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  • A alteridade africana e as demarcações ideológicas nas narrativas de Verne

    A alteridade africana e as demarcações ideológicas nas narrativas de Verne


    Na longa produção de Verne, a “África negra”, ao sul do Sara, é, muitas vezes, o palco da acção. Embora existindo como referente minuciosamente descrito – as partes que são importantes para a construção da diegese, entenda-se – tal continente não era conhecido de Verne, a não ser através dos manuais, compêndios, tratados de geografia e ciências naturais e relatos de viajantes que eram acessíveis aos estudiosos da época.

    É curioso verificar que, desse continente desconhecido para Verne, e mesmo mal conhecido pelos seus contemporâneos que apenas o abordavam parcialmente, surjam imagens de imensa justeza. Tal justeza, no entanto, deve ser entendida em três dimensões pelos menos: uma acurada descrição da dimensão física e geográfica, uma imensa preocupação pela compreensão – eivada de curiosidade e apelo do exótico – da dimensão etnográfica (e mesmo antropológica) e um esforço de equacionar esses conhecimentos na dimensão do ideológico.

    O que emerge desse esforço é um “primeiro olhar colonial pleno”, em que os “indígenas” surgem como entes entre o fabuloso e o digno de piedade – e o estatuto das personagens portuguesas aparece francamente oscilando entre o “nós e o outro”. Sem defender inteiramente as teses de Martine Astier Loutfi, parece-nos justa, não obstante, a sua observação de que “devemos colocar numa posição especial […]  Jules Verne, cuja obra, embora sem tratar especialmente a expansão colonial, contribuiu bastante para lhe  fornecer o acervo imagético” (1971: 51.

    A questão do descritivo em Verne, tal como se nos apresenta nos romances, pode ser tratada tendo em vista os processos verbais da representação do espaço, colocando no horizonte a questão ideológica. Escapar a tal abordagem, em dupla dimensão, seria, parece-nos, deixar de interrogar alguns aspectos do sentido pleno que é, na obra verniana, a relação do sujeito com o objecto, do nós com os outros, do eu com o mundo.

    Talvez tal interrogação não fosse tão importante em relação a outros escritores, mesmo do seu tempo, que apresentaram uma dominante do descritivo não menos decisiva do que a que encontramos em Verne. A razão da diferença reside, como pensamos ser evidente no decorrer da nossa argumentação, no facto de o mundo revelado pela descrição nos romances   vernianos ser essencialmente o da alteridade plena, o da relação de um sujeito nós totalmente caucionado pelos valores da comunidade (a ética, a ciência), com objectos do conhecimento – não só lugares, faunas e floras exóticas, como outros homens, sob cuja aparência humana se escondem, em princípio, a desumanidade, a selvajaria, a anarquia adversa aos valores indiscutíveis do nós.

    tree between green land during golden hour

    Cremos estar, quanto a esta matéria, perante a nítida representação sistemática (imagens, mitos, ideias e noções articuladas segundo uma lógica própria) da rede de “relação imaginária dos indivíduos com a suas condições reais de existência”. Contudo, se esta formulação segundo Althusser (1977: 107) pode servir de ponto de partida para uma definição de ideologia propomo-nos encarar, como perspectiva relativizante de um conceito tão avassalador, a vertente ideológica do signo como uma das suas possibilidades.

    De facto, partindo do princípio que nos oferece a proposta de Bakhtine, a correspondência mútua de signo e ideologia pode ser entendida não só como “tudo o que é ideológico é semiótico”, mas também como, inversamente, “tudo o que é semiótico é ideológico” (1977:27). Assim, quando  formula  o conceito de ideologema, apresentado como “conceito nebuloso” (1977:57), o semioticista russo parece enunciar, como já o referiu Marc Angenot (1984:120), uma configuração muito similar aos topoi retóricos – “conteúdos determinados e definidos pelo conjunto das máximas em que o sistema lhes permite figurarem”, sendo “o seu estatuto opinável identificável com a confirmação de uma representação social que eles permitem operar.(…) Estes ideologemas funcionam à maneira dos lugares (topoi) aristotélicos como princípios reguladores subjacentes aos discursos sociais a que conferem autoridade e coerência”.

    Ora, se o grau de generalidade dos “lugares” pode ser muito vasto, atingindo uma dimensão em que a historicidade quase se perde, a abordagem que aqui pretendemos fazer da ideologia em Verne buscará encarar na sua máxima historicidade as formulações tópicas. Assim, a ética, a ciência, a razão, valores de que os heróis vernianos são portadores, serão por nós evocados tendo em conta que, se para o sistema ideológico em que se inscrevem, tais valores eram como que eternos e imutáveis, para um observador desinserido desse sistema (mas não de outros  equivalentes – não temos essa ilusão), para um leitor colocado no lugar em que nos propomos nós próprios estar, tais valores são relativos a um sistema enformado pela lógica ocidental, judaico-cristã, imperialista e expansionista

    Tal formulação, que hoje faz parte das nossas evidências esclarecidas, tem, obviamente, a sua história no interior da História das mentalidades. Para um estudioso como Todorov, por exemplo, a visão da época de Verne pode ser vista como uma antecipação dos processos de globalização que hoje são agenda inadiável das políticas das grandes potências. Assim, o estudioso búlgaro desenvolve, sobre a ideologia cientista oitocentista do estado universal, uma análise que se poderia resumir, nas suas próprias palavras, ao seguinte: “A prazo, a humanidade constituirá assim, une sociedade única. É essa a tarefa do positivismo, única doutrine verdadeiramente universal, que ajudará os homens a avançar nessa direcção” (1989:45).

    Parece-nos possível, portanto, colocamo-nos na perspectiva crítica de quem observa os observadores vernianos na sua limitação eurocentrista, positivista, expansionista, típica do sistema ideológico que domina a acção científica em busca do conhecimento de territórios a civilizar, a democratizar, a ocupar. Para tal, procuraremos compreender quais os mecanismos de representação fundamentais, e as grandes linhas que permitem orientar a visão narrativamente construída, de modo a gerar um modelo em que, também pela ficção e pela mimese, o homem ocidental capta o universo que pretende dominar.

    O primeiro grande mecanismo ou dispositivo de representação que se nos patenteia, aquele que, por assim dizer, pela sua envergadura, parece subsumir os outros de que falaremos posteriormente, é a perspectiva panorâmica, devedora às técnicas pictóricas do naturalismo paisagístico oitocentista.

    Basicamente, uma técnica pictórica de perspectiva, estabelece, conceptualmente, três elementos teóricos de construção: um ponto onde assenta a visão (e se ela é mono ou multiocular); um espaço de passagem para essa visão (uma objectiva, um buraco, uma janela – um enquadramento visível ou invisível no objecto representado); e o objecto representado. Ora, as perspectivas panorâmicas que se desenvolveram no século dezanove, tendentes a envolver o observador no espaço representado, usavam, sobretudo quando se tratava de apresentar espaços distantes e desconhecidos dos europeus, um dispositivo relacional de perspectiva a que os críticos de arte ingleses chamam “bird´s–eye views” – que talvez pudéssemos traduzir por “panorama do olhar do pássaro”, ou, simplesmente, “visão panorâmica”[1].

    white and brown desk globe

    O modelo mais perfeito que conhecemos de tal perspectiva é a reprodução de dois quadros de Nestor L´Hôte, ambos chamados Panorama d´Egypte et de Nubie, mostrando cerca de mil quilómetro de curso de água e terras adjacentes – um, de 1841, sugerindo a visão do vale até ao Cairo a partir do troço entre a primeira e a segunda catarata; o outro, datado de 1878, sugerindo a visão em sentido contrário do mesmo “espaço geográfico real” (in  Gadalupi, 1997: 8-9).  Já se vê que tal visão a partir da posição do “olhar do pássaro” é uma ficção de perspectiva, fantasiando um lugar de perspectiva – não ocupado, de facto – para dar as imagens realistas de um espaço segundo um modelo intermediário entre as regras da figuração pós-renascentista (ainda que o a “moldura” de enquadramento seja o infinito) monocular, e as do desenho de projecção tendo como limites a respeitar as escalas cartográficas.

    Compreende-se que uma tal visão do mundo participa de duas esquematizações: a fantasia ideal de um lugar dificilmente ocupável no século XIX, e do seu visionarismo; e de uma especulação técnico-científica que, através de grelhas geodésicas, capta um mundo em que quase tudo o que está no seu interior, e lhe diz respeito, se perde.

    Este dispositivo de olhar encontra-se exemplarmente construído na obra liminar de Verne, cuja acção se situa em África: Cinq semaines en ballon (o início da série da Viagens Extraordinárias, que começa a sair na editora Hetzel, inicia-se com a publicação desta obra em folhetim, em 1862, e em livro, em 1863).  É o próprio herói que descreve o mecanismo miraculoso do olhar

    “…Mon ballon ne me manquera pas(…)Avec lui tout est possible; sans lui, je retombe dans les dangers et les obstacles naturels d’une pareille expédition; avec lui, ni la chaleur, ni les torrents, ni les tempêtes, ni le simoun, ni les climats insalubres, ni les animaux sauvages, ni les hommes ne sont à craindre! Si j’ai trop chaud , je monte; si j’ai froid je descends; une montagne, je la dépasse; un précipice, je le franchis; un fleuve, je le traverse; un orage, je le domine; un torrent, je le rase comme un oiseau! Je marche sans fatigue, je m’arrête sens avoir besoin de repos! Je plane sur les cités nouvelles! Je vole avec la rapidité de l’ouragan, tantôt au plus haut des airs, tantôt à cent pieds du sol, et la carte africaine se déroule sous mes yeux dans le grand atlas du monde!” (1977: 21).

    O mapa africano desenrola-se, como um espectáculo, como um produto do mecanismo de representação pensado em função da ciência e refinado em função da maravilha. Não seria possível dizer melhor, por outras palavras, o projecto linearizante da viagem. Demarcar-se, esquivar-se, manter-se à distância para obter a recta, essa utopia verniana que Chesneaux considera tão relevante:

    “Os caminhos de ferro ocupam um lugar privilegiado nessa longa meditação sobre a linha recta que são as Voyages extraordinaires; melhor do que qualquer outro meio de locomoção, simbolizam a aptidão da humanidade para percorrer o globo sem se desviar do seu objectivo, a envolvê-lo, a traçar nele a sua marca” (1982:68).

    Esquema simbólico fundamental, a linha, quer apareça sob a imagem do comboio, quer se defina pelo traçado de qualquer outro meio de locomoção, é por excelência a formulação de uma apropriação, de uma captura, de um princípio  da ordem a partir do centro. Notemos apenas, como hipótese sedutora, que, de acordo com tal análise, toda a exigência teórica do cinema, para a construção da perspectiva com mobilidade da objectiva, está já  pressentida em Verne, muito embora as  possibilidades técnicas do novo meio ainda estejam em embrião na sua época. Não podemos esquecer, neste ponto, a observação que Jacques Leenhardt faz, a propósito de La Jalousie de Robbe-Grillet: “Medir, agarrar, descrever, tais são os instrumentos do domínio da Terra – geometria -, instrumentos privilegiados do acto de olhar, no qual é necessário ver a origem de toda a narração, de todo o texto” (1973:48).

        Para lá de uma base mínima de definição de ideologia, enunciada essencialmente na sua dimensão política (visão das práticas do poder caucionadora dos seus processos de actuação), propomo-nos aceitar como válida, para uma melhor compreensão de como a ideologia funciona no texto, na superfície textual de que a descriçäo é um dos modelos privilegiados, a hipótese teórica de Hamon (1984:20) segundo a qual, mais do que dizer o que é ideologia importa sobretudo encarar no texto o efeito-ideologia.

    Segundo o mesmo autor, tal efeito é indissociável da construção e encenação de “aparelhos normativos” textuais incorporados no enunciado. Os modos de construção desses mesmos “aparelhos”, a sua frequência de aparição e intensidade variam de enunciado para enunciado, de acordo com condicionantes sócio-linguísticas variáveis, mas são identificáveis quase inequivocamente, como o tem mostrado a observação científica empírica, nomeadamente de Labov (cf. Hamon, 1984: 20). Quer seja o narrador digno de crédito (a voz sem contrapartida –  sem “paródia” – negativa) quer seja uma personagem em quem ele delega os valores fundamentais que regulam a credibilidade, o processo é de uma modalização avaliativa que emerge em determinados pontos do enunciado.

    Na perspectiva de Hamon que vimos seguindo, tais aparelhos avaliativos podem aparecer e ser detectados em “pontos textuais” particulares, privilegiados, sendo possível fazer deles um quadro teórico geral independentemente dos corpus manipulados (cf. Hamon, 1984:20). Do ponto de vista da abordagem ideológica da literatura, tais locais do texto podem considerar-se pontos nevrálgicos, pontos deônticos, pontos encruzilhadas ou focos normativos.

    Na sua tipologia das relações com o outro Todorov (1988:227) considera que existem pelos menos três eixos sobre os quais se podem colocar os problemas da alteridade: o do juízo de valor no qual funcionam os pontos modalizantes a que já fizemos referência, relativos ao dizer, o fazer, a estética e a ética – é, enfim, o eixo da axiologia; o eixo praxiológico, segundo o qual me aproximo ou afasto do outro, me identifico ou não com ele, o submeto ou sou submetido; e um terceiro eixo que se pode designar por epistémico, segundo o qual conheço ou ignoro a identidade do outro. Partindo dos aspectos gerais de uma tal tipologia, podemos dizer que toda a descriçäo que precede a viagem, de um modo sistemático em Cinq semaines mas de modo também evidente nos restantes romances é, em Verne, a utilização avaliativa do saber-dizer e fazer (logos) e do fazer na acção de relação (praxis).

    Colocada aquém da viagem, da prova fundamental que é a alteração de uma relação com o saber, sendo esta a experiência aventurosa segundo os passos dos pioneiros, de modo a confirmá-los ou a contestá-los, a série do saber-dizer e do saber-fazer desaparece ou diminui de importância como qualificação (a menos que seja um acréscimo redundante às competências dos heróis) entrando em funcionamento a série do epistémico, sobretudo se tem de se processar relativamente a novos elementos descobertos pelos viajantes, a partir do momento em que os heróis iniciam o percurso. O fazer deixa de ser aplicação para se tornar aprendizagem e conhecimento novo, no processo de formação.

    O modelo geográfico serve de base científica à congeminação teórica e poética que norteia a representação e demonstração da realidade etnográfica, política e ideológica, cuja observação é empírica e experimentalmente menos evidente do que a outra. Vai de arrastão, segundo o modelo geográfico. Assim, quando, nos primeiros parágrafos de Le village aérien, um dos protagonistas se pronuncia sobre a região africana em que se encontram, não hesita em determinar as fronteiras e limites desse mesmo espaço tendo como referência as fronteiras coloniais já existentes.

    O tema da conversa, entre dois amigos, o francês Max Huber e o americano John Cort, no primeiro capítulo do romance referido, é a “aquisição” para a “civilização” do espaço que, nesse momento, se encontram a percorrer. Como nos apercebemos rapidamente, desde os primeiros parágrafos do texto, tal território encontra-se cartografado, designado geodesicamente, mas não está integrado na civilização.

    Visando esse fim, Max avança com uma pergunta, que é todo um programa de cosmização: “Et le Congo américain?”. Com essa frase liminar, o herói de Verne gera um horizonte de utopia, como explica um pouco adiante: “Je le repète, en cette partie de l´Afrique, l´Union pourrait se tailler une colonie superbe.” Esclareça-se que os dois viajantes atravessam uma região pejada de perigos, no interior de uma carroça conduzida por um português “residente” na zona costeira do território, e ao lado deles vai um guia nativo. No exterior vão os carregadores do material necessário à expedição de caça.

    black elephant walking on brown sand

    A floresta exuberante e a fauna abundante são descritas com primores de compêndios de ciências naturais. Os habitantes humanos são apresentados segundo os traços físicos e exteriores, com pitorescos traços de intenção etnográfica, mas todos os que não estão junto aos viajantes europeus são designados como canibais.

    Essa visão da etnografia de Verne é, quanto a este último ponto, persistente.  Ainda nos primeiros momentos da viagem em Cinq semaines o cientista Fergusson, lúcido e triunfante, reportando-se sempre à mais rigorosa observação científica, faz a seguinte descrição ao seu criado, Joe, quando este o interroga sobre os habitantes das terras sobre as quais voam:

    “- Ces tribus éparses sont comprises sous la dénomination générale de Nyam-Nyam, et ce nom n’est autre chose qu’une onomatopée; il reproduit le bruit de la mastication.

    – Parfait, dit Joe; nyam! nyam!

    – Mon brave Joe, si tu étais la cause immédiate de cette onomatopée, tu ne trouverais pas cella parfait.

    – Que voulez-vous dire

    – Que ces peuplades sont considérés comme anthropophages.

    – Cela est-il certain?

    – Trés certain

    (…)

    – Ce qui est malheureusement avéré, c’est la férocité de ces peuples, très avides de chaire humaine qu’ils cherchent avec passion” (1863:160).

    Devemos, perante tal classificação do Outro, antes de tirar conclusões apressadas sobre um colonialismo feroz, de intensa coloração racista, em Verne, tomar algumas precauções, para que uma leitura ideológica no se torna uma precipitada caricatura, talvez ideologicamente menos crítica do que o discurso sobre a alteridade produzido no romanesco verniano.

    Antes de mais, comecemos por reconhecer que, como primeiro discurso “científico” sobre os povos africanos, a tirada de Fergusson é, no mínimo, altamente discriminatória. Tal posição, diga-se desde já, não só é reiterada ao longo deste romance como nos outros da série e, nomeadamente, em Le village, onde um pequeno indígena é salvo dos antropófagos pelos dois heróis.

    Contudo, seria estreiteza nossa apresentar uma a alteridade ameaçadora em Verne de forma täo simplista, mesmo aceitando que subjaza a toda a obra, particularmente ao corpus que temos em vista, um racismo latente, enformado por uma mentalidade civilizadora expansionista. Por exemplo, podemos dizer que, de forma menos problemática para o nosso olhar actual,  a outra grande imagem do Outro como negativo é a do esclavagista. Esta última imagem, que é a temática fundamental de Un capitaine não se apresenta, contudo, com a mesma complexidade com que se apresenta a antropofagia. Este tema, que emerge de forma fantasmática e difusa em toda a obra de Verne, merece ser observado como um dos semas dominantes na isotopia da agressividade que se nos afigura presente, de modo muito dinâmico, na descrição verniana. Para lhe reconhecermos melhor os contornos comecemos por considerar o comentário de Joe à descrição acima apresentada dos “nyam-nyam”

    – Si jamais je dois être mangé dans un moment de disette, je veux que ce soit à votre profit et à celui de mon maître! Mais nourrir ces moricauds, fi donc! j’en mourrais de honte”.

        Comentário que, devemos dizer, encaminha o diálogo educativo para uma bem curiosa ironia como se pode ver pelo que se segue:

    “- Eh bien! mon brave Joe, fit Kennedy, voilà qui est entendu, nous comptons sur toi à l’ocasion.

    – A votre service, messieurs.

    – Joe parle de la sorte, répliqua le docteur, pour que nous prenions soin de lui, en l’engraissant bien.

    – Peut-être! répondit Joe; l’homme est un animal si égoïste! (1863:160-1)

    landscape photography of mountains under blue sky

    Cremos que, sob a aparência de um diálogo humorístico, a propósito de um comportamento condenável atribuível aos outros, ao Outro ameaçador com quem Fergusson nem sequer pretende entrar em contacto, mantendo sempre o seu balão no ar, se manifesta uma formulação ideológica básica, uma espécie de revelação de mentalidade radical, visão primeira do mundo, segundo a qual o homem é o lobo do homem.

    Contudo, note-se, tal axioma não aparece formulado explicitamente, permanece na zona magmática, larvar, do que poderíamos chamar, segundo Vovelle (1982:13-14), “mentalidade”. Com efeito se aceitarmos, a sua concepção de que a mentalidade se situa a um nível mais profundo do que a ideologia, integrando o que não é formulado, que fica aparentemente insignificante, como que colocado ao nível das representações inconscientes, podendo mesmo aproximar tal concepção da de inconsciente colectivo ou de imaginário colectivo (entrando, neste segundo caso, a distinção lacaniana entre imaginário e simbólico)podemos compreender que estes “nyam-nyam” de Verne são muito mais o “papão”, o fantasma da ameaça sob os traços do Ogre, do que visões racistas discursivamente formuladas.

    Embora reconheçamos o risco que tais leituras acarretam, pela multiplicidade de interpretações que possibilitam e pelo descontrolo sugestivo que o imaginário desencadeado provoca no hermeneuta, não podemos deixar de, neste caso específico, chamar a atenção para o que em Verne se desenrola no plano descritivo, apelando para uma alternância entre o fantasmático e o ideológico: no caso presente, fornecendo aquele o imaginário com que a ideologia tece a sua história, ou o seu romance legitimador.

    Abusivamente, numa redução que, neste momento, cremos ser-nos consentida, se a usarmos com moderação e cautela, poderíamos dizer que é pelo facto de os negros serem canibais que a acção civilizadora é necessária, devendo eles ser “devorados” pelas potências civilizadas. Note-se que, em contrapartida, o esclavagismo nunca é entendido por Verne como um facto mercantil do Ocidente, tendo sido praticado como pecadilho, quase sempre momentâneo, por algumas nações europeias apenas, segundo a versão que dele nos dá.

    Avenue of the Baobabs, Madagascar during day

    A prática desse pecadilho é, no entanto, tenebrosa, quando se trata dos portugueses. Sobretudo em Un capitaine de quinze ans (1887 – ed. cons.: 1990) para lá de um longo libelo autoral contra o tráfico de escravos, a imagem central que surge do negociante de mão-de-obra humana é a do português e, nesse caso, numa prática de iconografia de persuasão pelo terror, os traços que nos são apresentados retratam um medonho mestiço de português e cafre. No imaginário de Verne estamos, com tal representação, nos umbrais do “inferno sobre a Terra”.

    Uma visão do romancista francês que o tenha como colonialista militante poderá ser encarada, eventualmente, como uma operação interpretativa excessiva. No entanto, não o é para quem tenha experiência da leitura de Verne, sobretudo dos seus romances que narram os feitos de exploradores-caçadores por terras selvagens, e o enquadre, como já o temos vindo a fazer, em todo um universo cultural e de mentalidade. Dentro dessa óptica, podemos registar, como profundamente significativo, que, por exemplo, os poucos contactos que a equipagem do balão Victoria tem com terra sejam de predação e massacre.

    Os animais do espaço africano são abatidos para serem comidos e apreciados segundo as suas qualidades gastronómicas. Os leões são abatidos porque são um obstáculo junto do poço em que os viajantes querem beber. Tudo e todos os que se opõem ao progresso da viagem são abatidos ou destruídos sem dúvidas ou remorsos.   

    Assim, o discurso descritivo em raros momentos aparece sem indícios de ameaça, de violência latente, como um dos atributos caracterizadores: os leões e as suas garras, os antílopes e as suas hastes, os elefantes e as suas presas, as aves e os seus bicos. Para já não falar dos habitantes humanos que são, quando não objecto de equívoco do saber dos viajantes (por serem traiçoeiros, hipócritas, ou até por se “confundiram com macacos”, ao olhar dos europeus, como acontece em Cinq semaines), ameaçadores inimigos, na sua maioria antropófagos.

    five black and white zebras

    Todas as vezes que a personagem viajante é confrontada pelos seus sentidos com novos fenómenos, novos objectos (ou novas personagens, que surgem, por isso mesmo, como colecções  de objectos, do outro lado da mira), a sua percepção do mundo passa a funcionar nas grelhas estéticas (do saber apreciar, saber gozar – tal indígena é feio, certo animal é repugnante, a carne de uma ave é agradável) ou, muito especialmente, nas éticas (o outro modo, a outra forma de vida, não obedecem ao código do nós, da colectividade que se movimenta e traça uma linha de diferença). Poderíamos mesmo dizer que o traço do percurso para além dos efeitos de apropriação que adiante abordaremos, institui um espaço demarcado, de fronteiras mais ou menos fluidas mas omnipresentes, em relação às quais o Outro (humano ou humanóide) emerge para ser avaliado – por norma negativamente.

     Em nosso entender, a primeira grande configuração ideológica presente em Verne, na imagem que nele surge do Outro, assenta no eixo da praxis, decorrente do seu saber fazer. Para o herói verniano o Outro é sempre aquele em relação ao qual se tem de demarcar, que é preciso manter sob mira. Contendo-o à distância, defrontando-o, dá-se-lhe apenas a alternativa de se submeter ou de aceitar o “nosso natural” ascendente – ou a nossa protecção, tomando-o como servo ou guia. Caso contrário, a selvajaria absorve-nos. É a partir desta praxis elementar da distância, demarcativa de territórios, e espaços de aproximação, fundada no estabelecimento de fronteiras claras, motivada por um impulso para o saber que pretende apenas boa ordem, que os outros eixos funcionam: o do discurso e do olhar avaliativo e o da incorporação da alteridade, assimilada como saber (ingerida), na enciclopédia.

    red and yellow hot air balloon over field with zebras

    Para regressarmos ao modelo teórico de Todorov, o processo epistémico não se realiza, sem a incorporação (captação, devoração, no modelo ideológico de Verne e do positivismo) do Outro. O primeiro romance de Verne tem uma perfeita alegoria da mentalidade básica que subjaz a tal visão do mundo e do processo de conhecimento, que resumimos no parágrafo seguinte.

    Em certo momento da viagem do balão Victoria, Joe, para salvar os seus amos, salta do balão e cai no lago de Chade. O que lhe acontece até reencontrar os seus companheiros de viagem é narrado no capítulo XXXV que tem como primeiro título “L’histoire de Joe”, sendo os restantes títulos, na sua maioria, nomenclaturas de lugares visitados (e descritos, obviamente). Logo dentro do lago, enquanto nada, o estado de terror de Joe formula-se num constante pesadelo de mastigações, de triturações, uma vez que, sabendo que o lago era infestado de crocodilos, receava que a sua carne estimulasse o apetite dos animais.

    Sendo salvo das águas por um grupo de indígenas, a sua primeira ideia é a de que estes o vão devorar. Ao contrário das previsões, os salvadores alimentam-no bem e veneram-no – mas tal atitude não repousa o espírito de Joe que admite, em seguida, que possivelmente (p.291) naquelas terras a adoração poderia ir até à devoração do adorado. Depois de escapar da aldeia, sentindo-se cansado, adormece num tronco de árvore – quando acorda vê-se rodeado de serpentes e camaleões (p.292).

    black and brown spider on brown sand

    Após um segundo repouso durante o qual os insectos lhe devoraram as poucas roupas que ainda tinha sobre o corpo, Joe é acordado pelos ruídos aterrorizadores de centenas de animais de dezenas de espécies diferentes, sendo os próprios herbívoros percebidos pelos seus sinais mais ameaçadores (p.194). Contudo, a fome, única solicitação que o faz sair do estado de terror, leva-o a atirar-se sobre um sapo que, apesar de tudo, lhe causava a mais viva repugnância. Um pouco adiante, passando por um pântano, começa a ser sugado pela própria terra (p.196).

    As peripécias seguintes são uma corrida, a pé, seguida de uma cavalgada, em que Joe já nem repara em nada, actua como simples fugitivo perseguido, no final, por um bando de árabes, cuja motivações agressivas nunca são explicitadas, acabando por ser salvo dessa perseguição por uma escada que os companheiros lhe lançam do Victoria.

    Com modelo da viagem por terra, a única que, durante o percurso do balão é realizada neste romance, parece-nos que fica bem patente o traço dominante da ameaça da devoração. Em terra, ao homem resta-lhe ser comido ou então esforçar-se por comer. A descrição que Joe faz dos lugares por onde passa, quando conta as suas aventuras, é um assinalar assustado e hiperbólico do único traço obcecante que percebe nas coisas: serem devoradoras ou serem para devorar.   Esse cuidado demarcador, primeira atitude defensiva que permite tomar todas as iniciativas, está claramente expressa no projecto de Fergusson (Verne,1863:21-2):

    O triunfo da linearização, do conhecimento do território, da sua geometrização e domagem só pode ser realizado por atentos observadores, capazes de fazerem desenrolar o saber à medida do mundo e, reciprocamente, incorporar esse saber, enquanto rota, enquanto proposta pragmática de percurso, no saber da civilização. É a Terra (e os astros) que fornece os dados empíricos para a conceptualização das medidas mas, em contrapartida, as medidas permitem calcular a Terra, reticulá-la, incorporá-la no saber como objecto “civilizado” como espaço onde o homem sabe exactamente onde se encontra.

    Devemos reconhecer que o discurso descritivo de Verne é, até ao seu último romance, eufórico, triunfalista e segrega e uma ideologia da violência ao postular, na visão dos espaços alheios, das suas faunas, das suas floras e dos seus habitantes, uma agressividade latente, em eminência de se tornar acção agressiva. O interessante (e que torna a descrição um elemento fundamental) é que a agressividade observada no espaço exótico, inserida como o traço do silvestre num “lugar” por civilizar, raramente seja actuante, manifeste a o seu poder devorador ou letal de forma súbita ou inesperada.

