigor os objectos-textos, optámos pela salvaguarda da última, em detrimento do primeiro. Registámos quando abordámos a narração, no entanto, a presença dos índices da entidade autoral que, provisoriamente, não tomámos em devida conta. Esbarramos, evidentemente, com a incómoda sobreposição que também Carlos Reis e Mª do Rosário Milheiro já tinham assinalado ao tratarem do material genético relativo a A Ilustre Casa de Ramires:           

    “Não se trata aqui de confundir o narrador extra-heterodiegético com o escritor Eça de Queirós, confusão que, no plano estrutural e semiodiscursivo seria inaceitável. Mas trata-se de sugerir que, no plano da criação literária propriamente dita – abarcando também o seu suporte expressivo, que é a elaboração estilística do discurso -, a esse nível, não pode deixar de estar presente o escritor Eça de Queirós, sujeito de uma escrita desenrolada no âmbito ontológico da realidade, mas potencialmente homóloga daquela outra escrita que, com o seu cortejo de hesitações, sacrifícios e artifícios, Gonçalo desenrola no domínio ontológico da ficção”. (Reis e Milheiro, 1989:111)

    Atendendo ao conjunto das razões acima apresentadas, tomamos a figura do autor tal como ela se constitui pelo próprio discurso autoral, quer no modo como se relaciona com a instância narrativa extra-heterodiegética  (o narrador, tal como ele emerge na semiótica de raiz estruturalista e, muito em   especial, na poética ou teoria narratológica de inspiração genettiana) quer na actividade paratextual que os próprios romances suscitam.

    Ou seja, atentamos muito especialmente no modo como o escritor ora se projecta no narrador ora o constrói como “voz”, a cautelosa distância, relacionando essa mesma enunciação com a das restantes vozes, ou com os pontos de vista variáveis que se manifestam na diegese – e procuramos ver como todo o trabalho autoral contextualmente colabora na construção do sentido, pela inserção  da dimensão scriptor ( o escritor como função, digamos) no espaço social, demarcando, aí, o lugar da sua obra, criticando outras obras, anunciando as suas a partir dos seus trabalhos preparatórios, fazendo saber os temas dos seus romances, respondendo a críticas e, muitas vezes, reescrevendo os seus próprios textos.

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    De facto, não temos podido desenvolver, por causa dos objectivos e  limites do nosso trabalho, uma abordagem que tenha em conta uma teoria da enunciação na narrativa (uma teoria da narração em sentido pleno) como base dominante, optámos por problematizar a entidade autoral todas as vezes que a questão se nos colocou como iniludível, em duas dimensões fundamentais: a da função autor, atendendo sobretudo à  teses de Foucault e de Bakhtine, e a da articulação dessa função com a actividade historicamente determinada do escritor.

    Tal abordagem revela-se quase sempre pertinente quando, ao observarmos os mecanismos textuais, os interrogamos na sua dimensão retórico-pragmática como componentes do discurso, ou seja, a prática social e historicamente determinada da língua, numa prática retórico-discursiva caracterizável.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Adam, Jean-Michel, 1984, Le Récit,PUF, Paris

    Adam, Jean-Michel,   1985, Le Texte Narratif, Nathan, Paris

    Almeida, Fialho de, 1882, ed. cons., Figuras de Destaque, Clássica, Lisboa, 1923

    Bal, Mieke, 1987, Teoría de la Narrativa,Cátedra, Madrid

    Bloom, Harold, 1973, The Anxiety of Influence, University Press, Oxford

    Deleuze, Gilles, 1969, Logique du Sens, ed. cons., UGE-10/18, Paris, 1973

    Foucault, Michel, 1969, Qu-est´ce qu-un Auteur? – ed. cons., O Que é um Autor?, Vega, Lisboa

    Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil,  Paris 

    Lintvelt, Jaap, 1981, Essai de Typologie Narrative, Corti, Paris

    Mignolo, Walter, 1989, “Teorías Literárias o Teorias de la Literatura?” in Reyes, G.(org.) Teorias Literarias en la Actualidad, El Arquero, Madrid

    Reis, Carlos e, Mª do R. Milheiro,1989, A construção da narrativa Queirosiana.IN/CM, Lisboa


    [1] Deparamo-nos aqui, em nosso entender, com uma dualidade que, desde Platão, perturba e fascina a reflexão sobre a mimesis entendida como imitação-representação. Comentando a crítica platónica aos “maus” produtos da imitação, Gilles Deleuze apresenta deste modo a dualidade segundo o filósofo grego: “a cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro uma imagem sem semelhança. O catecismo, fortemente inspirado pelo platonismo, familiarizou-nos com essa noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança, mantendo, no entanto, a imagem. Tornámo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. A observação do catecismo tem a vantagem de colocar o acento no carácter demoníaco do simulacro” (1969: 352)  

    [2] “O que é um autor? », Boletim da Sociedade Francesa de Filosofia, 63º ano, n.º 3, julho-setembro de 1969, pp. 73-104. (Sociedade Filosófica Francesa, 22 de fevereiro de 1969; debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl.) Dits Ecrits Tomo I texto n°69

  • Sartre e o cinema: notas para uma investigação

    Sartre e o cinema: notas para uma investigação


    Jean-Paul Sartre relacionou-se, de várias formas, com o cinema. Não o fez sistematicamente, nem com constância. Dado que foi a vários níveis que esse contacto se deu, de modo muitas vezes não explícito, parece-nos que é possível abordar as relações de Sartre com o cinema segundo duas perspectivas principais, ou seja, que melhor se harmonizam com o objecto a analisar.