    Antes de passar a ser agressão (ou, na maior parte dos casos, não o sendo) a agressão é um dado do observado que o viajante observador não tem dificuldade em reconhecer. A sua antecipação permite-lhe, normalmente, a esquiva ou o contra-ataque eficaz. Mas a figura mais recorrente não é a de uma acção de combate em que o triunfo fica por decidir como um suspense do fio narrativo.

    A mais frequente e, cremos, mais próxima do fantasma, é a da latência, a manifestação de uma potência, de uma energia nas coisas que as torna terríficas em si mesmas – mais do que pelo que fazem. Resultando disso que o suspense resida muito mais nos enunciados de estado, ou descritivos, do que nos de acção. Cremos que também neste ponto nos é permitido reevocar o fenómeno singular que é a descrição verniana – é dela que saem os grandes lances lógico-semânticos (em última análise ideológicos, ligados a uma visão do mundo) com os quais se constitui a estrutura causal do narrativo.

    two giraffes standing on brown plants

    Enfatiza-se, nesta energia de agressividade sempre a anunciar-se, que o herói se move não pelo que o adversário faz mas sim pelo que ele é, pelas potencialidades adversas que ele tem ( e que pode ou não pôr a funcionar, nascendo aí uma dinâmica do suspense narrativo) e que o herói deve ser capaz de enquadrar na sua ordem de saber.

    Para ser eficaz na ordenação do saber o herói verniano que percorre terras estranhas não pode ser um ocasional avaliador, não pode introduzir a modalização avaliativa apenas em certos momentos do seu discurso. Tem de avaliar rapidamente o Outro, conhecer-lhe o comportamento, as normas por que se rege, tem de o desqualificar esteticamente pelo menos enquanto sujeito para não hesitar, se necessário for, em abatê-lo. Não é por acaso que os indivíduos notáveis pela figura e pelo porte, homens ou mulheres, são sempre ou submissos ou neutros – ou aliados serviçais. São raros os casos de indígenas avaliados como esteticamente positivos – mas quando surgem são aliados: guias, criados. E a sua grande qualidade ética é normalmente a do predador, companheiro de caçadas.

    O mesmo padrão se aplica à observação dos animais mas, sendo a sua utilização como alimento permitida liberalmente pelos bons costumes da civilização, normalmente são muito mais apreciados como despojos para comer do que como seres vivos gozando da sua inteira liberdade.

    Nunca África é vista, em qualquer dos romances vernianos, como um lugar a ser deixado tal como fora encontrado. O espaço selvagem nunca é o lugar ameno de reencontro com a natureza. Mesmo no último romance, o facto de Blackland se revelar um pesadelo tecnológico não leva à conclusão de que o estado primitivo, a floresta, a vida simples das aldeias, as selvas virgens, são lugares a preservar.

    O espaço selvagem é, para o exercício do herói, como mero lugar de jubilação, uma coutada a usar até a última peça de caça estar viva. Como lugar da ameaça do primitivo, do homem selvagem, é um espaço a controlar. Medir é um modo de integrar na enciclopédia. Por fim, se for disso caso, deve civilizar-se pela força das armas.  

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Activa

    !863 Cinq semaines en ballon, ed. cons., Le livre de poche, Paris, 1977

    1878 Un capitaine de quinze ans, ed. cons., Hachette, Paris, 1990

    1901 Le village aérien, ed. cons., Hachette, Paris, 1985

    Passiva

    Althusser, Louis, 1977, Posições, Horizonte, Lisboa

    Bakhtine, Mikhail, 1977, Le marxisme et la philosophie du langage, Minuit, Paris

    Chesneaux; Jean, 1982, Jules Verne : une lecture politique

    Guadalupi, Gianni, 1977, The Discovery of the Nile, White Star, Vircelli (It.)/ The American University in Cairo Press

    Hamon, Philippe,  1984, Texte et idéologie, PUF, Paris

    Leenhardt, Jacques, 1973, Lecture politique du roman, Minuit, Paris

    Loutfi, Martine Astier,1971, Littérature et colonialisme. Mouton, Paris

    Todorov, Tzvetan, 1989, Nous et les autres, Seuil, Paris

    Vovelle, Michel, 1985, Idéologie et mentalités, Maspero, La Découverte, Paris


    [1] E que, segundo os franceses, se configura na expressão “à vol d’oiseau”, sendo que esta última é, muitas vezes, a expressão usada pelos artistas, críticos e estudiosos portugueses e, mais alargadamente, é usada por franceses e portugueses, para referir qualquer estudo, abordagem, descrição ou compreensão de qualquer assunto, sem ser necessário que a frase se refira à criação pictórica, sendo equivalente a uma outra expressão metafórica, conceptualizante – “dar uma vista de olhos” –, que se refere a toda a observação apressada e sem grande preocupação de atenção. Precisamos o valor operatório da expressão porque, tendo esta amplitude semântica em conta, percebemos melhor que este olhar de alto é generalizador, globalista e afastado da realidade tratada, permitindo tratar os mundos referidos, de modo esquemático e estereotipado.

  • A retórica do Cosmos: a linguagem da ciência na poética de Victor Hugo

    A retórica do Cosmos: a linguagem da ciência na poética de Victor Hugo


    A produção poética de Victor Hugo manifesta-se como uma das mais marcadas pelo discurso da ciência, na descrição dos lugares, objectos e personagens, entre as que, com reconhecimento alargado, se notabilizaram no seu tempo.

    Do nosso ponto de vista, que defendemos nesta abordagem, só Jules Verne, e, até certo ponto, Zola, para nos mantermos em exemplos da literatura francesa, se evidenciam como igualmente marcados pela mesma influência, no mesmo registo textual. No entanto, a interdiscursividade que detectamos em Hugo, ao contrário da que emerge nos seus pares acima citados, não é apenas um campo que a produtividade poética reelabora, para obter uma visão do mundo realista, ou um alargamento enciclopédico do conhecimento cósmico.

    Victor Hugo (1802-1805)

    De facto, nele, a ciência surge como produtora de uma linguagem veemente e passional, qualquer coisa como o turbilhão vociferante do Cosmos que, longe de inspirar um discurso “branco” do saber, razoável e iluminado, permite o emergir poético da catástrofe sibilada, a coloração das forças imparáveis do universo, e mesmo a emergência dos caos enunciáveis pelas trevas, pelos dilúvios, pelas forças tectónicas e atmosféricas.

    De algum modo, onde o gosto clássico cessante colocava entes divinizados e titãs, todos eles antropomorfizados, Hugo coloca as forças e os objectos naturais descritos pelas ciências, como entidades animadas. Elas não são evidentemente antropomórficas: apenas a visão e escuta dos poetas permitem que as suas figuras emirjam, se anunciem com a capacidade performativa de, enquanto discursos do mundo (por vezes formas e de desígnios enigmáticos), actuarem poderosamente sobre o mundo.

    Assim, os ventos e as correntes não são movimentos cegos, mas fúrias desencadeadas, deslocando-se como agentes das fábulas, as tempestades e os trovões não são fenómenos indiferentes às paixões dos homens, mas sim, antes, forças que com eles actuam, que desafiam e transformam os poderes das personagens.

    statue on topless man

    Se a ciência do século XIX descobre e descreve os fenómenos, sobretudo os energéticos, ao poeta compete entender-lhes o sentido, a sua função actancial no desenrolar da narrativa, o seu sentido profético, ao emergirem, nos cantos líricos, como elementos de uma cosmovisão, ou, nas narrativas, como representações de um espaço vital animado, ele próprio, por forças cegas de destruição e transformação.

    De qualquer modo, a componente do conhecimento científico da época entra como parte do saber que instaura qualquer coisa como o orgulho iconoclasta do poeta, o que lhe permite ter dos séculos – pelo domínio da lenda e da história – e dos estratos cósmicos – pelo desenvolvimento da geografia, da astronomia e das ciências físicas e naturais em geral que ele adquire pelo estudo actualizado – uma visão sincrética.

    No texto “A arte a ciência”, um dos primeiros capítulos da obra que dedica a Shakespeare, (Hugo, s/d [1864]:93-96), o autor francês enuncia o princípio que o rege:

    “O universo sem livro é o esboçar da ciência; o universo com o livro é o ideal que aparece. Também se dá, de imediato, a modificação do fenómeno humano. Onde nada havia senão a força, revela-se a potência. O ideal aplicado aos factos naturais é a civilização. A poesia escrita e cantada começa a sua obra, dedução magnífica e eficaz da poesia vista. Coisa que choca ao enunciá-la: a ciência sonhava, a poesia agiu. Com o barulho da lira, o pensador escorraça a ferocidade.”

    white ceramic man head bust
    William Shakespeare

    Toda a sua argumentação, a partir daí, se desenvolve na demonstração de que a escrita, por si só, depois de ter permitido a abstracção comum à ciência e à poesia, permitiu a esta última construir uma humanidade superior que já assenta muito mais na própria escrita do que no saber da contemplação natural: “A natureza, mais a humanidade, elevadas à segunda potência, dão a arte” (p.95).

    Esta matemática, servindo o princípio da alegorização, permite a Hugo a fórmula final segundo a qual compara a arte e a ciência: “A poesia, como a ciência, tem uma raiz abstracta; a ciência tira daí obra-prima de metal, de madeira, de fogo ou de ar, máquina, navio, aeróscafo; a poesia extrai obra-prima de carne e osso: A Ilíada, o Cântico dos cânticos, o Romancero, a Divina comédia e Macbeth” (p.96).

    O reconhecimento desta superioridade, que Hugo arvora como mais-valia da poesia, desde tempos remotos, como transparece no facto de todas as obras citadas serem supremos modelos canónicos ou mesmo casos de “textos fundadores”, não impede que ele esteja atento, de um modo surpreendentemente criador, aos enunciados do discurso científico que eram inovadores no seu tempo.

    Tentaremos demonstrá-lo com alguns exemplos, contrapondo o discurso da sua voz autoral (lírico-poética, ou de narrador épico-romanesco) a casos em que esse mesmo tipo de discurso se faz sentir pela ausência de enunciados desse tipo ou por uma formulação em que o saber científico não se integra na obra literária, embora aí apareça aludido.

    Comecemos por comparar Hugo com o seu contemporâneo (nascido, tal como Hogo, note-se a efeméride, em 1802) Alexandre Dumas. Não tentaremos fazê-lo em relação ao total das suas obras, porque isso seria uma tarefa fora do âmbito de um artigo, ou até mesmo de um volume de consideráveis dimensões, mas apenas a pequenos exemplos que consideramos privilegiados.

    Em Dumas, tentaremos comentar, através de breves citações, a presença da ciência pela representação que ele faz de um mação alquimista, Joseph Balsamo, no princípio do romance que tem por título o nome da personagem – quase sempre publicado em vários tomos, ele próprio integrado num conjunto de romances que abordam o fim do antigo regime em França, numa série romanesca intitulada Mémoires d´un médecin.

    Logo após as primeiras páginas em que Joseph Balsamo é consagrado membro da ordem (que nunca é nomeada exactamente mas que reproduz, embora com bastante liberdade espectacular, os ritos de iniciação maçónicos), a narrativa apresenta-nos a personagem em viagem, atravessando uma região montanhosa de França, numa carruagem de amplas e complexas dimensões, uma espécie de habitação rolante no interior da qual o protagonista e um velho sábio manipulam enigmáticos frascos, fazem funcionar um forno alquímico no qual se prepara uma misteriosa transformação.

    Alexandre Dumas

    À volta da carruagem desencadeia-se uma tempestade cujos aspectos e efeitos lembram uma inesperada e incontrolável fúria do Cosmos, resultando dela que um dos cavalos é morto e os viajantes têm de parar.

    A descrição do acontecimento, embora obedeça aos princípios elementares do que é comum na visualização literária dos fenómenos da natureza, não tira qualquer consequência do facto de ela estar a ser observada, sentida, percebida e mesmo avaliada por dois seres de supremo saber. Os fogos celestes surgem como uma pirotecnia surpreendente de efeitos luminosos e a água torna-se numa ameaça que inunda o terreno.

    Para o velho alquimista a chuva apenas se manifesta como algo negativo por ameaçar apagar o fogo do forno onde se está a dar a grande transformação, pelo facto de a casa rolante não ter a chaminé devidamente coberta. No entanto, quando, como que por acaso, o velho alquimista se dá conta da trovoada, é com a maior naturalidade que ele explica a Balsamo que é inteiramente possível domar as descargas eléctricas e fazê-las funcionar em proveito da técnica laboratorial. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade.

    Os segredos de tal arte, porém, não são enunciados senão pela breve explicação de que “a chama eléctrica” pode “descer até ao forno”, por um sistema de “pontas” suportadas por um “papagaio artificial”. De tal explicação, o genial discípulo, Balsamo, detentor de imensas sabedorias, não percebe nada (cf.Dumas, s/d: 46-47;vol.I).

    O quadro que aqui se nos desenha é, até certo ponto, o de uma relação do homem com o Cosmos, com aquilo que poderíamos designar até, mais funcionalmente, como macrocosmo, manifestando-se tal relação, através de um sábio. No entanto, o processo surge como uma demonstração de que o desenvolvimento do saber é eticamente negativo.

    De facto, o conhecimento contido pelas duas personagens, assente sobretudo numa espécie de manipulação de fórmulas tendentes a construir a transgressão, a arquitectar uma conspiração que altere um conjunto de elementos estruturadores da potência (essencialmente a política – o antigo regime é visto como uma determinada ordem emanada da transcendência vigorando no universo imanente do perecível), não se move para lá de um quadro ou espaço fechado: o das fórmulas dos livros e dos instrumentos sagrados e/ou proibidos.

    Tal saber encerrado, feito e dominado de uma vez para sempre, parece nada poder acrescentar à visão poética, ficcional ou mesmo cientificamente informada, do macrocosmo. Todo o saber acerca deste permite apenas domínios parciais que podem ou não ser usados para perturbar a ordem humana estabelecida.

    photo of library with turned on lights

    Dentro deste quadro epistemológico, o saber do sábio (o alquimista, o mação) é sempre um movimento perverso, surgindo no discurso como eticamente negativo. Dado que é indevido no interior do sagrado, torna-se uma actuação de sacrilégio ou de violação. O desenvolvimento da narrativa de Dumas vai revelar-nos que assim é.

    Quanto ao romancista, na construção das perspectivas que assume como narrador, nunca atribui ao saber das ciências quaisquer perspectivas complementares que lhe permitam desenvolver ou desenhar um quadro do Cosmos que ultrapasse a observação razoavelmente empírica das aparências. Tudo está feito pelo grande arquitecto, é ele que assegura a coerência do Cosmos e das suas manifestações.

    Por isso, ao sábio, compete-lhe aprender as fórmulas da manipulação, mas não o sentido dos fenómenos, que está estabelecido de uma vez por todas. A alquimia (em sentido lato e algo metafórico, claro!) não anda, neste caso, muito longe da teologia.  Aliás, na poética de Dumas, mesmo a descrição elementar de quadros do mundo, sobretudo da natureza, são, comparando-os com os diálogos e as narrações de acções, por exemplo, raros (pelos menos dentro da parte da sua gigantesca obra que nos foi dado ler) e, isso, possivelmente, porque a interrogação dos mesmos, da razão de ser das suas origens (as fontes,  as causas – mas também, complementar e simetricamente, as interacções e consequências), não era material que interessasse a uma tal visão do mundo.

    O homem de Dumas não age sobre o universo, nem é por ele transformado. Move-se no seu interior sem um saber científico. Quando o saber emerge, apresenta-se como uma perversão face ao sagrado, uma acção de feitiçaria. As relações são mais entre as personagens e os entes mágicos ou as suas manifestações intencionais, no que respeita ao cosmos (um ente supremo desencadeia uma catástrofe, por exemplo), do que entre as personagens e os fenómenos da natureza – de um modo geral e relativo, evidentemente

    Não será essa a posição de Hugo. Neste, embora nunca apareça uma figura importante de cientista, a visão científica do universo como questão estética, como material de construção poética, é fundamental. Em nosso entender, num processo complexo que não podemos dilucidar aqui inteiramente, mas que abordaremos de modo parcial, o trabalho poético de Hugo assenta na validação do discurso científico, retomando a linha das poéticas do humanismo renascentista que, em primeiro lugar, fizeram sentir a sua necessidade, embora nem sempre o tratassem satisfatoriamente como elemento central da elaboração poética.

    cliff beside sea water under bright sky

    Esquecendo a anatomia dos pintores e escultoras da Renascença italiana, abordemos a questão através de um dos nossos clássicos. E façamo-lo num texto que é de antologia e tem sido de “escolaridade obrigatória”. Trata-se, como se suspeitará, a partir do que anteriormente dissemos, do canto V de Os Lusíadas.

    De facto, aí, vamos encontrar duas descrições de forças naturais observadas que o narrador Vasco da Gama cita, quer como fenómenos de que ouviu falar, quer como ocorrências que ele próprio observou: de um modo geral, o que acontece é que ele confirma como verdadeiras as coisas extraordinárias que já eram da “enciclopédia” dos nautas, antes da viagem que o celebrizou.

    São elas “cousas do mar, que os homens não entendem”, mas que ele Gama, viu, confirmando o “que os rudos marinheiros, que tem por mestra a longa experiência, contam por certos sempre e verdadeiros” (est. 16-17).

        Em seguida, não só os enumera sumariamente – “súbitas trovoadas temerosas, relâmpados que o mar em fogo acendem, negros chuveiros, noites tenebrosas, bramidos de trovões que o mundo fendem” (est. 16) –, mas ainda  apresenta de forma mais pormenorizada  “as nuvens do mar com alto cano sorver as águas do oceano”, num quadro descritivo conhecido como “a tromba marítima” (est. 19), e “o lume vivo que a gente marítima tem por santo” (est. 18), numa apresentação evocativa (enargueia) –  que faz amplo apelo aos termos designativos do visual – conhecida como a do “fogo de Santemo”.

    fountain pen on black lined paper

    No entanto, devemos notar que, para a funcionalidade da narrativa que está a ser desenvolvida, a da viagem que leva à descoberta do caminho marítimo para a Índia contornando África, a função das descrições é quase puramente ornamental. Porque, logo um pouco à frente, ainda no mesmo canto, a verdadeira função da manifestação das forças e energias do Cosmos como obstáculo a ser ultrapassado, pelo conhecimento e pela coragem, é representada pela figura do Adamastor.

    Neste episódio, de qualidade estética e invenção narrativa unanimemente reconhecidas, emergem os elementos do clima e da topografia, bem como a mecânica das correntes e dos ventos, numa figuração alegórica que os dramatiza, constituindo-os como forças passionais, que entram em jogo com a vontade e a coragem dos navegantes. Dada a proximidade das descrições, quase marcadas pela vontade de fazer cartografia e climatologia dos obstáculos geográficos e das tempestades, e a representação “dramatizada” do episódio do Adamastor, que surge poucas estrofes adiante, quase se poderia sugerir que a entidade “Terra” ganha aparência de energia e de força ameaçadora, através das acções deslocadas – por figuração – para o actuar e dizer do titã,  não pelo exibir das suas próprias características dinâmicas.

    É claro que tal atitude poética do nosso épico renascentista não nos pode surpreender. Está em causa, na construção do seu discurso narrativo, a intensa aprendizagem da epopeia clássica, de gregos e romanos, para os quais as forças terrestres exprimiam as magnitudes, sentidos e paixões de entes primordiais, fontes de toda a energia cósmica – ou, explicitanto a inversão imaginária, os entes eram a realização das forças, não as suas representações, mas a sua verdade ontológica.

    orange rose flower beside notebook and pen

    Devemos notar, no entanto, que o sentido dos factos observados no conhecimento do mundo, das coordenadas e características dos elementos terrestres era, desde então, motivo de interrogação científica para os próprios poetas, que, no entanto, não hesitavam em simplificar a representação desses mesmos factos através dos mitemas conhecidos.

    Narrar uma viagem implicava estar atento aos elementos empíricos que constituíam essa viagem, muito embora a compreensão dos fenómenos, sobretudo os de mais evidente dinamismo, carecesse do saber livresco de séculos anteriores – quase sempre poético, ele próprio, dado que ser cultivado era ser letrado, e ser letrado passava por conhecer os épicos, os trágicos, os físicos, os filósofos, os cronistas…

    Posto isto, deve ser lembrado aqui que um outro filão discursivo nascia já por essa época, num tipo de textos que se desenvolve em paralelo àquele  a  que hoje chamamos literatura,  constituindo-se à margem das obras canónicas – mas mantendo relações com elas, muito embora se desenvolvesse em projectos que se podem relacionar com o discurso científico. De um modo geral, podemos chamar-lhe narrativas de viagens – mas teremos de admitir que os autores dessa genealogia se situam, na variedade de tendências que representam, entre Garcia de Orta e Fernão Mendes Pinto.

    Admitindo, com um imediatismo de intuição de leitor (o qual, por razões óbvias de espaço, não tentamos explicar aqui), que o segundo se encontra muito perto daquilo a que chamamos hoje literatura (e da melhor), e o primeiro não tanto, mantendo-se os seus “colóquios” sobre as “drogas e os elementos simples” num campo que seria hoje o de uma botânica, de uma química, de uma química orgânica, fazemos-lhe uma breve referência.

    photo of island and thunder

    Efectivamente, em Peregrinação, o saber enciclopédico, organizando a experiência empírica da arte da navegação, perspectiva o remoinho dos Cosmos, com os seus ventos, as suas marés, as suas tempestades, os seus territórios virgens, agrestes e quase inexpugnáveis, como uma entidade que não se faz representar por outrem.

    Nele se apresentam e encenam as forças do cosmos tal como ainda hoje se podem apresentar no discurso científicos os elementos da natureza, quando se trata, para este discurso, de os referir de modo amplo e perceptível por todos. As forças dos elementos são aceites como um facto, sem precisarem de intermediários mitológicos para os explicar – e produzem efeitos que, embora apresentem a face do destino, não reconfigurem por isso, no mundo em que a miséria humana se processa no absurdo da sua fragilidade, uma vontade celeste antropomórfica.[1]

    O empirismo propõe, como primeira atitude favorável ao desenvolver da ciência, uma espécie de “pacto de aceitação da factualidade enquanto tal”. Assim, os fenómenos podem ser enigmas, sem que sejam obras ou manifestações de entes. Podem constituir fonte de perguntas sem que a sua explicação tenha de ter uma resposta urgente, feita mais de crença do que de saber. O Cosmos é, assim, na espantosa narrativa de Fernão Mendes Pinto, uma força imanente que é preciso reconhecer na sua empiricidade. Sem esse saber dos factos, a actividade humana desenvolve-se erraticamente.

    Aliás, como se percebe no episódio da tempestade durante o qual desaparece o pirata António de Faria e o tesouro que tinha roubado com o seus cúmplices, o desencadear das forças do Cosmos é representado por imagens de fenómenos físicos sem explicação, que a si próprias se representam, forças do acaso e da fatalidade neutra  que se desencadeia e contra a qual o homem se talha na sua autenticidade.

    A densidade desse confronto existencial, que já em finais do século XVI (data presumível da redacção, embora o primeiro manuscrito que se conhece, que nem é atribuível à vontade expressa do autor – suspeitando-se que foi amplamente remanejado -, date de inícios dos séc. XVII), era uma das forças principais da intensidade poética da Peregrinação, pode-se considerar uma das pedras de toque da construção do realismo textual de Hugo.

    Uma das suas figures recorrentes, em textos narrativos e líricos sobretudo (mas também em muitos discursos das personagens, no teatro), é o defrontar das forças do Cosmos pelos seus heróis. Os animais, os ventos, as marés, os rochedos, as propriedades dos materiais são, no seu romance Les travailleurs de la mer, autênticas potestades que, sem aparecerem sob formas antropomorfizadas, actuam como verdadeiras personagens.

    Em grande parte, o antagonismo fundamental que constitui a acção central nesse romance, é a luta entre um jovem experto nas lides do mar, e as forças do oceano, contra as quais tem de lutar para levar a cabo a sua tarefa de recuperar o motor de um barco a vapor. O objectivo do jovem herói é, no entanto, conquistar a mão da donzela que ama, a qual lhe fora prometida pelo pai da rapariga, caso conseguisse recuperar o mecanismo a vapor do seu barco, desmantelado durante um naufrágio contra um rochedo do canal da Mancha.

    Para o efeito, o jovem parte sozinho, na sua pequena mas sólida embarcação de pesca, movida pela força do vento. A tarefa é pesada, quase impossível, pois o conjunto de recifes contra os quais o vapor naufragara era muito escarpado e de difícil acesso, como o estado das marés e dos ventos era inconstante, com permanentes tempestades, ventos fortes e agitações tumultuosas das águas. Dominando o conjunto de rochedos, destacava-se um: “L´Homme” (p.201).

    É esse conjunto de elementos, actuando pelo seu estatismo (escolhos do recife, inacessibilidade dos rochedos) e pela dinâmica tempestuosa (ventos, ondas, trovoadas e marés), que Gilliatt (assim se chama o protagonista) irá enfrentar, pela aplicação de uma espécie de tecnologia oriunda de algum saber (Gilliatt lia alguns livros – p. 22-23 – embora se vestisse como “ouvrier où matelot” – p. 13 – o que, naqueles locais das “ilhas do canal”, o identificava com as populações humildes e iletradas); de um poder físico de “barbare antique”, as marcas de “homme hardi et persévérant” nos vincos do rosto e na tez  a “sombre masque du vent et de la mer” (p. 34)  – enfim, sendo de “taille ordinaire et de force ordinaire, il trouvait moyen, tant sa dextérité était inventive et puissante, de soulever des fardeaux de géant et d´accomplir des prodiges d´athlète” (p.34); das graças de homem do mar como pescador e nadador (p. 36);  do “instinct” que, para distracção, o levou a aprender três ou quatro ofícios “menuisier, ferron, charron, calfat, e même un peu mécanicien” (p. 38); e de uma disponibilidade inventiva dinamizada pela sua posição de solitário e apaixonado.

    Veremos, um pouco mais em pormenor, um quadro do confronto desenhado entre este atleta da habilidade e da firmeza e as forças universais que desafia, para repararmos como para tal o discurso científico é um dos materiais a que Victor Hugo recorre para construir a sua representação. Tendo em vista tal demonstração, teremos de recorrer a um pequeno excerto, resumindo os contextos espaciais e situacionais em que ele aparece.

    Como já se explicou resumidamente em parágrafos anteriores, Gilliatt vai ao recife onde o barco encalhou. A sua chegada ao local merece, por parte do narrador, uma apresentação do local, e das características que o tornavam um obstáculo e mesmo um adversário. Contudo, antes de o apresentar enquanto “escolho” singular, concreto, o autor elabora a sua pequena entrada enciclopédica “esclarecedora”. Eis um excerto de tal verbete-resumo do saber, construído como explanação propiciatória da compreensão das “forças” do espaço onde a acção se vai desenrolar:

    Un écueil corridor est orienté. Cette orientation importe. Il en résulte une première action sur l´air et sur l´eau. L´écueil corridor agit sur le flot et sur le vent, mécaniquement, par sa forme, galvaniquement, para l´animation différente possible de ses plans verticaux, masses juxtaposées et contrariées l´une par l´autre. /Cette nature d´écueils tire à elle toutes les forces furieuses éparses dans l´ouragan, e a sur la tourmente une singulière puissance de concentration./ De la, dans les parages de ces brisants, une certaine accentuation de la tempête./ Il faut savoir que le vent est composite. On croit le vent simple ; il ne l´est point. Cette force n´est pas seulement chimique, elle est magnétique. Il y a en elle de l´inexplicable. Le vent est électrique autant qu´aérien” (p. 247). 

    shipwreck on shore

    O excerto que aqui apresentamos é uma breve amostra. Esta “explicação” sobre o vento e sobre o mar, que não exclui muitas outras anteriores e posteriores, estende-se por mais algumas páginas, antes de chegarmos de novo à situação singular em que o herói se encontra. Embora não seja um sábio, nem o conhecimento enunciado pelo narrador pareça decorrer da personagem, como que revelando o seu pensamento íntimo, deduzimos que a astúcia do jovem herói, que acima apresentámos resumidamente, é capaz de inferir as ameaças a partir da sua experiência empírica.

    Gilliatt se connaissait assez en écueils pour prendre les Douvres fort au sérieux. Avant tout, nous venons de le dire, il s´agissait de mettre en sûreté la panse. (…) Les sommets lointains des bas-fonds, mis hors de l´eau par la marée descendante, aboutissaient sous l´escarpement même de l´Homme à une sorte de crique, murée presque de tous côtés par l´écueil. Il avait là évidemment un mouillage possible. Gilliatt observa cette crique. Elle avait la forme d´un fer à cheval, et s´ouvrai d´un seul coté, au vent d´est, qui est le moins mauvais vent de ces parages. Le flot y était enfermé et presque dormant. Cette baie était tenable. Gilliatt d´ailleurs n´avait pas beaucoup de choix” (p.250-252)

        Notaremos, a partir deste texto, como todos os dados da descrição, quer resultem da observação directa do herói (ou como que através dele, dado que a sua presença justifica o olhar, e os seus interesses – como aportar, como obter segurança da concha formada pelos rochedos – o privilegiar de objectos e ângulos de visão), quer provenham da voz autoral do narrador (tornando-se a autoridade, pelo modo como debita o conhecimento, autoralidade) apontam para a construção de agrupamentos e condições que sugerem o conflito: por um lado as energias cósmicas, anunciando sempre o limiar da catástrofe, e por outro o herói, avaliando os obstáculos e o eventuais adjuvantes que encontra, preparando-se para resistir à tormenta.

    book lot on black wooden shelf

    É curioso notar ainda que, um dos rochedos do recife, o mais imponente, é conhecido por “Homme”, o que lhe cria um estatuto ambíguo quer na representação simbólica quer na função que vai assumir na acção, ora adversário do herói, colaborando com a tempestade e a maré, ora seu aliado, dando-lhe apoio.

    É isso que se percebe durante a faina do herói, cujo comportamento, quer na construção dos mecanismos de apoio ao seu trabalho, quer na defesa do porto onde tem a embarcação, lembra os titãs, os deuses ou os heróis da epopeia clássica: Prometeu, Hefestos, Ulisses ou mesmo Ajax ou Heitor. Todas essas figuras, porém, surgem como referências nunca explicitadas. O processo de evocação é tão só desencadeado pelo trabalho do herói: o domínio do fogo e da forja (Prometeu, Hefesto); os conhecimentos do mar e das suas “traições”, contra as quais tem de usar precaução e astúcia (Ulisses); e a capacidade de defender o seu território contra as investidas do grande adversário em fúria (Ajax e Heitor).

    Serve-nos de exemplo do modo como herói é construído, o pequeno excerto que em seguida apresentamos:

     “Gilliatt fit la forge./ La deuxième  anfractuosité choisie par Gilliat offrait un réduit, espèce de boyau, assez profond. Il avait eu d´abord l´idée de s´y installer ; mais la bise, se renouvelant sans cesse, était si continue e si opiniâtre dans ce couloir qu´il avait dû renoncer à habiter là. Ce soufflet lui donna l´idée d´une forge. Puisque cette caverne ne pouvait être sa chambre, elle serait son atelier. Se faire servir par l´obstacle est un grand pas vers triomphe. Le vent était l´ennemi de Gilliatt, Gilliatt entreprit d´en faire son valet. (…) La forge que Gilliatt voulait établir était ébauchée par la nature ; mais dompter cette ébauche par la nature ; mais dompter cette ébauche jusqu´à la rendre maniable et transformer cette caverne en laboratoire, rien n´était plus âpre et plus malaisé” (p.269).

    person raising both hands

    Nesta luta o herói não só desenvolve os seus dotes, como manifesta a capacidade de aplicar novas soluções a partir de desafios que os obstáculos lhe colocavam. Nomeadamente, são de considerar as construções da “grua”, que ele se vê forçado a fazer, para elevar a gigantesca máquina salvada do naufrágio, e as barreiras, calculadas segundo a necessidade de resistência à energia hidráulica do mar.

    Efectivamente, a voz narrativa não deixa de aplaudir o saber artesanal de Gilliatt, comparando-o a um célebre pedreiro medieval que, antes da descoberta das leis físicas que orientavam cientificamente o seu trabalho (as do atrito), fez deslizar um gigantesco relógio num brilhante cálculo de forças estáticas e dinâmicas. No entanto, Gilliatt seria mais notável do que esse pedreiro, na medida em que trabalhava sozinho, e tinha de suspender a sua máquina de muitas centenas de quilos, para a transportar para a embarcação de salvamento (pp. 289-290).

    As considerações sobre a física e a tecnologia, no desenvolvimento da operação, são apresentadas pelo autor, recorrendo sempre à referência a conhecimentos desenvolvidos pelas ciências do século XIX.

    É igualmente com grande precisão descritiva, pelo recurso ao léxico e saber tecnológico e científico, que a luta contra o mar nos á apresentada, desenvolvendo-se a descrição a partir na narração das tarefas do herói:                   

      “Gilliat, avec cette adresse qu´il avait, plus fort que la force, exécutait une manœuvre de chamois dans la montagne ou de sapajou dans la forêt, utilisant pour des enjambées oscillantes et vertigineuses la moindre pierre en saillie, sautant à l´eau, sortant de l´eau nageant dans les remous, grimpant au rocher, une corde entre les dents, un marteau à la main, détacha le grelin qui maintenait suspendu et collé au soubassement de la petite Douvre le pan de muraille de l´avant de la Durande, façonna avec des bouts de haussière des espèces de gonds rattachant ce panneau aux gros clous plantés dans le granit, fit tourner sur ces gonds cette armature de planches pareilles à une trappe d´écluse, l´offrit en flanc, comme  on fait d´une joue de gouvernail, au flot qui en poussa et appliqua une extrémité sur la grande Douvre pendant que les gonds de corde retenaient sur la petite Douvre, au moyen des clous d´attente plantés d´avance, la même fixation que sur la petite, amarra solidement cette vaste plaque de bois  au double pilier de goulet, croisa sur ce barrage une chaîne comme un baudrier sur une cuirasse, et en moins d´une heure cette clôture se dressa contre la marée, et la ruelle de l´écueil fut fermée comme une porte” (pp.310311).

    Encontramos neste excerto um dos típicos procedimentos descritivos que remonta à tradição homérica, e que já nesse modelo clássico aparecia como propiciador de uma visão dos objectos disciplinada pela sabedoria e naturalizada pelo acto narrativo de mostrar a personagem produzindo (ou entrando em contacto com) o objecto da descrição. O domínio pleno da obra por parte do seu “artesão”, que aqui nos aparece, remete-nos para a construção da ekphrasis, termo que Hamon considera designar a “descrição literária (seja ou não integrada na narrativa) de uma obra de arte real ou imaginária (…) que determinada personagem da ficção encontra.

    Exemplo sempre citado: o escudo de Aquiles” (1991: 8). O célebre exemplo aqui citado evoca o episódio da Ilíada, em que é feita a descrição do novo escudo de Aquiles, o qual aparece passo a passo, através da apresentação das diversas etapas da sua confecção por Hefesto, o deus dos fogos e dos vulcões. A descrição como que se naturaliza, através da narração do fazer do objecto descrito[2].

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    Ora, esta modalidade de discurso, tão privilegiada na apresentação de obras de arte, ou técnicas (no sentido forte da sua raiz etimológica: téchnê), é, na tradição da boa prática da escrita (de que a literatura seria um caso maior), quase indissociável do “dizer” científico. Philippe Hamon, a cujos trabalhos de investigação sobre a descrição recorremos mais uma vez, coloca a questão com muito clareza, elucidando com a sua perspectiva a argumentação que aqui defendemos:

    o enunciado descritivo é, sem dúvida, próximo, materialmente e psicologicamente, dos textos do saber para a constituição dos quais ele contribui pela sua própria actividade, ou que ele consulta para verificar e autentificar a sua descrição. (…)Deve notar-se, em primeiro lugar, que um saber (de palavras, de coisas) é, não apenas, um texto já aprendido, mas, também, um texto já escrito, algures, e a descrição pode, então ser considerada, em maior ou menor dimensão, como o lugar de uma reescrita, como um operador de intertextualidade; de-sribere, lembremo-nos, é, etimologicamente, escrever segundo um modelo. Esta operação de intertextualidade pode ocorrer entre textos disjunto de produtores diferentes (Zola para descrever o jardim, em La Faute de L´abbé Mouret, recopia os manuais e os catálogos de horticultura), como entre textos disjuntos do mesmo produtor, de acordo com um método e com protocolos de escrita, datados mas suficientemente difundidos universalmente, que consistem, para um autor descritivo, em reunir, primeiro, a sua documentação antes de escrever a sua descrição, seguidamente  em escrever, primeiro, as suas partes descritivas, antes de redigir as partes mais propriamente narrativas que as encaixarão (…) Tal processo revalida, então, a oposição ideológica entre a narrativa (a imaginação) e a descrição (o saber) e mesmo, no interior da descrição, entre um saber previamente registado pelo estudo da natureza, e a sua reescrita posterior. A operação de intertextualidade é, então, dupla, produzindo-se o rewriting no interior de uma mesma escrita, e de uma escrita para outra; mas devendo as estruturas e as marcas desse duplo enxerto ser apagadas e rasuradas tanto quanto possível  (no texto legível-referencial-clássico), o apelo ao reconhecimento, por parte do leitor, dos campos lexicais actualizados, deve fazer-se com base na ignorância da sua origem textual, ou seja, do facto de ele ter sido copiado e recopiado (de um outro texto; do dossier preparatório do autor). De onde resulta, como veremos, a grande quantidade de processos narrativos destinados a «naturalizar» a inserção do discurso do outro (o documento) no texto descritivo” (1993: 48-49).

    Parece-nos que, na fundamentação da poética de Hugo, são bem importantes estes mecanismos de oficina de escrita. O que perpassa, na leitura atenta do texto, projectando-o, em cotejo, sobre outros similares ou próximos, não é o nascimento da descrição (a partir do romantismo, com uma “época de ouro” no naturalismo) em oposição a um classicismo que o desconhecesse. É claro que, na tradição poética ocidental, da Grécia clássica até ao romantismo francês, a descrição sempre existiu.

    O que acontece é que as operações de reescrita, a partir do romantismo, e em Hugo muito em especial, para atingirem a validação poética, têm de lançar mão do disfarce de que fala Hamon, para que o não literário (o documento mundo e o documento sobre o mundo) se literarize

    O que não era necessário no caso da poética clássica que importava os seus textos, para os reescrever, da tradição literária, de um saber que já era literário (até porque todo o saber, até ao séc. XVIII, era fundamentalmente letrado, sendo as letras um acesso ao conhecimento procurado sobretudo nos mestres poetas – porque os poetas eram transmissores da ciência, em pé de igualdade com aqueles que hoje reconhecemos como cientistas: Galileu, Cirano de Bergerac, Rodrigues Lobo e Garcia de Orta escrevem diálogos, numa dimensão criativa em que é difícil dizer onde começa o literário e acaba a ciência, ou vice versa), de uma literatura que transmitia “ciência”, de uma ciência que só se podia fazer com o domínio das letras que as poéticas forneciam.

    Se é certo que o poeta, no dizer de Hugo, se defronta com o cientista, não é para o ultrapassar, como o criador poético sugere no seu texto sobre Shakespeare. Em nosso entender, a operação poética mais importante nesse confronto, é a absorção do discurso científico pelo poético. Pelo que aquele introduz neste de desafio, de renovação lexical, de abertura de perspectivas sobre o cosmos e sobre as relações do homem com este. E cremos que há, desde então, um virtuoso intercâmbio entre os campos: ele anuncia-se, sobretudo, no modo como a ciência recorre à metáfora para conceptualizar, e no processo segundo o qual a criação literária despe as roupagens da alegoria ao universo, para tomar em consideração o dramatismo das forças cósmicas. 

    A importância de tal relação, não reside apenas no modo poético de construir e dar a ver as forças do universo tal como o discurso científico as via. Em nosso entender, no diálogo que estabelece com as ciências, a criação poética desenvolve, pelo modo como vislumbra o universo, as condições para que a própria ciência ultrapasse as barreiras que se criaram entre o animismo e o vitalismo, ou seja que se possa pensar sem escândalo que “caia a barreira entre orgânico e mineral” (François Jacob, 1971: 136).

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    E, mais ainda: na sua dramatização das relações do homem com o cosmos, ao atribuir ao cosmos uma retórica que interage com a do homem na expressão e defesa dos seus valores, ela pressupõe o desenvolver de conceptualizações que antecipam os passos que, a partir de meados do século XIX, permitem desfazer a mitificação que assentava no conceito-barreira de força vital. E em Hugo, por certo, desenham-se as novas formas de perspectivar o objecto das ciências químicas, físicas, biológicas e genéticas que permite o aparecer como evidente, hoje em dia, que os seres vivos são “a sede de um triplo fluxo: de matéria, de energia e de informação” (F. Jacob, 1971:137).

    Ora, se a biologia, como reconhece o mesmo cientista, estava já, então, em condições de reconhecer o fluxo da matéria (cf. Jacob, 1971: 137-138), é na criação poética que o vislumbre utópico dos outros dois fluxos se desenham, antes de emergir claramente nas novas concepções das ciências que se declaram no princípio do século XX. Entre as obras que constroem o dizer dessa energia, que fazem as forças da natureza significar na construção da ficção, como dirá, quase na mesma época, Zola, conta-se a de Victor Hugo.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Bronowski, J., 1986, Magia, ciência e civilização, Edições 70, Lisboa

    Camões, Luís, Os Lusíadas, 1987, Areal, Porto

    Dumas, Alexandre, Joseph Balsamo, s/d, Calmann-Lévy, Paris

    Greimas, A. J. E J. Courtés, (1979) s/d, Dicionário de Semiótica, Cultrix, S. Paulo

    Hamon, Philippe, 1991, La description Littéraire, Macula, Paris

    Hamon, Philippe, 1993, Du descriptif, Hachette, Paris

    Hugo, Victor, s/d[1864], William Shakespeare, Nelson, Paris.

    Hugo, Victor, 1979[1866] Les travailleurs da la mer, Hachette, Paris.

    Jacob, François, 1971, A lógica da vida, Dom Quixote, Lisboa


    [1] Simplificamos aqui uma questão bastante complexa. No entanto, assentamos o nosso reconhecimento da importância do discurso científico na literatura no ponto básico de o dado empírico valer por si, como axiologia, e não depender de valores fora da esfera da descrição em que se apresenta. Acompanhando um mestre da teoria da linguagem, semioticistas como Greimas e Courtés escrevem: “Para L. Helmeslev, é científica qualquer semiótica que seja uma operação (ou descrição) conforme ao princípio de empirismo” (1979:46). Temos em atenção, também, obviamente, o discurso dos cientistas da natureza, filósofos e historiadores da ciência, e aceitamos como base um enunciado como o de Bronowski: “Sustento que a revolução científica de 1500 em diante constitui uma parte essencialmente do Renascimento, que sem ela o renascimento não podia ser convenientemente entendido como uma reavaliação do homem (…) Desde essa época temos estado na posição ímpar de formar uma imagem única do conjunto da natureza, incluindo o homem. Trata-se de um novo empreendimento; difere dos empreendimentos precedentes pelo facto de não ser mágico, com o que pretendo significar que não supõe a existência de duas lógicas, a lógica do natural e a lógica do sobrenatural” (1986: 49-50) 

    [2] Aqui fica, a título de exemplo, um pequeno excerto de acordo com a tradução, altamente conceituada, de Frederico Lourenço: O Escudo de Aquiles (Ilíada, canto XVIII vv.478-490, dispostos linearmente) “Fez primeiro um escudo grande e robusto, todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo brilhante, triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata. Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele cinzelou muitas imagens com perícia excepcional. Nele forjou a terra, o céu e o mar; o sol incansável e a lua cheia; e todas as constelações, grinaldas do céu: as Plêiades, as Híades e a Força de Oríon; e a Ursa, a que chamam Carro, cujo curso revolve sempre no mesmo sítio, fitando Oríon. Dos astros só a Ursa não mergulha nas correntes do Oceano”.

  • Em torno do herói intemporal da narrativa popular

    Em torno do herói intemporal da narrativa popular


    (…) O deus cabeludo disse ao vencedor menino:

    “Em brios medra Iulo; assim se vai aos astros,

    procriador e rebento divino […]”

    Virgílio, Eneida (IX, 638-641) Trad. de A. Feliciano Castilho


    Singular, sem dúvida, foi o destino de Héracles, herói quase imortal e invencível, que teve de decidir, na solidão do seu desastre, a morte que o iria arrancar ao convívio dos mortais, seus semelhantes e seus irmãos.

    Nenhum herói, como ele, na Antiguidade Grega (e nos ecos que dos seus feitos nos deram os Romanos, quando passou pela península Itálica com o gado de Gérion) foi tão solitário entre os homens e, ao mesmo tempo, tão solidário com o destino destes. Não houve, para a sua epopeia, todo a percurso terrestre, um aedo capaz de um só canto. Nem sequer um implacável Rabelais para cantar o seu gigantismo.

    naked man statue

    Mas talvez tivesse sido essa, também, a sua sorte: não ser, assim, assimilado, na unidade de um discurso, a uma “raça”, a uma “casta”, a uma classe social. Nem Pantagruel escapou a isso, inserido na “linhagem” dos reis dos gigantes. Héracles, porque viveu na boca da lenda, no sussurro fraterno dos convívios populares, nunca se fixou num painel, como os seus pares da “raça” dos Aqueus.

    Eurípides e Sófocles aproveitaram o efeito da sua loucura e da sua morte, mas o conjunto fantástico dos seus feitos, em que chegou a enfrentar os poderosos deuses e senhores do macrocosmo, apenas ficou registado em notas esparsas de eruditos e comentadores… e na evocação sonhadora que, pedaço a pedaço, o manteve vivo, às vezes respigado por intelectuais de passagem.

     “O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular de Hércules e Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan” afirma-nos Eco (1979, p. 246).

    brown statue of man near green trees during daytime

    Quase tão atemporais como o arquétipo enteado de Hera, sempre perseguido pela ira da madrasta alguns heróis de FC e da BD (ficção científica e banda desenhada) parecem reassumir, de forma variada, de acordo com os padrões  e condicionalismos históricos, uma estrutura mítico-narrativa elementar que equaciona com a mesma persistência infantil, imatura (revelando as aspirações que têm muito mais a ver com inflexibilidade fantástica do inconsciente do que com o dimensionamento razoável com o real), as pulsões elementares, os impulsos radicais do limitado e condicionado para a imensidão do tempo infinito e para as metas mais longínquas do espaço.

    De acordo com os saberes científicos e as observações empíricas que a tecnologia permitiu nas mais variadas épocas, os heróis populares gozaram sempre de uma omnipotência delirante, plasmada nas fantasias mais arrojadas, relativamente ao espaço e ao tempo. Quer para Héracles, quer para Superman, quer ainda para Odin, que “pela infinita importância do valor se tornou deus” (Carlyle, 1956: 61), os limites cronotópicos não existiam. Intermédios, por aparente “realismo” (verosimilhança, diria o Estagirita), introduzido pela ciência pós-positivista nas suas potencialidades, os heróis de FC assemelham-se, nas viagens que fazem aos astros remotos, às galáxias mal entrevistas a essa estirpe gerada na imaginação popular desde tempos lendários e que encontra em Héracles, o dos doze trabalhos, o ilustre antepassado modelar.

    Contrariamente aos heróis micénicos. que as palavras de Lukács tão bem enquadram, Héracles não e só um herói dos “bem-aventurados tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir […] tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas (1962:27). Ou melhor, ao contrário dos que bateram às portas de Ílion, nas planícies de Troia, o vencedor de Leão de Nemeia, o que frechou o sol num arrebatamento de fúria, o que substituiu Atlas, o Titã, enquanto este lhe colhia os pomos, não é um herói só desse tempo.

    Os tempos em que ele se moveu, para dizer melhor, os da U-cronia, persistiram nos sucessores que lhe herdaram os genes e o génio do imaginário. Para Superman, para o herói de O Construtor de Universos (The Maker of Universes), de P. José Farmer, para os “Jedi” de A Guerra das Estrelas, filme realizado por George Lucas, e mesmo para o “cavaleiro” da África fantástica que Burroughs criou em Tarzan dos Macacos, não existe o fim desses tempos – de nenhum tempo.

     “Para eles”, citando ainda Lukács, na mesma obra, “tudo é novo e, todavia, familiar; tudo significa aventura e, todavia, tudo lhes pertence. O mundo e o eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente alheios um ao outro, porque o fogo é a alma de toda a luz e todo o fogo se veste de luz. Assim não há um único acto de alma que não adquira plena significação e não venha a finalizar nesta dualidade […]” (p. 27) e por isso o tempo não existe, ou melhor é um absoluto, criado no espaço pelas suas acções.

    Este universo de que o autor húngaro nos fala magistralmente só na literatura dita “culta”, a dos canonizados deixou de existir. Apenas persiste nos leitores e espectadores de “culto”[1]. Para os heróis de FC ou mesmo para o seu irmão, Tarzan do “planeta África”, o fim da orbe conhecida não significa o alheamento ou a perdição. Para eles é apenas o espaço da aventura e o tempo ali não tem significado. São incomensuráveis porque U-tópicos e como tal são U-crónicos.

    Nenhum deles, evidentemente, resiste à prova da historização à clepsidra da biologia. Héracles é o dos doze trabalhos, não o conquistador que se vincula à história da Grécia e nela procria. São as suas histórias de iniciáticas passagens, sobreponíveis e permutáveis, que fazem dele um corpus heroico, um ser infinito que só se decide a morrer quando a perfídia do Centauro o arranca à pele que era sua, limite do próprio, invólucro que o limitava, como cosmo, no cosmo maior, em intercâmbio, mas sem dissolução.

    gray concrete statue under cloudy sky during daytime

    O próprio retorno cíclico à aventura marca essa eclosão do tempo. Se o passado legendário encerra as indeterminações de  Héracles  no  tempo  da civilização  que o “lê” e nele se podem inserir os feitos sem que a cronologia implique o desgaste da personagem, o mundo moderno, onde vivem os heróis herdeiros da tradição dos trabalhos, põe, por vezes,  o tempo entre parêntesis de forma mais adaptada ao comum consumo  dos romances de aventuras  em  que o  herói  evolui, é marcado pelo tempo, como se vê na sucessão de Dumas e continuadores: Os Três Mosqueteiros, Vinte Anos Depois, O Homem da Máscara de Ferro, talvez pela incitação do romance realista.

    Dessa reintrodução do tempo cíclico no pós-folhetinesco, fala-nos Eco de forma exemplar:

    O Superman não pode consumir-se porque um mito é inconsumível […] deve, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia, consumir-se segundo os modos de existência quotidianos. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceite porque a sua acção se desenvolve no mundo quotidiano da temporalidade, paradoxo que os argumentistas de Superman têm, de algum modo, que resolver (com) uma solução paradoxal! […] Os argumentistas exco­gitaram uma solução muito sensata e original. Estas histórias desenvolvem-se numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois,  e quem narra retoma continuamente o fio da história como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns por­ menores ao que já dissera.» (1979,  pp.  253, 257-258).

      Não é verdade que também para os feitos de Héracles é indiferente que ele tenha lavado primeiro os currais de Augeias e só depois tenha matado a Hidra?… e não é verdade que, de forma surpreendente, ele nos surge na Gigantomaquia[2] ajudando os olímpicos contra os titãs, paradoxo do tempo como sucessão das clausulas aristotélicas? É essa imagem que nos dá Lacassin do herói da selva fantástica:

    Passando da situação inconfortável das vítimas à altitude do reparador de defeitos, ele conhecerá, neste novo empenho, um campo de acção ilimitado, intrigas renováveis até ao infinito (sublinhado do autor). Sacrificando a afectividade à metafísica, passa a encarnar e a simbolizar a luta contra a injustiça […] Deixando os lugares fechados do melodrama e da vingança ele vai percorrer um universo fantástico povoado de cidades mortas ou luminosas, divindades obscuras e ferozes; fantasmas barrocos e cruéis. […] Antes de percorrer este continente mítico numa busca iniciática, Tarzan, como um cavaleiro sujeito a provas similares, deverá arrancar-se ao contexto familiar e afectivo (sublinhado do autor), despojar-se da existência anterior. É-lhe necessário perder a recordação de tudo o que pudesse evocá-la: título, nome, fortuna, parentes, amigos e inimigos” (1971: 99-100).

    green mountain near cloudy sky

    Que mais será necessário para forjar o herói salvífico à dimensão do cosmo?  Não era essa, também, a obrigação de “jedi” Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas para se opor à arrogância do Império, num confronto que envolve o Universo inteiro, com os seus milhões de galáxias? Nesta orbe alargada até aos limites do vislumbre astrofísico o que é o tempo para ele como para qualquer outro “astronauta” da FC senão uma coisa que se atravessa onde a morte não existe, dimensão ínfima de um segundo? Para o homem que viaja à velocidade da luz, acima dela, que vai do “big-bang” à “luz-fóssil”, o sentido da temporalidade existencial não existe. É nesse senti do, creio, que Marie Françoise Dispa, afirma: 

    Na FC os astros representam apenas um dos fins do percurso; eles são, antes de mais, um símbolo da insatisfação eterna do homem. A raça humana mal tinha nascido  já pensava em evadir-se da Terra. Em todos os tempos as estrelas foram objecto de ambição dos homens; e acabaram por as atingir. […] Falta qual­ quer coisa aos homens que eles esperam encontrar nas estrelas. (107-108)”

    Farmer, que foi em toda a literatura de FC que conhecemos o autor que mais se aproximou conscientemente dos ecos que nela emergem dos velhos mitos, especialmente os de Héracles e os de Zeus, não hesita em fazer do seu herói de O Construtor de Universos, o inominável “senhor da fortaleza situada acima das nuvens, suspensa no espaço”.

    Para a ela regressar, depois de um percurso terrestre em que perdeu a memória da origem e atingiu a velhice, o senhor da morada dos imortais tem de atravessar mil aventuras, vencer centauros, titãs e a própria Górgona para recuperar a memória e poder. Escutando ainda M. F. Dispa, que expressamente compara os heróis da FC aos cavaleiros da epopeia medieval na perspectiva de Bédier[3], podemos concluir com ela, acerca do problema da morte nestas fantasias: “O amor, amizade, a ternura, enfraquecidos pela proximidade constante da morte, não podem desenvolver-se num tal estado de coisas… a imortalidade, que cada indivíduo procura com tanto ardor, provoca necessariamente, a mais ou menos longo prazo, a estagnação da espécie humana” (Dispa 114).

    Se o herói (e mais uma vez o revemos como Héracles) opta pela sua humanidade, se esquece a ânsia de absoluto que o levará a desafiar os deuses, os monstros e as distâncias entre os astros, acaba por se entregar, por cansaço, à morre. Não esqueçamos que para Troyes, Percival e Galaaz eram cavaleiros celestes! A FC e todo o sistema que em seu torno se move é, nas ambições astrais, metafísicas e epistemológicas, o processo de um mito, às vezes subterrâneo e subalternizado, mas sempre presente. Como diz Muniz Sodré “pretendemos aqui afirmá-la como um mito vivo e contínuo (ou seja, uma grande “narrativa” constituída e não fragmentada em discursos), um saber que se quer totalizante em relação ao passado e ao futuro” (Sodré, 1973: 107).

    No fundo, na audácia da fantasia, a FC e os heróis que na sua esfera se movem, pelo poder de nomeação, pela capacidade de integração de novos lugares no universo conhecido, o cosmo ilimitado do viajante, conseguem o acro de cosmização de que fala Eliade: “Importa compreender bem que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando o espaço reitera-se a obra exemplar dos deuses” (s/d. [1960?]: 35).   

    Exemplaridade que o herói assume normalmente seguro da sua origem divina, semidivina, maravilhosamente extraterrestre, extraordinário pelo poder da tecnologia ou, ainda, consagrada pela grande Mãe: a Terra/Gea. Como nas escrituras ou no como maravilhoso, o herói quanto mais perto está do super-homem, do semideus, mais certo é ser a sua origem fabulosa, mesmo divina. Novo paradigma em que Héracles ocupa o centro.

    Mas também a ele pertencem Superman, vindo de um planeta de seres que só lá não são excepcionais, e o terrestre Tarzan, originário de uma “raça” de senhores, que, perdido, em criança na selva, se tornou hegemónico entre todos os seres selváticos, incluindo os indígenas humanos. Para não nos alargarmos mais, citamos de Marthe Robert este passo lapidar:

    selective focus photography of boy wearing black Batman cape

    “Estabelecendo uma correlação tão visível entre as calamidades do nascimento e uma carreira abençoada pelos deuses, o conto não faz mais do que seguir a linha de pensamento própria do mito e da lenda, no que esta tem, precisamente, de mais singular. […] O ser privilegiado ao eleito, em virtude de tarefas sobre-humanas, não pode deixar de ser um mal vindo, uma criança abandonada, sacrificada, crivada de golpes por aqueles mesmos que estavam encarregados de a proteger. Não que o herói seja exaltado unicamente por causa da força de que dá provas nas desgraças dos seus começos. Mas porque, sobretudo, expulso de casa é obrigado, dessa forma, a romper os laços de sangue, liberta-se assim das coacções carnais e espirituais que constituem para o homem do comum o essencial da fatalidade” (1979: 55).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Carlyle, Tomás, 1956, Os Heróis, Guimarães Editores

    Dispa MarieFrançoise, 1976, Héros de la sciencefiction, DE BOECKA, Bruxelles

    Eco, Umberto, 1973 Diário Mínimo, Península, Barcelona

    Eco, Umberto, 1979, Apocalípticos e Integrados, Perspectivas, São Paulo

    Eliade, Mircea (s/d [1960?]) O Sagrado e o Profano, Livros do Brasil, Lisboa

    Grimal, Pierre,1986, A Mitologia Grega, Europa-América, Lisboa

    Lacassin, F., 1971 Tarzan, UGE, col.  10/18, Paris

    Lukács, Georg, 1962, Teoria do Romance, Presença, Lisboa

    Robert, Marthe, 1979, Romance das Origens e Origensdo Romance, Lisboa, Via edit.