    Uma, panorâmica, que tenderia a fornecer uma perspectiva geral dos diversos tipos de aproximação que o filósofo francês praticou relativamente ao cinema; e outra que, procedendo por eleição de uma dominante, privilegiasse um desses tipos, tornando-o central.

    Jean-Paul Sartre (1905-1980)

    Uma abordagem como esta segunda, tomaria, obviamente, as outras formas de contacto como secundárias ou até, mais organicamente, subsidiárias da dominante. Até certo ponto, é a este segundo modelo de abordagem que damos preferência, procurando compreender o modo como a importância atribuída pelo escritor ao cinema, notória, mesmo quando não explícita, em momentos e tipos de textos privilegiados de crítica literária, condicionou e influenciou a sua reflexão poética.

    Numa perspectiva mais complexa, mas, também, mais rigorosa e completa, parece-nos importante dar atenção a esse processo de condicionamento e de influência encarando-o como uma prática em que o escritor tem uma função activa, na recepção do novo meio.

    Sublinhamos, assim, o modo pelo qual o escritor Sartre se assenhoreou dos mecanismos discursivos do cinema, assumindo-os como procedimentos relevantes de uma poética da narrativa, capaz de entrar em diálogo com as que se forjaram a partir da literatura ou do teatro, e de sugerir a renovação dos procedimentos da narrativa verbal, nomeadamente a romanesca.

    A opção por tal perspectiva deve-se ao facto de que nos parece ser importante ter em conta, na obra do escritor, a sua relação privilegiada com a palavra e o texto ficcional verbal. Assumimos, quando nos colocamos nessa perspectiva, que o elemento linguístico foi dominante, ou mesmo exclusivo, como elemento material, na actividade criativa de Sartre, e consideramos, em acréscimo, que sobre o poder representativo da palavra se debruçou atentamente o Sartre crítico e teorizante.

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    Ora, é tendo em atenção essa predominância que tomamos, como aspecto fundamental, sobretudo, o modo como o cinema inspirou ou ajudou a construir algumas das mais importantes conceptualizações do autor relativas à criação literária e, sobretudo, romanesca.

    Acreditamos ser possível seguir um percurso paralelo ao nosso e verificar como, nas próprias criações literárias de Sartre, a narrativa se encontra marcada pelas leituras que o romancista terá feito, consciente e mesmo inconscientemente, do cinema e dos esquemas narrativos que ele patenteia como novidade para a arte do relato ficcional.

    Contudo, acreditamos, até certo ponto, que essa prática não teria sido tão inspiradora e marcante para as vanguardas literárias como a sua actuação como crítico. Utilizando um exemplo, com muita brevidade e esquematismo, dado que voltaremos a ele adiante, como questão central da nossa argumentação, podemos dizer que é a leitura, enquanto crítico, que Sartre faz do romance americano, de Dos Passos, de Faulkner, de Hemingway ou de Sherwood Anderson, bem como o seu modo de ler “negativamente” La fin de la nuit, de Mauriac, ou entusiasticamente L’étranger, de Camus, que marca profundamente a inflexão tomada, daí em diante, pela narrativa literária francesa e, em eco, eventualmente, a narrativa de alguns escritores de países europeus e mesmo americanos – não tanto os dos Estados Unidos, é claro, como os da América Latina.          

    Por outro lado, parece-nos oportuno lembrar, desde já, um texto de Sartre que nos remete para uma espécie de equação, para algo similar ao desenvolvimento de uma fórmula racional a partir de um certo número factores dados, que nos sugere, por comparação, quase figurativamente, aquilo queremos apresentar como sendo o seu modelo privilegiado de reflexão poético-crítica.

    É a um texto de Les mots que recorremos, por isso, antes de mais, dado aí ser central, para o narrador autodiegético, a relação do homem de palavras com os outros discursos, sobretudo os não verbais, ou com aqueles que só parcialmente o são.

    Tudo isto, é claro, num processo de autobiografia reflexiva, incidindo, principalmente, sobre o “nascimento do escritor”. Não só emerge, no culto do cinema, uma visão da sociedade, das hierarquias e das classes, apreendida quase como um imperativo categórico de raiz emocional e afectiva, que permite ao autor afinar as categorias discretas do mundo, como se evidencia o culto da palavra, na sua demarcação e promiscuidade relativamente à imagem fílmica[1]. Somos quase levados a identificar, nos termos dessa paradoxal adesão, o oximoro de raiz afectiva.