    Sodré, Muniz, 1973 A Ficção do Tempo, Vozes, Petrópolis (Brasil)


    [1]Cult Films have limited but very special appeal. Cult films are usually strange, quirky, offbeat, eccentric, oddball, or surreal, with outrageous, weird, unique and cartoony characters or plots, and garish sets. They are often considered controversial because they step outside standard narrative and technical conventions. They can be very stylized, and they are often flawed or unusual in some striking way.” (26/9/2018). É evidente que esta noção é extensível à produção literária e à BD/Graphic Novels

    [2] Súmula unitária coligida a partir de diversos autores, constitui parte da Teodiceia de Hesíodo. “El asalto al Olimpo: La Gigantomaquia“.

    EL MITO Y SUS FUENTES. De acuerdo con Homero1, los Gigantes fueron una raza de hombres salvajes, gobernados por Eurimedonte que habita-ban en la isla de Thrinacia, en el lejano oes-te y que fueron exterminados por su insolencia hacia los dioses. Pertenecen, por tanto, a una tribu ancestral que fue destruida por su soberbia, y no por un combate, que no se cita en los poemas homéricos. La ver-sión más difundida sobre su origen la da Hesíodo, quien les considera seres divinos, nacidos de la sangre vertida en el seno de la tierra, Gea, cuando Urano fue mutilado por Crono. De ellos se dice que son seres enormes, de armaduras lustrosas e ingentes lanzas. Según Píndaro, los gigantes nacieron en los campos Flegreos, en Sicilia, Campa-nia o en Arcadia, y según otras fuentes (Apolodoro, Pausanias, Píndaro o   Estrabón), en Palene (Tracia). Homero y varios escritores tardíos los sitúan en zonas volcánicas, por lo que parece probable que el origen de la historia de los gigantes esté relacionado con una explicación sobrenatural de determinados fenómenos físicos de la naturaleza, asociados con fenómenos volcánicos.

    [3] De origem bretã, passou a infância em Reunião, depois tornou-se professor de literatura francesa da Idade Média. Publicou muitos textos medievais em francês moderno, como Tristan e Iseut (1900), La Chanson de Roland (1921), os Fabliaux (1893). Foi eleito membro da Academia Francesa em 1920.

  • O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’

    O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’


    Qualquer tentativa de breve definição daquilo que se entende por film noir corre o risco de ser redutora. Mesmo uma exposição mais alongada, que possa ser inscrita numa revista da especialidade, poderá ser muito insuficiente, ou, se tentar dar uma imagem aberta do conjunto de obras a que se tem chamado film noir, poderá incorrer na superficialidade vertiginosa das referências e alusões, porque esta não podem ser explanadas na continuidade do texto que procura circunscrever o fenómeno.

    Assim, tentando fazer uma breve apresentação do corpus dificilmente discernível e quase impossível de encerrar, buscando, simultaneamente, elucidar um pouco a origem da designação genológica, mostrando como ela se conceptualizou, tombamos na ladeira escorregadia do acto redutor para nos precipitarmos, em seguida, no negrume sombrio e letal de uma referencialidade que pouco mais é do que alusiva.

    Contudo, pelo (pouco) que se exporá em seguida, verificará o leitor destas linhas, eventual espectador empenhado, ou mesmo fanático, que não pode ser de outra maneira.

    De algum modo, embora se constitua como género, enunciando assim a finitude, pelo menos teórica, do corpus a que se refere, o  film noir categoriza muito mais do que aquilo que pode ser entendido como o conjunto, já de si gigantesco, dos filmes que nele se integram. A expressão, que podemos entender como um termo conceptual, liga-se, de modo forte, a um agrupamento de filmes descritíveis como histórias de acção, intriga e mistério, em torno de um ou mais crimes, sendo o (ou os) protagonista potencial vítima de uma urdidura, às quais, mais recentemente, se tem aplicado, também, com frequência a designação de thrillers.

    A conduta criminosa, a acção para a travar e a mente dos antagonistas surgem como centrais para definir os traços fundamentais do conjunto de obras que são a referência fundamental do termo. Mas não é tudo. A síntese que Abílio Hernandez Cardoso faz dos eventos e contextos que originam a designação ajuda-nos, pela sua  justeza e brevidade: 

    Quando, em 1946, Nino Frank utilizou, pela primeira vez a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser adoptado pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do cinema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e estilístico”.[1]

    Se o nascimento do termo fica assim esclarecido, bem como fica aludido o contexto em que é criado, ou seja, o da chegada às salas europeias, particularmente as francesas, do cinema produzido no interior do sistema clássico de Hollywood, em moldes que se apresentam como novidade, seria bom explicitar, desde já, quais os traços que terão impressionado Nino Frank, marcando o género que ele designa por “aventure criminelle”, no título do artigo que publica na revista L’écran français.

    Esse “nouveau genre policier” que, na época, ainda não se designava, nem na totalidade nem em parte, por “thriller”, além de um nome, que lhe foi dado, precisava de ser definido. O que  Frank faz, ao dizer que os filmes surgidos nesse verão, em França, eram policiais com um estilo mais negro, repletos de aspectos visuais apelativos, uma narração complexa e uma forte incidência na psicologia (cf. in Ballinger e Graydon, 2007: 4).

    Posteriormente, a partir desses reparos, os estudiosos foram precisando o alcance e a minuciosidade das características identificadores do género. É a ainda a Hernandez Cardoso que recorremos para sintetizar os traços que os críticos, estudiosos e teóricos foram determinando na produção artística em causa:

    Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a presença de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino” (2001: 108).

    Para um leitor que não esteja completamente desprevenido, que se mova apenas alguns patamares acima da literacia básica, este conjunto de traços não pode deixar de ser sugestivo. Talvez não todos, imediatamente e em todas as suas extensões, mas, pelo menos, alguns de modo mais ou menos gritante. Segundo o que nos é dado reconhecer, fazendo decorrer alguns conhecimentos que nos foram fornecidos por produções artísticas com as quais convivemos, bem como pelas observações de estudiosos que se têm interessado pelas diversas facetas culturais das quais o cinema emerge e com as quais mantém, ainda hoje, fortes laços de intercâmbios e influências, podemos afirmar que a lista das actividades artísticas e de representação em geral que estão na origem dos traços dominantes que caracterizam o noir é enorme. Tentaremos apresentar algumas delas, muito sumariamente, procurando manter sempre a referência aos elementos apresentados na síntese que acima citámos.

    O efeito central, que dá nome ao fenómeno artístico, o negro, emergente na sua contraposição ao luminoso, decorrente, muitas vezes do modo como os focos de claridade lançam as sombras dos objectos com que esbarram, é central na produção do expressionismo alemão que, como se sabe, foi um dos movimentos ou escolas que, no tempo do mudo, lançou as bases da formação do cinema narrativo cuja dominância fez triunfar a forma de expressão tal como a conhecemos hoje.

    É claro que, se juntarmos a este traço, só aparentemente formal, a presença do tal traço temático do espaço urbano, nocturno, ameaçador e até mesmo aterrorizante, temos a marca influenciadora do próprio naturalismo literário e de certas variantes do gosto popular do gótico. E, se a isso adicionarmos a importância da perspectiva, mais ou menos perturbada pelo medo ou angústia, através da qual esse universo é visto, em imagens que têm, por vezes, a marca imprecisa e alógica do sonho, percebemos como o próprio conhecimento psicanalítico é convocado nestas obras, ainda que nem sempre de modo rigoroso ou, pelo menos, parcimonioso.

    É bom que se note que as variantes francesas da narrativa gótica literária eram incluídas num género designado por roman noir, para o qual muito contribuiu Sade, um autor fundamental para compreender a dialéctica do bem e do mal em que a mulher (ou o homem) fatal e o/a protagonista, vítima ganha todo o sentido, em extensão, aprofundamento e variedade. Será bom lembrar ainda que, mais perto de nós, numa posição de grande proximidade temático formal das obras nucleares daquilo a que se chamou film noir, estão os romances policiais publicados em França numa colecção a que se chamou La Série Noire, fazendo eco do nome da revista americana Black Mask, que tinha publicado histórias do autores que eram nome de referência da colecção francesa.

    Os autores dessas colecções, como não podia deixar de ser, constituíam, quase todos, o cânone de onde saíam os argumentos do filmes mais ampla e unanimemente reconhecidos como noir. No interior do sistema relativamente coeso que era a literatura de massas de então, surgiam em modelos editoriais (colecções, publicações especializadas), como volumes que na Europa se chamavam romances policiais ou detective novels e nos Estados Unidos pulp fiction[2].

    O cânone de que falamos distingue-se, no entanto, da literatura policial tradicional, por secundarizar (ou mesmo anular) o modelo da investigação do crime problema ou do evento mistério (o whodunit), dando toda a ênfase à acção física, e, muitas vezes, à intervenção musculada, à resolução violenta do “mistério”; e fazendo o meio, a psicologia das personagens e os ambientes emocionais sobreporem-se aos espaços quase “experimentais” ou altamente estilizados que o “romance problema” tradicional enfatizava (repare-se, por exemplo, em plantas ou planos de pormenor que S.S. Van Dine fazia das mansões e locais arquitectonicamente nobres, que Philo Vance visitava, os quais quase se assemelhavam a maquetes).

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime, p. 34 in https://www.fadedpage.com/showbook.php?pid=2013112 (cons. 21 de Maio de 2018)

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime.

    Como diz Chandler, um dos maiores autores, entre os que incrementaram a junção do policial com o noir:

     “O realista do crime escreve sobre um mundo em que gangsters podem dirigir nações e quase governam cidades, em que hotéis, prédios de apartamentos e restaurantes famosos pertencem a homens que fizeram dinheiro com bordéis, em que uma estrela de cinema pode denunciar [o gang], e o homem de aspecto decente do fundo do corredor é o patrão do jogo clandestino; um mundo onde um juiz com a cave cheia de bebidas alcoólicas de contrabando pode mandar um homem para a cadeia por ter uns decilitros no bolso; onde o Presidente da Câmara duma cidade pequena pode, por dinheiro, ser cúmplice dum assassínio; onde ninguém pode passar em segurança numa rua escura, porque a lei e a ordem são coisas de que falamos mas evitamos praticar; um mundo onde é possível assistir-se a um assalto à luz do dia e ver quem foi, mas desaparecer rapidamente no meio da multidão sem contar a ninguém, pois os assaltantes podem ter amigos com armas de cano comprido ou a polícia não gostar do testemunho e, em qualquer dos casos, o advogado venal da defesa pode sentir-se autorizado a abusar e a enxovalhar uma pessoa em pleno tribunal, perante um júri de mentecaptos seleccionados, sem outra oposição da parte do juiz que não seja uma admoestação de circunstância, porque o cargo de juiz é um cargo político”(2012: 73).

    Quanto ao aspecto eminente e criativo da sintaxe narrativa que a nova “escola” de cinema apresenta, podemos dizer que ela assenta em dois aspectos fundamentais da construção do relato ficcional: na simultaneidade de dois registos de enunciação, o da focalidade da câmara e o da voz off, sendo que o registo oral é, quase sempre, homodiegético ou mesmo, mais “poeticamente”, autodiegético (ficando o registo marcadamente extradiegético – de feição heterodiegética ou “autoral”, ou de marca autodiegética, rememorando eventos acentuadamente revolvidos e já distanciados – para o efeito documentário, que muitas vezes emerge, por exemplo, em Anthony Mann); e a manipulação da continuidade cronológica, sobretudo pelo efeito de flashback ou analepse, introduzindo a importância do ponto de vista narrativo, dos processos de rememoração (a memória, a recordação, o inconsciente…) e a multiplicidade dos pontos de vista, quer pela intervenção de vários relatores de acordo com um inquérito (Citizen Kane é um modelo) quer pelo modo como uma rememoração ou confissão altera os factos ou a ordem destes (À Beira do Abismo, por exemplo).

    Já se vê que, uma tal organização poética do discurso narrativo associa esta nova produção, mesmo nalguns casos de obras mais populares, às tentativas das vanguardas literárias modernistas para renovaram os processos narrativos.

    Citizen Kane, de Orson Welles (1941)

    E, por outro lado, é de reconhecer, dentro da mesma ordem de ideias, que a entidade masculina (mas a feminina também, por vezes, como acontece em Whirlpool –1949 – de Otto Preminger) nestes filmes toma o lugar fundamental para o funcionamento do mecanismo melodramático da ficção gótica ou do roman noir francês: ser objecto de uma conspiração, vítima de uma conjura ou de um equívoco legal, situação da qual só pode sair (e esse é, por vezes, o tema da fábula contada) batendo-se pela verdade, ou seja tornando-se herói. Contudo, no mais típico noir, essa atitude de luta nem sempre é assumida.

    The Killers (1946) de Robert Siodmak é, talvez, um dos exemplos mais acabados do puro noir, no sentido de ser uma das obras que assume integralmente quase todos os traços considerados nucleares do género. O protagonista acossado pelo infortúnio e os próprios fantasmas, a vamp implacável, o tom nocturno e asfixiante do espaço urbano, a violência e a criminalidade, o recurso ao flashback para apresentar a crónica da queda de um boxeur e também o próprio funcionamento do psiquismo do jornalista, oscilando entre a reconstituição equilibrada e racional e a evocação quase fantasmática do universo que reconstitui, são os aspectos mais marcantes do filme.

    Burt Lancaster e Ava Gardner em The Killers de Siodmak (1946)

    Trata-se de um nos mais célebres e carismáticos film noir, inspirado numa breve história de Ernest Hemingway, o qual tem como figura central uma  personagem recorrente nos seus contos, e com certos aspectos de alter ego autoral,  Nick Adams,  que, em jovem, num bar, teria ouvido uma conversa entre dois assassinos profissionais, os quais pretendiam abater um indivíduo que, segundo é sugerido no diálogo,  teria ganho “indevidamente” um combate de boxe. Embora elíptica, a história parece ter origem nas próprias vivências de Hemingway, como repórter, em Chicago.

    Reign of Terror (ou The Black Book 1949), de Anthony Mann, foge, aparentemente, à configuração central que permite identificar o espécime como membro da família noir.

    Contudo, a visão “actual” que lança sobre o conturbado período do terror da revolução francesa, o modo como convoca os mecanismos da intriga e da suspeita num universo asfixiante da metrópole moderna em nascimento, restaurando um universo ficcional muito caro ao gótico e ao roman noir francês, tornam este filme uma peça especial que os amantes e especialistas têm incluído no corpus, com tanta mais razão quanto o seu autor, Anthony Mann, é uma das figuras centrais do panteão canónico que lançou os fundamentos do “género”.

    The Killing (1956), de Stanley Kubrick, é um dos mais tardios espécimes que os especialistas incluem no cânon nuclear do film noir. Essa sua chegada em fase já avançada da produção americana do “género” em questão cria, em relação aos seus antecedentes, uma certa distância (que envolve ironia e distanciação), que é perceptível logo a partir do jogo de sentidos que se gera entre o título e os desenlaces dos destinos fatais de cada um dos intervenientes no golpe. De facto, se killing designa, além do sentido primeiro, matança, talvez numa fixação catacrética, a palhaçada, o espectáculo e, até, o sucesso financeiro, o certo é que os membros deste ataque, cujo chefe, para aparecer como assaltante “visível”, faz uso de uma máscara quase surreal de palhaço, acabam mortos ou vencidos[1].

    Contudo, esta é uma das obras mais persistentemente mantidas no grupo nuclear do cânone pelos especialistas, devido à estrutura narrativa em flashback, em virtude da violência patenteada, pelo desnorte existencial das personagens que, não sendo profissionais do crime, escorregam para o abismo da fatalidade, arrastadas pelo sedutor plano de um experiente fora-da-lei, e também, mais particularmente, pela relação de fatalidade amorosa que uma das personagens mantém face à sua amada infiel, pela utilização da câmara subjectiva sobretudo no acompanhamento deste duplo perdedor (na acção criminosa e no amor) e pelo uso altamente estilizado do contraste de sombras e luz, de branco e de preto sobretudo na expressão dos clímaxes emocionais e afectivos.

        

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Ballinger, Alexander e Danny Graydon, 2007, The Rough Guide to Film Noir, Rough Guides, London

    Cardoso, Abílio Hernandez, 2001, “Subjectividade, desejo e morte no film noir americano” in Villas-Boas, Gonçalo e Maria de  Lurdes Sampaio, Crime, Detecção e Castigo, Granito, Porto

    Chandler, Raymond, 1969, “The Simple Art of Murder” in Pearls Are a Nuisance, Penguin, London

    Chandler, Raymond, 2012, “A Arte Simples do Assassínio”, tradução de Carlos Leite, in Sampaio, Maria de Lurdes e Gonçalo Villas-Boas, Ficção Policial – Antologia de Textos Teóricos, Afrontamento, Porto


    [1] Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon de John Huston (1941), Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger e, The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.    

    [2] The Black Lizard Big Book of Black Mask Stories, era como se chamava a primeira colecção, editada a partir de 1920 saída da Pulp fiction magazine, Black Mask, na qual aparecerem dois romances completos. O de Hammet ainda hoje é célebre.

    [3] killing (ˈkɪlɪŋ) adj 1. informal very tiring; exhausting: a killing pace .2. informal, extremely funny; hilarious. 3. causing death; fatal. n 4. the act of causing death; slaying5. informal a sudden stroke of success, usually financial, as in speculations on the stock market (esp in the phrasemake a killing)ˈkillingly adv  Collins English Dictionary – Complete and Unabridged, 12th Edition 2014 © HarperCollins Publishers 1991, 1994, 1998, 2000, 2003, 2006, 2007, 2009, 2011, 2014

  • O realismo e o crime

    O realismo e o crime


    Sem dúvida, as dificuldades de uma aproximação relativamente ao REALISMO enquanto conceito, e sobretudo no campo da expressão artística, são problemáticas. Como categoria epistemológica ele teria as suas exigências de rigor relativamente à arte e seria uma forma de normatização do trabalho das “práticas significantes”.

    Entre parêntesis, anotamos quanto é discutível, debatível nos seus pressupostos essenciais, a própria teorização desse real: Lukacs, por exemplo, um dos últimos grandes teorizadores das poéticas realistas herdadas das perspectivas teóricas e práticas do século XIX (Balzac, Dickens, Zola)  procurava cingir a expressão aos elementos de referência, a um real exterior ao texto,[1] muitas vezes pela “preocupação do «documento», de uma história real, ou mesmo de um romance de chave interpretativa”, apresentação do mundo em “quadros” de “paisagens bem como de pessoas” ou “anotações, registos de fenómenos tal como surgem” e também pelo “gigantesco esforço de classificação que organiza” a ficção “em função dos lugares, das classes, das profissões, dos sexos” (cf. Tadié, 1970: 76-79).

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    Mas, por outro lado, uma perspectiva linguística, ou uma semiótica, em muito devedora à tradição saussuriana, reclamaria, com pertinência, a consideração em que teríamos de tomar a própria materialidade dos elementos expressivos, enquanto constituintes desse mesmo real.

    Estes, dada a sua própria existência objectiva, produzindo o sentido pelo significado lhes atribui o uso da linguagem no constante de relação referencial e contextual, possibilitariam uma formação de mensagens relevando de códigos bem definidos; uma vez que, esses sim, condicionariam uma noção de real resultante do próprio acto de comunicação; a ignorância deste último aspecto viciou, em muitas ocasiões, os próprios termos de importantes debates em torno da arte, por ter minimizado a importância da dimensão semântica, que relaciona uma representação com o representado, através dos signos que emprega. 

     O realismo, como escola, instituindo um programa poético, seria uma das muitas determinantes e condicionantes dos códigos nos quais se inscrevem e aos quais se subordinam as mensagens artísticas.  De facto, para os escritores europeus de finais do século XVIII e, sobretudo, os romancistas do século XIX, como para os seus leitores, o realismo na literatura obedece a um ideal e tem as suas normas: a convicção que os elementos construídos pela nossa percepção, a partir dos dados da sensação, tal como foi teorizada pelo sensualismo[2] do século XVIII são fiáveis, pelo que permitem a representação fiel do real, e um discurso verídico que tem as suas regras próprias de verosimilhança.

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    Resulta desse facto que, para os teóricos da literatura, bem como os de outras expressões artísticas, a partir dessa época, mas, sobretudo,  de meados do século XIX em diante, até aos nossos dias, o realismo é um estilo literário, ou de produção semiótica,  entre outros, com características próprias, que devem produzir uma espécie de efeito de transparência, de tal modo que, na leitura das obras realistas, o leitor deve ter a impressão de que  está perante um discurso que nos coloca em contacto imediato com o mundo como ele é, camuflando ou ocultando a evidência da sua própria presença enquanto texto.

    Posto isto, para retomarmos a narrativa policial como objecto central em relação ao qual a problemática do realismo se põe, queremos comentar, resumida e muito esquematicamente, uma pequena frase em epígrafe a um livro de contos policiais de um autor português, Lima Rodrigues que assim diz: “Dada a falta de ambiente nacional para certos contos aqui apresentados, recorri, por vezes, a locais e nomes estrangeiros.

    Situá-los em território nacional, com nomes e ambientes portugueses, seria tirar-lhes aquele cunho de realidade que só o ‘clima’ que não o nosso lhes poderia dar”. O livro referido é:  Histórias que eu não contei (edit. Europa-América/Livros de Bolso, 1965, com prefácio de A. Varatojo).

    Repare-se como a noção de realismo, para que a expressão “cunho de realidade” remete, sem ambiguidade nem equívoco, depende de um “clima” cuja escolha é primordial para   a recriação de uma ficção. Não é de estranhar que este pequeno texto epigráfico, liminar (em relação paratextual, como diria Genette) em posição sobredeterminante dos conteúdos do livro, como enunciado explicativo prévio, estivesse de acordo com um outro de inspiração platónica que citamos em segunda mão: “A verdade não faz as coisas senão como elas são, e a verosimilhança fá-las como elas devem ser.

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    A verdade é, quase sempre, defeituosa, pela mistura de condições singulares que a compõem. Não há nada que, ao nascer no mundo, não se afaste da perfeição da sua ideia. É preciso procurar os originais e os modelos na verosimilhança e nos princípios universais das coisas onde não entre nada de material e de singular que os corrompa”. O realismo, antigo e moderno, cai muitas vezes nesta tentação de universalização de que o texto que acabamos de referir, de René Rapin, extraído do seu livro, Reflexions  sur la Poétique, datado de 1674 (cit. in Genette, 1968: 6), é a  sincera teorização.

    O verosímil, como conceito que exprime a regulamentação do real de acordo com a ideia e a ideologia em sentido lato (concepção do mundo) e, eventualmente, com a ideologia em sentido estrito (convicção ou crença), é muito importante para a compreensão dos mecanismos a que presidem à factura dos romances policiais.

    Assim, tornou-se frequente o entendimento fascinado da ficção policial, pelo que é comum o comentário espontâneo do leitor de romances, ou do espectador de filmes, policiais, após  o final dos mesmos:  “Ora…, não  era lógico que o assassino (ou a vítima, ou o polícia)  procedessem  desta maneira… no lugar dele eu faria…”, como se os factos reportados fizessem parte de um estado de coisas  compatibilizado com a opinião ou convicção de quem lê, dependendo das crenças do leitor a aceitabilidade do exposto. 

    Como género ou variante temática, o romance (ou o filme)[3] policial tem os seus modelos. Mas, modelos, não quer dizer imposição para mera reprodução das obras exemplares. Ao contrário de outros modelos de narrativa realista, sobretudo daquela que é reconhecida como verosímil por se cingir a uma realidade consensual, que constituirá a base de uma convicção generalizada, misto de concepção do mundo e de corresponder ao credível, o policial precisa de instaurar o mistério como tema central e a sua descoberta o corolário.

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    Assim, o autor, “até ao último momento, não deverá revelar o nome do culpado” (Todorov, 1968: 145); no entanto, como nota ainda Todorov, para respeitar essa regra, relativa ao mistério, que é o modelo dominante, como particularidade da categoria sequencial do processo narrativo, complicação, o autor tem amplas possibilidades de variação.

    De facto, a identidade do criminoso pode manter-se misteriosa de diversas maneiras: era a mais insuspeita das pessoas, ou era um dos suspeitos que apresentou um falso álibi, aparentemente verídico, ou era alguém que não tinha sido considerado a candidato a suspeito. Mas a categoria mistério pode ser desenvolvida noutra dimensão, como o faz, por exemplo, Ruth Rendell, ao tornar misterioso o processo que levou ao acto de matar dando logo na primeira frase a causa do crime: “Eunice Parchman killed the Coverdale family because she could not read or write”; toda esta narrativa romanesca de Rendell se centra no processo da formação do carácter da criminosa a partir da sua obsessão em ocultar o facto de não saber “ler nem escrever”.

    A mediocridade que podemos sentir em algumas narrativas policiais ou de mistério não tem a ver, essencialmente, com a qualidade de escrita ou com os processos estilísticos conotados com o valor da literariedade, uma vez que estes, como acontece com a narrativa literária em geral, mas sobretudo a romanesca, não se revelam, aí, com a mesma pertinência com que são arvorados no texto de feição lírica.

    A fragilidade poética do texto policial é sentida, sobretudo, quando a organização da intriga, elemento constitutivo da narrativa que, no caso do policial, assume posição hegemónica, não elabora com rigor os seus contornos de mistério, que devem ser surpreendentes, mas não excessivamente rebuscados, sendo o equilíbrio dessa polaridade, entre o monótono e o aparatoso, a pedra de toque da elaboração do verosímil policial. Introduzir a analepse, de modo formalmente elaborado, pode ser a dimensão em que o golpe de mestria se revela. Todos o usaram, mas cada um dos mais aclamados mestres do género o fez de modo diferente.

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    Por exemplo, Holmes, usa muitas vezes, um resumo epigonal, quase em modelo de post-scriptum, pós epílogo, no qual lança todas as luzes sobre o mistério que acaba de explicar e resolver, ao seu parceiro, Watson; Poirot é mestre nas confissões obtidas, em narrativas quase finais, da boca dos suspeitos, às quais acrescenta as suas correcções; Marlow usa os desabafos afectivos em que faz o seu libelo acusatório.

    A chateza muitas vezes sentida em relação a alguns exemplares deste modelo romanesco resulta, de facto, a de o autor não conseguir superar, pelo menos em parte, os dados anteriores, ou seja, já realizados, do género, mas sempre, a partir deles, ter em conta os elementos formais do conteúdo e da organização da narrativa, já executados por outros criadores do género, reconhecidos como mestres. É claro que esse trabalho de inovação na continuidade se processa como um jogo, entre o autor e o leitor, que procura alcançá-lo, na sua mestria de inovação.

    Mas, para que o jogo se processe, para que o leitor o aceite, é necessário que o verosímil seja dado, desde o início, como base de credibilidade, dentro da qual o crime surja como improvável no quadro geral das convicções generalizadas na comunidade de partilha dos conhecimentos.

    Segundo Todorov, no mesmo texto, “O detective deverá apoiar-se, no seu discurso[4] final, sobre uma lógica que porá em relação os elementos até então dispersos; mas esta lógica releva de uma possibilidade científica e não do verosímil. A revelação final deverá obedecera dois imperativos: ser possível e ser inverosímil” (T. Todorov, 1968: 146).

    Para darmos um caso, diversificadamente repetido, que se tornou um dos topos mais célebres da literatura policial, o enigma do quarto fechado, podemos dizer que a evidente impossibilidade de alguém aparecer morto por um golpe humano, dentro de um quarto fechado, de onde desaparece, também, o instrumento letal, é inverosímil, mas não impossível, de um ponto de vista epistemológico que tenha em consideração as mais elaboradas conjecturas. Como, aliás, o demonstra o imenso número de célebres variantes, que vão desde os mais carismáticos fundadores do género, como Poe ou Gaston Leroux, até aos mistérios de John Dickson Carr/Carter Dickson.

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    E, para que este inverosímil surja, necessário se torna que o contexto narrativo apareça como verosímil. E como surge esse contexto narrativo verosímil no romance policial?

    A resposta a esta pergunta para ser correcta, e não surgir grosseiramente, com uma carta que se tira da manga, deveria ser morosa e pormenorizada. Deveria surgir, por exemplo, através uma análise das condições que produziram o universo de uma grande burguesia abastada que regulava um universo de estabilidade doméstica, dentro do qual a lenta e ordeira investigação do romance problema era verosímil e que, a partir dos anos trinta e da agitação financeira que acabou por conduzir à Segunda Guerra Mundial, deu lugar a uma nova ordem do mundo capitalista, em que os romances da série negra adquiriram os seus próprio contornos de verosimilhança. É claro que tudo isto não se fez sem um apoio das maquinarias gigantescas da informação.

    Como nos lembra Michel de Certeau, o real institui-se, a partir de meados do século passado, como a ordem natural das coisas: “O grande silêncio das coisas transformou-se no seu contrário através do media. Outrora constituído em segredo, passou a ser tagarela. Abundam, por toda a parte, notícias, informações, estatísticas e sondagens. […] A narrativa de tudo o que se passa constitui a nossa ortodoxia” (1990: 270).

    Cingimo-nos, por isso, a uma ou duas sugestões, relativas ao verosímil que rege a narrativa policial. Em primeiro lugar, recorremos, ainda, ao mesmo texto de Todorov: “Apoiando-se no anti-verosímil, o romance policial caiu sob a lei de um outro verosímil,   o  do seu próprio género” (1968: 146).

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    A partir deste ponto, compreendemos o campo de limitações que originam a carência desta literatura em Portugal:

    1º – A inexistência de um público leitor alargado, até ao terceiro quartel do século passado, incentivando o desenvolvimento de uma imprensa dita popular ­­;

    ­2º – A falta de uma  tradição romântica em que o romance de mistério  tenha ostentado a existência de modelos de  suspense como os que foram desenvolvidos nos espaços culturais anglo-saxónicos e, até certo ponto, franceses, criando a base que o romance de investigação vai retomar como apelo ao interesse de um público leitora alargado;

    3º – A não existência, entre nós, até quase aos nossos dias, de uma informação noticiasse o crime dando-o como um acontecimento possível, nas suas diversas fases, sob forma escrita de apresentação factos ocorridos.

    O texto de Viollette Morin, que em seguida apresentamos, nunca se poderia aplicar ao   jornalismo português, tal como foi praticado até à queda do regime salazarista: “A narrativa do assalto à mão armada é o relato de um roubo invertido. Ela desenvolve um espectáculo que se torna inverosímil desde que puxemos até aos limites da sua maior verosimilhança: a realidade da vida.

    Nenhuma reconstituição romanesca de piratas ou de gangster lhe é comparável. Mal ou bem armado, infame ladrão ou gentleman-gatuno, o romanesco coloca em evidência o seu eixo de oposição maléfica. De qualquer dos lados, ladrão ou roubado, que esteja o Bom contra o Mau, a verosimilhança mantém-se defensiva.

    man in blue denim jeans and blue shirt walking on pedestrian lane during daytime

    Um tem razão, outro não tem. Este é o seu código romanesco a sua legibilidade. Ao contrário, com a restituição da realidade, agarrada na vivacidade do seu movimento, esse código não tem mais lugar” (1968: 97-98).

    Como se vê, se o romance romântico de mistério inspirou a ficção policial de investigação, ou melhor, lhe forneceu alguns dos seus parâmetros de credibilidade, entre provável e o possível, não foi essa a única fonte escrita dos modelos romanescos, a única matéria fabulatória verosímil com a qual o romance policial se confrontou.  E a América. com a sua Série Negra tem ido buscar à técnica jornalística a inspiração para muitos dos seus mais brilhantes clássicos da literatura policial (veja-se um Hammett, por exemplo).     

    E claro que o cinema, de cariz policial ou noir tem gozado do benefício oriundo da mesma fonte. É esta tradição escrita, cuja carência em Portugal é notável (de Camilo a Reinaldo Ferreira, passando por Eça/Ramalho, são pouco mais de uma dezena de títulos a inserir-se na tradição da narrativa de dominante mistério/crime/investigação), o grande manancial onde o jogo poético, ou mecanismo ficcional, do género policial se enforma. A partir de dados de uma escrita que são outros tantos mais de um código que é o de um género narrativo (romanesco e cinematográfico).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Arvon, Henri, 1970, Lukacs, Estúdios Cor, Lisboa

    Genette, Gérard, 1968, “Vraisemblable et motivation”, in Communications, nº 11, pp. 5-     21, Seuil, Paris

    Lukacs, Georg, 1974, Écrits de Moscou, Éditions sociales, Paris

    Lukacs, Georg, 1975, Problèmes du réalisme, L’Arche Éditeur, Paris

    Morin, Violette,1968, “Du larcin au Hold-up”, in Communications, nº 11, pp. 91-98, Seuil, Paris

    Tadié, Jean-Yves, 1970, Introduction à la vie littéraire do XIXe siècle,Dunod, Paris

    Todorov, Tzevetan, 1968, “Du vraisemblable que l’on ne saurait éviter”, in  Communications, nº 11, pp. 145-147, Seuil, Paris


    [1] O realismo, segundo Lukacs, resulta, sobretudo do modo de o escritor colocar as suas personagens, sobretudo os protagonistas, numa relação com o real, referencial e contextual, empiricamente aceitável de concretismo positivo, face ao emergir fenomenal, mas, além disso em confronto dialéctico com esse mesmo real:“A «vitória do realismo» é sempre a vitória do real; uma vitória sobre as restrições erróneas, os preconceitos, as representações incompletas [e] quando, no processo de reflexo literário da realidade, o pensamento e o ser entram em contradição, [o escritor autêntico] tem a suficiente capacidade, coragem e sinceridade para se colocar, sem reservas, do lado da realidade — na sua actividade de figuração — e para deixar ao factos da vida refutar as suas própria ideias”(Lukács, 1974: 144); “A generalidade em Balzac é, pois, sempre concreta, real, conforme ao ser. Assenta principalmente na profunda concepção daquilo que é típico nas personagens individuais. Assenta na profundidade que, por um lado, longe de apagar ou suprimir o individual, pelo contrário, o sublinha e o torna mais concreto, e que, por outro lado, faz surgir as relações do indivíduo com o seu meio social, de que é o produto, no qual e contra o qual age, de uma maneira muito complicada, mas, contudo, inteligível” ( Lukacs, in Arvon, 1970: 202); “A relação do homem com mundo exterior e a energia humana em luta com o mundo exterior, só podem exprimir-se pela figuração real de uma luta” (Lukacs, 1975: 173). Com este horizonte teórico, Lukacs propõe-se corrigir as limitações que designa por esteticistas, dos realistas de procedimentos de representação mais formais, como por exemplo o naturalismo de Zola e o modo de este encarar a representação do mundo real: “O interesse já não está no interesse d(est)a história; ao contrário, quanto mais banal e geral ela for, mais ela se tornará típica. Fazer mover personagens reais num mundo real, dar ao leitor um farrapo da vida humana, todo o naturalismo está aí. […] O sentido do real só se torna absolutamente necessário quando está em causa o pintar da vida” (Zola, 1971: 215-216). Será interessante notar, dentro do quadro destas concepções, com alguns pontos de antagonismo motivadas por posicionamentos ideológicos, como o POLICIAL parece harmonizar os dois pontos de vista: ele faz apelo à importância da luta (Lukacs) pela prática do investigador na descoberta da verdade, e à dimensão da pintura (Zola) pelo que actividade da descoberta da verdade reside na qualidade do olhar que divisa os índices no interior das paisagens. O último excerto de Lukacs que apresentámos é tirado de um texto intitulado “Narrar ou Descrever”, que será sempre de grande utilidade ter presente, como instrumento teórico, do romance policial e da narrativa noir, em geral, quer literária, quer cinematográfica quer ainda de BD (temos em mente, sobretudo, uma narrativa do género daquela que foi criada pelo génio de Alex Raymond e Ward Green em Rip Kirby).[

    [2] Designação que se dá a uma doutrina (Locke, Condillac) segundo a qual todos os conhecimentos e todas as faculdades do espírito decorrem da sensação, sendo todo o conteúdo do espírito humano produto da experiência, ou seja uma forma de empirismo.

    [3] Reportando-nos à mais consensual distinção, que reconhece ao romance maior adensamento do universo diegético ou ficcional e, à novela, um maior desenvolvimento de peripécias e acções sucessivas e/ou paralelas, podemos dizer que as narrativas de Agatha Christie ou Raymond Chandler são romances ainda que de diferentes pontos de vista éticos e ideológicos, enquanto Edgar Wallace e Sapper se aproximam se aproximam mais do ritmo da novela. A nossa designação básica para uma narrativa mais ou menos alongada no tempo e no espaço é romance, como a anglo-americana é novel (que tem a abrangência conceptual do nosso romance), em espanhol é novela e em francês é roman. No cinema, a narrativa policial é, por norma, de ritmo mais marcadamente novelesco, o que se percebe comparando, por exemplo, a austeridade de cenários (ou décors) e ambientes sociais em The Big Sleep (1939) de Chandler com o filme, aliás excelente, de Hawkes, que adapta o romance, em 1946, conservando, dele, sobretudo, as grandes linhas da intriga. A mais impressionante narrativa cinematográfica dentro das grandes linhas do género, ainda que de tónica mais criminal do que detectivesca (o que se chamou, entre nós, filme de gangsters) de construção diegética romanesca, quase em tom de romance de  formação, ou de aprendizagem é, sem dúvida,o Once Upon a Time in America (1984) de Sergio Leone. Mas é preciso atenção a avaliar os textos policiais genologicamente porque, nas traduções, são muitas vezes as adaptações simplificadoras que prevalecem. Em O romance policial em português na década de 50 – da tradução: fugas, atalhos e desvios, parágrafo 1.3, do capítulo “Questões de Ordem Teórica”, acessível em ACDEMIA.EDU,  Maria de Lurdes Sampaio dá-nos um breve quadro das manipulações feitas pelos tradutores portugueses dos romances policiais, sobretudo anglo-americanos e, muito em especial, os de Chandler, em que nos parece que os textos usados pelos “transpositores” lusos  foram mais os do script do argumento para adaptação, do que os dos originais literários. 

    [4] A reunião final de Poirot, que herda o modelo das considerações finais de Sherlock Holmes, por vezes, em confidência, ao seu amigo Watson Agatha Christie criou, também uma imitação de Watson, em Hastings, que, contudo, não se manteve constante em todas as aventuras de Poirot.

  • A importância da perspectiva ocular na narrativa policial

    A importância da perspectiva ocular na narrativa policial


    A importância da análise tipológica do INFRACTOR, o estudo exegético da sua evolução ao longo dos séculos, na literatura romanesca ou mesmo na saga popular, só pode apresentar um dos aspectos (sem dúvida de grande importância) das origens da literatura policial[1].

    O campo abarcado não pode ultrapassar uma certa caracterização de tipo social por vezes ambígua, em que, embora possamos reconhecer uma anotação considerável para a análise, não deixamos de notar uma ambivalência irredutível, inlaw/outlaw, aplicável a qualquer época e ideologia indiferenciadamente.

    A crítica marxista tem sido, habitualmente, atenta, sobretudo ao fundo social que envolve o romance policial, quer enquanto elemento temático incorporado na diegese, quer enquanto contexto dentro do qual as narrativas são produzidas e recebidas.

    René Ballet, por exemplo, num texto em procura apresentar o aparato formal do romance policial reconhece que “a estrutura do romance-folhetim policia1 reproduz, sob uma forma caricatural a estrutura social tal como a concebe um certo público popular.

    Um herói (ou uma heroína) é injustamente privado do lugar que lhe compete na sociedade (a sua alta nascença é desconhecida a sua herança é usurpada). O seu principal inimigo não é o verdadeiro representante do poder, mas um usurpador; a regra do jogo não sendo respeitada, todos os golpes se tornam permitidos; o usurpador tendo roubado o seu poder, o ladrão torna-se justiceiro”.

    Ora, o tipo de relações definido na história-folhetim faz ressaltar, mais ou menos profundamente, o carácter do fora-da-lei que, até fim do século XIX, era apresentado como um desgarrado do grupo, mas que podia ser recuperado após denunciada a sua falta, depois do detective o ter integrado no contexto e lhe ler extorquido a confissão de culpado.  Quer tivesse sido usurpado nos seus direitos espirituais (psicológicos, morais), quer nos materiais (os bens a herança) na óptica que encara o criminoso, a concepção mantém-se quase permanente: alguém está fora do grupo e é urgente recuperá-lo.

    wooden armchair

    E mesmo o romance policial moderno, incluindo o de máscara negra (que tem como referência de origem os romances de Chandler e de Hammett) que, dentro do género, é uma variante muito atenta às contradições sociais (o que é mais raro no romance policial de enigma) atendendo a que sugere sempre a séria acusação a um erro social generalizado,  para lá da capacidade de decisão do  outlaw, mantém-nos numa óptica do mal  e  do  bem  mesmo que o bem esteja numa ordem a que Phillip Marlow aspira e que Sam Spade já deixou de procurar.

    E, de facto, o grande mérito destes dois heróis é terem deixado de encarar o bem detidos ou representados por este ou aquele grupo social, incluindo os representantes da lei ou mesmo por um herói lutando pela ordem contra a usurpação.

    Neles, e em torno deles, tudo aparece corrompido pelo sistema e o valor deve estar algures para lá dele, numa outra sociedade diferente. Daqui para diante será, talvez, supérfluo, sublinhar o que a observação do herói nos pode fornecer.

    Em última análise sabemos o que é Bond, o assassino da instituição, ou Hammer[2], o desesperado defensor romântico dos pontos estratégicos dos Estados Unidos: assassinos que o sistema cria na defesa contra uma entra lei de um outro sistema. Mas os detectives privados, mais próximos do paradigma crítico e existencial do século XX, são seres, por vezes, tão perplexos e claudicantes face ao real que os ameaça quanto a vítima que neles busca a protecção ou o leitor que os toma como expertos na decifração de enigmas. 

    silhouette photo of a man with hat standing near concrete building at daytime

    O que o romance de investigação de um enigma (o modelo do “quem matou?”, o who dunit clássico) veio trazer em relação ao romance de aventuras clássico, foi a denúncia, ainda que inconsciente, da situação privilegiada em que o leitor outrora se encontrava, como espectador de uma cena em que estivesse permanentemente na posição de juiz e de incontestável detentor da verdade.

    Na sua necessidade interna de criar a atmosfera do medo e do terror (reverenciando a atmosfera gótica), ou, pelo menos, de preocupante enigma, o romance policial de investigação (o romance policial por excelência) deixa transparecer a forma pela qual o senso comum precisa dos seus guardiões e como a  observação pura e simples do real não passa, de facto, de uma observação das aparências de um certo efeito do real onde os indícios estão postos de forma equívoca, iludindo um senso comum não privilegiado, sendo o detective o único detentor do privilégio de os perspectivar correctamente. Holmes ou Poirot não descobrem nada nos factos do mundo que constituem enigma, apenas têm de os ordenar devidamente.      

    Ao ser a salvaguarda, na sua época, do ponto de vista da ordem segundo as instituições que não contesta, o romance de investigação é, simultaneamente, o repositório dos indícios pelos quais o grande terror se anuncia, deixando perceber nas entrelinhas de que forma a composição romanesca é resultante, e também veículo, das coordenadas ideológicas de uma determinada sociedade e também da forma pela qual essa sociedade apreende e expressa o real, emergindo este numa organização estruturada e inconsciente que é o espectador fictício do crime e o leitor da ficção.

    Gombrowicz denuncia, e muito bem, em Cosmos, de que forma o romance policial pode ser um roteiro de indícios, a descrição de um cosmos em que o leitor, na ilusória encarnação do espectador (que pode surgir sob o aspecto de um herói, detective ou não, movendo-se no universo diegético da narrativa em causa), coordena os elementos para neles se projectar ou projéctar toda a culpabilidade de que, inconscientemente, é agente. Não “há leitura inocente” como não há visão inocente do mundo.

    É em torno deste ponto que queríamos encarar o romance policial, procurando ver nele uma imagem do real que é ordenada pela perspectiva e  a óptica e, mais  ainda, pelo jogo da perspectiva e da óptica segundo o qual o romance policial subverte todo o sistema narrativo em que assentava o romance tradicionalmente consagrado como realista, padronizado enquanto modelo clássico da narrativa moderna.

    Surge-nos Poe como um ilustre predecessor imediato da técnica narrativa do romance de investigação, e, de forma particularmente significativa, por ele ter sido um escritor a que não podemos chamar prioritariamente policial. 

    Poe cultivou um tipo de narrativa de imaginação que, como divergência do sistema narrativo realista tradicional, nos parece fundamental. Num dos seus contos mais curiosos, quanto a essa dimensão, por explorar a falibilidade das nossas percepções, e a possibilidade do nosso sistema sensorial nos enganar e nos fornecer imagens inverosímeis do mundo, The sphinx (A esfinge da caveira, como habitualmente tem sido traduzido para português) coligido em Tales of mystery and imagination[3], podemos ver a forma assaz minuciosa através da qual Poe jogou com a imagem do real, fazendo dela ponto de partida para a constituição de um universo imaginário que ganha raízes num quotidiano enformado e perspectivado pela ideologia  dominante.

    do not cross police barricade tape close-up photography

    O romance policial de investigação só  vem tomar, de forma mais grosseira  e num outro ponto que podíamos considerar de perda da consciência crítica, com outras intenções e perspectivas ideológicas, este trabalho que o poeta americano elevara à categoria de técnica  narrativa, apoiando-se nas suas terríveis suspeitas que o fantástico tinha algo a ver com o real.

    Que  nos  conta  A esfinge  da caveira?. O narrador foge de Nova Iorque, atacada por uma forte epidemia, e refugia-se em casa de um parente: “During the dread reign of the Cholera in New York, I had accepted the invitation of a relative to spend a fortnight with him in the retirement of his cottage ornee on the banks of the Hudson”.

    Assim começa um retiro que ele descreve, sumariamente:

    We had here around us all the ordinary means of summer amusement; and what with rambling in the woods, sketching, boating, fishing, bathing, music, and books, we should have passed the time pleasantly enough, but for the fearful intelligence which reached us every morning from the populous city. Not a day elapsed which did not bring us news of the decease of some acquaintance[4].

    Estamos logo, portanto, desde as primeiras linhas, sob o perigo de uma ameaça mortal, respirando uma atmosfera em que a morte é o elemento preponderante. Não é necessário recordar como esta ameaça da morte está sempre presente em qualquer novela policial, mas talvez seja recordar como ela serve de    pórtico a muitas obras em que o fantástico e o imaginário, o campo do terrífico e do erótico dominam por excelência.

    Citemos só as duas obras em que um morticínio, ou a sua probabilidade, preludia a narrativa de dotes cativantes, ou forte suspense da intriga: Decameron e As mil e uma Noites. Ora, no romance policial, desde o título que temos anunciada a visita do exterminador.

    Algo de novo temos anunciado então em relação à narrativa de aventuras do passado, que vem entroncar directamente na narrativa fantástica, habitada por entes maléficos e de obscuros desígnios: a ameaça de perigo ou do terror enunciado como ponto de partida, atmosfera   de “suspense” criada por algo ou alguém que, das trevas, ameaça o sossego, a tranquilidade e a vida. E, em Poe, parece-nos ter sido criado todo o sistema de referências tópicas que viriam a servir de significantes supremos nos romances de   investigação, elementos esses que, de certo modo, lhe são inerentes como índices, motivos, constelações temáticas. Mesmo do romance da série negra não deixa de ressaltar uma ameaça nocturna, uma entidade enigmática, das trevas, que faltou nos ambientes e cenários das façanhas reparadores das gestas e dos romances de aventuras, enaltecedores do bandoleiro que busca o resgate pela justiça social ou, pelo menos, focando em primeiro plano o fora-da-lei

    É importante que se constate, então, o seguinte: Todo o horror da visão do narrador, neste conto, surge nessa atmosfera que ele continua descrevendo ainda nas primeiras linhas:

     “Then as the fatality increased, we learned to expect daily the loss of some friend. At length we trembled at the approach of every messenger. The very air from the South seemed to us redolent with death. That palsying thought, indeed, took entire possession of my soul. I could neither speak, think, nor dream of anything else. My host was of a less excitable temperament, and, although greatly depressed in spirits, exerted himself to sustain my own. His richly philosophical intellect was not at any time affected by unrealities. To the substances of terror he was sufficiently alive, but of its shadows he had no apprehension[5]

    white ceramic bowl on black table

    Ora o estado de espírito agrava-se com a leitura de alguns livros que se referiam a determinadas coisas subterrâneas. Com brevidade,  o narrador encontra-se a descrever uma   troca  de impressões com o seu anfitrião, em  que  a  sua  própria  tese era a do valor da  crendice: “I contending that a popular sentiment arising with absolute spontaneity – that is to say, without apparent traces of suggestion – had in itself the unmistakable elements of truth, and was entitled to as much respect as that intuition which is the idiosyncrasy of the individual man of genius[6]. Ora, a crença pessoal do narrador é a de que algo de indescritível e mal definido ou indefinido, existe e pode manifestar-se de forma mal controlada pela razão.

    O fulcro da história situa-se no confronto entre o acontecimento que foi a visão aterrorizante de um monstro descendo uma colina, que teria aparecido diante da janela perto da qual o narrador se encontrava a ler e a desmontagem desse facto, que é desmentido numa segunda visão do narrador estando presente o seu familiar anfitrião.

    É perante a descrição que faz da aparição, ao seu parente, que se começa a desvendar o mal-entendido, o trompe-l’oeil, a ilusão que “criara” o monstro gigantesco e disforme, com a caveira desenhada no peito.  Ao ouvi-la, o familiar, pessoa culta e arguta, capaz de um raciocínio calmo reflexivo procura um manual escolar de História Natural e destaca, nele, algumas linhas que resume, em voz alta par o seu ouvinte.

    Tratava-se da descrição de um insecto sem qualquer anomalia, de dimensão média, uma variedade de borboleta, cuja descrição física, descontando o exagero da dimensão que a visão alucinada criara, corresponde à do monstro. Imediatamente se verifica ser a visão anormal proveniente do erro de ajuste da perpsectiva ocular tendo o narrador visto, simplesmente o animalzinho, um insecto, a percorrer uma teia de aranha para cá da janela, portanto, para cá do enquadramento da cena onde se desenrolava todo o espectáculo da paisagem com monstro.

    O próprio “anfitrião-erudito” (voz de um saber enciclopédico fundamental) faz notar, com insistência, a “monstruosa” margem de erro que pode surgir, por uma má avaliação das distâncias e, portanto, de uma má localização do objecto, no enquadramento ocular.

    Blow-Up – História de um Fotógrafo (1966), de Michelangelo Antonioni, onde, com a ampliação de perde o corpo do crime observado

    Resumamos, agora uma história de Conan Doyle, breve e exemplar “A aventura do vampiro de Sussex”[8]. O ambiente de escritório de Holmes é o local onde chegam as mais estranhas notícias, que o superdedutor recebe com um misto de suspeita e dúvida, mas, antes de ser dominado pela surpresa, põe em funcionamento um domínio da razão quase imediato. Esse é o ambiente, sempre surpreendente e misterioso, que Watson, médico, provavelmente um positivista, que representa, permanentemente, a perspectiva verosímil dos factos, contempla quotidianamente, sem que, por essa razão, se lhe desvende um só milímetro da atmosfera de inteligibilidade de que é testemunha, ao longo dos anos, irradiando do semblante e da atitude do seu extravagante parceiro.

    Sempre se queda no limiar das trevas com os seus monstros, nos recantos mais obscuros, sinais das grandes disjunções do entendimento e da razão, que Holmes controla com automática certeza e perfeição dedutiva.  Quem são os criminosos? Quem é Hol­mes? Eis um mistério que Watson e os leitores, pelos seus olhos ou pelos seus ouvidos, nunca saberão ao certo. 

    Holmes detém os monstros. Melhor, Holmes sabe ver o anormal pela força da sua formidáve1 razão, de forma a torná-lo razoável para Watson e também para nós. O detective de Doyle é, simultaneamente, o operador epistémico das virtualidades da ciência enquanto saber e domínio das regras do universo, e o detentor de uma aletheia, capaz de circunscrever as causas primeiras e últimas, detendo o alfa e ómega do saber supremo.  

    Nesta história, por exemplo, chega um pedido de auxílio para a tentativa de solução de um caso de vampirismo. Watson espanta-se, mas Holmes revela, de imediato, um plano de eliminação de hipóteses traçado no momento, logo após a leitura da carta em que o pedido de ajuda tinha sido feito. Diz a Watson para consultar o livro sobre os vampiros. 

    Lembremos o livro que elucida o narrador de Poe. O funcionamento não é o mesmo, nos dois contos que comparamos, mas, em ambos, o aspecto fundamental do livro é trazer-nos ao terreno da enciclopédia, para aliarmos o valor de verdade dos casos em causa: no fundo estabelecer as bases do status causæ em que vão assentar as crenças, as convicções ou as formulações opinativas. Em Poe, a enciclopédia, com a sua força positiva, fundamenta a espisteme. Contudo, para Holmes, a episteme é apenas uma forma de conformismo, uma doxa acomodatícia, que não conduz ao verdadeiro acto de intelecção, capaz de nos levar ao verdadeiro, a saber, a aletheia.

    Três ilustrações das construções geométricas elaboradas, se acordo com a teoria renascentista monocular (também chamada ciclópica) da pintura: de Abrecht Dürer, em cima. Em baixo, à esquerda, plano do filme de Peter Greenway, The Draughtsman’s Contract (1982 pt: O contrato) ele próprio desenvolvimento de uma história policial em que a perspertiva do pintor revela o crime. À direita, ilustração do tratado sobre a perspectiva de Du Breuil (1642-1649)[7]

    “Lixo”[9], diz Holmes, embora concorde que existem casos de real vampirismo e não só os 1endários mortos-vivos sugadores de sangue. “Esta agência tem os pés assentes no   chão e assim tem de se manter”  Não se tente levar Holmes para fora  da  razão  ou arrancá-lo da terra. “Os fantasmas não são para aqui chamados”[10]. Os monstros são criaturas das lendas. Quem olhar com a força e penetração de Holmes também ficará entre os que não declinam perante a invasão vinda das trevas, nem as perigosas ameaças do antro obscuro.

    Continuemos. Uma razão de amizade leva Holmes ao caso. Trata-se de uma senhora, em segundas núpcias, que foi vista por duas vezes a agredir o adolescente enteado e a sugar o pescoço do seu filho, recém-nascido. Foi vista a praticar estas acções. Mas Holmes, quase desde o princípio, sabe que assim não é. E a dedução é simples, a partir das premissas fundamentais. Primeiro: não existem vampiros. Que nos diz a razão? Um filho ciumento pode odiar a madrasta e o meio-irmão.  Holmes descobre veneno e o processo abdutivo desencadeia-se: Se for verdade que um adolescente sente ciúmes dos que lhe retiram espaço nos afectos familiares, é possível deduzir toda a história sem erros.   

    O jovem enteado da senhora tentou matar o bebé e a mãe deste, sua madrasta, bateu-lhe, tendo, em seguida, sugado o sangue do filho, procurando extrair o veneno. Para não chocar o marido ocultou sempre a verdade, preferindo passar por sádica e perversa. Do mal o menos.

    Holmes, contudo, não pode admitir tais anomalias. Tudo se explica pelo mal menor. Pelo senso comum, entre a mulher adulta, vampiresca, sádica-perversa e o filho vagamente incestuoso, mas órfão, o meio termo e o equilíbrio indicam-nos um só caminho: O segundo. A cena, tal como é relatada inicialmente, era enganosa. A verdade não estava patente, embora fosse evidente para quem, como Holmes, sabe pesar os prós e os contras do sensato e do possível, rejeitando o insensato e o impossível.

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    O senso comum foi para a burguesia mercantilista muito mais forte defensor da ideologia dominante do que a religião foi para a monarquia ou para o feudalismo. A sensatez, generalizada como conservadora dos seus valores ideológicos, apresentou-se com uma maior coerência, enquanto organizadora da visão do mundo, do que a religião fora para as classes anteriormente hegemónicas (clero, nobreza), pois ensinou a ver, sobretudo, na terra os indícios das forças celestes.

    A sensatez apoia-se na perspectiva da óptica. Esta é-lhe necessária para a organização de um espaço em que todo o espectador é convidado a ver, através de uma representação controlada, a imagem do real.

    Poe, no conto acima citado, dá-nos o mecanismo correcto pelo qual a perspectiva do real e o seu efeito, na obra, pode ser viciado “por um erro na avaliação das distâncias”. A tomada em consideração desse facto enquadra-se no critério ideológico do familiar anfitrião, que tem perante a clivagem política e as lutas e critérios partidários uma opinião muito “filosófica”.

    Para ele não há dúvidas de que a posição frontal e egocêntrica é a que permite uma visão correcta dos fenómenos. Não interessa muito, porém, desse ponto de vista subjectivista, saber as razões pelas quais se escolhe esta ou aquela, perspectiva, mas sim saber e notar que esta poderá mudar o que virá pôr em causa a validade da posição tradicional romanesca, clássica ou realista, que transparece no romance, no teatro ou na pintura como dominante ou hegemónica. Para a defender, já não se poderá dizer que ela é a única.  Forçosamente recorremos a um critério de valor, discutível, que pode ser confrontável, explicado e experimentado.