    “Ao meu defunto pai, ao meu avô, familiares dos balcões de segunda, a hierarquia social do teatro dera o gosto pelo cerimonial: quando muitos homens estão juntos, cumpre separá-los por meio de ritos, ou então há chacina. O cinema provava o contrário, […] o seu público tão mesclado parecia reunido por uma catástrofe. […] Vi Zigomar e Fantomas, As proezas de Maciste, Os Mistérios de Nova Iorque: as douraduras estragavam-me o prazer. O Vaudeville, teatro fora de função, não queria abdicar da sua antiga grandeza: até ao derradeiro minuto, uma cortina vermelha de borlas de ouro mascarava a tela; davam três batidas para anunciar o começo da representação, a orquestra tocava uma ouverture,o pano levantava-se, as luzes extinguiam-se. […] Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte me pertencia, como a todos. Éramos, eu e ela, da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze e não sabia falar. […] Inacessível ao sagrado, eu adorava a magia: o cinema era uma aparência suspeita que eu amava perversamente pelo que ainda lhe faltava. Aquele fluxo rumorejante era tudo, era nada, era tudo reduzido a nada […]; mais tarde, as translações e as rotações dos triângulos lembravam-me o deslizar das figuras sobre a tela, amei o cinema até na geometria plana. Do preto e do branco, eu fazia cores eminentes que resumiam em si todas as outras e só se revelavam ao iniciado; encantava-me o invisível. Acima de tudo, gostava do incurável mutismo dos meus heróis. Ou antes: não eram mudos, já que sabiam fazer-se compreender. Comunicávamos pela música, era o rumor da sua vida interior. A inocência perseguida não se limitava a exprimir ou a mostrar a sua dor, impregnava-me dessa dor com a melodia que saía dela; eu lia as conversas mas ouvia a esperança e a amargura, surpreendia pelo ouvido a dor altiva que não se declara. […] não era eu aquela jovem viúva que chorava na tela, e, no entanto, ela e eu tínhamos uma só alma: a marcha fúnebre de Chopin[…]. Como eram felizes aqueles caw-boys, aqueles mosqueteiros, aqueles polícias: o futuro deles estava ali, naquela música premonitória, e governava o presente, um canto ininterrupto confundia-se com as suas vidas arrastava-os para vitória ou para a morte […] o entrecruzamento de todas essas imagens, de todas essas velocidades e, em baixo, a corrida infernal da «Corrida para o Abismo», trecho extraído da Danação de Fausto e adaptado para o piano, tudo isso era uma só coisa: o Destino.[…] Decidi perder a palavra e viver em música” (s/d [1964]: 90-93).

    Uma tão longa citação justifica-se. De facto, parecem-nos estar patentes, nos enunciados que recolhemos de um excerto bastante coeso, do livro de Sartre que mais se assemelha a uma autobiografia, dois aspectos centrais de uma reflexão poética, que, conjecturamos, o filósofo francês terá aprendido como espectador de cinema: o facto de uma forma de linguagem ficcional ou mimética estar em estreita relação com os códigos e valores culturais que lhe enformam a enunciação; e a evidência de a narrativa  cinematográfica ser contrapontística e temporal, ou seja, assentar no valor opositivo e dinâmico da montagem e da sequencialidade das imagens visuais, de tal modo que se lhe afigura  como semelhante à sintaxe musical – confundindo-se mesmo com esta.

    A imagem mental percebida no cinema é, assim, uma espécie de despojo diurno, retalho de ícones, acções e falas, de que se alimenta o próprio devaneio fantasista do narrador autobiográfico, como ele reconhece algumas páginas adiante, no mesmo texto, quando se recorda de si próprio, na infância, encarnando heróis extraordinários, em mímica solitária, na penumbra do quarto onde a mãe tocava piano (p. 94).

    Tudo se passa, aparentemente, como se a enunciação cinematográfica se originasse num dizer proveniente de um “fluxo rumorejante” que “não se limitava a exprimir ou a mostrar a dor” da personagem, mas, sobretudo “impregnava” o narrador da “dor com a melodia que saía dela”. Além do mais, parece-nos curioso reter o facto de o fluir das imagens se associar à música, sendo representado por estas, no imaginário de Sartre, um sistema de referências de valor mítico. O facto é tanto mais curioso quanto, no seu texto, L’imaginnaire, a imagem cinematográfica não ser referida pelo filósofo francês, sendo, curiosamente, a da música valorizada como representação preferencial do devaneio, logo a seguir ao teatro e à pintura.  (cf. Sartre, 1966: 150 e 362-371).