    Quando o relato policial de investigação se enformou, no interior da produção realista hegemónica, a técnica narrativa e, com ela, os meios credíveis de se apresentar e representar o real estavam em vias de ser postos em causa. Um conto, como este, de Poe, não deixa de ser significativo por ser a apresentação de um caso ocorrido em plena vigília de um narrador com muitas marcas de autoralidade. O que não acontecia, por exemplo, noutras histórias do autor, como Ligeia, onde a possibilidade do regresso dos mortos parece prevalecer, alternando, como hipótese, com a percepção delirante do narrador autodiegético que se sente dominado pela hipótese do retorno fantasmagórico ou, ainda nas narrativas de Nerval, por exemplo, com o seu clima onírico dominante.

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    A resposta, de superação formal, quase em termos dialécticos, é dada pelos três contos de Poe dominados pela figura do Chevalier Dupin, que são expressos por um narrador intradiegético, companheiro do dotado “investigador”, com especial destaque para The murders in de Rue Morgue.

    Não só o dispositivo narrativo introduz os termos do permanente balancear dialéctico entre as margens da realidade verosímil e a hipótese fantástica, representado pelo detective acompanhado pelo seu “narrador privado”, anexado, por isso, à história contada – processo que voltarão usar os grandes criadores e sustentáculos da narrativa policial, de Conan Doyle a Rex Stout, passando por Agatha Christie – como as histórias revelam hipóteses reais, que parecem desafiar a verosimilhança, convidando à abertura para as regiões do excepcional, do extraordinário e até, por vezes, do fantástico.

    Voltando aos dois contos aqui considerados mais atentamente, devemos registar que é ainda a explicação dos Mestres que é invocada em ambos os casos. É com circunspecta razão que a perspectiva ocular é corrigida, e é categoricamente que Holmes recusa a alusão a fantasmas .no caso de Holmes (“No ghosts need apply”). Está escrito no Livro (com todas as aparências de registo enciclopédico) que os vampiros são lendas e, portanto, o sensato e cerebral detective tem, atrás dele, como seu apoio “todos os juristas que foram encarregues, pela sociedade, de traçar o limite aceitável entre a razão e a desrazão” (Maude Mannoni, 1971: 199).

    Se o erro surge no espaço do real que está apontado para ser aquele que a razão admite, é verdade que a óptica do espectador deve obedecer a certas regras para que a imagem não surja falseada. Só Holmes nos surge como depositário daquela sabedoria da sensatez que prescreve: “Não importa tanto conhecer o débil [neste caso, tanto o leitor ingénuo como a testemunha do facto criminoso ocorrido, que carece de discernimento para o explicar] como assinalar-lhe uma situação jurídica, numa sociedade cuidadosa, antes de tudo, na salvaguarda dos bens da família” (M. Mannoni, 1971: 199). 

    Não só os débeis como os indivíduos amorais (que, por uma anomalia qualquer, ignoram os padrões de valores) nos surgem como criminosos ou cúmplices, mais ou menos passivos, mais ou menos voluntários. Mas essa anomalia é posta logo em pratos limpos e explicada, quase clinicamente a solução.

    Neste conto de Doyle, o jovem edipiano, assassino em potência, é denunciado pelo detective e ele mesmo lhe receita sem hesitações uma cura de férias. De facto, os monstros anunciados pela óptica incorrecta nunca correspondem à realidade que o “guardião” demonstra. O erro apontado pelo detective não é só o da falta ou do crime do fora-da-lei efectivo ou potencial criminoso, mas é também o do espectador, testemunha da ocorrência, que deixou o seu senso comum ser abalado ou confundido pelos sinais que não soube interpretar, pelas distâncias que não soube avaliar, para perceber o que os seus olhos viam.

    Por não garantir a correcção que a distância introduz permitido o divisar, tendo em conta a profundidade de campo, e não ser iludido pela excessiva proximidade ou empenho criado pela emoção ou o espanto.

    “A negação, a rejeição e depois a objectivação do louco, como matéria de estudo científico, são o resultado de um desconhecimento no homem dito normal, não só do seu próprio medo como também dos seus sonhos sádicos, e ainda dos mitos e superstições que lhe povoaram a infância e se prolongam nele sem saber” (M. Mannoni, 1971: ). A sensatez do detective, face à anomalia, é a “do adulto quando se encontra face a um semelhante que não é a imagem do que ele crê poder esperar, e oscila, numa atitude de rejeição e de caridade” (M. Monnoni, 1971: 201).

    silhouette of hand with red background

    A mulher não era vampiro, hipótese que seria, se tivesse sido confirmada, justificadora dessa crendice popular, dessas superstições que se instituiu serem imaginárias e não reais e a história não seria policial, inspirada pela razão, mas sim fantástica, ou mesmo pertencente à esfera do maravilhoso.

    Porém, a narrativa policial de investigação apresenta-se, quase sempre, manifestamente a correcção do erro ou mesmo da crendice e, talvez por isso, essa modalidade narrativa tenha sido escolhida, pelo seu sistema de equívoco-correcção, como estrutura modelar para o argumento cinematográfico, onde a óptica surge como tal, num sistema em que o relato se firma na figuração pura, melhor ainda, no permanente confronto da fala e da escrita figurativa e ideogramática.

    As aparências e a realidade o logro e a verdade estão num permanente jogo, no qual o que surge padronizado é o lugar em que as leis da razão reprimem as trevas e os seus príncipes empreendedores, como nos revelam, por exemplo, as narrativas cinematográficas de Hitchcock ou de Brian De Palma.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Doyle, Conan, 1930, The Complete Sherlock Holmes, Dobleday & Company, inc., New York

    Mannoni, Maude, 1971, A Criança, a Sua “Doença” e os Outros, Zahar Editores, São Paulo                              

    Poe, Edgar, Allan, 1994, The Complete Illustrated Stories and Poems, Chancellor Press, London

    Poe, Edgar, Allan, 1971, Histórias de Mistério e Imaginação, Verbo/RTP, Lisboa


    [1] Publicado em 2 de Julho de 1971 no Notícia da Beira (Moçambique). Foram introduzidas correcções e ligeiras alterações.

    [2] Os quarto “heróis”/protagonistas que acabamos de citar são personagens, respectivamente dos romances ou mesmo das longas séries romanesco/novelescas respectivamente  de Chandler, Hammett,  Fleming,  Spillane.

    [3] A edição de referência é: The Complete Illustrated Stories and Poems, Edgar Allan Poe, Chancelor Press/Reed Consumer Books, London, 1994

    [4] Cf. op. cit. p.720. Apresentamos, em seguida uma tradução potuguesa “Estávamos rodeados de todos os recursos comuns para as diversões estivais. E que tempo agradável, teríamos passado a vaguear pelos bosques, a desenhar, a remar, a pescar, a tomar banho ou entregues à música ou à leitura não fossem as terríveis notícias   que   nos   chegavam   todas as manhãs da grande cidade. Não passava um dia que não nos trouxessem a notícia da morte de qualquer pessoa conhecida” (Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [5] Cf op. Cit. P. 720. Resumimos, a partir da mesma tradução “Depois, à medida que a desgraça aumentava, habituávamo-nos a esperar diariamente a perda de algum amigo. Finalmente, tremíamos já à aproximação de qualquer mensageiro. O próprio ar do Sul parecia-nos impregnado do odor da morte. Aquele pensamento obcecante apossou-se, na realidade, do meu espírito. Não conseguia falar, pensar ou sonhar com outra coisa. O próprio ar do sul parecia-nos impregnado do odor da morte” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [6] “…eu afirmava que um sentimento popular que brotava com absoluta espontaneidade, quer dizer, sem traços aparentes de sugestão, continha em si a própria substância da verdade e era digno de bastante respeito” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [7] A especulação narrativa de Poe sobre a deformação visual que terá alucinado o protagonista-narrador do conto em questão, assenta no facto de que, resumidamente, se pode considerar que uma visão muito aproximada corresponderá à visão monocular que, a não ser corrigida, justapõe imagens. Pelo que alcança numa profundidade de campo tendencialmente infinita (numa planificação que não tem em conta a tridimensionalidade que se obtêm pela conjugação dos dois focos de percepção que são os dois olhos), funciona de tal modo que elementos no “fundo” da imagem maiores que elementos “mais próximos” são vistos com tamanhos projectados menores e vice-versa, os “mais perto” menores são vistos com tamanhos projectados maiores. Resumindo, o narrador protagonista, perturbado pelo medo ter-se-á deixado enganar pela sensação do muito próximo, não fazendo a correcção perceptiva pela a utilização dos dois olhos. É possível, mas é pouco verosímil. O resultado obtido é semelhante ao que, também obtêm, em jogos de perspectiva, Peter Greenway, no seu Contrato e Michelangelo Antonioni em Blow-Up, que evocamos por duas imagens acima apresentadas.   

    [8] Cap IV do livro The Case-Book of Sherlock Holmes (nem todas as edições ordenam as histórias da mesma forma – umas respeitam a primeira edição em livro, outras, como a que aqui citamos de uma localização online, seguem a ordem da primeira publicação dos contos, em periódicos). Cf. se pode verificar aqui.

    [9]“ ‘Rubbish, Watson, rubbish! What have we to do with walking corpses who can only be held in their grave by stakes driven through their hearts? It’s pure lunacy’.

    But surely,’ said I, ‘the vampire was not necessarily a dead man? A living person might have the habit. I have read, for example, of the old sucking the blood of the young in order to retain their youth’ ” (1930: 1034).

    [10]“ ‘You are right, Watson. It mentions the legend in one of these references. But are we to give serious attention to such things? This agency stands flat-footed upon the ground, and there it must remain. The world is big enough for us. No ghosts need apply. I fear that we cannot take Mr. Robert Ferguson very seriously. Possibly this note may be from him and may throw some light upon what is worrying him’ ” (1930: 1034).

  • O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário

    O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário


    A questão é incómoda e só com algum atrevimento nos é possível abordar a escandalosa coincidência, no plano do consumo, de, por exemplo, um romance de Morris West, Jacqueline Susan ou Leon Uris com o Ulysses de Joyce; contudo, a abordagem do best-seller, a menos que se entrincheire no diminuto reduto das certezas da arte literária para atingir com a suspeita a qualidade duvidosa dos não eleitos, tem de passar antes de mais pela constatação de um fenómeno: há livros que, por obra de uma publicidade mais ou menos deliberada, do activar engenhoso dos interesses informativos do público, atingem uma dimensão de venda que os tornam notáveis, mais do que outros que fazem parte da cultura mas que ficam esquecidos como objectos imediatos de leitura ou, pelo menos, de compra.

    Em consequência disso, e de se indicar o seu alto índice de compra, tornam-se ainda mais vendidos, transformando-se numa referência que, num determinado momento, se tornam uma espécie de moda. Tais fenómenos de mercado são chamados, numa designação que ultrapassa as barreiras da teoria literária, da genologia e da análise morfológica, best-sellers.

    Ulisses, de James Joyce, um clássico publicado originalmente em 1922 em Paris. Um exemplar da primeira edição pode valer cerca de 20 mil eiuros no mercado.

    Tanto quanto a memória nos diz, esse termo data de meados do século XX, proveniente do mercado livreiro americano, e aparece como uma informação de claros propósitos persuasivos, tendente a criar uma frase exortativa do tipo “toda a gente já leu – porque é que você não faz o mesmo?”

    Não pretendendo ser esse o nosso objectivo, aqui, não podemos deixar de pensar que seria bem interessante determinar o facto com verdadeiro rigor ou seja, o momento em que a expressão deixa de ter funções adjectivas, para se torna uma designação substantiva, um conceito com valor quase genológico.

    Resignando-nos com a falta de uma investigação satisfatória sobre o esclarecimento de tal matéria, o que nos resta fazer, de momento, é lançar algumas conjecturas e apreciações sobre mecanismo de selecção accionado, partindo dos elementos do mecanismo com os quais temos contacto mais directo.

    O primeiro elemento desse mecanismo de activação de interesse, venda e leitura, cuja existência postulamos, assemelha-se à formulação entimémica: o que é massivamente procurado pode ser índice da qualidade presumível do que se anuncia, arrastando, como causa ou antecedente “lógico”, a hipótese de que o que já agradou a muita gente por certo será do agrado de toda a gente.

    As reservas são, normalmente, de uma estirpe de maçadores armados em elite que, por vezes, teimam em não alinhar com as maiorias. É evidente que esses seres bisonhos existem, olham para tudo o que não está rotulado com as legendas canónicas de literário ou até de clássico, com ar de suspeita e lançam a dúvida, muitas vezes injustamente, sobre a qualidade do que é popular no sentido que o termo tem nas sociedades modernas: lido por “toda a gente” sem qualquer critério sólido de selecção.

    Não nos é possível desfazer e tornar claro todo este novelo de questões que tocam, como o leitor mais experto notará, em alguns dos problemas de fundo da literatura e da arte em geral: selecção, literatura, qualidade, capacidade de critério estético, popularidade, elitismo, etc., numa infinitude de vias e argumentos que nos deixam tontos. Porém, alguma coisa se pode fazer.

    Antes de mais, constatar que, por exemplo,  facto registado como motivo de grande surpresa,  a edição portuguesa de Ulisses de James Joyce – obra que ainda se pode considerar muito difícil, de leitura muito complexa não só pela sua elaboração textual, pela complexidade da sua gramática narrativa, mas até pelo sistema referencial de toda a cultura ocidental e irlandesa (pela sua hipertextualidade disseminada e inquieta, enfim) que nela é posto a funcionar, a cintilar – tenha atingido o sucesso livreiro que atingiu, tendo sido considerado um best-seller.

    Pressentimos que o mecanismo posto a funcionar, na operação de marketing efectuada por editor e livreiros, é o do kitsch, com as implicações que ele impõe: retirar ao objecto a sua funcionalidade primeira, reduzi-lo a objecto de mostruário, colocando como primordial a sua perceptibilidade mais imediata, tornando-o ícone ostentável da sua função primordial de origem que deve ser indicada mas não activada.

    Uma obra cimeira da literatura e da legibilidade literária, conotada com a problemática poética da própria legibilidade/ilegibilidade/escritibilidade, fica, assim, notabilizada pelos seus aspectos culturalmente mais frágeis: a intensificação da reprodutibilidade do produto editorial, a iconografia do seu nome, e a valorização visual do volume-livro.    

    No entanto, e apesar da realidade recente que funda a etimologia, não é ao fenómeno de mercado, na sua pureza sócio-económica, que nos referimos, quando falamos de livros pertencentes a um género, intuitivamente reconhecido por todos (notar-se-á, também neste caso, como em toda a genologia, o esforço é para abordarmos noções arquitextuais – difusas, como não pode deixar de ser – em tom de elaboração teórica, como se nos aproximássemos de conceitos estabilizados, a partir de noções intuitivamente reconhecidas) como best-seller.

    Na sua conotação depreciativa, que é também a genológica, best-seller designa um conjunto de obras que enfileiram em certas colecções, ou que constituem a produção de um autor, que são bastante conhecidas e às vezes estão na origem de filmes (no caso mais frequente é o que acontece  ao romance best-seller) ou de programas televisivos, mas que todos reconhecem pelos seus traços fundamentais implícitos – mesmo quando difíceis de enumerar na totalidade, ainda que possam ser resumidos em três ou quatro tópicos: a pobreza ideológica pela banalização dos valores, a recorrência dos motivos temáticos, a popularidade dos seus elementos e situações bem como o conformismo estético-cultural.

    A cultura como informação

    O trilho habitualmente seguido pelo sistema do best-seller, seja qual for o género “canónico” em que se inscreva por semelhanças estruturais do discurso, aponta, antes de mais, para uma problemática de informação. Há uma espécie de desejo compulsivo de cultura, de saber sobre o “mundo postulado como real” que caracteriza o público consumidor desse material bibliográfico.

    O best-seller é, na maioria esmagadora dos casos, uma obra que fala sobre um tema candente, uma problemática apaixonante, um acontecimento capaz de comover amplas camadas sociais. Como muita da outra produção literária normalmente assumida como marginal, de amplas edições e alto consumo em certas épocas e em certos momentos de moda (há ou houve a do policial, a da FC, a do fantástico, a do romance cor-de-rosa) o best-seller emerge como resposta a um ambiente informacional favorável, seguindo de perto, de maneira mais ou menos evidente, o tema que na comunicação social se encontra mais agitado.

    black and white typewriter on white table

    Não é possível determinar todos os meandros desta influência nem detectar exactamente como se engrenam os assuntos do dia. Pode a activação de um imaginário ser desencadeada por um programa particularmente feliz de TV, ou pelo eco que determinado acontecimento atingiu no noticiário. Os chamados dramas humanos, aqueles que apresentam uma vítima da desgraça, a tragédia de alguém dividido entre um dever transcendente e o sentimento mais banal (amor filial, paixão não correspondida ou contrariada pelo dever), a catástrofe colectiva que tenha por motor um dado irracional (a etnia perseguida pelas convicções religiosas – os judeus, por exemplo) tudo o que assente, enfim, em axiologias implicadas por inquestionáveis tradições já enraizadas em determinados universos culturais e civilizacionais, serve de tema privilegiado para o livro best-seller.

    De certo modo, atrás do apelo mórbido de uma temática da fatalidade (duas doxas que se opõem, cindindo tragicamente um ou vários protagonistas ou colocando-os diante de um problema de consciência), há um apelo informativo directamente entendido pelo leitor do género: ele quer e procura saber mais, informar-se, conhecer mais profundamente o caso através do romance inspirado por ou lendo o relato, a série de entrevistas, a biografia ou a autobiografia ou mesmo a monografia ensaística que aborda o tema em questão.

    A actriz bela assassinada, a prostituta que ganha muito dinheiro e é feliz, o padre que se divide entre os deveres da ordem e os apelos do amor, ou da família, ou do grupo racial ou da nação, são esquemas que, por assim dizer, entroncam no apelo romântico do caso como tema – ou, mais correctamente, no apelo romanesco-sentimental do caso como singularidade e como excepção. É claro que o aspecto informativa busca menos na casuística “romântica” o apelo ao leitor, fazendo incidir antes o interesse no desfilar de coisas extraordinárias ainda que “verosímeis” que são apresentadas.

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    O caso da obra “crua”, reveladora de uma “realidade” social sórdida e inevitável, a demonstração cabal de que as classes altas vivem nos mais “abomináveis costumes”, a confirmação de que na vida só se triunfa pela baixeza e pela infâmia, parece-nos ser revelador dessa apetência de uma massa leitora pelo “realismo”, que fornece a dose doentiamente esperada de desagrado (perante uma formulação ética normalmente hipócrita que vacila como um fascínio denegativo numa expressão do tipo: “como eu gostava de ter participado daquele horror! – mas sem ser tocado pelas suas consequências…até porque não devo!”) que confirma como os princípios da crença são a única protecção contra as tentações do mal – mas como a experiência fantasiosa dele é necessária para a catarse.

    Desejo de informação e apelo do conhecimento que está na moda, vontade de estar em dia com o que se diz por esse mundo fora, parecem ser motivações para um terceiro aspecto característico dos best-sellers, talvez o mais fascinante de entre ele: a busca de resposta para as grandes temáticas antropológicas. Daí, entre esta casta genológica que procuramos embaraçadamente delinear, resulta que aparecem livros sobre astrofísica, ciências naturais e humanas que atingem altas procuras no mercado e que são parcialmente (até um ponto de insuportável rotura) devorados pelos leitores desprevenidos.

    Formulações sensacionalistas que apregoam, sobre um livro, que ele dá respostas a questões tão importantes como o problema da morte, do destino da humanidade, das origens da vida, fazem de imediato incidir sobre tal texto as atenções doentias. Ao lado das obras como Um Pouco mais de Azul, de Hubert Reeves, que parece responder ao desejo fundamental de conhecer os limites do universo, vêm, depois, enfileirar-se tratados práticos sobre a forma de obter o prazer sexual utilizando o yoga, ou respostas aos desejos de felicidade pelo domínio da ciência do karma… o aparato retórico e científico fornecido pelo modelo reverte em favor de todas as especulações oportunistas e, por vezes, assumindo o modelo argumentativo do senso comum, evocam os benefícios da mais crassa candura – que lembra a estupidez.

    A retórica do realismo

    Apesar de todos os casos acima se poderem incluir no “género best-seller, ainda que pertencentes a variados tipos de discurso, o que aqui nos importa, como zona específica (até porque típica) do conjunto é o do género literária tradicional, clássico, privilegiado como modelo, num horizonte que participa da aspiração cultural e da interiorização das regras da boa leitura: o romance “clássico”, ou seja, que cumpre certas regras que uma determinada tradição “culta e escolarizada” considera “boas”.

    Mesmo quando não se pode perceber, pelo apelo do saber na moda, como Joyce atingiu o lugar, nos escaparates, do best-seller, dado que a moda nada tem a ver com as suas características específicas, podemos pontualmente aceitar que ele se tornou muito falado e vendável porque e escreveu um “romance” – e é um “clássico”, pelo que o saber trivial divulga.   

    Narrativa bem “regulada”, forma de discurso capaz de veicular informação segundo modelos antropologicamente fortes pelos traços de representação, vigorosamente actuantes desde o mito até ao romance moderno pelos valores amplamente difundidos de que são emblemáticos, a ficção típica do best-seller assenta, de facto, a sua legibilidade, sobretudo, nos traços mais notórios de um género tornado clássico, no Ocidente: o romance realista.

    opened book

    Por abstracção desse modelo, que poderia ir do romance de costumes ao de aprendizagem, o que vigora, em grandes linhas é o conto alongado de um (ou vários) protagonista que se defronta com o mundo, busca nela resposta, uma ciência da vida. Normalmente, uma sabedoria do trivial que transporta um provérbio de monótono bom senso para uma atribulada deambulação pelo mundo dos enganos constitui o tema esquemático privilegiado.

    A grande ciência, a última, a suma teleológica do género assenta na máxima do saber viver com mais ou menos custo, com mais ou menos atribulações. A visão antropológica pícaro-realista é a grande fonte de inspiração, depois de expurgada e desproblematizada. A banalização de desvendamento do naturalismo é a pedra de toque para a produção controlada de todo o dizível e, portanto, de todo o visível.

    O uso da elipse sensata nas perigosas revelações da sexualidade, o uso do provérbio na reflexão sobre a existência, os modelos reconfortantes da narração centrada num saber omnisciente, uma confiança na lógica da temporalidade e uma hábil gestão das técnicas de focalização, apresentando os mecanismos narrativos mais usuais, são condições para uma boa recepção, ou seja, garantia de que a peça fabricada atinge o alvo com segurança.

    Mas, sobretudo, o verosímil, a conformidade com um real altamente codificado enquanto percepção tem de estar claramente formulado. Daí, talvez, o best-seller de matriz realista ter dificuldade em sobreviver muitas gerações. A alteração dos costumes, das crenças banais, tem de ser calculada em cada momento.

    Uma apaixonada suicida em nome da honra não seria motivo de aceitação nesta visão do mundo adaptada aos dias de hoje. Um herói que pusesse os princípios acima do desejo de sucesso social seria encarado como um idiota inverosímil. O que constitui o arrojo nas regras do jogo no romance de Balzac, torna-se a banalização triunfalista do oportunista do herói aceitável dos nossos dias.

    woman holding book covering half face

    É por isso que a revelação desmesurada na visão do mundo do texto balzaquiano se reduz a uma receita do “dar a ver” realista que encanta no romance de sucesso popular dos nossos dias. O mecanismo artificioso é como que esquecido; para o leitor apressado, mais em busca do esquecimento do que da interrogação, do saber do que da pergunta, interessa sobretudo a redundância do conformismo enquanto tal, a todos os níveis.

    O mecanismo em causa é de tal forma poderoso que, mesmo em circunstâncias em que o sucesso (presume-se) não é procurado pela via da facilidade, ele funciona na mesma. No seu Poetics of postmodernism (Routledge, New York) Linda Hutcheon afirma sobre a duplicidade paródica da ficção pós-moderna:

    “De certo modo, como já argumentei, o novo romance (nouveau roman) é, consequentemente, muito mais radical em forma do que qualquer romance pós-moderno. Aquele assume que o seu leitor conhece as convenções da narrativa realista e por isso procura subvertê-las – mas sem fazer como o pós-moderno, que as inscreve. Ambos procuram mostrar a natureza convencional dos processos vulgares de construção dos mundos romanescos, mas a metaficção historiográfica confirma e depois sabota esses mundos e a sua construção. Talvez isso explique porque razão muitos romances pós-modernos têm sido best-sellers” (1988: 202)

    A transtextualidade: as regras da imitação e as condições da crença.

    O que o best-seller nos vem mostrar, se o que sobre ele dissemos tem algum fundamento, é que ao lado de uma literatura de evasão (às vezes buscando no fait-divers apenas uma pequena parcela de caução de verosimilhança, como acontece com o policial em relação à imprensa “criminal”) que aponta claramente para os mecanismos do fantástico como apelo primordial, onde o acto de contar se compromete com a aspiração irrecalcável do universo do devaneio, do “seria tão bom que…”, existe uma outra via de integração nos gostos generalizados que parece paradoxalmente a sua antítese, apelando para o desnudamento realista.

    Só aparentemente existe tal contradição, pois o que a técnica do best-seller nos dá é uma movimentação da crença, só que assumida a um outro nível. Se a crença infantil e popular é irreverente, desmesurada e inconformista, os seus monstros estão perto em aspecto dos grandes fantasmas do fascínio e do medo, a crença do leitor moderno é acomodada no interior de uma vulgata positivista e cientista que faz do real, do exorbitantemente real, um centro de apelo irreprimível.

    brass quilt pen

    Claro que, se para o folclore e para a criança os ogres e os lobos emergem como figuras da inquietação e da desinquietação, para o moderno leitor adulto essas figuras do medo têm de emergir investidas de factores de aquietação, tranquilizantes. O seu mundo é um real verosímil onde as grandes ameaças estão domesticadas ou então têm nomes que asseguram o controlo das forças hostis, mas manobráveis: são marginais, ou loucos, ou comunistas, ou bandos subversivos de direita ou esquerda ou fundamentalistas islâmicos desaçaimados.

    Se o monstro tiver o perfil de Hitler, ou os tiques de um nazi actuando para a KGB, a fábula assume as proporções de uma informação realista, o possível torna-se apaziguante e o sonho mau passa como um relato carregado de informações sobra a última grande guerra ou a guerra-fria. Mesmo que a guerra seja santa e o alvo sob mira se revele muito mais como moderna gesta de cavalaria em direcção a uma Jerusalém a “libertar”, do que como relato objectivo do retorno sionista à Palestina.

    O sentimento da verdade histórica fica assegurado se meia dúzia de nomes controversos se erguer como um punhado de heróis da reconquista, tendo por detrás a documentação dos periódicos reconhecidos como equilibrados, desde os anos 40 e 50 até hoje.

    Cabendo claramente dentro da relação transtextual do hipertexto com o hipotexto de valor genérico, ou seja com o arquitexto, de que nos fala Genette em Palimpsestes (Seuil, Paris, 1982, p. 60-61), o best-seller canónico, de tipo romanesco de imitação, tem objectivos sérios e veste roupagens de adaptação aos mais severos rigores de um grau zero da escrita da actualidade – ao contrário dos casos mais conseguidos da paródia moderna (ou pós-moderna, como querem alguns). 

    A rejeição frequente, mesmo por leitores apaixonados de best-sellers, dos que foram consumidos pela geração anterior, com uma velocidade que ronda a da mudança na moda do traje, talvez encontre justificação na seriedade dos valores que nele se imprimem. De certo modo, a busca cuidada do autor de sucessos, contrariamente à busca do escritor que se empenha na revolução que cada obra procura ser, nos processos de desautomatização ou de estranhamento de que nos fala o  formalismo russo, é uma busca de automatismos de escrita, de identificações e de identidades, de utilizações e de lugares-comuns que, sob a estrutura novelesca do realismo, faz o efeito do segundo guia para leitor que, sendo supostamente desprevenido, é, além disso, tomado como próximo da estupidez e da ignorância.

    Se muitos textos de grande público piscam o olho ao leitor de cultura cosmopolita, a maior parte deles não se arrisca e, mesmo que tenha como assunto um tema de sucesso na comunicação social, na maior parte dos casos parafraseia e explica redundantemente para que a mensagem não escape.

    Restaria talvez acrescentar um reparo a estas notas sobre terreno que, cremos, nunca foi razoavelmente explorado. A tendência do best-seller é para a redundância dos mecanismos de reconhecimento. Não desenvolve apenas o recurso ao género, que poderia ser um saudável trabalho sobre o arquitexto, como sugere Hutcheon.

    Nem sequer aos modelos canónicos autorais, o que poderia activar uma saudável relação hipertextual. São os próprios universos ficcionais recriados que se evocam a traços largos, para os leitores não se perderem na escolha. 

    Para citarmos um caso nacional, Manuel Arouca produziu a hipertextualidade à segunda potência quando, com Os Filhos da Costa do Sol,parafraseava o título do best-seller de James Michener Filhos de Torremolinos.

    Isso vem provar que não é preciso sugerir que se inventa ou se busca um universo estranho ou populoso onde o excepcional pode acontecer, para ser sucesso editorial fácil. Basta dar com a receita local e com o verosímil que se aceita numa certa fase histórica – mesmo que os horizontes sejam estreitos.

    A receita, entre nós, tem dado frutos que mostram claramente os limites do género – buscando o geral na mediania, e o reconhecível no fenómeno estritamente local, temos o sucesso editorial no cavaqueio de todos os dias. Se o grande acontecimento é a notícia e o notável é “colunável”, o best-seller inclina-se para o encanto onde o grande acontecimento é ser notícia e o fenómeno digno de registo é surgir na fotografia ou na imagem do noticiário ou do programa com máximo de audiência. Teríamos aqui o modelo de um certo sucesso de escrita – não do eterno retorno, mas da porca giratória, ou da batedeira

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Genette, Gérard, 1982, Palimpsestes, Seuil, Paris

    Hutcheon, Linda, Poetics of postmodernism, 1988, Routledge, New York


    Texto originalmente publicado na revista Vértice, n.º 23, 1990

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  • Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve

    Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve


    [notas “quase arquivadas”, que publicamos em sentida homenagem ao povo da Beira pela catástrofe que o atingiu, quinze anos depois de estas terem sido redigidas]

    Este texto não resulta de uma investigação. Quando muito, decorre de algumas reflexões praticadas em função de uma vontade de efectuar uma pesquisa. O seu objecto central é o cinema. Não os filmes, não os textos singulares, ou qualquer corpus singular que os inclua.

    Pretende, sobretudo traçar as linhas muitos gerais relativas à possibilidade de reflectir sobre o cinema enquanto fenómeno cultural. Não apenas sobre a existência do cinema enquanto conjunto de películas, textos e de discursos recebidos pelos espectadores, mas também sobre o cinema como sistema de produção e circuito de distribuição.

    woman in white shirt and orange skirt walking on gray concrete pathway during daytime

    Sentimos a necessidade de determinar, desde já, dois elementos constituintes do objecto cultural que temos em vista: o objecto discursivo que entendemos por cinema, encarando o fenómeno na sua máxima generalidade; e o tempo/espaço como unidade delimitante  em que decorre ou se manifesta esse fenómeno. Parece-nos que o segundo elemento é o que deve ser esclarecido em primeiro, no discorrer das nossas perplexidade, dado que este se nos afigura como termo motivador principal destas notas que têm em vista estruturar uma base para futuras pesquisas.

     Assim, tal como fica indicado, logo à partida, pelo título desta nossa exposição, o local onde centramos a nossa atenção é uma pequena parcela do território Moçambicano, a cidade da Beira.

    Curiosamente, do ponto de vista cultural que aqui nos importa, esta é uma das poucas localidades importantes do país que não mudou de nome depois da independência. No entanto, é importante precisar, para tornar mais clara a nossa exposição, que o período histórico a ter em conta como momento cultural, é da fase final do domínio colonial português. Um momento de crise ideológico-político-militar que é importante ter em conta como unidade específica dentro da formação discursiva que a ocupação colonial gerou.

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    Quanto ao cinema, sem nunca perdermos de vista o espaço africano a que fazemos referência, tem tantas acepções, hoje em dia, que se torna necessário esclarecer, desde o início da nossa reflexão, qual é a acepção em que o tomamos quando falamos dele (cf. Fárid Boughedir, 1974: 123, in Présence Africaine, nº 90).

    De facto, o cinema tem sido qualificado como arte, indústria, comércio, meio de expressão, meio de informação, meio de educação. De um modo geral, ele é tudo isso, mas, para um cineasta, crítico e comentador com foros de teorizador como Boughedir, de origem tunisina, o cinema deve ser encarado, sobretudo, pelo seu “aspecto educativo, quer dizer, tendo em conta o seu efeito sobre o público” o que o leva a considerar que há dois géneros de cinema: “o que faz evoluir o espectador no sentido do progresso e o que o faz estagnar cobrindo-o de mentiras” (p.123).

    Do nosso ponto de vista, o que importa sublinhar, tendo em conta as nossas próprias indagações, é a sua dimensão de arte. Não colocamos a óptica, evidentemente, no lado selectivo e até elitista que tal conceito arrasta, mas enfatizamos, antes, o lado de linguagem elaborada, de linguagem de modelização secundária (segundo o conceito de Lotman) que o cinema tem primordialmente.

    grayscale photo of 2 people on boat

    É num momento posterior, decorrente do reconhecimento que cinema funciona, sobretudo, como construção representativa altamente elaborada, que nos parece importante colocar a tónica da sua relação com os públicos que atinge. É claro que, colocando ênfase nessa dialéctica entre a representação ficcional (mais ou menos fantasmática, ideologicamente alienante) e a  função educativa, abrimos o debate fundamental que se trava entre o discurso persuasivo das classes e dos grupos dominantes e réplica mais ou menos activa e consciente dos destinatários.

    Nem sempre, contudo, o encontro ou desencontro de opiniões ou de imaginários é fácil de delinear. Como sustentam Ella Shoat e Robert Stam “o cinema” sobretudo o de Hollywood, combinava a narrativa e o espectáculo para contar a história do colonialismo da perspectiva do colonizador” (2002).

    Por outro lado, um dos horizontes mais antigos e constantes que se manifesta no discurso de resistência ao colonialismo, o que se pretende reforçar, do ponto de vista do colonizado, é a representação da sua autenticidade, dos seus valores, dos princípios que o fortalecem na sua humanidade e que o tornam um sujeito integral no interior da sua cultura. Admitindo que estes são os pólos da questão, interessa sublinhar, desde já, que o seu delineamento não fácil. E talvez não seja possível. De qualquer modo, a nossa intenção quanto a essa matéria, aqui, é ter a noção desses traços discretos da contradição ou do confronto. Apesar disso, não tentaremos colocá-los, pelo menos no seguimento desse confronto, na nossa argumentação.

    O fio da nossa reflexão desenvolve-se num terreno mais indefinido. Não porque preconizemos contemporizações, mas porque nos importa interrogar alguns dos matizes segundo os quais o confronto se dá ou o debate emerge na formação discursiva colonial, no momento histórico discreto, perceptível, em que a dominação política colonial enfraquece. É um momento curioso. Não damos por ele no momento.

    Golden Gate Bridge

    Ninguém podia assegurar, na véspera do 25 de Abril, que este ia acontecer. Por outro lado, as dinâmicas político militares e os discursos ideológicos e culturais que os acompanhavam, não se encaminhavam para esse momento. As frentes de batalha estavam desenhadas quando o 25 de Abril, no interior das hostes ocupantes, revelou quão profunda era a fractura nele inserida.

    No caso específico de Moçambique, e, muito em especial, no espaço cultural da cidade da Beira, registam-se vários fenómenos que nos permitem interrogar a variação cultural que o cinema introduziu na dinâmica ideológica. À superfície, a cidade da Beira é constituída por uma classe dominante liberal. Mesmo nos momentos mais árduos da defesa dos bastiões coloniais, os grupos sociais que constituíam a classe média alta da cidade revelavam-se bastante liberais.

    Não se defendia abertamente o regime, o discurso anti-salazarista era bem tolerado e as instituições culturais permitiam a emergência pouco dramática dos discursos da oposição. É claro que, por coerência interna do apoio à defesa das “províncias ultramarinas”, não eram permitidas simpatias de qualquer espécie pelos grupos “terroristas”, ou pelos “agentes da desordem”. Não era pensável defender abertamente a Frelimo, por exemplo. Mas por virtude da sua própria hipocrisia, o discurso oficial dominante não podia impedir, por exemplo, que fosse defendido o anti-racismo e que o apartheid da África do Sul fosse condenado.

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    Numa situação oficial, na presença de uma autoridade em funções, a África do Sul não poderia ser condenada. Contudo, em situações menos oficiais e mesmo em intervenções oficiosas, em crónicas jornalísticas, por exemplo, esse ataque, desde que não fosse hiperbólico ou disparatado, era possível.

    Por outro lado, a África do Sul, com os seus princípios anglo-saxónicos, com muito prestígio da dimensão liberal “anglo”, sobre o puritanismo mais estreito dos Boers, era apologista de uma fruição cultural sem barreiras. Assim, por exemplo, para regressarmos ao objecto da nossa abordagem, o cinema que passava pelas salas das grandes capitais da África do Sul, os filmes que circulavam nos seus cine-clubes, eram obras que, no entender da vigilância censória, não podiam entrar em Portugal. Só não podiam, na nação austral, era ser francamente anti-apartheid.

    Ora, um fenómeno curioso que se dava em Moçambique era a circunstância de os filmes serem importados directamente da África do Sul, aproveitando o circuito de distribuição que a alimentava, sem passarem pelo mecanismo censório que imperava em Portugal. É verdade que existia uma censura em Moçambique, mas ela funcionava de modo local.

    Os filmes eram censurados por habitantes de Lourenço Marques e da Beira, sobretudo, que eram cidadãos do mesmo nível e estrato social a que pertenciam os espectadores. Se tivermos em consideração que o público dominante dos cinemas é, na altura, uma classe que se pode considerar de elite, constituída, sobretudo, por cidadãos “brancos” ou por alguns raros elementos de origem africana, ou negra, ou mesmo miscigenada, pertencentes a uma burguesia de quadros qualificados, percebemos que os valores em causa, quando se tratava de cinema, eram bem diferentes dos que vigoravam em Portugal.

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    Esquecemos, neste olhar em que apresentamos quase  um idílico falanstério tropical − constituído pelas classes médias cosmopolitas, dependentes do colonialismo, mas sem o apoiarem directamente, ou, pelo menos, abertamente −, as classes populares, as de pé descalço, as dos maltrapilhos, operários, tarefeiros, serviçais e desempregados que, por não corresponderem aos princípios do “direito de admissão”, nem sequer se aproximavam dos cinemas.

    Não falamos do cinema suburbano e itinerante que os servia, porque mal o conhecemos: apenas a referência de alguns amigos que o frequentaram, brancos como o poeta Rui Nogar, ou “pessoas de cor” como José Craveirinha, nos permite fazer ideia dele. Por caricatura, a partir da factualidade, e para servir de exemplo, podemos dizer que entre os filmes (da verdadeira e genuína série B, então) mais projectados entre os “autóctones” constavam, como clássicos,  os que tinham como herói Tarzan.

    Estamos a falar de um mundo ou de um país onde a representação da vida real da maioria da população não se praticava. Nem mesmo em documentários, como posteriormente foram feitos ainda que de modo insuficiente, pelo governo que liderou a independência.

    Sambizanga, realizado em 1972 pela francesa Sarah Maldoror.

    Um filme, como o de Sarah Maldoror, Sambizanga (1972), sobre a luta de libertação, era impensável então nos cinemas africanos na Área de influência em que Moçambique colonial se inseria. Mesmo mais tarde, essa obra importantíssima, que tão carinhosamente foi promovida pela Frelimo, não teve a importância cultural generalizada que merecia.

    Mesmo para os cidadãos das classes menos desfavorecidas, nas quais nos podemos incluir, como cidadão residente na Beira, na época, jornalista a tempo inteiro e crítico de cinema, dentro das atribuições profissionais, Moçambique, no cinema ou na imagem “cinematográfica” não existia quase. Algumas reportagens de acolhimentos a “autoridades da Metrópole”, eram as que mais fielmente apresentavam a população. Sempre festiva e de aspecto “despreocupado”, nunca faminta ou carente.

    A ficção cinematográfica, é verdade, glorificou Moçambique. Sem um único exterior local, a película Chaimite, de Brum do Canto (1952), constrói aquele que podemos considerar o maior filme épico português. Moçambique está lá. Talvez também lá esteja uma parte da alma Moçambicana. Gungunhana é maltratado, mas, pelo seu peso histórico especifico, ainda hoje pode justificar uma recuperação crítica do filme. Mas esta não se pratica. É uma presença fantasmada. Como o Moçambique representado é apenas uma alusão de localização.

    Dos moçambicanos contra os quais se bateu Mouzinho de Albuquerque apenas temos as sombras. Sombras de guerreiros caricaturadas… de algum modo, curiosamente, ensombrando as glórias portuguesas. Podemos, ainda hoje, lamentar que esse filão épico não tenha sido explorado.

    Parece que  faltou aos defensores da pátria portuguesa, nos seus melhores momentos artísticos, todo o ambiente cultural, a profunda vivência de uma má consciência com a que se desenvolveu num John Ford, por exemplo. Manoel de Oliveira vem, em visões africanas obtidas em exteriores do Senegal, reevocar, por vezes de modo muito produtivo, essa dimensão da épica. Mas o que ele nos apresenta é uma “África” colonial portuguesa, não este território ou aquele. Ele fala mais da essência da guerra do que do fenómeno conflitual e dos labirintos da sua continuidade. E filma África no Senegal…

    Neste ponto, tocamos no centro nevrálgico da questão que se coloca a um cinema moçambicano, o das suas faltas estruturais. Do colonialismo herda-se pouco. Herdam-se perdas, sobretudo. As heranças são mais as dívidas do que as estruturas. E quanto mais pobre a Metrópole, menos são as possibilidades do futuro… Talvez seja isso que nos explica a razão pela qual um cineasta como Rui Guerra, que constou desde o princípio entre os maiores do Cinema Novo Brasileiro, se “afastou” de Moçambique.

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    Não pretendemos analisar o fenómeno mas apenas registá-lo. Não foi, de certo, pela falta de simpatia do cineasta pela revolução moçambicana, nem pelo desinteresse dos dirigentes moçambicanos, que a aproximação não se deu. Nem pela falta de interesse de um público de língua portuguesa interessado no cinema… Mal ou bem, a um Sembéne Ousmane foi possível migrar da literatura para o cinema, no Senegal… porque herdou uma estrutura diferente: a não menos colonial, mas mais poderosa máquina de produção francesa.

    Notemos, no entanto, que a actividade cultural em torno do cinema não era nada conformista, no tempo da ocupação colonial, mesmo no auge da guerra ou ainda quando esta já era desfavorável ao regime português. Quatro cinemas, em várias sessões diárias, chegam a alimentar os lazeres ou os interesses culturais das classes sociais menos desfavorecidas, vivendo das benesses do seu estatuto social.

    Nós próprios praticámos uma crítica de cinema constante no jornal Notícias da Beira. O director do jornal (F. Gomes) era sócio maioritário da empresa proprietária dos cinemas, e seu administrador…

    Tivemos confrontos e desentendimentos, tentou ameaças, mas nunca me demitiu da função. Rui Nogueira escrevia crónicas de Cinema que publicava na página cultural que era dirigida por mim… e não defendia os filmes que mais interessavam comercialmente. A sua actividade nunca cessou, até ao momento em que foi possível manter colaboradores (não o era depois da Independência).

    Fachada do Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade moçambicana de Beira, entretanto desactivado.

    A crítica de cinema já era uma tradição no jornal, iniciada, com total independência e isenção por Rui Coelho de Campos, que deixou de a fazer por ter regressado definitivamente a Portugal, quando comecei a fazê-la. Manteve-se, até depois da independência, quando a sobrevivência do Jornal já não era possível nos mesmos moldes. Era quase uma instituição cultural.

    Também o cine-clube, do qual fiz parte, com sede no Auditório à Beira do Chiveve, promoveu as sessões de cinema mais ousadas que era pensável ousar em território português: Ciclos de Eisenstein, por exemplo!…

    Promoveu festivais de cinema em que o inconformismo político, cultural e ideológico era um dos grandes valores. Vasco Branco, por exemplo, concorreu mais do que um ano a esse festival. José Cardoso, durante muitos anos dirigente do INC de Moçambique, depois da independência, cineasta amador anteriormente, à data em que elaborámos estas notas preparava-se para publicar as suas memórias cinéfilas. Aguardamos a possibilidade de as conhecer. São três volumes com profusas informações sobre o cinema que existiu… não existiu… devia ter existido… em Moçambique.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

  • A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito

    A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito


    Se quisermos, hoje em dia, definir a poesia, teremos de optar por colocar, no centro da sua caracterização, a questão do sujeito, de tal modo que, numa espécie de paradoxo de enunciação, este se torna tema central e fonte de um discurso que, a determinar destinatário e objecto, apenas o faz para reforçar a subjectividade do enunciador.

    Temos em conta, nessa redução à questão central, que, desde há pouco mais de um século apenas é que o termo é usado para designar um conjunto de textos sincreticamente agrupados como um género. Nesse período de tempo, o termo concorre com a designação, também ela problemática, de lírica.

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    Toda esta questão apresenta-se sempre de modo complexo: instaura-se-me como um desafio central para toda e qualquer reflexão sobre o literário, mas logo me dá, como que a pedir iniludível deslindamento, a problemática central do seu paradoxo.

    Pessoalmente, vejo nesse paradoxo duas frentes incontornáveis: uma, a que chamarei histórica e que nos coloca toda a problemática da entidade poesia na dimensão diacrónica; outra, a que chamarei da enunciação, e que nos coloca o problema de a poeticidade se apresentar tragicamente entre a inevitabilidade do dialogismo (ser discurso) e a tentação do solipsismo (ser silêncio, ou simples gemebundo ruído).

    Tentarei colocar a questão da enunciação como central, aqui. Assim, a questão histórica será arrumada com uma espécie de leviandade que apenas tem uma desculpa: não a podendo deslindar satisfatoriamente, procurarei apresentar as grandes linhas segundo as quais ela poderia ser abordada, num trabalho de mais ampla dimensão, apenas para tentar colocar os delineamentos de base segundo os quais a questão da enunciação se me apresenta.

    Ora, do meu ponto de vista, o termo poesia designa, hoje em dia, uma prática que se manifesta de acordo com os seguintes modelos textuais (tomando como pertinente quer a substância quer a expressão da forma, quer as modalidades enunciativas): a dominância da versificação e/ou do ritmo em todas as suas dimensões; a ligação da voz à sonoridade; o estatuto monológico do sujeito de enunciação; e a confusão deliberada do sistema expressivo com o do conteúdo.

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    Assim sendo, a poesia, historicamente, tem, da tradição, a marca do verso (o poeta era um versificador), da lírica, a marca do eu como origem do canto, da tragédia a demarcação do protagonista relativamente aos outros – o Outro, a voz colectiva – e da épica a definição do enunciador como sujeito-central, o herói do enunciado fundido com o da enunciação como assunto dominante, em última análise, da instância do canto.

    Porque se torna a lírica a forma central do poético, na nossa tradição, mesmo que repisemos Aristóteles e lembremos que o seu modelo central era a tragédia? De facto, há nas nossas asserções contemporâneas, a partir de uma data que se poderia colocar algures, de modo já perceptível, no dealbar do Romantismo ou, com mais precisão e sustentação teórica, na da publicação de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, uma ideia de poesia que se liga à solidão do poeta e à devastação de vozes em torno do seu canto.

    É importante, aqui, relembrar um dos enunciados inaugurais dessa postura. De facto, no segundo poema do livro já citado, “Bénédiction”, lemos:

                             «Lorsque par un décret des puissances suprêmes

                              Le Poëte apparaît en ce monde ennuyé,

                              Sa mère épouvantée et plaine de blasphèmes

                              Crispe  ses poings vers Dieu, qui la prend em pitié :

                              -«Ah ! que n’ai-je mis bas tout un nœud de vipères

                              Plutôt que de nourrir cette dérision !

                              Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères

                              Où mon ventre a conçu mon expiation ! » …

    Notemos, como primeiro registo, que o poema, fechando expressamente, pela maldição materna, o acesso do poeta à fraternidade, elabora, por sobre os séculos, uma confraternização. De algum modo, esta mãe blasfema vitupera o filho, em franco diálogo com a que Villon evoca ainda em plena Idade Média no poema “Ballade que Villon feist a la requeste de as mére pour prier Nostre Dame” de Le Testament.

    De igual modo, ao encerrar o diálogo com o seu hipócrita leitor o poeta coloca na cumplicidade do mal a única via de comunhão, dialogando, aí também, com “Le bal des pendus” do mesmo Villon.

    Mais ainda, o que se tornou central, na separação definitiva que Croce regista em forte e ampla argumentação, entre poesia e literatura, é à maldição irreparável do poeta que se deve, podendo ser atribuída essa diferença ao silêncio que se abre quando a sua voz se eleva. Se Hugo ainda pedia, nas suas reflexões poéticas, ao povo que escutasse o poeta, Baudelaire anuncia, para o seu leitor, fraternidade e cumplicidade numa espécie de crime. Assim, não podemos deixar de evocar, aqui, a versão optimista da separação entre o poeta e o seu público, através de algumas linhas do poema de Hugo, “Fonction du Poète”, do livro Les rayons et les ombres:

                      Pourquoi t’exiler, ô poète,

                      Dans la foule où nous te voyons ?

                      Que sont pour ton âme inquiète

                      Les partis, chaos sans rayons ?

                      Dans leur atmosphère souillée

                      Meurt ta poésie effeuillée…

                       …

                       O rêveur, cherche les retraites,

                       Les abris, les grottes discrètes,

                       Et l’oubli pour trouver l’amour…

                       …

                       Peuples ! écoutez le poète

                       Écoutez le rêveur sacré !

                        …

    Mas tudo isto não surge deste modo, de um momento para o outro, nem mesmo num evoluir de algumas décadas que medeiam entre Hölderlin, Byron, e Hugo, num momento – e Baudelaire, noutro. A partir de um certo período histórico, que hoje quase vemos como unidade temporal, mas que se alongou por cerca de quatro séculos, do desenvolver da relação do sujeito cultural com as entidades transcendentes em novos discursos,  o processo do canto tornou-se central para a definição de um género, vivendo em paridade com a representação pura (a mimesis, segundo Platão e Aristóteles), a representação narrada (a diegesis, segundo os mesmos autores) e apresentando-se como a pura ou simples enunciação em que o dizer se confunde com o fazer (a aplê digesis, ainda de acordo com as autoridades já citadas).

    É claro que este último modo é entendido, mais correctamente, como a narração pura, ou seja, o canto de louvor aos feitos de um deus ou de um herói. No entanto, como casa vazia de uma grelha, desde que narrativa “traduz” o conceito de diegese (ou, dizendo melhora, ambos os conceitos quase coincidem), seja ela com mistura de vozes ou sem mistura, a tónica passa a colocar-se no conceito de enunciação. Resumindo: pela violentação, para a nova proposta teorética dos géneros a narração pura é mais importante pela voz do que pela acção que narra.

    Tudo se passa como se esse canto se alimentasse da sua própria substância formal, exigindo o reconhecimento da sua diferença não na forma de enunciação pelo canto, o que nos remeteria para a propriedade formal da lírica (o que se acompanha com a lira, com o instrumento musical e que se completa com a música), mas porque o canto aspira a ser a marca do outro como sujeito-objecto absoluto, reconhecido pela ausência, a começar pela da voz que apela sobretudo pela apóstrofe dirigida ao Outro, pela qual o hipostasia. Michel Collot sugere-o a partir da análise de um excerto de um texto poético de Aragon: “o Outro nunca esta presente senão através de uma certa ausência” (1989: 98).

    Segundo ele, a “solidão” pode ser o outro nome do amor, porque “o ser amado não nos poderia ser dado de maneira plena e completa” sem apagar o próprio impulso do desejo. Ora, segundo ele, deixando de ser objecto, o outro tornar-se-ia consciência fundida com a do eu, não dando, assim, “origem nem à palavra nem à poesia” (cf. Collot, 1989: 98-99).

    Devo confessar que esta ideia, colocada de modo forte no horizonte fenomenológico do fazer poético, vem ao encontro de uma conjectura que me seduz há muito: a de que o canto existe como um diálogo com as instâncias inacessíveis ou despóticas. Assim, presumo sempre que a tarefa de Orfeu, o cantor por excelência, o define como o que fala com a essência do Outro, seja esse outro o ser amado, seja ele o ser perdido para o nosso mundo, por ser, de algum modo, a transcendência: um morto, um ente extraordinário, um deus.

    Ora, nessa relação pelo canto, porque ao outro não cabe ser representado pelo mesmo, pelo sujeito poético do canto, tudo se passa como se a revelação plena do seu enleio existisse no próprio acto de enunciação e no esplendor que nele geram as palavras.

    Por extensão, é verdade, o universo inerte, os entes não humanos, aqueles que não respondem, nem mesmo pela escuta, acabam por constituir-se parte desse nível de transcendência, porque devolvem o poeta a um silêncio circundante, ou à maldição da solidão. O “eu posso estar aqui perfeitamente pedra”, verso que abre o livro Os sítios sitiados”, de Luísa Neto Jorge, aponta para uma das consequências desse posicionamento: a importância dos universos minerais, cristalinos – enigmáticos no seu estar em pedra, por exemplo, devolvendo ao sujeito da enunciação poética a sua própria imagem por reflexo.

                              “Posso estar aqui

                                eu posso estar aqui perfeitamente pobre

                                um círio me acendi, espora aguda

                                o vento ritmo negro assassinou-o

                                posso estar aqui

    o musgo é lento como a sombra –

    e sei de cor a voz cega das canções

    (viola de silêncio acorda-me)

    que eu posso estar aqui perfeitamente pedra insone

    e um longo segredo pessoal

    bordando a minha solidão

    Também a Micropaisagem, de Carlos de Oliveira,  nos dá inexcedíveis abordagens desse processo em que, aparentemente, a cristalografia da paisagem parece fornecer a estabilidade material ao lugar em que o poeta se enuncia como eu.

                  O céu calcário

                  duma colina oca,

                  donde morosas gotas

                  de água ou pedra

                  hão-de cair

                  daqui a alguns milénios

                  e acordar

                  as ténues flores

                  nas corolas de cal

                  tão próximas de mim

                  que julgo ouvir        

                  filtrado pelo túnel

                  do tempo, da colina,

                  o orvalho num jardim

    É aí que o eu dizer-se se desdobra na voz do poeta e na de O que de algum lado tem de ser dito. Parece-nos ser esse o mecanismo que Michèle Aquian evoca, a partir da psicanálise para falar de poesia: “O adulto – o Outro [aquele que a voz poética transforma em poeta ou poëte, no dizer de Baudelaire] – vai receber esse grito, e dar-lhe-á uma tradução, uma interpretação, inscrita na lógica do seu próprio discurso, e que será a sua resposta” (Aquien,1997: 159).

    O enunciado do que ordena o discurso apenas consegue dar o registo do que foi desde a memória da infância ou do momento fundador inominável. Como diz Saint-John Perse, em Vents: « Je me souviens du haut pays sans nom, illuminé d’horreur et vide de tout sens ». No entanto, ainda poderíamos acrescentar um reparo sobre um outro fenómeno simultâneo e complementar: o respeito pelo que em eco ou resposta sonora se sugere de veneração, por parte daquele que enuncia, pela origem material pré-significante (quase sempre o som, a onomatopeia, o ser coisa que lá está antes de ser sentido, signo ou símbolo) do que vai ser dito, tornado discurso.

    Também sobre esta matéria Carlos de Oliveira seria, ainda, o poeta exemplar, quando lemos, em Turismo, num dos grupos estróficos de “Infância”: “Chamo/ a cada ramo / de árvore / uma asa// E as árvores voam.//Mas tornam-se mais fundas/as raízes da casa,/mais densa/a terra sobre a infância./É o outro lado/da magia”

    Estamos, em tal percurso de argumentação, no cerne do que em Dante me parece fundamental: o conceito de concetto, para traduzir a sententia latina, em “eloquência vulgar”, é definido como “argumento  das composições líricas […], nas quais não se encontra o desenvolvimento das acções, sendo antes o jogo e torção do pensamento o equivalente imitativo da acção” (García Berrio, 1988: 420).

    Deste modo, na tradição do humanismo renascentista estabelece-se, a partir de Dante, o valor de dianoia, para o termo concetto, quando se “faz dele o equivalente, nas obras líricas, breves e sem imatação de acções, da dianoia da tragédia e da epopeia”  (García Bérrio, 1988: 420). Pode admitir-se, então, com Genette, que essa posição, formulada pelo preceptista espanhol, Cascales, no século XVII, se traduz pela breve fórmula: “o lírico (é o soneto que está em causa, em tal argumentação) tem por «fábula» não uma acção, como o épico ou o dramático, mas um pensamento” (1986: 46).

    Antes de regressarmos a Dante, para considerarmos esse momento que entendemos como fundador da lírica no sentido moderno do termo, é preciso observar quanto a anterior afirmação se desenvolve. Dá voltas, percorre espaços em espiral, e regressa a um ponto, sempre, em que a matéria observável é o sujeito e o seu canto. Tudo se passa – para relembrarmos o espantoso mito que parece venerar os poetas como entes supremos, capazes do impossível – como se Orfeu, tendo atravessado o céu e a terra para chegar aos infernos, depois de se manifestar capaz de um feito único, de arrancar o ente amado à morte por feição dos seus hinos, se tivesse distraído com o objecto contemplado, ou tivesse ficado encantado com os próprios enleios.