    Essa substituição – metafórica, do nosso ponto de vista – preconiza, num funcionamento que resumimos sob a designação conceptual de premonição esquemática, o modo como se torna inconsciente, ou mesmo recalcada, a aprendizagem do modelo de enunciação que acima referimos. O entendimento do cinema que Sartre desenvolve, desde a infância, enquanto forma expressiva que marca profundamente o seu discernimento estético, assenta no modelo que a memória narrativa de Les mots desenterra da do passado.

    Esse esquema associativo funciona, nele, como um imperativo categórico: dita-lhe um modo de conceber e entender o tempo e o ritmo da narrativa, ou até mesmo a instância enunciativa da narrativa romanesca, mas mantém-se “i-nomeado”, como que em ângulo cego, ou inconsciente. É como se o emergir teórico do seu discernimento, educado pelo cinema, mantivesse, em amnésia, a matéria em que o seu critério poético se funda funcionando como premonição esquemática. Julgamos útil darmos um exemplo do modo como se evidencia essa sua aprendizagem, mesmo quando não diz a sua origem, de acordo nossa congeminação de o Sartre crítico e teórico da literatura ser, como leitor, um atento observador das formas e dos procedimentos do cinema, incorporando a poética do filme numa recepção activa, mesmo quando não explícita.

    Assim, tendo em vista reforçarmos o nosso argumento, parece-nos avisado citar alguns passos da apreciação crítica que o escritor francês faz de alguns romancistas, sobretudo americanos. Sobre John Dos Passos, por exemplo, afirma [1938]:

    “Fez tudo para que o seu romance parecesse apenas um reflexo [porque] a sua arte pretende ser demonstrativa […]: mostrar este mundo, o nosso. Mostrá-lo simplesmente, sem explicações nem comentários” (Sartre, 1968: 14). A tónica é colocada num determinado processo de enunciação que Sartre parece ter sido dos primeiros, entre os críticos franceses, a realçar como procedimento narrativo específico, moderno e valorizável pelas características que o distinguem. Antes de o nomearmos, para melhor o distinguirmos, convém observar como ele é recorrente, ainda que matizado, nos textos de crítica literária do escritor francês. Assim, por exemplo, sobre o modo de Dos Passos apresentar os acontecimentos, diz-nos o crítico: “O acontecimento do romance é uma presença inominada: não se pode dizer nada dele porque se está a fazer […]: em nenhum momento se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada[…]. Mais um passo e tornaríamos a encontrar o famoso monólogo do idiota de O som e a fúria. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível” (1968: 16-17). De tal modo o predomínio do mostrar é decisivo como técnica detectada pelo crítico que, mesmo quando julga vislumbrar a opinião, ele a vê como que emergindo sob o regime do cénico no sentido luboquiano do termo, forma do espectáculo mostrado mas não dramatizado (cf. Lubbock, 1926: 67-69). Assim, lemos em Sartre: “Dos Passos finge que nos apresenta gestos como acontecimentos puros, como simples exterioridades, os livres movimentos dum animal. Mas é apenas uma aparência: de facto adopta a opinião pública para nos expor o ponto de vista do coro” (1968: 20).

    black and white lamp with tripod

    A expressão final do enunciado acima citado fornece-nos a designação do conceito que aqui está em causa, como categoria fundamental do processo narrativo: o ponto de vista.

    A questão de fundo que, quase sempre, se coloca, relativamente ao ponto de vista ou focalização, é a da localização e amplitude gnómica da perspectiva adoptada. Podemos ainda acrescentar, depois do conhecimento que a narratologia desenvolveu sobre a matéria, desde os anos 30 do século passado até hoje, que é quando a perspectiva ou focalização se torna restrita, quando ela corresponde ao exercício tecnicamente vigiado de uma tomada vistas, que a questão se torna conceptual e teoricamente interessante para o romance. É então que o romancista procede tal como a fotografia ou o cinema fazem, inevitavelmente, para existirem simplesmente.

    Ou melhor, para nos situarmos no cerne da questão tal como ela é vivida por Flaubert, Henry James e, em geral, o romance modernista de pendor mais ou menos naturalista: o que está em causa é o assumir, pela narrativa, da perspectiva monocular, já com um passado clássico na pintura, e reformulada, como problemática actual para os artistas do século XIX, sobretudo de Courbet a Cézanne.

    Com essa problemática são incorporados, como tópicos importantes para a narração, todas os motivos e conceitos que esse aparato de visão do mundo arrasta, sobretudo depois da afirmação da sua modalidade de dispositivo mecânico tal como emerge sob a forma de câmaras fotográficas e, mais tarde, de cinema.

    Sem enunciar nunca esse mecanismo, comentando sempre as narrativas que critica como se nunca lhe ocorresse o funcionamento dessas máquinas óptica feitas exclusivamente para captarem espaços, gestos e cenas como pontos de vista singularizados e neutros, Sartre parece falar delas em perífrases.

    Numa crítica ao romance Sartoris,de Faulkner, contemporânea da que citámos acima, sobre Dos Passos, datada também de 1938, diz-nos Sartre: “[…] Deixei de poder aceitar o homem de Faulkner, é um trompe-l’œil. É uma questão de iluminação. […] Quando esperamos tempestades são-nos mostrados gestos, demoradamente, minuciosamente. […] Aqui, os gestos (calçar as botas, subir uma escada, montar a cavalo) não pretendem mostrar, mas esconder. Observamos tudo o que possa revelar a perturbação […] mas os Sartoris nunca se embriagam, nunca são atraiçoados pelos gestos” (1968: 7-8).

     Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

    A omissão que Sartre pratica, relativamente às máquinas de captar imagens, parece-nos formular-se como gritante ausência num discurso tão cheio de dissimulação como o que ele encontra em Faulkner: tudo se passa como se as longas descrições que faz, do modo como os romancistas americanos praticam as captações gestuais e cénicas, servissem mais para ocultar o mecanismo implícito como modelo do processo de construir a focalização, do que para o revelar. 

    O texto que escreve em 1968, sobre L’engrenage, que publicou como guião, em 1948, revela que ele próprio reconhecia que a técnica do ponto de vista apontava para uma ligação entre o cinema e o romance: “O argumento de L’engrenage foi escrito em 1946. O que me divertia, inicialmente, era transpor para o ecrã uma técnica que os romancistas anglo-saxónicos utilizavam frequentemente antes da guerra: a pluralidade dos pontos de vista. A ideia estava no ar… No filme que eu imaginava não só a cronologia se encontrava alterada como a própria personagem, Hélène, aparecia sob aspectos exteriores diferentes, de acordo com o ponto de vista que a apresentava” (1996: contracapa).

    Não está Sartre a falar do procedimento básico do cinema, quando fala da pluralidade de pontos de vista? Não seria extraordinário que o fizesse, dado que, além do guião já citado, que nunca foi posto em filme, Sartre escreveu alguns que foram realizados cinematograficamente, nomeadamente, Les jeux sont faits, de Delannoy e Freud, de John Huston.

    O que nos parece curioso e sintomático é que Sartre, sendo obviamente um intelectual conhecedor do cinema e dos seus mecanismos, fale da transposição para o ecrã da pluralidade dos pontos de vista, depois de Citizen Kane (1941), como se fosse sugestão sua. Inverte o percurso, mesmo em 1968, daquilo que toda a crítica, já então, seguindo as próprias sugestões críticas do Sartre de 1938, considerava, pelo menos desde Claude-Edmonde Magny em L´age du roman americain, uma influência decisiva do cinema sobre o romance.

    É claro que poderá ser evocado, aqui, o precedente da crítica anglo-saxónica, quando preconiza, desde Henry James, que “a arte do romance começa apenas quando o romancista pensa na sua história como uma matéria a mostrar, de tal forma que ela se contará a si mesma” (Lubbock, 1926, 62; cf Bourneuf e Ouellet, 1976: 109-110) ou quando preconiza que “o autor” pode falar “através de uma das pessoas do livro” (Lubbock, 1926, 68).

    Essa será, aliás, a tónica de Sartre quando avalia a arte de Mauriac, negativamente [1939]. Vale a pena citar um passo para que se veja o fundamento da apreciação: “A  consciência da protagonista [que Mauriac apreesenta – Thérèse] representa o binóculo graças ao qual o leitor pode lançar uma olhadela ao mundo romanesco e a palavra «ela» dá a ilusão dum recuo do binóculo; lembra que esta consciência reveladora é também personagem de romance, representa um ponto de vista privilegiado e realiza para o leitor este voto caro aos amantes: ser ao mesmo tempo ele próprio e outro distinto de si […] Mauriac aproveita-se desta indeterminação para nos fazer passar insensivelmente dum ao outro aspecto de Thérèse […]: «Ela não podia não ter consciência da sua mentira: contudo apoiava-se nela». Esta frase mostra bem a traição constante que Mauriac exige de mim” (Sartre, 1968: 37-38).

    wooden ladder by bookshelves

    Este excerto é de extrema importância para os factos que aqui queremos observar, por ser representativo de duas tendências que se conjugam, em Sartre, de modo extremamente problemático: a tendência tradicional da crítica francesa, e a nova tendência, que se constitui como prelúdio àquilo que Barthes virá a chamar nouvelle critique. A primeira tendência subdivide-se em duas frentes: a académica e a impressionista.

    A primeira dessas frentes preocupava-se, sobretudo, com a génese das obras, ou com a dimensão filosófica que a obra teria na época que a vira nascer, e a segunda atendia, sobretudo, aos aspectos morais ou psicológicos. Quanto à nova tendência, tal como o fará, alguns anos mais tarde, o estruturalismo emergente da nouvelle critique, interessava-se pelos problemas postos pela questão ponto de vista na narrativa.

    Deve notar-se que esta última tendência, nos anos 30 do século XX, ainda era pouco mais do que novidade na crítica anglo-saxónica, e ainda estava incipientemente teorizada pelos formalistas russos. Ora, Sartre julga as dimensões genéticas, filosóficas, éticas e psicológicas do romance de Mauriac, praticando os objectivos da tradição, mas, para o fazer, aplica observações que se fundamentam, sobretudo, na sensibilidade que crítico tem à manipulação do ponto de vista.

    Não nos deve ser indiferente registar, também, acompanhando ainda essa mesma ordem de ideias, que, alguns anos depois da publicação dos artigos de Sartre sobre os romancistas americanos e Mauriac, que acabamos de citar com alguma brevidade, se multiplicam “os artigos assinados por Albert Laffay e Doniol-Valcroze” que enfatizam, sobretudo, a questão do ponto de vista.

    O que é digno de registo, em sequência do que vimos argumentando, é o facto de se constatar que esses artigos são “frequentemente influenciados pela filosofia sartriana” e, simultaneamente, “inspirados pela estética comparada do romance e do cinema” (Bourneuf e Ouellet, 1976: 111).  

    Bourneuf e Ouellet registam ainda como importante concomitância aos fenómenos acima referidos, para enfatizar a importância crescente do interesse pelo estudo do ponto de vista na narrativa, a publicação de L’age du roman américain de Claude-Edmonde Magny, em 1948. De facto, a primeira metade dessa obra intitula-se «Romance americano e cinema» e, nela, podemos encontrar muitos argumentos que parecem decorrer directamente das observações que Sartre havia feito uma década antes sobre o romance americano.               

    Para terminarmos estas notas, que ficarão apenas como um roteiro para uma futura investigação, gostaríamos de relembrar, algumas palavras de Sartre sobre Dos Passos que acima citámos, para as confrontarmos com outras e, em seguida, comentarmos os dados observáveis nesse confronto: “[nunca] se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada […]. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível”.

    Acrescentaríamos a esta palavras, aqui reformuladas em síntese, os seguintes comentários de Sartre sobre Camus: “O que [Camus] aproveita de Hemingway é, portanto, a descontinuidade das suas frases cortadas que se ajusta à descontinuidade do tempo.

    Agora compreendemos melhor o estilo da sua narração: cada frase é um presente” (1968: 103). As palavras de Jean Bloch-Michel que, entre outros romances modernos, comentam L’étranger, de Camus, procurando apresentar os   denominadores comuns ao romance moderno, poderiam servir de comentário historicamente reflectido às sugestões de Sartre: “O cinema criou uma nova espécie de narrativa que tem, nomeadamente, como particular, o facto de a sua sintaxe  comportar apenas, pela força das coisas, um modo e um tempo: o indicativo presente […] Todas estas características da narrativa visual se encontram na literatura de hoje. Antes de mais esse obsessivo presente do indicativo que é o único tempo utilizado, aliás, e a cuja monotonia fatigante se acrescenta a da apresentação objectiva dos factos” (1963: 97-98).

    turned on projector

    Uma tal proposta crítica, apresentada já em época de aprendizagem da nova crítica, na qual já se esboça a referência, enquanto horizonte, ao estruturalismo, ecoa, de algum modo, um comentário feito por Sartre a Camus, no texto já por nós citado, publicado, originalmente, vinte anos antes: “o procedimento de Camus é muito rebuscado: entre as personagens de que fala e o leitor, Camus intercala um tabique de vidro. […] O vidro parece deixar passar tudo e só intercepta uma coisa, o sentido dos gestos. Falta escolher o vidro: será a consciência do Estrangeiro. É, com efeito, uma transparência: vemos tudo o que ele vê. Simplesmente, foi construída de maneira a ser transparente para as coisas e opaca para os significados […]. Alguns homens dançam atrás de um vidro. Entre eles e o leitor interpôs-se uma consciência, quase nada, uma pura translucidez, uma passividade pura que regista todos os factos” (1968: 101-102). Este vidro não poderia ser o da objectiva e, então, o modo de Sartre falar nele apresentar-se como outro circunlóquio, no qual o objecto obsessivamente latente fica, mais uma vez, esquecido? 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bloch-Michel, Jean, 1963, Le présent de l’indicatif, Gallimard, Paris

    Bourneuf, Roland, e Réal Ouellet, 1976, O universo do romance, Almedina, Coimbra

    Lubbock, Percy, 1926, The Craft of Fiction, The Travellers’ Library, London

    Sartre, Jean-Paul, s/d [1964], As palavras, Unibolso, Lisboa

    Sartre, Jean-Paul, 1966, L’imaginaire, Gallimard, Paris

    Sartre, Jean-Paul, 1968, Situações I, Europa-América, Lisboa

    Sartre, Jean-Paul, 1996, L’engrenage, Folio/Gallimard, Paris   


    [1]  Citamo-lo, como os outros textos do autor que aqui apresentamos, em português, pela maior homogeneidade que o uso de uma só língua permite ao discurso expositivo.

  • O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool

    O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool


    Teria muitas maneiras possíveis para começar a falar das relações entre o vinho e a literatura, evocando a sumptuosidade do passado que me desse a razão pelo seu prestígio de todos os textos; porém, ocorre-me, com persistência irracional e, por isso, respeitável, a Odisseia, que atribuímos a um autor mais ou menos mítico: Homero.

    Não é tanto a figura mais importante da história contada que nos ocorre, no entanto. É um outro ser primevo, titânico, com o qual Ulisses (ou Odisseus) se confronta que nos parece justo evocar em primeiro lugar. Nele se resume, parece-nos, a oscilação imaginária que o vinho evoca na literatura: o movimento entre a alegria e a fatalidade.

    people tossing their clear wine glasses

    De facto, Polifemo, o ciclope, tal como nos aparece na narrativa das épicas viagens, embora não seja personagem de prolongada presença, é entidade de um percurso vastíssimo. Sendo primeiro a potestade que aprisiona os viajantes, ele transforma-se, por aceitar o delicioso néctar que Ulisses lhe oferece, naquele que exulta na alegria da embriaguez, adormece na segurança ingénua de um poder que não se reconhece em risco, e desperta na angústia de se ver ludibriado e cego.

    Terá Polifemo atingido a visão suprema, a inteligibilidade da mente em comunhão com o supremo saber, o deleite jubilatório do contacto com o divino? Nunca o viremos a saber. Contudo, parece ser esse um dos apelos fascinantes que o álcool lança: passar uma ponte, sofrer uma perda irreparável e chegar a um lado qualquer a um encontro decisivo cujo esplendor dificilmente se comunica aos outros.

    Tudo se passa como se um vislumbre de plenitude inundasse o ser embriagado, mas, em consequência, este perdesse as referências da sensibilidade visual. Resta o inefável do tacto, do odor, do paladar, como se os sentidos se dispersassem por todo o corpo, e este palpitasse na confusão de um caos vertiginoso.

    Mosaico na Villa Romana del Casale retratando Ulisses dando vinho a Polifemo.

    Omar Khayyam, poeta persa nascido há pouco menos de mil anos, escreveu numa das suas maravilhosas quadras (ou Rubayat, designação da forma estrófica que dá nome, segundo a tradição, ao livro que nos deixou):

                            Quando oiço falar em coisas ditosas

                             De que gozarão os Eleitos, respondo apenas:

                             “Creio no vinho e no dinheiro contado!

                             O som do tambor só me agrada à distância…”

    Tal posição, que nos revela quanto há de religioso, ou, pelo menos, de místico, no vinho, merece ser considerada atentamente. Ela mostra-nos não só quanto o sujeito poético acredita na perfeição do universo a que o vinho dá acesso, numa racionalidade que tem paralelo, apenas, na que evoca o dinheiro, mas também quanto na bebida alcoólica se encontra de impulso para a criação imaginária.

    Contudo, antes dele, os poetas gregos e latinos não tinham uma visão tão parcialmente favorável acerca do vinho. Se, por um lado, gabavam o néctar que provinha dos reinos de Baco, por outro reconheciam como o uso do vinho podia ser indício ou mesmo origem da destruição e da decadência. Mil anos antes de Omar Kahyyam, há pouco menos de dois mil, portanto, Juvenal cantava em pequenos poemas satíricos o triste espectáculo que os ricos davam nos jantares em que se empanturravam e embriagavam.

    Na vida dos escritores, segundo nos revelam algumas biografias, o álcool foi muitas vezes um elemento decisivo, mas ambivalente: nele procuraram inspiração e consolo autores como Faulkner, Hemingway, Sartre ou Carlos de Oliveira. Por ele quase todos se vieram a destruir. E quase todos tiveram a consciência da ambivalência que se desenvolvia na bebida.

    Ernest Hemingway

    Hemingway, por exemplo, encontra no vinho um motivo central para muitas das histórias que situa em Espanha. Contudo, sabe tirar proveito desse mesmo motivo para desenvolver o percurso passional de muitas das suas personagens através do modo como bebem, das bebidas que bebem, das quantidades que ingerem.

    Reconheçamos que, apesar de tudo o que dissemos, não é apenas como bebida que o vinho surge na literatura. Nem é desse modo, julgamos, que ele aparece como grande tema. O cultivo da vinha, a produção agrícola que está na origem da bebida, são motivos centrais na criação de universos de vivência e de conflito de algumas das mais importantes narrativas modernas, quer nos lembremos de autores portugueses quer evoquemos autores estrangeiros.

    Não nos sendo possível enumerar todas e apresentá-las num breve resumo, limitamo-nos a referir-nos a algumas que nos parecem mais importantes, não só pela grandeza dos autores evocados, como pelo facto de serem, de um modo geral, escritores que foram muito bem acolhidos pelos leitores.

    Antes de mais, parece-nos justo lembrar, pelo valor quase emblemático que teve na literatura americana, de modo a ter-se tornado uma obra de amplo acolhimento mundial, traduzida para dezenas de línguas, As vinhas da ira, de John Steinbeck. Neste romance, nunca a vinha é representada como o valor positivo, produtora do fruto que dá alimento e prazer aos homens.

    Capa da primeira edição de As vinhas da ira, de John Steinbeck, publicado originalmente em 1939.

    Ao contrário, a planta e mesmo o fruto de onde é extraído o néctar que, segundo o texto bíblico, devia significar e estimular a paz e a concórdia entre os homens, aparece como o símbolo do trabalho agrícola mecanizado, objecto para onde convergem interesses, ganância e esperanças defraudadas, acabando o território onde cresce a vinha por ser palco do explodir de todos os ódios e rancores que os intervenientes acumulam ao confrontarem-se.

    Até certo ponto, a vinha como palco da luta social, a produção agrícola que culmina no vinho como mecanismo onde se revelam os confrontos sociais, tal como é tratada por Steinbeck, deve ter sugerido a Alves Redol o motivo de base uma das mais curiosas narrativas por ele produzidas. Referimo-nos aos romances que ele escreveu sob a designação geral de Ciclo Port Wine.

    Caso único na sua obra, o autor desenvolve os trágicos confrontos sociais que marcaram as relações sociais de trabalho na época salazarista em três volumes, como uma epopeia organizada em tríptico. Por outro lado, caso raro na obra do romancista, ele sai do universo ribatejano e procura como quadro da intriga que desenvolve em três amplos painéis, a região do Douro vinícola. Os romances são, por ordem na trilogia, Horizonte cerrado (1949), Os homens e as sombras (1951) e Vindima de sangue (1953).

    Trilogia do denominado Ciclo Port Wine, de Alves Redol, publicado entre 1949 e 1953.

    É interessante registar que, quase pela mesma época, um outro grande escritor português, Miguel Torga, abordava os trágicos confrontos humanos na região duriense, no seu romance Vindima (1945). Ligado a um movimento literário anterior ao neo-realismo a que Alves Redol pertence plenamente, Torga aproxima-se, no desenvolvimento das paixões humanas que desembocam no confronto violento, de alguns princípios daquele movimento literário.

    Contudo, é interessante e de notar que não é só esse abandono da posição alheia à dimensão sociopolítica que caracterizou, em geral, a obra de Torga que aqui se faz sentir: também é relevante que seja Vindima o único romance escreveu. Numa obra tão vasta, cultivando os mais variados géneros, esta excepção merece ser cuidadosamente anotada, embora não seja este o lugar para procurar tirar todas as conclusões que daí advêm.

    Na tradição portuguesa, as duas obras que referimos anteriormente merecem um destaque especial. Se o vinho é cantado com alguma brejeirice por poetas portugueses, entre eles o próprio Torga, ou referido como bebida celebrativa ou mesmo origem de desregramento de costumes no romance, como acontece nos banquetes dos padres em O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, a dimensão do vinho e da vinha como símbolo da condição humana aparece pela primeira vez plenamente desenvolvida nos romances de Torga e de Alves Redol.

    Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, foi originalmente publicado em 1947.

    Mereceriam ainda uma referência rápida algumas obras que, embora por razões que explicitaremos em seguida não cabem neste pequeno conjunto, se revelam importantes narrativas em que a problemática do álcool é abordada.

    Devemos registar, em primeiro lugar que a razão principal para não as termos escolhido como conjunto principal se deve ao facto de não tratarem do vinho propriamente dito, nem das tarefas relacionadas com a produção da bebida ou do cultivo do vinho.

    Mas sentimos que não poderíamos deixar de lhes fazer referência porque, pela qualidade e importância das obras, dentro da produção de autores que foram dos maiores da literatura mundial, seria um esquecimento quase imperdoável.

    O primeiro, até pela ordem cronológica, a merecer referência é A taberna (L´assomoir – o balcão, o lugar onde se bate, com os copos, com as moedas, com as mãos), de Zola. É na taberna que o grande autor francês do século passado apresenta o quadro das condições de vida das classes trabalhadoras em Paris.

    O segundo, respeitando ainda cronologia, é Terna é a noite, de F. Scott Fitzgerald, romance típico da geração perdida americana, dos anos 20 do nosso século, que narra como o álcool contribui para a desagregação de uma intensa relação amorosa.

    E o terceiro, último na referência para o destacar pela grandeza, é Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, intensa narrativa em que a bebedeira do “herói” se mantém ao longo de quatrocentas páginas. Por esta história, de inesgotável simbolismo, percebemos que a condição humana que a mescalina revela é mais do que existencial ou social: aponta já para a relação directa com os deuses, com as entidades do além, com os mistérios em que se encerra a morte.

    Professor Emérito da Universidade de Évora