    Então, se o canto restitui o objecto pelo efeito dos encantos, não será de ficar preso a esse poder que distrai porque ilude a morte e o tempo, parecendo assegurar a eternidade? Não será mais importante o enunciado que dá a vida do que o ente vivo que, uma vez encontrado, deixará de solicitar o canto, se mostrará ser no tempo, perecível, longe de ser eterno – insignificante, mesmo?

    De facto, essa parece ser uma vertente da questão. Genette desenvolve, em torno de Cascales e de Batteux (preceptista que retoma as ideias de Cacales um século mais tarde), a hipótese formalmente mais sedutora: “os sentimentos expressos pelos poetas são, portanto, pelo menos em parte, sentimentos fingidos por arte, e essa parte sobreleva o todo, pois mostra que é possível exprimir sentimentos fictícios, como aliás podia desde sempre a prática do drama ou da epopeia” (Genette, 1986:48)       

    No entanto, a questão que pretendemos colocar, embora parta dessa abertura do problema, passando do sentido ao fingido, propõe-se um outro objectivo, mais violento e mais cândido: o sentimento, deixando de ser acto público da argumentação do autêntico, remete-se para uma interioridade onde busca o eu como entidade, ou seja, como alteridade.

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    Julgo que é esse passo gigantesco, de uma lírica que é canto, acto público de um festejo ou de extroversão de um júbilo, palaciano ou da praça pública (qual o mais frequente? – alguma vez o saberemos?), para uma lírica que é só interior, de recantos íntimos e espaços privados, exaltação do ponto de vista pessoal em horizonte despovoados, perante a indiferença ou distância dos outros, que Dante dá na Vita Nuova.

    Penso-o desde o primeiro momento em que li, apressadamente, e não consigo deixar de o imaginar, quando o releio, sempre com dificuldade e perplexidade. Sobretudo surpreende-me que o poeta, reconhecendo-se a si próprio como tal, se inscreva numa fixação textual, inscrevendo o plano do seu poema e a sententia, que o terá de dizer como poema, feito acção da palavra, diante de um auditório que convoca permanentemente, de modo mais ou menos verosímil – ainda que, por vezes, em surpreendentes poses.

    Estará o senhor do enunciado inscrevendo, como cronista, a situação de canto e os ouvidos que o solicitam? Estará, de facto, procurando comover a assistência, amigos e conhecidos, amigos da amada perdida, conhecimentos próprios forjados pela circunstância do laço de amor que o uniu a Beatriz?

    Mas então, qual é o espectáculo desse sentenciar: a imagem do ser perdido, ou a beleza do sentimento que se qualifica pelo canto? De uma coisa estou certo. Sem o aprofundamento dessa representação da representação, é-nos muito difícil perceber como a lírica invadiu o espaço do poético. Como ela se tornou central por não ser uma representação em que a virtuosidade do dizer fazer (poiesis) se esconde, mas, ao contrário, se exibe como dizer.

    E como ela se tornou o objecto central do confronto problemático que a literatura mantém entre o que nela é a essência distintiva (a literariedade seria a poeticidade, assim) e o que nela é discursividade, a própria essência do debate. Ou, então, dito de outro modo, o confronto entre o ponto supremo em que ela se sublima como texto, estrutura fechada, e o lado pulsional que a fundamente, tornando-a – porque passa a utilizar um novo espaço institucional, o do texto – a inevitabilidade da palavra convocar o outro: o fundamento da própria palavra.

    E, de facto, é sempre de uma sublimação que se trata, muito embora, por vezes, a matéria dessa sublimidade seja a precipitação, mesmo a escatológica. A poesia, o canto poético é, de algum modo, a permanente verificação das catástrofes, a perda do silêncio e da imobilidade, o pânico de verificar que somos arrastados, que o abismo nos espera. Atesta-se isso no modelo enunciativo, nos conteúdos em que a paixão, dos sentidos e/ou dos sentimentos impera, no ritmo, seja ele versificatório, frásico ou semântico.

    Assim, se vão acumulando as figuras a vários níveis do texto, em determináveis planos do discurso: rupturas, oximoros, demarcações entre o sujeito da enunciação e aquilo ou aquele que lhe é o outro – que por ele é interpelado, vociferado, abençoado ou maldito. 

     Assim, o que me parece ter-se processado, ao longo dos séculos que medeiam entre Dante e Luísa Neto Jorge (para citar apenas, através da mais jovem, um nome dos nosso dias – ainda que ela tenha morrido muito prematuramente), não é tanto um aprofundar da diferença entre o sistema discursivo da lírica do fim da Idade Média e do princípio da Renascença na Europa e o que hoje nos é evidente.

    O que parece ter acontecido, de facto, é a valorização dos termos da individualidade pessoal e subjectiva, projectando os qualificativos da entidade civil do cidadão sobre o discurso poético produzido pelo sujeito problemático.

    O efeito é perverso, do nosso ponto de vista. Porque, se o poeta foi o cultor, desde sempre, desse reduto do pessoal e íntimo identificável no ritmo assumido como próprio e nos recessos do mistério que cada imaginário cultiva como seus (os sonhos, as suas sementes e os seus frutos – o modo como cada um é cantor da canção que é comum ao colectivo), ele foi-o sempre de modo dialógico: aberto para a comunidade dos seus antepassados, aberto para o público ao qual dirigia o seu canto. E inscreveu sempre, na tribo, a origem do canto, a origem primeira. Porque, com Villon, no seu testamento e com Dante, no seu relato de renascimento, de acesso à nova vida, os destinatários são obsessivos presentes, outros imprescindíveis como terceira pessoa, a que assegura a vida do discurso.

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    O que a sociedade civil burguesa criou, com os seus códigos triunfantes, foi a propriedade equívoca do eu, o canto como próprio, de tal modo apropriado que pode obter uma forma intransmissível: a do monólogo absoluto. Se isso é simples, para a definição do copyright, já não é tão simples para a função do poeta e para o sentido do exercício da sua mestria.

    Se ele gera o eu como mistério ao defrontar-se com o mistério do Outro, postulando-o como entidade necessariamente ausente para ser assunto do canto, a proposta do seu mistério, como paixão, sofrimento ou maldição só tem sentido na relação explícita do autor, o senhor da voz poética, com os terceiros os Outros, os que o julgam. Assim, não me parece que a voz narrativa de Vita Nuova seja muito diferente das vozes críticas de Pessoa e dos seus heterónimos, quando se pronunciam uns em relação aos outros.

    O que eles criam, no fundo, é a textualização de uma sociedade que convive, enquanto discurso, com o discurso do poeta. Dante fá-lo porque perdeu, e tem a consciência disso, a praça pública, espaço natural dos poetas anteriores, seus parentes próximos. Pessoa fá-lo porque procura, na senda de Baudelaire, de Mallarmé, de Withman, o hipócrita leitor, seu semelhante, seu irmão, ou então os traços da tribo perdida, ou mesmo as sendas por onde passaram os povos da nação. E é nessa textualização, julgo, que ma parece fundar-se a poesia como essência do literário, interior no qual a voz se dá como origem do sujeito. A relativa ilegibilidade que a poesia pratica, pelo menos desde o simbolismo, parece ter pelos menos duas vertentes: uma que retoma da magia e das comunidades secretas, codificando, com a língua de todos, uma segunda língua para ser apreendida como língua mas dificilmente interpretável pelos não-iniciados; a outra em que o sujeito se funda exactamente na descoberta do lado obscuro, cifrado para uma dimensão de si próprio.

    Resta dizer que, quanto a esta dualidade do sujeito, o dizer-se passa pelo colocar-se como mistério. Já não se trata apenas de instituir o outro como necessária ausência, mas também, por inevitável lógica da vivência interior, restaurar no sujeito a duplicidade. A imagem fundamental dessa construção é a anamnese, evidentemente. Ela vai, desde a evocação da amada perdida até ao canto da consciência da própria perda.

    A figura que poderia representar a anamnese e o que ela representa, na tradição poética, é, sem dúvida, a do ubi sunt, que se canta, desde Villon, nas línguas neo-latinas. Contudo, sempre se percebeu, na construção do lírico-poético, que essa é apenas uma figura da evidência, por detrás da qual se perfila a sombra do mistério. Ela poderia formulada de vários modos: quem fala, quem sonha, qual é a origem do canto e das imagens que nos assaltam e não sabemos de onde vêm?

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    Freud propôs um termo latino para designar algo parecido, na psicanálise: Id. Julgo que seria abusivo adoptá-lo plenamente para o questionamento do literário. Seria propor um conceito definitivo para um problema que existe, com sede própria no poético, antes da psicanálise inventar o seu campo específico. É certo que esta reconhece, pela expressão do seu fundador, as dívidas para com os poetas.

    Mas não estou certo de que, ainda assim, o conceito nos sirva, que seja nosso por invenção poética, como o é o “onde estão”, para convocar a memória, os seres e os objectos perdidos, o traço que evoca, para lá do esquecimento. Paradoxo que se poderia entender, talvez na terrível imagem de Herberto Helder, num dos momentos da sua Vocação Animal, “As festas do crime”, construída muito à maneira lautreamontiana, mas devorada e digerida pela voracidade poética do poeta português:

           “Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto.

            Gosto do deserto.

            Levei tábuas e pregos.

            Ferramentas, as belas ferramentas dos homens.

            Levei água, víveres, sementes.

             …

            Não era trigo, nem cravos, nem sementes de cores, das cores que amamos como uma dor no corpo.

            Eram sementes de cabeças de crianças”

             … 

    Herberto Helder

    E o certo que nos parece emergir, de leituras e confrontos, não é tanto a de que essa questão da origem tenha de possuir um “quem” como nas narrativas de mistério, ou uma causa, como nos mitos que nos respondem aos “porquês”. Poderia, talvez, ser a figura do esquecimento, a amnésia. E não será essa a fundação da vida nova, a que se ergue sobre as ruínas de uma relação perdida no espaço da cidade onde ficaram as marcas da ausência – o mistério órfico de suster o desaparecimento por palavras que apenas aludem, representam ou evocam.

    E seria ainda Carlos de Oliveira, o mais dantesco dos poetas modernos a dizê-lo, no poema final da Micropaisagem: “Assim/se cumpre/ o eclipse/ gradual/sobre o centímetro/quadrado que/ os líquenes/ cobrem/na memória, /assim/a luz e a neve/se ocultam/pouco a pouco, assim/se esquece”

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Aquien, Michèle, 1997, L´autre versant du langage, Corti, Paris

    Collot, Michel, 1989, La poésie moderne et la structure d´horizon, PUF, Paris

    García Berrio, Antonio, 1988, Introducción a la poética clasicista, Taurus, Madrid

    Genette, Gérard, 1986, Introdução ao arquitexto,  Vega, Lisboa

  • Pornografia: o erotismo que ousa o júbilo infinito dos sentidos

    Pornografia: o erotismo que ousa o júbilo infinito dos sentidos


    Não seria justo que, numa abordagem às produções marginais, àquelas produções das margens da literatura ou dos géneros do escrito, esquecêssemos as narrativas chamadas por­nográficas.

    Da anedota popular e brejeira até ao “espaço que nele é, simultaneamente, uma mime­sis puramente auditiva, confiada à narrativa do historiador, e de uma praxis, de Sade (Sade, Fou­rier, Loyola, Roland Barthes, Paris, Seuil, 1971, p. 150), a por­nografia existe (por vezes, cons­tituindo um tema absorvente e exclusivo, por vezes um elemento predominante da obra, de forma eminente, fascinante) e, contu­do, é quase sempre rasurada, ab­sorvida por esquecimento, por um adiamento que é tanto mais irritante quanto ela se torna om­nipresente em quase todos os ho­rizontes do que se chama erotis­mo, literatura “séria”, abjeccionismo ou narrativa romanesca.

    Justine ou les malheurs de la vertu, do Marquês de Sade, foi publicado em 1791.

    Os discursos de reconhecimento, aberto e liberal, passa, nesses ca­sos, por uma obsessiva indicação de velados efemismo e litotes (ah, como a linguagem dos liber­tinos triunfa aí, impondo secre­tamente o seu estilo), por vezes freudiza a hermenêutica ao pon­to de encontrar homossexuais e perversos por todos os recantos do segredo, mas vela essas evi­dências por uma racionalidade casta, deixando à palavra incó­moda (a obscenidade, o insulto, a nomeação marcada do elemen­to sexual, escatológico), o outro lado da fronteira, o território dos bárbaros, o espaço onde se fala a língua proibida, onde se agitam os corpos do prazer pa­gão.

    Sem pretensões de muita origi­nalidade, sem abdicarmos da abertura ao que, aberrantemen­te, vem sendo velado ou esqueci­do, por outro lado, parece-nos oportuno lembrar aqui, especifi­camente, essa margem. É claro que, no lugar que assumimos, não pretendemos chamar a nós uma obra como a de Sade – se por razões óbvias da sua força, ele será sempre um modelo de re­ferência revigorante, também é certo que, pelo peso que assumiu na civilização ocidental o lugar de escritor entre os “libertinos” do século XVIII nunca lhe poderá ser recusado. Deixando-o lá, mais fácil nos é evocá-lo como topos ecuménico de todos os cri­mes da linguagem irradiando, não obstante a estranheza, no in­terior do território do mesmo.

    A filosofina na alcova, publicada clandestinamente em 1795, e como obra póstuma, mas o marquês de Sade apenas morreu em 1814.

    O que nos interessa aqui reve­lar, como literatura pornográfica marginal, é a menos clara manifestação de texto efabulado ten­do como principal tema a sexua­lidade, manifestando-a, obceca­damente, como prática perma­nente da acção da personagem. Não a ocorrência casual uma en­tre outras da vida, como, por exemplo, a cena “realista” num romance de costumes, mas como função cardinal de uma sequência em que a tónica desse fazer sexual é constante, constituindo uma espécie de macrofunção a que poderíamos chamar “variação infinita do orgasmo”.

    Desse modo, poderíamos con­siderar pornografia o discurso sobre o sexo carregado com a alegria expulsiva e explosiva da palavra certa, atendendo a que a palavra certa da pornografia é a que agride os costumes oficiali­zados da mesma forma que o desvelamento do órgão, ou do acto realizado, nomeado.

    Não vamos aqui explorar deti­damente qual a função de tal lite­ratura. Ela sempre existiu inde­pendentemente de qualquer ex­plicação e justificação. Adiante­mos, contudo, que, muito intuiti­vamente, o texto pornográfico nos parece cumprir a função de todos os mitos ontogenéticos (so­ciais e individuais): falar à nossa racionalidade, instituindo um dizível, sobre aquilo a que a razão e o logos (na sua vertente mais evidentemente epistémica) não acedem.

    De certo modo, todo o paradoxal e obsessivo da porno­grafia (e sobretudo a menos cul­turalizada – estamos mesmo a evocar a mais popular, a que an­da em edições de cordel, pelos vendedores de rua, em brochuras dactilografadas) está em que substitui um fazer do desejo, por um dizer ou um dizer o fazer do desejo que aparentemente nunca é realizado. Poderíamos mesmo conjecturar, recorrendo a exem­plos de escritores clássicos que foram metidos no mesmo saco genérico de libertinos, que a por­nografia começa onde o deva­neio ou mesmo o delírio de Sade substitui o erotismo realista de Laclos ou de Restif de La Bre­tonne.

    Encarado nessa óptica, o pornográfico de Sade aponta­-nos, ainda que pelo caminho do terror gótico, para o campo do fantástico. Por outro lado, os inquéritos sobre a pornografia re­velam-nos que ela funciona, so­bretudo, como estimulante indi­vidual, quase sempre como re­curso onânico da busca do pra­zer. Só raramente, por revelação do prazer, indirectamente, é estimulante da re­lação sexual tendo em conta o outro, a dimensão heterossexual (e restaria ainda descobrir o mais complicado campo da pornogra­fia homossexual – ocultação dentro do oculto).

    Ligações perigosas, romance epistolar de Pierre Choderlos de Laclos. A autoria apenas por iniciais pretendia revelar o autor apenas para “conhecidos”.

    Explorando os poucos saberes sobre tão des­cuidado tema, talvez não fosse demasiado ousado propor como hipótese de trabalho uma inda­gação da pornografia tendo co­mo orientação a ideia de que a pornografia, contrariamente a algumas opiniões apressadas, es­tá francamente do lado do fan­tástico (característica de quase tudo o que é marginal) e não de um possível realismo exacerbado ou ultra. Nada menos pornográ­fico do que um texto naturalista, por exemplo.

    Assim como o herói estereoti­pado da grande aventura fantástica é previsível quase até à cari­catura na realização das suas ac­ções de reposição da ordem, o protagonista pornográfico é evi­dente até à transparência no seu percurso do prazer: cada contac­to que inicia, cada conversa que tem, cada acto que pratica só po­de ter um sentido – o orgasmo. E o orgasmo não tem limites no herói da história pornográfica, tal como o super-homem das his­tórias de reparação não tem.

    O importante, para este aventu­reiro do prazer, é conseguir mais uma relação, conquistar mais um objecto do mundo da sensualida­de, inscrever mais um (ou uma) parceiro na sua lista de relações. Não se trata, neste caso, de um exercício de sedução, de manifes­tação do poder, de uma expan­são de um encanto narcisicamen­te posto a funcionar e sempre a pôr-se à prova.

    Esse aventureiro (ou aventureira) é típico da men­talidade libertina, aparece na narrativa dos escritores liberti­nos do século XVIII e tem como grande modelo um Casanova, um Valmont. O herói da porno­grafia só muito raramente é um sedutor no sentido próprio do termo. Movendo-se num cenário de devaneio, fantástico, para ele o mundo está sempre cheio de corpos passíveis cuja abordagem é tão simples como respirar.

    Por uma razão muito pouco elabora­da, o homem cai sempre num meio onde as mulheres estão cheias de cio, são acessíveis a to­do o tipo de solicitação e abrem­-se-lhe a todas as investidas. Contudo, devemos reconhecer que, um pouco mais verosimil­mente, muitas das aventuras se­xuais pornográficas, embora ma­nifestem um imaginário de pre­dominância masculino, de visão erótica normalmente assumida pelo homem, apresentam como protagonistas mulheres.

    O pró­prio Sade tem a sua grande per­sonagem problemática em Juliet­te. As razões para essa escolha são óbvias: não só os objectos se­xuais masculinos são muito mais acessíveis à aventura rápida e in­consequente que a série de feitos da pornografia exige, como a mulher-sujeito é capaz de uma fiada de triunfantes assaltos que na acção viril se tornaria inverosímil ou excessivamente fantasio­sa. Com a protagonista mulher afasta-se um fantasma do pavor masculino: a impotência da infinita repetição… ao mesmo tempo sempre desejada e sempre negada pelo saber sobre a realidade dos limites.

    Na história pornográfica, a re­lação amorosa é entendida como contacto do corpo, como pene­tração, como orgasmo, quer de modo directo quer alusivo ou simbólico, mas fazendo ressaltar a dimensão do escândalo em relação à moral vigente.  É claro que o primeiro procedimento é muito mais duradouro: Sade ainda é escândalo, mas o Roman de la Rose pode ser estudado hoje como uma qualquer história de amor alegórica.

    Ligações perigosas foi adaptado várias vezes ao cinema, com destaque para o filme realizado em 1988 por Stephen Frears e protagonizado por John Malkovich, Glenn Close e Michelle Pfeiffer.

    A pai­xão, se nela existe, é dos actos se­xuais, que se objectualizam até secundarizarem os parceiros. Daí, normalmente, o outro desmultiplicar-se infinitamente, quer pelo aparecimento da orgia em que a variação dos corpos se dá em si­multâneo, ou pelo menos in pre­sentia (o que permite actualizar um outro elemento fundamental do pornográfico: o olhar que es­preita – o do terceiro que vê), quer pelo percurso-rota, ao lon­go do qual o ou a protagonista vai conhecendo novos corpos de objectualização do desejo.

    A palavra ou desenho são o veículo ideal para a transmissão da fábula pornográfica. Com o cinema, pelo estatuto de realis­mo que normalmente neste assu­me o acto sexual, o aspecto fan­tástico ou maravilhoso da porno­grafia perde-se. Pelo menos no registo em que o pornográfico tem surgido, em regime de sé­rie B, a expressão da sexualidade como pornografia fica diminuída. Em compensação, a palavra, o desenho das histórias aos qua­dradinhos, permitem o desenro­lar da imaginação, a singularizaçãodo pormenor, a sugestão do mais extraordinário acto, que o cinema tem dificuldade em re­criar.

    Por outro lado, a experiência subjectiva que é o orgasmo, a forma de o sentir, a localização da zona erógena de origem, tudo isso exige uma aproximação uma ampliação e uma identificação, sem perda, ao mesmo tempo, do todo do cor­po, que o cinema tem dificuldade em conseguir. Tornando visíveis os corpos, o cinema cria a alteri­dade da vivência e, em simultâneo, a identificação do prazer por parte do espectador desapa­rece, entra-se no campo da es­coptofilia pura, na abdicação do corpo próprio e do devaneio pelo percurso da identificação, e assume-se a demarcação do olhar pe­la revelação de uma relação real, alheia, surpreendida pelo “buraco da fechadura”.

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    A literatura e a BD, pela perda do estatuto de presentificação do estar lá, ape­lam muito mais ao devaneio do leitor, à recriação dos corpos pe­la fantasia (por vezes a descrição dos corpos é tão ambígua que ca­be lá qualquer figura)e, no caso da BD, a uma hiperbolização das poses e das partes do corpo, de tal forma forte que a ligação ao plano do fantástico se torna a so­licitação maior – quando não é o desenvolvimento de uma paródia libertadora em torno do eros.

    Desse ponto de vista, a pornografia pode ser, no caso de alguma literatura e de al­guma BD, um convite extrema­mente libertador, o que o cinema pornográfico normalmente não é pelo seu pendor meramente es­coptófilo.

    Pela intensidade corpórea do erotismo pornográfico, a litera­tura aproxima-se, evidentemen­te, da produção grotesca, da li­nhagem ousada do abjeccionismo literário, do horizonte da piada obscena, da anedota gros­seira, de todos os processos de li­bertação pela palavra. O pala­vrão, a obscenidade, o uso dos termos próprios para designar os órgãos sexuais, o processo esca­tológico de referência ao corpo, aproximam muito a pornografia da festividade pagã e carnavales­ca de que nos fala Bakhtine a propósito de Rabelais, ou os his­toriadores da cultura e das men­talidades a propósito do Carna­val ou do “riso pascal”.

    O realis­mo que muitas vezes se louva em tais expressões é, convenhamo­-lo, bem carregado de uma fan­tasia delirante em direcção a uma utopia, à busca de um paraíso perdido: o da infância do corpo inocente e carregado de apelos eróticos ou, mais genericamente, a uma inocência da espécie, do lado da natureza, num primiti­vismo de todos os consentimen­tos.

    Não se segue daí que o escritor pornográfico seja vítima de uma ilusão inocente de retorno à vida primitiva. O que a pornografia equaciona muito bem, com uma exemplaridade que poucas ou­tras temáticas artísticas conse­guem, é a relação do animal que cada um de nós comporta com a cultura que o envolve.

    Se o silen­ciamento do animal, do primiti­vo é a prefiguração da morte, a melancolia e o acinzentar dos sentidos, a pornografia é a pro­posta da coloração da vida, do primitivo, do pulsional mais ime­diato. E as figuras do pensamen­to, os tropos de alongadas ima­gens que ela recria, não são as de um local idílico, mais ou menos amoenus, ou ajardinado e, simultaneamante, mais ou menos ameaçado pelo horrendo ou selvático, onde tudo se passaria segundo os princípios da “madre natureza”: são, sim, as de um júbilo dos sentidos, os de uma fruição feroz e egoísta, que tem a ver com o corpo e só com ele – onde a cul­tura aparece como fantasia em acréscimo ao corpo, recusando à sexualidade a finalidade procriativa, fazendo variar o acto num prodigioso exercício de negação da Natureza para melhor a afir­mar no plano do imaginário.

    Nota finais

    A História de O (de Pauline Rage – pseudónimo de um es­critor, ou de vários, de grande vulto na literatura francesa, su­põe-se…, que nunca quiseram desfazer a mascarada literária), desenhada pelo famoso autor italiano de BD Guido Crepax, chegou a ser editada entre nós…, mas a sua edição (ou o que dela resta) anda à venda pelas ruas, a preço de mercadoria sem público.

    Historia de O, por Guido Crepax, em edição da Marginália de 2006. Uma edição dos anos 70, pela Sérgio Guimarães tinha duas páginas censuradas.

    A quadrinização de Juliette, de Sade, apareceu agora em edi­ção de bolso, em França, deven­do-se a adaptação a Philippe Ca­vell e Francis Leroi.

    Apolline no Inferno, de Jean-Louis Vilier e Caprichos de Uma Noite, de Daniel Lebordais, Fragmentos Editora,

    respectiva­mente 1988 e 1987

    De momento, são estas as duas únicas obras pornográficas de ficção, relativamente actuais e com qualidade de escrita, apresentando-se como traduções de bom nível do texto francês, acessíveis no nosso mercado.

    Ao que parece, após uma oportunista inflação de obras “eróticas” com capas a condizer e avisos a confirmar uma pisca­dela de olho ao público adulto que comprava pornografia esti­mulante sob capa cultural de “erotismo” para apresentar por­nografia, onde na qual circulou Sade em edições pouco mais que selvagens, onde Apollinaire apa­receu traduzido em exemplares encerrados em embalagem de plástico, a moda deixou de pro­duzir lucro fácil.

    Os costumes não se abrandaram, ou melhor, a leitura da pornografia ou do “erotismo forte, para adultos” revelou agredir preconceitos muito mais profundos do que as simples proibições de tipo poli­cial. Essas obras, porque não re­sistiram num mercado livreiro normal, acabaram por ser reme­tidas para os alfarrabistas de rua, para os cordéis onde circu­lam já alguns “clássicos” dactilo­grafados e policopiados… textos terrivelmente estropiados e reve­lando mão-de-obra do mais bai­xo nível, de obras que fizeram moda em épocas de proibição, tais como Zaza Diabólica ou A Marca dos Avelares…

    Os dois livros que agora apre­sentamos, embora no melhor es­tilo pornográfico, procuram ir contra tal estado de coisas – ca­pas discretas, texto cuidado e um certo sentido da elegância, do “saber fazer” narrativo que dá encanto aos percursos demoníacos que apresentam.

    Apolline no Inferno, como te­ma fundamental, apresenta a busca desesperada de duas mu­lheres (mas não busca sentida, em algum momento, como de­gradante) dos prazeres da carne, num antro de jogos eróticos em que elas são as únicas parceiras lançadas para a satisfação dos desejos de um grupo de homens de aspecto ameaçador, revelando o encanto dos traços da estranhe­za social, das marcas do vício, da postura da brutalidade.

    Apolline no inferno foi editado em Portugal em 1988.

    Numa reviravolta que não ilu­de, as mulheres são permanente­mente nomeadas, mas os homens mantém o anonimato que faz de­les meros objectos de prazer… Pequeno truque com que se pre­tende ocultar a obsessão dos fan­tasmas masculinos, sob a apa­rência do prazer da mulher.

    Atendendo a que a heroína e principal incitadora é casada, te­mos o quadro da ruptura com os padrões fortemente evidenciada.

    Caprichos de Uma Noite, quan­to a nós, é uma história ainda mais sofisticada que a anterior.

    Além de apresentar todas as in­submissões que já apontámos no outro livro – a relação extra­-conjugal, sobretudo a da mu­lher, o sexo em grupo, a busca do prazer pela personagem femi­nina –, esta história revela ainda um outro factor de aliciação: o percurso da mulher numa noite de Paris e dos seus arredores, acompanhada à distância, pelo olhar fascinado do seu amante que actua como um espectador, mudando permanentemente de parceiros.

    O gosto com que está escrita a história, a qualidade que consegue imprimir à narra­ção de sequências normalmente encaradas de mau gosto, fazem deste livro uma obra muitíssimo agradável e de leitura nada cho­cante.

    O que ressoa sempre, no hori­zonte desta história, na dimen­são do percurso físico (onde a outra, Apolline no Inferno, era a obsessiva repetição do cenário do pôr em palco o sexo, numa boa aprendizagem de Sade), é a aventura da busca – há, efecti­vamente, qualquer coisa de Quê­te no deambular programado de Sylvie, pelas noites da cidade, pelos antros do prazer, pelas mo­radas da existência liberal e liber­tina.

    O que se pretende descobrir nesta viagem ao fim da noite pela estrada dos sentidos é a dimen­são suprema do amor do casal que acaba por ser alcançado pela heroína e pelo seu amante-comparsa.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora