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  • A conspiração romântica em Dumas

    A conspiração romântica em Dumas


    Entendemos o mecanismo conspirativo como uma sequência de três momentos: a deliberação de um objectivo – em princípio projecto de alteração de um estado de coisas, resultante das aspirações que visam atingir um indivíduo ou um colectivo; a afirmação do empenho em modelos de juramento ou conjuração, o que nos leva para dimensão ilocutória do performativo, sob a forma de injunção; e a acção conspirativa propriamente dita, em que se passa do falar ao fazer.   

    A dimensão epistemológica de um tal modelo merece ser evidenciada na medida em que é ela, aparentemente, que torna esse tipo de intriga tão apetecido pelos seres humanos, seja qual for a sua idade ou religião, sejam quais forem as suas   identificações étnicas ou sexuais, independentemente dos seus princípios éticos, filosóficos ou ideológicos. Segundo o modelo conspirativo, os nossos desejos e crenças, emocionalmente geradas, tornam-se racionalmente explicáveis.  

    Alexandre Dumas (1802-1870)

    Na perspectiva de Falzon, subjaz uma certa apetência de tranquilidade e conforto, generalizados, a “uma visão do mundo que é confirmada”, através da fabulação conspirativa, “por todas as coisas que encontramos”,  sendo também essa visão a “que pode explicar eficazmente todas as inconsistências com que nos deparamos[…]” (2002: 202). Segundo o mesmo filósofo, ainda, esse raciocínio completa-se, fechando-se, como um delírio paranóico:

    “[…] Este é o erro em que é típico caírem os teóricos da conspiração. Para eles, tudo é parte da grande conspiração. Se não há provas de que existe a conspiração, ou pelo menos não se manifestam em quantidade suficiente, é óbvio que foram sonegadas para ocultar o que se está a passar. Se alguém critica o teórico da conspiração, esse alguém passa a fazer parte da conspiração” (Falzon, 2002:202)

    Este modelo de raciocínio, a que os lógicos chamam “falácia da irrefutável hipótese”, também é conhecido pelo nome de “falácia da invencível ignorância”. Esta formulação, que opera segundo as exigências formais mais ostensivas do enunciado lógico, sobretudo o silogístico, é a matriz de quase todas as sentenças ou discursos assentes na crença ou mesmo na fé. De facto, como nota ainda Falzon, uma tal maneira de estruturar o discurso “envolve uma patente recusa” , por parte daquele que argumenta segundo esses princípios, “de ter em consideração provas que são contrárias à crença a que se entrega” (2002: 202).

    O estatuto dado ao inimigo, segundo uma perspectiva conspiratória, assenta, frequentemente, numa teia de acusações de comportamentos “diabólicos”, ora hiperbólicos, ora ficcionais. A organização do inimigo assim “identificado” assume, quase sempre, a imagem de uma “conspiração” contra as instituições e os cidadãos dos países, dos grupos ou das organizações que desenvolvem o libelo acusatório. É difícil, por isso, não elaborar uma atitude conspiratória quando se delineia a conspiração que é atribuída aos outros (desenvolvendo, em relação a eles, uma definição da alteridade apoiadas nas formas mais ou menos míticas ou mesmo fantasmáticas do “OUTRO”).

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    No entanto, há uma dimensão neste vício lógico, presente também nos exemplos que extraímos da realidade política, que nos parece positivamente estruturante da construção ficcional, apesar de se organizar, enquanto mecanismo lógico, como “sistema fechado, dogmático e irrefutável, dentro do qual tudo o que encontramos parece confirmar as nossas crenças” (Falzon, 2002: 202). Essa dimensão de que falamos é muito parecida com a famosa “suspensão da descrença”, afirmada por Coleridge na sua Biographia Literária, que institui o pacto ficcional através do qual representamos um universo no qual projectamos desejos, medos, anseios e paixões.

    Este processo, em que os lógicos vêem uma interpretação dos factos e das hipóteses, encaminhados, ou mesmo distorcidos, para fortalecer uma visão afectiva ou emocionalmente empenhada, é constante na ficcionalização. Pode ser pernicioso se o usamos para defender um objectivo político, camuflando motivações partidárias; mas pode ter uma função de emprego dialogicamente dinâmico do verosímil, caso o façamos evoluir como uma narrativa literária,  teatral ou cinematográfica, de prioritários princípios poéticos, ou mesmo lúdicos.    

    Viria a propósito lembrar, em reforço da perspectiva que aqui apresentamos, o que nos diz Umberto Eco sobre a questão da presença dos códigos fortes, na construção da hipótese científica, e dos códigos fracos, na construção do verosímil. Entende-se, sobre este último termo, que ele fornece uma  perspectiva das coisas, das ocorrências e das causas, enfatizando “as ligações” que “se fundam prioritariamente sobre as convenções e as opiniões estabelecidas” (1988: 49). A atracção que muitas obras narrativas exercem sobre os públicos que fidelizam, tem origem nesse mecanismo retórico de base. Os “thrillers teológicos” como o Da Vinci Code (que citamos, como exemplo privilegiado de   fábula ou história – no sentido que lhes davam os formalistas russos e os narratólogos estruturalistas  –  por economia de exposição, quer na versão literária de Dan Brown, quer na cinematográfica de Ron Howard) assentam o seu êxito no facto de neles aparecer a “mitologia das sociedades secretas e o imaginário do complot,” que “desta forma continuam a manifestar-se materiais simbólicos privilegiados do romanesco popular” (Taguieff, 2005:54).

    Relembramos, no entanto, que essa mitologia satisfaz (ou procura satisfazer, pelo menos) uma necessidade básica de busca de compreensão ou de certeza. Com algumas reservas, poderíamos chamar-lhe dimensão epistemológica, uma vez que essas narrativas fornecem “explicações” para enigmas que são fonte de preocupação para o indivíduo e para a comunidade em que se inscreve.

    O que permanece como enigma teológico e institucional, na narrativa de Brown, é a justificação para existência e actuação das forças que se pretenderiam contra-conspiratórias, ainda que se apresentem elas própria como sociedades ou grupos tão enigmáticos e misteriosos como as práticas conspirativas que supostamente combatem: o “Priorado do Sião”, os “Templários” e outros agentes similares são entidades quase secretas, ou com amplos conjuntos de actuações pouco explicáveis, que se presume combaterem as actuações conspirativas da Igreja de Roma.

    E isso acontece, por exemplo, porque, mesmo nos países católicos, sendo difícil explicar a ausência de figuras femininas nas hierarquias eclesiásticas, faz todo o sentido entender os motivos e as acções que instituíram tal limitação, segundo uma teoria da conspiração.  E isso pode ser entendido assim se aceitarmos que “os acontecimentos históricos que são percebidos como opacos ou absurdos poderiam ser explicáveis por um ou vários complots e, em última análise, serem atribuídos a intenções e acções humanas” (Taguieff, 2005: 19) que visam concertar-se a favor dos interesses de um grupo, em detrimento, mesmo gravoso, de outro grupo considerado adverso.

    Assim, a teoria da conspiração assegura uma espécie de encenação, a que poderíamos chamar complot, designando, desse modo, o esquema de disposição do conteúdo narrativo, ou de organização da fábula. A partir do nível estrutural em que nos achamos primordialmente, o da matéria controversa, dá-se a transformação operada pelo acto de dramatização poética que, manipulando a matéria do conteúdo, produz o mecanismo da intriga, ou narrativa, aquele em que pesa, sobretudo, o entretecer das acções e dos percursos ou objectivos contraditório que são contados. É a esse nível que a narrativa explica, ou procura tornar inteligível o mundo, numa estrutura dramática, embora sem descurar o seu desenvolvimento segundo um discurso em que muito contam os aspectos apelativos da composição poética textual criada pela voz épica ou pela perspectiva dominante.

    blue and black mask illustration

    Ao “explicar” e “unir” e conjuntos de eventos e aspectos historicamente reais que se revelam paradoxais, absurdos ou enigmáticos, a narrativa assume os foros e funcionalidade do mito, entendendo este no seu sentido canónico mais amplo. A definição que Lévi-Strauss nos oferece, na sua obra O olhar distanciado, poderia ajudar-nos a compreender melhor a função epistemológica que este género de narrativas proporciona: “O mito jamais oferece àqueles que o escutam uma significação determinada. O mito limita-se a propor uma grelha que se define pelas regras da construção” (1986: 210).

    O mito oferece, com essa sua grelha, qualquer coisa semelhante àquilo que, segundo Umberto Eco,  o discurso dos filósofos da linguagem, desde a Antiguidade Clássica, tem tratado como “signo fraco”, ou seja, aquele que, quando indicia o que se concebe como causa, não remete necessariamente para a determinação dos “efeitos possíveis (prognóstico)”  ou, inversamente, aquele que, sendo percebido como efeito, não é necessário que tenha origem numa causa presumida (diagnóstico – cf. Eco, 1988: 48).

    Eco faz ainda um reparo sobre a matéria em questão que nos perece de extrema importância para compreendermos a “lógica” do mito e, mais explicitamente, para o entendimento da narrativa empolgante, que explora a possibilidade complotista: “se o analisarmos mais atentamente, verificamos que mesmo este signo fraco [o de causa suficiente, não necessária] não está desprovido de uma certa «necessidade», apenas com a diferença que remete não para uma causa, mas para uma classe de causas” (p. 48). Passamos da certeza epistemológica, segundo as exigências científicas, para uma exigência de explicação que alimenta o mito e que poderíamos formular, hipoteticamente, da seguinte maneira: “Sabemos que tem de existir uma causa, e a nossa hipótese é…” ou “Alguém causou uma morte, ou praticou um acto reprovável e, pelos indícios de que dispomos, esse alguém, SÃO ELES”.

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    Tal designação, assim, amplificada e indeterminada, é o eixo central da teoria da conspiração, pois o conteúdo designado por “ELES”, a “causa do mal”, é o conjunto de pessoas, o grupo, a facção ou etnia que, de acordo com aquilo em que a opinião colectiva acredita, diz que é, uma vez que “a um nível retórico as relações de causa efeito se fundam, quase sempre, em convenções estabelecidas […] dependendo isso apenas dos códigos e guiões que essa comunidade regista como bons” (Eco, 1988: 49).     

    Já se vê que o mito funciona numa dimensão a que poderíamos chamar a da suposição de causas (“o que vem antes é causa do que vem depois” – cf. Barthes,1966:10) e das necessidades explicativas (para explicar tal fenómeno, o mais provável é ter-se verificado determinado antecedente).  É pelo facto de, como diz Eco, “no plano semiótico as condições de necessidade de um signo” serem “fixadas socialmente, ora de acordo com códigos fracos, ora segundo códigos fortes”, que “um acontecimento se pode tornar um signo seguro, mesmo que cientificamente não o seja” (1988: 49). Vai um passo, epistemologicamente quase insignificante, desta construção retórica da verdade à outra, do mito, de que nos fala Lévi-Strauss, uma vez que todas as concessões à exigência epistemológica, em sentido lógico-científico forte, para compreender os factos e os eventos, já foram feitas antes:

    Um mito propõe uma grelha, somente definível pelas suas regras de construção. Para os participante numa cultura a que respeite o mito, esta grelha confere um sentido não ao próprio mito mas a tudo resto: ou seja, às imagens do Mundo, da sociedade e da sua história, das quais os membros do grupo têm mais ou menos claramente consciência, bem como das interrogações que lhes lançam esses diversos objectos. Em geral, esses dados esparsos falham quando tentam unir-se e, na maior parte das vezes, acabam por se contrapor. A matriz da inteligibilidade fornecida pelo mito permite articulá-los num todo coerente. Diga-se de passagem que este papel atribuído ao mito assemelha-se àquele que Baudelaire parece atribuir à música” (Lévi-Strauss, 1986: 210).

    De facto, as narrativas de grande acolhimento popular, que encontram uma audiência de culto entre as massas, sobretudo pelas mensagens hipotéticas ou conjecturais que introduzem, fazem apelo a essa vontade de explicação, de compreensão “epistemologicamente acomodatícia” que parecem convocar.  Assim, para o cidadão que se preocupa com o sentido da política mundial, sem ter conhecimento dos seus fundamentos, nem meios de acesso a fontes informativas para isso, a visão conspiracionista tende a tornar-se uma teoria que poderá fornecer um sentido holístico escondido o qual, por sua vez, explicaria o desconcerto observado.

    Smoke trails from the Space Shuttle Challenger disaster explosion

    O que se torna narrativamente produtivo é o facto de os detectores de complots buscarem um saber esotérico que, por sua vez, parece sustentar-se num mecanismo de iniciação, embora possa suscitar reservas a quem busque um percurso científico de compreensão dos fenómenos. Tal saber secreto, salvo raras excepções, teria sido desenvolvido, segundo as narrativas explicativas, por um grupo de conjurados, afirmados, muitas vezes, como conspiradores contra as instituições dominantes.

    Procurando decifrar as aparências para conhecer a verdade oculta do poder, os esotéricos conspiram para aceder ao segredo, pois o culto do segredo, quer procuremos guardá-lo, quer desejemos descobri-lo, é o que une a conspiração do poder à conspiração dos  gnósticos,ou investigadores esotéricos, que parecem contestar o poder por ele ser conspirativo. Uma tal compreensão do mundo, por assentar numa explicação cujo mecanismo de base é a confusão lógica entre a anterioridade e a causalidade (post hoc, ergo propter hoc – tal como argumentava Barthes, no texto da revista Communications que acima refertimos) por ser a lógica da ficcionalidade, não pode ser cientificamente satisfatória para estabelecer uma imagem credível do mundo em que vivemos. No entanto, ela estrutura-se enquanto lógica do verosímil. Se não configura uma possibilidade satisfatória no campo da episteme, compete com esta nos campos do possível em direcção a uma apetecida aletheia.[i]

    Remo Ceserani, logo no início do seu estudo, “L’immaginazione cospiratoria”, publicado em 2003, afirma que é possível distinguir “três fases na longa história da imaginação conspiratória, correspondentes a três diversos tipos de organizações sociais e a três formas históricas diferentes de conspiração e das suas significações e significados” (in Synapsis, 2003: 7).

    white rope on white textile

    Esta perspectiva histórica é muito interessante, para o nosso ponto de vista, por duas razões: por um lado, estabelece, a partir de bases de investigação que não são as que desenvolveremos aqui, uma periodização que nos será muito útil para contextualizarmos tão coerentemente quanto nos é possível, o corpus e as concepções que, sumariamente, analisaremos adiante; por outro lado, reforça a nossa concepção  de que a conspiração,  além de ser forma histórica de actuação,  cuja  periodização pode ser determinável, apresenta-se como  imaginação conspiratória, segundo os termos de uma poética da argumentação e da persuasão, independentemente de qualquer condicionante histórica.

    Relativamente à primeira razão que apresentámos, é importante explicitar sua opinião quanto às fases e formas correspondentes, uma vez que nos propomos fazer uma breve abordagem da forma específica segundo a qual a conspiração foi posta em cena pelos escritores da época do Romantismo, no teatro e no romance. Em palavras do estudioso italiano, a “primeira é a dos regimes monárquicos legitimados pela tradição e pelo consenso” sobre os quais pesa a “estrutura familiar e restrita” que detém o poder; a segunda forma (correspondente a nova fase) é a da conspiração que nasce “dentro das sociedades mais modernas, nos tempos de transformação e democratização dos regimes políticos autoritários,” correspondente à expressão de grupos de oposição forçados à clandestinidade, pelos métodos policiais, e a contrapor reivindicações de liberdade contra os tiranos;” sendo a terceira, que ele designa por “pós-moderna e paranóica,” a das conjuras “temidas, reais, hipotéticas, sobredeterminadas, manifestações de grupos secretos e misteriosos, os quais presumimos obedecerem à lógica do puro poder” e que admitimos manterem relações pouco claras com “agências internacionais, associações secretas injustificáveis em regimes democráticos e até a serviços irregulares,” ou ainda “com grandes corporações económicas e financeiras” além de poderem manipular episodicamente “grupos de terroristas esquivos a qualquer controlo ou coerência ideológicas” (Ceserani, in Synapsis, 2003: 7). É evidente que os românticos, com Dumas pai à cabeça, em nosso entender, cabem inteiramente dentro da segunda época.

    a truck parked on the side of a road next to a dog

    Acrescentemos ainda, para melhor compreensão desta perspectiva diacrónica, que, embora esteja presente em textos tão antigos como os do Velho Testamento (que Ceserani comenta no seu artigo), a formulação integral da atitude conspirativa parece ter nascido na europa do século XVIII, quer nos relatos que narram eventos mais ou menos verídicos, assumindo-se como crónicas, quer nos fantasiosos, que são entendidos como lendas ou mesmo ficções. As palavras liminares de Taguieffe, no exaustivo estudo que dedicou à questão da conspiração, devem ser aqui evocadas na íntegra:

    “Na nova cultura de massas, um olhar exercitado discerne, com facilidade mas, ao mesmo tempo, com espanto, a presença de motivos que, até aos anos 70 do século passado, eram apanágio de uma extrema direita  alimentada pelo grande mito político fabricado pelos escritores contra-revolucionários  dos finais do século XVIII: o complot internacional dirigido contra a civilização cristã. Um complot maçónico e, depois, judeu-maçónico, do qual a lenda dos «Iluminados da Baviera (ordem historicamente fundada por Adam Weishaupt a 1 de Maio de 1776), generalizadamente designada como a dos «Iluminati», nunca deixou de ser uma da principais componentes. O «compolot dos Iluminati», empreendimento subversivo visando a instauração de um «Governo mundial único» é frequentemente denunciado desde a época da Revolução francesa” (2005: 13).

    Entrosa-se com ela a perspectiva que o romance gótico (ou romance negro [roman noir] ou, por vezes, literatura  ultra-romanesca, no dizer de André Breton no seu Les vases comunicants (1955: 134 cf. Brun, 1982: 12) desenvolve nos seus enredos, pouco tempo depois, um pouco por toda a Europa de finais do século XVIII e princípios do século XIX  (género contemporâneo do pietismo intimista e dos primeiros textos reconhecidos como românticos[ii]),  que Annie le Brun afirma ser, em geral, “no que diz respeito à intriga”, o relato de como “uma jovem rapariga inocente e pura se encontra abandonada nas estradas pelos acasos da vida” o que dá “pretexto a uma formidável viagem ao país das infelicidades”, mecanismo narrativo que fornece ao leitor, segundo a mesma autora, a possibilidade de “conservar a recordação de um espaço de incerteza e de obscuridade, obsidiante como um pedaço de trevas arrancado à noite de que somos feitos” (Brun 1982: 11).

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    No limite, esse mecanismo fabulatório revela-se o autêntico modelo do próprio complot, ao “pôr em cena  esse momento escandaloso em que o homem, que julgava ter conseguido os meios de se tornar sujeito, estaca, subitamente, face à evidência da sua condição de objecto, arrebatado pelo mesmo terror que qualquer ser tem face ao aspecto definitivo do cadáver” (Brun, 1982:). Não é por acaso, portanto, que paralelamente a toda a lógica do discurso revolucionário, a narrativa gótica (ou o roman noir) se sustenha como o grande modelo narrativo preferido do público em geral, de modo ingénuo,  secreta e perversamente nalgumas escolhas dos grupos mais sofisticados, e de modo complexo, entre o público mais “esclarecido”, por “revelar”, sob os modelos do pesadelo, o mecanismo de tudo quanto parece secreto e obscuro: o poder, os valores e mesmo vida.

    A própria História, enquanto relato dos factos marcantes de uma comunidade, ao humanizar-se e perder o seu escoramento nos desígnios engendrados pelo ser supremo, passa a ser objecto da controvérsia e das sucessivas leituras que dela fazem os seus narradores, que produzem uma “verdade” tranquilizadora” pelo encadear de actos sucessivos que parecem satisfazer uma lógica da pura acção.

    Alexandre Dumas é um dos autores que mais eco faz dessa visão mítica dos factos que, desde então, começa a ganhar verdadeiros foros de uma teoria da conspiração. A sua visão da queda do “antigo regime”, em França, é reiteradamente formulada em termos de uma acção conspirativa. Essa perspectiva alimenta quase tudo quanto escreveu, quer se trate de narrativa ficcionais, quer resulte de um olhar de historiador  para os eventos do dealbar da república. Sirva-nos de exemplo deste último tipo de actividade de escrita, o seu texto muito breve, apresentado como um relato resultante de uma investigação histórica, praticada no terreno dos eventos, intitulado La route de Varennes.

    Aí, acompanhando, através de observações, nos locais, e inquéritos e entrevistas às populações das diversas localidades em que o Luís XVI e sua família fizeram paragens, quando se encontravam em fuga pela estrada referida em título, Dumas põe em xeque as teses realistas (que eram aceites como verdades mesmo pelos historiadores simpatizantes da república), segundo as quais o rei teria sido apanhado e conduzido às “autoridades” revolucionárias por indivíduos vingativos e marginais.

    A sua contra-leitura é um verdadeiro modelo de argumentação segundo o processo de desmontagem de uma narrativa conspirativa (tendo como agentes – imaginários, segundo a sua investigação – “revolucionários” populares, de aparência ameaçadora), e construindo, provada a inconsistência desta, uma outra hipótese conspirativa, baseada no relatos e no cotejo dos documentos, segundo a qual teriam sido os monárquicos constitucionalistas os autores da detenção do rei, forjando um complot que, pelo que sugere Dumas, atacaria o legitimismo, ao promover a prisão do rei, desacreditando, ao mesmo tempo, os republicanos, expondo-os como autores de um processo que levou ao regicídio.

    Relativamente à ficção, o dispositivo fabulatório da conspiração ganha foros de núcleo temático dominante do romanesco de Dumas, desenvolvendo-se, a partir dele, uma forte tendência para a construção persistente da intriga segundo  o preceito da enfase na actuação dos conjurados, de que Joseph Balsamo é apenas uma, ainda que a mais forte, das encarnações. É a hegemonia desse enredo que engendra os cenários escolhidos privilegiadamente, a selecção das intrigas que recolhe dos dizeres e da opinião pública da época, bem como as que inventa, por prodígio da sua imaginação, com base na visão do mundo a que dá ênfase, segundo a qual os eventos de importância colectiva seriam devidos a intervenções de seres excepcionais, indivíduos extraordinários, capazes de controlarem as forças misteriosas do cosmos que fariam actuar para determinarem a ordem dos grandes eventos históricos, nomeadamente as revoluções.

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    Só para exemplo do modo como é encenado, espectacularmente, o acto de adesão de Joseph Balsamo à conjuração secreta, apresentamos três aspectos iniciais do modelo de ajuramentação: a assembleia dos dirigentes, o interrogatório, e as palavras de voto do iniciado. Fica apresentado um tipo altamente ritualizado de sociedade secreta, com vontade de intervenção política, cujos traços gerais caricaturam um modelo que poderia corresponder à divulgação massificada que se tem feito de algumas organizações ou ordens, desde a Maçonaria até aos Illuminati, passando pela mais controversa organização de cavalaria “empenhada”, a dos Templários.

    No relato, é dada uma representação do ritual de adesão que poderia caber a qualquer das irmandades que, a partir do século XVIII, têm alimentado o imaginário complotista, ou os discursos mais retrógrados que se têm feito contra a revolução:

     “Sept sièges étaient placés en avant du premier degré; sur ces sièges étaient assis six fantômes qui paraissaient des chefs; un de ces sièges était vide.

    Celui qui était assis sur le siège du milieu se leva. […]

    Puis se retournant vers le’ voyageur.

    – Que désires-tu? Lui demanda-t-il.

    – Voir la lumière, répondit celui-ci. 

    – […] Ne crains-tu pas de t’y engager?

    – Je ne crains rien. […]

    – Que demandes-tu, lui dit le président.

    – Trois choses, répondit le récipiendaire. 

    – Lesquelles?

    – La main de fer, le glaive de feu, les balances de diamant.

    – Pourquoi désires- tu la main de fer?

    – Pour étouffer la tyrannie.

    –  Pourquoi désires-tu le glaive de feu

    – Pour chasser l’impur de la terre.

    – Pourquoi désires-tu, les balances de diamant?

    – Pour peser les destins de l’humanité” (s/d: 11-13).

    Retemos, pela sua importância de componentes morfológicas de uma forma narrativa, os traços que Ceserani extrai da narrativa bíblica que analisa. Na sua opinião, o autor da história, inspirado pelos relatos constantes nos documentos de base, terá sido levado a tratar “os acontecimentos trágicos” como encenações dos “temas da lealdade, da traição, da intriga e do engano, enquanto estratagemas postos em acção”, não tanto inspirado por motivações políticas e partidárias, “mas pelo sentido artístico da potencialidade de uma trama dramática ou narrativa” (Ceserani, in Synapsis, 2003: 10).      

    shallow focus photography of stack of books

    Esses traços, categorias marcantes da construção da intriga, poderiam ser, igualmente, atribuíveis aos que predominam nas fabulações históricas dos relacionamentos, confrontos e manipulações cortesãs de Alexandre Dumas, cujos tópicos e dinâmicas actanciais acabam por ser o que domina, quase avassaladoramente, a sua obra. Dado o âmbito deste nosso trabalho, referiremos apenas pequenos exemplos que consideramos privilegiados.

    O primeiro que nos merece destaque é a actuação de Joseph Balsamo, no princípio do romance que tem por título o nome da personagem – quase sempre publicado em vários tomos, ele próprio integrado num conjunto de romances que abordam o fim do antigo regime em França, numa série romanesca intitulada Mémoires d´un médecin – do qual, acima, demos um exemplo. Logo após as primeiras cenas,  em que Joseph Balsamo é consagrado membro da ordem (que nunca é nomeada exactamente mas que reproduz, embora com bastante liberdade espectacular, os ritos de iniciação maçónicos, como transparece no exemplo que acima apresentámos), a narrativa apresenta-nos a personagem em viagem, atravessando uma região montanhosa de França, numa carruagem de amplas e complexas dimensões, uma espécie de habitação rolante no interior da qual o protagonista e um velho sábio manipulam enigmáticos frascos, fazem funcionar um forno alquímico no qual se prepara uma misteriosa transformação. À volta da carruagem desencadeia-se uma tempestade cujos aspectos e efeitos lembram uma inesperada e incontrolável fúria do Cosmos, resultando dela que um dos cavalos é morto e os viajantes têm de parar.

    A descrição do acontecimento, embora obedeça aos princípios elementares do que é comum na visualização literária dos fenómenos da natureza, não tira qualquer consequência do facto de ela estar a ser observada, sentida, percebida e mesmo avaliada por dois seres de supremo saber. Os fogos celestes surgem como uma pirotecnia surpreendente de efeitos luminosos e a água torna-se numa ameaça que inunda o terreno. Para o velho alquimista a chuva apenas se manifesta como algo negativo por ameaçar apagar o fogo do forno onde se está a dar a grande transformação, pelo facto de a casa rolante não ter a chaminé devidamente coberta.

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    No entanto, quando, como que por acaso, o alquimista se dá conta da trovoada, é com a maior naturalidade que ele explica a Balsamo que é inteiramente possível domar as descargas eléctricas e fazê-las funcionar em proveito da técnica laboratorial. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade. Os segredos de tal arte, porém, não são enunciados senão pela breve explicação de que “a chama eléctrica” pode “descer até ao forno”, por um sistema de “pontas” suportadas por um “papagaio artificial”. Dessa explicação, o genial discípulo, Balsamo, detentor de imensas sabedorias, não percebe nada (cf.Dumas, s/d: 46-47;vol.I).

    O quadro que aqui se nos desenha é, até certo ponto, o de uma relação do homem com o Cosmos, com aquilo que poderíamos designar até, mais funcionalmente, como macrocosmo, manifestando-se tal relação, através de um sábio. No entanto, o processo surge como uma demonstração de que o desenvolvimento do saber é eticamente negativo.

    De facto, o conhecimento contido pelas duas personagens, assente sobretudo numa espécie de manipulação de fórmulas tendentes a construir a transgressão, a arquitectar uma conspiração que altere um conjunto de elementos estruturadores da potência (essencialmente a política – o antigo regime é visto como uma determinada ordem emanada da transcendência, vigorando no universo imanente do perecível), não se move para lá de um quadro ou espaço fechado: o das fórmulas dos livros e dos instrumentos sagrados e/ou proibidos.

    Tal saber encerrado, feito e dominado de uma vez para sempre, parece nada poder acrescentar à visão poética, ficcional ou mesmo cientificamente informada, do macrocosmo. Todo o conhecimento acerca deste permite apenas domínios parciais que podem ou não ser usados para perturbar a ordem humana estabelecida.

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    Dentro deste quadro epistemológico, o saber do sábio (o alquimista, o mação) é sempre um movimento perverso, surgindo no discurso como eticamente negativo. Dado que é indevido no interior do sagrado, torna-se uma actuação de sacrilégio ou de violação. O desenvolvimento da narrativa de Dumas vai revelar-nos que assim é. Quanto ao romancista, na construção das perspectivas que assume como narrador, nunca atribui ao saber das ciências quaisquer perspectivas complementares que lhe permitam desenvolver ou desenhar um quadro do Cosmos que ultrapasse a observação, razoavelmente empírica, das aparências. Tudo está feito pelo grande arquitecto, é ele que assegura a coerência do Cosmos e das suas manifestações.

    Por isso, ao sábio compete-lhe aprender as fórmulas da manipulação, mas não o sentido dos fenómenos, que está estabelecido de uma vez por todas. A alquimia (em sentido lato e algo metafórico que lhe dão os traços quase caricaturais com que se busca a tipificação) não anda, neste caso, muito longe da teologia. O conhecimento da incomensurabilidade da transcendência visa, sobretudo, assegurar o terror e a piedade na acção ritual.

    Aliás, na poética de Dumas, mesmo a descrição elementar de quadros do mundo, sobretudo da natureza, são, comparando-os com os diálogos e as narrações de acções, por exemplo, raros. Isso, possivelmente, porque a interrogação dos mesmos, da razão de ser das suas origens (as fontes, as causas – mas também, complementar e simetricamente, as interacções e consequências), não era material que interessasse a uma tal visão do mundo[iii].

    O homem de Dumas não age sobre o universo natural, nem é por ele transformado. Move-se no seu interior sem um saber científico. Quando o saber emerge, apresenta-se como uma perversão face ao sagrado, uma acção de feitiçaria. De um modo geral, as relações são mais entre as personagens e os entes mágicos ou as suas manifestações intencionais, no que respeita ao Cosmos (um ente supremo desencadeia uma catástrofe, por exemplo), do que entre as personagens e os fenómenos da natureza.

    Les Mohicans de Paris (1854-1859), outra obra que não podemos esquecer no que se refere à problemática do complot, pode ser considerada  um dos  exemplares  mais acabados  de narrativa conspiracionista que foram escritos até hoje. Todo o universo de Paris é encarado como palco de maquinações que têm a ver com o poder central, com as instituições sociais dele dependentes, mas também com as afrontas familiares, os desentendimentos e segredos no interior dos grupos relacionados por parentesco ou, ainda, nas relações existentes entre companheiros de boémia e amigos.

    Várias organizações são convocadas no horizonte da intriga: os maçónicos, os carbonários e as quadrilhas de marginais (de “moicanos”, no fundo) que se aliam ou confrontam ao longo da imensa narrativa de cerca de três mil páginas. Seria justo dizermos que, se pretendêssemos classificar genologicamente este romance, segundo o seu traço temático dominante, a designação apropriada poderia mesmo ser a conspiração romântica.

    De facto, ao lado do termo la bohème, proveniente da narrativa contemporânea de Henri Murger (o título do romance é: Scénes da la vie de bohème – 1851), a designação que usa Dumas, les mohicans, torna-se uma das insígnias mais popularizadas, para referir o universo mítico da vida marginal da Paris oitocentista, com os seus mistérios e os seus grupos, cuja tipificação por  ele realizada tornou lendários. De facto, no título escolhido pelo autor de Le Comte de Monte Cristo[iv], ressoa, francamente, a dimensão mítica da marginalidade, que foi desenvolvida, também com estrondoso sucesso editorial, por Eugène Sue, no seu Mystères de Paris, e as não menos célebres insígnias épicas, da luta pela liberdade, presentes nos romances de James Fenimor Cooper, The Last of the Mohicans.

    Do universo romanesco legendário de Paris oitocentista, até ao advento de Les Mohicans de Paris, faziam parte integral, junto às camadas populares atingidas pela miséria com maior intensidade (a legião de desempregados, de diminuídos físicos, de enjeitados, de pequenos proprietários e camponeses empobrecidos pelas catástrofes naturais e sociais), os grupos mais restritos da boémia, cujos membros, de origem burguesa e mesmo aristocrática, se diluíam na marginalidade, na defesa da actividade artística, desenquadrada das exigências de produtividade e submissão propugnadas pelas classes hegemónicas: a grande burguesia e a aristocracia. Neste último romance, o mais longo que escreveu, a esse submundo vem acrescentar-se a componente política.

    Desse modo, muitos dos grupos que acima enumerámos passam a integrar-se na comunidade segundo uma orgânica politizada, começando  algumas das personagens a ser reconhecidas não pelas características de grupo ou de classe de onde são originárias, mas pelo fazer em que se empenham afincadamente: a agitação política. Da importância dessa componente, apresentamos, em seguida, um exemplo.

    Bonapartistes, orléanistes, républicains, se trouvaient donc confondus, et, si M. Jackal avait eu les cent yeux d’Argus, il eût vu, sans doute, rayonner au fond des catacombes, dans quelque angle opposé à celui des bonapartistes, les torches des orléanistes et des républicains.

    Chaque vente particulière, comme nous l’avons dit, avait un député.

    C’était ce député, délégué par elle, qui formait la vente centrale.

    La vente centrale, de même que la vente particulière, se composait de vingt membres, lesquels membres n’étaient autres que les vingt députés élus par vingt ventes particulières.

    La vente centrale était organisée comme la vente particulière: à son tour, elle élisait un président, un censeur et un député.

    Le député de cette vente était délégué près de la haute vente, laquelle se composait de toutes les notabilités militaires et parlementaires de l’époque.

    Elle ne formait pas de réunion, et le député de la vente centrale n’était jamais ûélégué qu’auprès d’un de ses membres.

    Aussi les affiliés eux-mêmes ne savaient-ils à peu près aucun des noms des membres de la vente suprême, et à peine, aujourd’hui, est-on certain d’en connaître la moitié.

    Les principaux étaient : la Fayette, Voyer-d’Argenson, Laffitte, Manuel, Buonarotti, Dupont (de l’Eure), de Schonen, Mérilhou, Barthe, Teste, Baptiste Rouen, Boinvilliers, les deux Scheffer, Bazard, Cauchois- Lemaire, de Corcelles, Jacques Kɶchlin, etc. etc.

    Finissons en répétant que les éléments dont se composait le carbonarisme étaient loin d’appartenir aux mêmes doctrines politiques, et que bourgeois, étudiants, artistes, militaires, avocats, quoique marchant dans des voies différentes, étaient dirigés par la même cause, c’est-à-dire par une haine ardente contre les Bourbons de la branche aînée.

    Au reste, nous tâcherons de les montrer à l’ɶvre.

    Et maintenant que nos lecteurs savent aussi bien que M. Jackal que l’orateur vient d’être délégué à la vente centrale comme député, reprenons notre récit.

    Après le départ du député, ce fut un brouhaha effroyable; chacun des membres voulut parler sans attendre son tour; les uns, cherchant à se faire entendre, poussaient de cris féroces; les autres agitaient leurs torches comme si elles eussent été des sabres et des épées; enfin, ce fut une confusion terrible, el les rayons des torches agitées, en se dirigeant en mille sens divers, devinrent l’image des pensées  confuses et divergentes de tous les membres de cette mystérieuse assemblée”  (Dumas, 1998 : 1041-1042 – 1º vol).

    Seríamos tentados a ver, nesta assembleia, o predomínio daquela figura, que, segundo Benjamim se tornou típica da sociedade europeia oitocentista, quando estava em causa o fazer política: o conspirador profissional. Esta figura, que Benjamin delineia a partir de Marx, parece encher o imaginário da época e prestar-se a equívocos que misturam os traços das agitações sociais que, de facto, marcaram a França,  intensamente, com os enigmáticos rostos que a ficção deu às figuras da marginalidade (“miseráveis”, “moicanos”, boémios),  em vários momentos marcantes da vida política daquele país, durante o século XIX, desde a Revolução republicana até à Comuna, passando pelas profundas agitações em torno de episódios contra-revolucionários, como o da Restauração, e golpes de estado, como o de Luís Bonaparte. As palavras de Marx, sobre as categorias a que temos vindo a fazer referência são muito elucidativas:

    brown wooden book shelves in a library

    Com o incremento das conspirações proletárias surgiu a necessidade de divisão do trabalho; os seus membros dividiram-se em conspiradores de ocasião (conspirateurs d’occasion), isto é, operários que se dedicavam à conspiração apenas como actividade paralela às suas outras ocupações, que só frequentavam os encontros para poderem ficar disponíveis para comparecer  nos lugares de reunião a um apelo dos chefes, e conspiradores profissionais,  que se dedicavam exclusivamente à conspiração e dela viviam … As condições de vida desta classe determinam desde logo todo o seu carácter… A sua existência periclitante, a cada momento mais dependente do acaso do que da sua actividade, as suas vidas desregradas, cujos únicos pontos de referência estáveis eram as tabernas – pontos de encontro dos conspiradores –, as suas inevitáveis relações com toda a espécie de gente duvidosa, situam-nos naquela esfera de vida que em Paris dá pelo nome de bohème” (in Benjamin, 2006: 13).

    A narrativa romântica da época, quer a francesa, mais presa à actualidade da Revolução, quer a inglesa, preferencialmente presa ao gosto da evocação histórica, fixou-se de tal modo no modelo conspiracionista que, de entre a multiplicidade de temas e dispositivos narrativos percorridos pelo imaginário que elabora, sobressaem aquelas obras em que o referido modelo domina. Les Misérables, de Victor Hugo, Ivanhoe, de Walter Scott, e Splendeurs et misères des courtisanes, de Balzac, poderiam ser notáveis exemplos a acrescentar aos de Dumas que acima comentámos.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia  

    Barthes, Roland, 1957, Mytologies, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1966, “Introduction à l’analyse structurale des récits”, in Communications nº 8, Seuil, Paris

    Benjamin, Walter, 2006, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa

    Breton, André, 1955, Les vases communicants, Gallimard, Paris

    Brown, Dan, 2004 [2003], The Da Vinci Code, Doubleday, New York

    Brun, Annie Le, 1986, Les Châteaux de la subversion, J.-J. Pauvert/Folio, Paris

    Ceserani, Remo, 2003, “L’immaginazione cospiratoria”, Synapsis (ed.), Conspiracy, complot, Le Monnier, Florença

    Dumas, Alexandre, s/d, Joseph Balsamo (2 vol.), Marabout/Géant, Verviers (Belgique)

    Dumas, Alexandre, 1998, Les mohicans de Paris (2 vol.), Gallimard, Paris

    Eco, Umberto, 2001[1986], Sémitotique et philosophie du langage

    Falzon, Christopher, 2002, Philosophy Goes to the Movies, Routledge, London

    Goldsman, Akiva, 2006, The Da Vinci Code – Screenplay, Broadway Books, New York

    Jorge, Carlos J.F., 2007, Cenários da Conjura, Imaginários da Intriga, Apenas Livros, Lisboa

    Jorge, Carlos J.F., 2009, “A Argumentação Conspirativa – Por uma Poética da Intriga”, Dedalus, nº 13, Ass. Port. de Literatura Comparada, Lisboa

    Lacombe, Roger G., 1974, Sade et ses masques, Payot, Paris

    Lévi-Strauss, Claude, 1986, O olhar distanciado, Edições 70, Lisboa

    Praz, Mario, 1977[1966], La chair, la mort et le diable dans la littérature du XIXe  siècle, TEL/Gallimard, Paris

    Taguieff, Pierre-André, 2005, La foire aux Illuminés, Mille et Une Nuits/Fayard, Paris


    [i] Para uma perspectiva mais desenvolvida da matéria apresentada nos parágrafos anteriores, remetemos para os nossos textos de 2005 e 2007 citados na bibliografia. 

    [ii] Rousseau escreve a sua última obra, ainda modelo de pietismo, em 1776, Ann Radcliff publica a sua primeira narrativa em 1789 e Chateaubriand publica Atala em 1801

    [iii] É evidente que esta afirmação, relativa à gigantesca e irregular produção de Dumas não pretende ser verdadeira para toda a obra que lhe é atribuída. Temos na memória, de imediato, o ciclo de D’Artagnan,  o de Joseph Balsamo (ou narrativa inicial da série Mémoires d’un médecin) e Les Mohicans de Paris – qualquer deles constituído um formidável relato de engenhosas insídias, conjurados e conspirações.

    [iv] Também este um romance onde a conspiração domina, desta feita a que pesa sobre um homem honesto, cuja vida foi destruída pelas maquinações de  um celerado. O herói, vilipendiado e inocente, é redimido pela herança da maior das figuras conspirativa de Dumas: Joseph Balsamo, aliás, Cagliostro, aliás, Monte Cristo…

  • Avatares das metamorfoses: segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana

    Avatares das metamorfoses: segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana


    Partindo da proposta de Umberto Eco, segundo a qual, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos de facto um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

    A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários ou fílmicos, à luz de uma unidade conceptual a que chamamos mitos urbanos, começou a seduzir-nos, francamente, a partir da sugestão do título de dois filmes americanos: Urban Legend de Jamie Blanks, de 1998, e Urban Legends: Final Cut de John Ottman, de 2000. Não pela qualidade dos filmes ou da matéria que eles focam, mas por apontarem para uma possível matriz de eventos terríficos que se tornaram casos[1]ou acontecimentos arrebatadores do imaginário social.

    Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Formulam figuras e acontecimentos que se caucionam no plano da ideologia, da exemplaridade ética ou axiológica.

    Alguns estudiosos chamam a determinadas imagens ou narrativas recorrentes, relativas às cidades e à globalidade na qual se integram e pela qual são reproduzidas (a global village de McLuhan), “«lendas urbanas» ou «lendas modernas», para sublinhar o seu liame com os traços dominantes das nossas sociedades: a cidade e a modernidade” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10). Por esse substrato ser francamente convocado pelo nosso termo mito, preferimos utilizá-lo, para designar o mecanismo fabulatrório que ele propicia, o qual nos permite associar o evento singular, transformado em enunciado temático elementar ou motivo lendário, à narrativa  que o inclui, literária ou jornalística e, sobretudo, por nos permitir  ligar ambos os níveis com um mais vasto,  o da “série legendária ou mitologia composta por le(ge)ndas que se tornam significantes pela sua própria acumulação” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10).

    É a série mitológica, em nosso entender, que rege e regula o funcionamento dos outros elementos, tornando-os motivos ou relatos míticos, compreensíveis ou legíveis apenas num quadro cultural em que a matéria mítica tenha sentido. O mais banal dos eventos profanos cabe numa matéria cujo grande nódulo semântico é o próprio mitologema sagrado, a narrativa dos feitos e paixão, ou um mitema[2], pontual, de intensa densidade cultural, núcleo simbólico de forte irradiação semântica, pelo que se transforma num ícone emblemático – por exemplo, um quadro representando o momento mais pregnante[3] (p.e.: “a descida da cruz”, “a saída do túmulo” ou a “aclamação pelos fiéis”). Não é isso que se passa sempre, obrigatoriamente. Mas pensamos que a leitura das perspectivas míticas deve ser esclarecida por essa via.

    O dispositivo dinâmico das metamorfoses pode ser abordado, com vantagem para a compreensão das suas variantes actuais, na perspectiva urbana dos mitos modernos. Enfatizamos, neste caso, os aparatos sociais, culturais e simbólicos que surgem representados, desde as primeiras formulações das atmosferas românticas do romance gótico, ou da sua variante francesa, a que os estudiosos das expressões literárias românticas também chamam roman noir. O quadro sociocultural é quase sempre delimitável por grandes filões semânticos ou topoi, que chegam a constituir subgéneros emergentes a partir das matrizes criadas em The Castle of Otranto (1790) de Walpole, nos romances de Ann Radcliffe (que publicou, entre 1790 e 1797, as suas principais obras) ou ainda em The Monk (1796) de Matthew Lewis.

    Segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana, balizam esse universo temático, quase todo ele romanesco, mas que emerge em fulgurantes representações da grande poesia canónica ou sublimemente maldita, em poemas de Keats (“Belle Dame sans merci”), Byron (The Corsair), Baudelaire (“Le Vampire”), Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou Mallarmé (Hérodiade), para acolher apenas alguns exemplos maiores.

    A cidade, ela própria um mito que se foi forjando, na modernidade,  como estrutura dinâmica colectora do lendário e transfiguradora dos elementos que geraram as representações eufóricas das técnicas, das formações sociais e dos confrontos mais radicais entro o eu/próprio/nós e o ele(s)/outro(s)/de inquietante-estranheza, germina, com o seu cosmopolitismo, os imaginários da boémia, das convulsões sociais, do litígio entre os representantes da lei e do direito e os fora-da-lei e marginais, ou mesmo os  assassino em série, sedentos de sangue, movidos por obscuros impulsos.

    A amalgama de potestades pagãs, da cultura clássica, e de figuras oriundas das narrativas folclóricas desemboca nas mais ousadas épicas populares. De facto, a cultura de massas, sobretudo ao emergir na banda desenhada, produz figuras como Super-Homem, mistura de semideus ou titã (Héracles, Prometeu) e herói salvífico do conto maravilhoso ou de fadas, provido de dom ou de talismã, Batman, cuja personalidade entretece traços de Héracles, do mago com poderes quase sobrenaturais (mágicos e “científicos”) e do enigmático animal nocturno (o morcego, o vampiro…) ou Flash, onde transparece a iconografia de um Mercúrio, que usa a sua velocidade para actuar como um malicioso gnomo contra os malfeitores.

    Podemos fazer sobressair com traço comum destes heróis populares a sua capacidade metamórfica, resultante da activação de um dom ou de um talismã, que os diferencia dos protagonistas de outras séries culturais, sejam elas populares (aventuras de pioneiros e exploradores, por exemplo) ou da produção canónica (a narrativa realista, o drama psicológico, por exemplo).

    Alguns dos motivos mais fascinantes que dominam as narrativas populares nos nossos dias, nas produções para as massas que vão da banda desenhada ao cinema de culto, passando pela narrativa literária de géneros mais procurados (o policial, a novela de mistério, o thriller – misto de história de arrepios e melodrama, desde o romance gótico até ao film noir) já aparecem enunciados num texto anónimo, publicado em Inglaterra em 1797, intitulado Terrorist Novel Writing: “Um velho castelo, parcialmente em ruínas. Uma longa galeria, com muitas portas grandes, algumas delas secretas. Três corpos assassinados, recentemente. Igual número de esqueletos, em arcas e armários…”

    Ao citar o ensaio a que pertence o excerto acima transcrito, Botting afirma que outros ingredientes fortemente recorrentes e fundamentais podem ser enumerados, em adenda à lista do autor anónimo setecentista: “escuras criptas subterrâneas, abadias em ruínas, florestas sombrias, montanhas escarpadas e cenários selvagens habitadas por bandidos, heroínas perseguidas, órfãos, e aristocratas malévolos” (1996: 44).

    No fundo, o ar de família de todos esses elementos é a atmosfera de sombras e mistérios povoada por figuras sombrias, mas onde predomina o artefacto humano, a presença da concentração social moderna e a organização social dos nossos dias. É nesse pano de fundo que ganha força a dinâmica dos acontecimentos chocantes, dos incidentes sobrenaturais, superstições e crenças, “promovendo o sentimento de espanto e encanto sublimes que se cruzam com o medo e a intensa imaginação” (Botting, 1996: 44) num quadro cultural e civilizacional em que a ciência emerge como esforço sistemático de dissipar as fantasias e receios provocados pela ignorância e a técnica procura vencer a noite, nas grandes concentrações urbanas, através da iluminação pública. É aí que o confronto entre o conhecimento e o mistério, a razão e o irracional ganha novos contornos. Ao iluminar a noite lançam-se novas e inesperadas sombras, onde os defensores da ordem e da razão têm de usar os ardis da ocultação da sombra e do segredo, para enfrentar as ameaças do mistério, provenientes de ignotas e distantes paragens. 

    brown bat flying

    São as ocorrências desses confrontos que, quando narrativizadas, se tornam mitos, e isso acontece por se terem incorporado em discursos que os celebraram muito para lá da sua importância enquanto acontecimentos empiricamente controláveis, que normalmente não são, pelo que não cabem na dimensão da factualidade documental enquadrada pelas instituições políticas, jurídicas ou económicas. Assumimos que o mecanismo que subsume essa dinâmica é o da metamorfose, surgindo esta, em última instância, como o processo do sujeito em direcção a uma alteridade em conformidade com a qual ele interage de modo mais adequado com os elementos da intriga de repercussões cósmicas que o envolve.

    Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Segundo todas as aparências, as narrativas de estrutura fabulatória fantástica, apelando para a actuação privilegiada de personagens providas de perícias excepcionais ou mesmo de faculdades extraordinárias, buscam apresentar compreensões e soluções para os grandes problemas sociais, humanos e mesmo cósmicos, que resultam de uma leitura do universo como estrutura de uma intriga em desenvolvimento, e de uma hermenêutica em que as personagens funcionam como peças de gigantescas conspirações e contra-conspirações. Note-se que as polarizações entre o Bem e o Mal são uma constante nesse tipo de narrativas.  

    Um estudioso de Ovídio, autor clássico que podemos considerar criador do delineamento da dimensão densa e complexa do processo da metamorfose como facto mitopoético, diz-nos o seguinte sobre tal transformação:

    woman in black long sleeve shirt lying on brown dried leaves

    A crença nas mudanças de que podem sofrer os seres impotentes face à temível força oculta de  um deus  zangado, ou mesmo bondoso, de um feiticeiro malfeitor, de uma maga, ou de uma fada caprichosa, pertence a todos os tempos e todos os países. Convicção religiosa sincera, que vê nisso o exercício legítimo do direito soberano da divindade – doutrina filosófica defendida por um Pitágoras (não é a metamorfose a forma mais brusca e ostensiva da metempsicose?) que dela faz uma forma do perpétuo renascimento – credulidade irracional do primitivo, aterrorizado pelo feiticeiro da tribo – jogo encantador da imaginação, semi-consciente no caso da criança, deliberado no poeta, seja qual for o mobile profundo que a ela nos leva, outras tantas formas aparecem do nosso gosto inato pelo maravilhoso” (J. Chamonard, in Ovídio, 1966: 9). 

    Contudo, é um facto que a metamorfose, tal como a podemos encontrar, hoje em dia, já não corresponde ao mesmo quadro de crenças e ideologias que a enformavam na cultura clássica, tal como o reconhece Charmonard:  

    Na verdade, a metamorfose só encontrou asilo, entre nós, em certas superstições populares, como a do lobisomem e, mais poeticamente, nos contos onde vemos as abóboras transformarem-se em carruagens e os lagartos em lacaios. As nossas religiões retiraram-na da lista das penas e das recompensas divinas, e os últimos traços que dela encontramos, na Lenda Dourada,são, quando muito, a transformação súbita, sob os olhos de um santo homem cheio de compaixão, de um mendigo sórdido numa personagem celestial, cintilando de juventude e beleza, ou, numa ordem de ideias próxima, a renovação do prodígio de Orfeu, escutado por animais e rochas. É, para nós, uma forma do milagre primitivo, já desactualizado. Ao contrário, para os gregos foi, ou tinha sido, uma das formas mais comuns. Se exceptuarmos a condenação severa a engenhosos suplícios infernais, não havia forma mais frequente do que a metamorfose, a seus olhos, de intervenção divina para vingar a moral violada, castigar a soberba humana ou as ofensas pessoais praticadas. Que parte desta crença devemos atribuir à fé sincera, à imaginação, ao desejo de explicar as virtudes de uma fonte, a forma de um rochedo, as particularidades dos costumes de um animal, a plumagem de uma ave, a folhagem de uma planta? Que reflexões despertaria aos espíritos mais livres a constatação de que a era das metamorfoses estava declaradamente encerrada e que todas as histórias que se contavam das metamorfoses reportavam-se a um período revoluto das relações entre os deuses e os homens?” (in Ovídio, 1966: 9-10)

    lighted white pillar candles

    Tenhamos em conta, complementarmente, que os modelos fabulatórios que se desenvolveram na Europa, nos espaços culturais resultantes da consolidação dos poderes que emergiram na área cultural dominada pelo cristianismo, proclamam-se à sombra de um culto cada vez mais forte de uma tradição “nacional popular” a que os românticos chamaram folclórica. Assim, o ente mágico ou maravilhoso desliga-se da contingência teológica ou religiosa, na tradição gótica que se desenvolve como narrativa de muito ampla aceitação popular na Europa e na América, quando o incremento da alfabetização e da escolaridade obrigatória começa a transformar a cultura popular, preponderantemente oral e folclórica até finais dói século XVIII, em cultura de massas.

    O processo dessa ruptura aparece muito bem formulado na épica miltoniana, ao constituir Satã como poderoso antagonista da divindade cristã, ente terrífico, ameaçador mas, ao mesmo tempo, fascinante. A repercussão de Paradise Lost nas gerações pré-romântica e romântica emerge nas figurações, sobretudo romanescas, a que se tem chamado góticas.

    O romance mais célebre que assume integralmente o tema do vampirismo é, sem dúvida, Drácula, de Bram Stoker. Aí, o morto-vivo aparece em toda a sua dimensão perturbante e ambivalente de “figura aterradora, emergente das narrativas do passado, da mitologia e do folclore, bem como entidade portadora de uma irrupção de inconfessáveis energias da ancestralidade primitiva da sexualidade humana” (Botting, 1996: 145).

    No romance, é claro o confronto entre as forças desse passado mítico, longínquo e conturbado por guerras, terrores e violências intoleráveis aos valores civilizados já então, na Europa do século XIX, e a modernidade em que assentam e se entrincheiram os adversários do poderoso senhor das trevas. Um grande guerreiro, outrora defensor das fronteiras orientais da Europa contra os turcos, na Idade Média, assenhorando-se dos poderes da magia maléfica, regressa de entre os mortos com o poder de se transformar em animal predador (lobo, morcego, actuando sempre como vampiro, em busca do sangue das vítimas humanas) enfrenta um grupo de “modernos vitorianos”, assente na cosmopolita Londres e armado das tecnologias de comunicação, de registo e de intervenção médica.

    O mecanismo que aparece obsessivamente evocado, ao longo da narrativa de Stoker, é o da circulação sanguínea. Dando continuidade à perspectiva mítica profundamente arreigada nas mais antigas e difundidas crenças populares, de que o sangue é a própria substância da vida, a dinâmica da história assenta, sobretudo, nos processos segundo os quais os mortos (certos mortos, pelo menos) procuram obter o retorno do sangue ao seu corpo, em conflito absoluto e cósmico (dizer mortal seria dizer pouco) com os vivos que se opõem a essa obtenção. A crença no efeito do sangue sobre os corpos inertes é milenar, na Europa. No canto XI da Odisseia, onde é relatada a descida de Ulisses ao Inferno, esse mecanismo é patenteado.

    Um dos poderes do vampiro, senhor da metamorfose fundamental, a de se manter vivo na morte, é o de poder praticar metamorfoses secundárias, transformando-se em animais cujas perícias sejam úteis à sua actividade predadora. Por vezes essas transformações são disfarces, modos de não se dar a reconhecer, outras vezes são camuflagens ou utilizações talismânicas das formas adquiridas, para obterem velocidade e facilidade de aproximação das suas vítimas ou modos de escapar a perseguidores.

    Embora herdeiro de formas míticas e configurações semânticas do passado, o vampiro, sobretudo a partir a figura de Drácula, infinitamente reinterpretada e reelaborada, torna-se ele próprio um mito de poderosa irradiação. Actuando, na formulação de Stoker, sobretudo por motivações egoístas, os seus objectivos complementares tornam-se tendencialmente conspirativos: ao grande mestre vampiro compete propagar a sua espécie.

    O seu processo na multiplicação não depende da sexualidade resulta, antes, de uma acção epidémica, por contacto directo. A sexualidade, para o vampiro, é versatilmente distribuída pela erogénização de todo o corpo e das suas acções fundamentais: alimentar-se difundindo-se, simultaneamente. Por outro lado, com a sua dentada, a dor transforma-se em fonte de prazer constante. Alimentando-se em acto erótico não perde energias, antes as recupera, tornando-se cada vez mais vigoroso e fisicamente invencível. Quando está em acção o corpo imuniza-se contra quase todas as formas de agressão.

    Embora Drácula tenha uma origem satânica, tal como a ficção literária o concebeu, as figuras que dele descendem, na cultura de massas, são quase todas defensoras das normas e princípios decorrentes dos Decálogo ou dos Evangelhos.

    O submundo dos confrontos sociais das metrópoles modernas, a que os parisienses deram o nome de bohème, é a região oculta dentro das cidades, nessa zona onde o real dos confrontos e das ideologias funciona como que sob o efeito de uma lanterna mágica, projectando os eventos sob os contornos do imaginário e o regime da fantasia, a máscara e a ocultação, a duplicação sob disfarces é um factor de força. O poder dessa transformação pode ser incrementado se ela arrastar uma mudança qualitativa do próprio ser, pelo poder do dom, do talismã ou do apetrecho.

    Um dos resultados mais esplendorosos, nas narrativas desenvolvidas segundo essa perspectiva, é o de os agentes em confronto, esquematizado segundo pólos maniqueístas de bem e de mal ou de justiceiros versus malfeitores, desgastarem nos litígios doses aparatosas dos seus efeitos especiais. Não é por acaso que o cinema se tornou o dispositivo preferencial de representação de tais confrontos.

    Uma outra dimensão que a narrativa de Bram Stoker desenvolve de modo exemplar é a da dinamização do efeito de alteridade. Ao ser agredida, a vítima tende para transformação em vampiro, mas antes tem de passar pela morte, cuja chegada se anuncia claramente pelos sintomas e número de mordeduras. O retorno à vida é assegurado pelo número de transfusões. O impedimento da passagem a vampiro obtém-se pelo ritual da estaca, da decapitação. A autenticidade de ser vivo e integrado na ordem natural e divina é assegurado pela transparência da sua consciência tal como se revela inteiramente aos outros, pelo que, cada mentira tem de ser assumida e retractada, para evitar a integração no mundo ameaçador do outro, o vampiro.

    O próprio vampiro tem uma existência de alteridade que necessariamente tem de ser delineada. A sua residência é a de um castelo maldito do qual não deve sair para não contaminar os outros. O seu castelo existe numa zona fronteiriça.

    Como se percebe pela actuação do vampiro supremo, Drácula, na ficção stokeriana, o seu projecto, subentendido mas patente nas suas realizações e propósitos, é a expansão planetária. Sintomaticamente, a cidade por onde pretende começar a sua expansão, criando vítimas que, de imediato, pelo processo epidémico da sua mordedura, passam a prosélitos, é Londres…nem mais…a impressionante megametrópole, capital do maior império planetário existente até então. Estamos, assim, perante o impensado retorno da ameaça da invasão, não pelos “infiéis” ─ figura que, sob o domínio da expansão victoriana era ainda uma imagem do “mal” ameaçador[4] ─, mas do outro dos infiéis, seu cruel oponente, o heróico e bárbaro guerreiro romeno, o outro em nós, talvez o enigma da morte que retorna, o Outro-Fantasma.

    sunset photograph during nighttime

    A mutação dessa figura da mutação, não avatar da metamorfose, mas talvez, para aproveitarmos a terminologia que pusemos em jogo, avatar do avatar, parece-nos muito bem sugerido pelo filme de Cameron que se chama, exactamente Avatar.

    A questão final que aqui se põe à metamorfose como avatar é a seguinte: pode um eu pertencente a uma comunidade abandonar o seu estar que o torna em um de nós, sem se transformar no eu em outro da comunidade deles? Neste caso, a transformação foi possível, o corpo terrestre perdeu-se e o eu passou para o outro corpo idêntico aos dos que estavam a ser colonizados. E, nos desenrolar do processo, esse eu no outro corpo junta-se aos oprimidos que, com a sua ajuda, conseguem expulsar os poderosos invasores. É claro que a leitura sintomática de uma tal transformação não pode ser realizada no escopo deste nosso trabalho.

    Ficará, certamente, para leituras em que abordarmos, em conjunto, outros processos similares, que vão aparecendo, por exemplo, em narrativas que nos mostram como a passagem a vampiro pode ser um passo de aperfeiçoamento da própria humanidade.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia  

    Activa

    Hugo, Victor, 1972, Les Misérables (3vol.), Le Livre de Poche – LGF, Paris  

    Ovídio, 1966, Les métamorphoses, Garnier-Flammarion, Paris

    Perrault, 2007, Les Contes de Perrault, Omnibus, Paris

    Passiva

    Barthes, Roland, 1957, Mythologies, Seuil, Paris

    Benjamin, Wlater, 2006, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa

    Botting, Fred, 1996, Gothic, Routledge, Londres

    Calvino, Italo, 2010, Sobre o Conto de Fadas,

    Campion-Vincent, V. e J.- Bruno Renard, 2002, Légendes urbaines, Payot, Paris

    Delgado, Manuel, 1993, Las palabras de otro hombre, Muchnik, Barcelona

    Durand, Gilbert, 1983, Mito e Sociedade, A Regra do Jogo, Lisboa

    Ducrot, Oswald e Jean-Martie Shaeffer, 1995, Nouveau dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Points/Seuil, Paris

    Eco, Umberto, 1990, O Super-Homem das Massas, Difel, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa

    Jorge, Carlos J. F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço, Ulmeiro, Lisboa

    Lacan, Jacques, 1989, Shakespear,Duras, Wedkind, Joyce, Assírio & Alvim, Lisboa

    Lessing, Gotthold Ephraim, 1990, Laocoonte, Tecnos, Madrid

    Lévi-Strauss, 1958, Anthropologie structurale, Plon, Paris

    Lévi-Strauss, 1979,  Mito e Significado, Edições 70, Lisboa

    Lévi-Strauss, 1986, O Totemismo Hoje ; Edições 70, Lisboa

    Jolles, André, 1972, Formes simples, Seuil, Paris

    Praz, Mario, 1977, La chair, la mort et le Diable dans la littérature du XIX ͤ siècle, TEL/Gallimard, Paris

    Sauvy, Alfred, 1969, Los mitos de nuestro tiempo, Labor, Barcelona

    Spooner, Catherine, 2006, Contemporary Gothic, Reaktion Books, Londres


    [1] Reportamo-nos à categoria de Jolles que apenas sugerimos aqui em resumo. Ora o “caso” segundo este autor verifica-se quando “o crime e o delito significam de imediato a infracção de uma prescrição, a contravenção de uma norma” pelo que, ao contrário do que acontece na lenda, “o acto e o objecto não são a virtude ou a falta, o que se torna acto e objecto são, neste caso, a lei e a norma às quais são reportados os actos de toda a espécie” (Jolles, 1972: 140).

    [2] Sobre o conceito de mitema, cf. Lévi-Strauss, 1958: 233; relativamente ao conceito de mitologema, cf. Delgado, 1993: 259.

    [3] Referimo-nos ao conceito que Lessing desenvolve no seu Laocoonte, obviamente. Por ele designa-se o que no quadro “imóvel” existe de representação da temporalidade narrativa, captada em instantâneo mas tendo presente as linhas de maior dinâmica e força simbólica da fábula (cf. Lessing, 1990: 120-121 e 130).

    [4] E não deixou de o ser, pelas imagens que, hoje em dia, são forjadas pela acreditada informação ocidental, sobre os agentes do “terrorismo” e líderes do “eixo do mal”…

  • O discurso do simpósio ou a cena dialógica em Eça

    O discurso do simpósio ou a cena dialógica em Eça


    Encarar como atitude ideologicamente disfórica, no discurso queirosiano, a posição de vencidismo, tem sido a posição mais frequentemente assumida pela crítica especializada na obra queirosiana (cf., por exemplo, Carlos Reis, 1999:55). Contudo, não nos parece a conclusão mais produtiva para a compreensão da obra do autor, se a queremos entender como macrotexto em que a coerência superior subsuma o sentido pleno de todos os elementos.

    É nossa convicção que o funcionamento de tal elemento da ordem do ideológico, formulável, eventualmente, como ideologema, beneficiará se for confrontada, dialecticamente, ou mesmo dialogicamente, com a afirmação romântica de entusiasmo. Em consequência dessa convicção, é nosso parecer que, semanticamente, os enunciados da obra queirosiana que podem ser lidos como decorrentes da posição vencidista se ajustam, em antinomia de alteridade e alternativa, com os seus contrários, decorrentes das coordenadas do entusiasmo.

    Não pretendemos desmentir, obviamente, todo um percurso de estudos e investigações que nos demonstra quanto há de frustração e de desengano na posição histórica do cidadão – percurso esse atestado por documentos e análises, por interpretações cautelosamente conduzidas, de António José Saraiva a Carlos Reis, passando por muitos e prestigiosos investigadores, anteriores e posteriores aos citados, percurso esse cuja origem poderíamos mesmo colocar em António Sérgio.

    Nem pretendemos desmentir quanto do cidadão, por responsabilidade de escritor, emergente como homem de letras e jornalista, numa época em que ganha todo o sentido a função social do intelectual, sobretudo pela sua capacidade de intervenção perante o público a quem deve a maior fidelidade, se terá incorporado na obra ficcional que ele próprio escreveu. Nomeadamente, em muitos dos enunciados de desencanto emergentes das personagens mais lúcidas de Eça, reconhecemos, em resultado dos mesmo factores já aduzidos, a presença de um juízo desencantadamente negativo sobre a sociedade portuguesa, ou mesmo sobre a falibilidade humana em geral, que será atribuível ao autor que é, também, o cidadão Eça de Queirós.

    Contudo, é nossa convicção que aquilo a que se chama vencidismo é muito mais um modo de perspectivar o mundo, as formas de criar representações ou modelos expressivos que digam a visão do mundo e as opiniões dela decorrentes, do que uma tomada de posição existencial e histórica, em que a desistência, o silêncio ou o encerramento de perspectivas ideológicas são o estado definitivo.

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    Por outro lado, é um facto por nós aceite, à partida, que essas formas de representar variam em torno do facto de haver conflitos, de haver confrontos, de ser possível fazer melhor, de se defrontarem facções em que uma tem mais razão histórica (histórica, note-se bem) do que a  outra, segundo dois modelos fundamentais: a que atende à modalidade relativa de os conflitos existirem; e a que, de um modo ou de outro, apela ao triunfo de uma das partes em conflito.

    Sem pretendermos fazer epistemologia em águas “extraterritoriais”, digamos que ambos os modelos são verificáveis em todo e qualquer discurso que se desenvolva sobre os fenómenos do universo. Ora, assim sendo, podemos dizer que, na ordem do discurso, eles são identificáveis, respectivamente, pelo que Bakhtine chama o modelo dialógico e modelo monológico.

    A conjectura que aqui desenvolvemos, em estado de embrião, é a de que, a verificarem-se essas duas tendências, nas modalidades discursivas a que chamamos artísticas, Eça situa-se no conjunto de autores em que predomina a primeira delas. Complementarmente, devemos acrescentar que a nossa hipótese decorre também do facto de ser nossa convicção, em comunhão com Bakhtuine, que a modalidade dialógica tem uma razão de maior amplitude histórica do que a monológica. Ora, apresentando-se as coisas desse modo, a hipótese que postulamos é a de que a chamada atitude de vencidismo constitui um modo de processar, por várias figuras da organização poética e pela opção por determinados modelos genológicos do discurso, uma visão do mundo em que ao triunfo das causas se opõe, como uma causa suprema, o peso ou a ponderabilidade das coisas.

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    Tomemos, como exemplo paradigmaticamente central da expressão do vencidismo queirosiano, um elemento “extra-literário”, um seu discorrer que corrobore enunciados da obra artística autoral, embora seja emitida de um lugar textualmente exterior – de um discurso peritextual, por assim dizer. Esse elemento pode ser a sua resposta a Pinheiro Chagas, em artigo anónimo, ao esclarecer quem eram os amigos que se reuniam para jantar. A designação, que, embora tendo sido apresentada em texto anónimo, se afirma ser do próprio Eça, é muito sugestiva. Chamando ao conjunto convivas um “grupo jantante”, ele cria a expressão que, pelo dinamismo da adjectivação, se opõe à usada pelos seus adversários, entre os quais se encontrava Chagas, ao designar esse mesmo grupo por “vencidos da vida”. À imobilidade da prostração, opõe-se o dinamismo do grupo actuante. Seja dele ou não (e, pelas razões que desenvolveremos longamente, a nossa convicção plena é que é bem um texto queirosiano) o artigo saído na edição de 29 de Março de 1889 do jornal Tempo (cf. Campos Matos [org.], 917 – entr.: “Vencidos da Vida” [C. M.]) merece ser considerado atentamente pelas perspectivas estimulantes que abre à hipótese que colocámos à partida. Citamo-lo, em seguida, resumidamente, apresentando apenas as frases que nos parecem essenciais:

    (…) Vencidos da vida [é um] título acabrunhante […] que a imprensa tem erguido ultimamente em torno deste grupo jantante, com considerável desgosto dos homens simples que o compõem. […] Eles comem – a sociedade, estupefacta, murmura. […] Só podemos juntar que os Vencidos oferecem o mais alto exemplo moral e social de que se pode orgulhar este país. 11 sujeitos que há mais de um ano formam um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em pequenos grupos de direita e esquerda; sem  terem durante todo este tempo nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem se haverem dotado com uma denominação oficial de reais vencidos da vida ou vencidos da vida real ou nacional; sem arranjarem estatutos aprovados no Governo Civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras «tão anónimas quanto dedicadas»; sem iluminarem no primeiro de Dezembro; sem serem elogiados no Diário de Notícias – estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente para o futuro, na ordem das coisas morais, se falará do onze do Braganza, como na ordem das coisas heróicas se fala dos doze de Inglaterra” (Queirós, [1928] s/d:185-188)  

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    Ora, se atentarmos bem, o modelo discursivo que parece ficar desenhado neste relato histórico em que aparece justificada a origem do epíteto aplicado a Eça (como se este fosse, por sinédoque, a metáfora do próprio grupo) é o do simpósio. Retemos este termo – no qual insistiremos por o acharmos adequado à perspectiva que, em Eça, tem uma ampla forma do discurso a que podemos chamar as cenas ou sequências de jantar – porque ele nos ajudará a ver como a designação de vencidismo se constrói numa incompreensão de dupla dimensão: ideológica, antes de mais, porque entende determinados enunciados de Eça e do seus confrades de jantar como provenientes de um desinteresse causado pela derrota política, cultural e mesmo epistemológica; e estético-cultural, fundamentalmente, porque ignora a dimensão progressista e transformadora que a atitude jantante tem no meio cultural português. Assentamos este nosso ponto de partida nas próprias palavras de Eça acima citadas.

    Uma vez que não é possível determo-nos em todos os aspectos de conteúdo que afectam a dimensão ideológica em questão, lembramos apenas, com toda a brevidade, aquelas para que aponta a própria resposta atribuída a Eça: o sincretismo dialogante que impede o grupo de se dividir em facções partidárias, a ausência de estrutura hierárquica de poder, a ausência de bandeira, hino ou data marcante que simbolize o dinamismo do grupo na esfera da luta política.

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    Lembremo-nos que, dentro deste grupo que se mantém coeso em fraternal convívio, se encontravam personalidades  tão diversas como Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, além do próprio Eça, cada um com as suas convicções ideológicas e, como ideais estéticos, as variadas propostas de modernidade, que cada qual cultivava com as suas matizes próprias.

    No entanto, a questão que mais nos importa aqui, de momento, não é tanto a  dos conteúdos veiculados, ou mesmo das concepções estéticas ou ideológicas que se formulam, no debate que historicamente opõe a geração de Eça (e aqueles que a ela se ligaram, já depois de se terem desenvolvido as teses dos anos 70 do século XIX em Portugal) aos defensores de uma tradição formulada em termos românticos. A dimensão que nos parece mais curiosa tem a ver com o dispositivo semiótico do jantar que Eça apresenta.

    De acordo com as suas palavras, a prática jantante é um mecanismo discursivo, e os modelos dialógicos que ela proporciona actuam de tal modo que, por assim dizer, reformulam a construção tendencialmente monológica da ideologia, segundo os pressupostos românticos, fazendo tombar as ideias na ponderabilidade das coisas a ingerir. De algum modo, o ímpeto de elevação, de purificação entusiástica nas zonas de sublimidade ideal  é contrariado pelo jogo dos discursos da materialidade que, nas cena ou sequências do jantar, parodiam a elevação, fazendo-a imiscuir-se na   corporeidade material, sobretudo aquela que Bakhtine define como a que é central ao processo de carnavalização: o baixo corporal.

    Este mecanismo é tanto mais curioso quanto, em Eça, ele é cultivado não como um processo em que a um discurso se opõe outro discurso, o que geraria um sistema de tese e antítese, mas como um processo de contaminação, de tal modo que o discurso perde a sua leveza, as marcas redundantes da sua incorporeidade, para se atolar nas vitualhas que se apresentam sobre a mesa. Como ele próprio diz, num outro passo do artigo citado, os vencidos apenas se “congregam (…) para destapar a terrina de sopa e trocar algumas considerações amargas sobre o Colares” (p.186). Deste modo, o discurso perde a sua diafanidade e surge parodiado por  se enredar nas malhas que tece em conjunto com os elementos semióticos que pertencem a outro campo de valores.

    Para percebermos melhor a fecundidade deste mecanismo queirosiano, que nos parece ter profunda raízes na cultura do seu tempo, vejamos, em primeiro lugar, o que os diz Bakhtine sobre o conceito de simpósio. Ora, segundo o autor russo, o simpósio, que é a conversa durante um banquete, cria um caso especial de “discurso dialogizado” o qual é dotado de “privilégios particulares” que, na sua origem (nos alvores da civilização), teriam exactamente um carácter cultural. Nele se encontravam, segundo nos diz Bakhtine no mesmo passo, “o direito a uma liberdade especial, a espontaneidade, a familiaridade, uma sinceridade inabitual, a excentricidade e a ambivalência em que se combinam o louvor e a injúria, o sério e cómico. Pela sua natureza” portanto “ o simpósio é um género puramente carnavalesco” (1970: 167).

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    Todos estes traços assim apontados, vamos encontrá-los presentes em quase todas as cenas (ou seja, refeições em que a troca de palavras entre as personagens representadas se cruza com a narração dos actos alimentares e a minuciosa descrição de alguns dos pratos) em vários romances de Eça. Por outro lado, a importância e a abundância de tais cenas (no seu sentido etimologicamente forte), nos romances do escritor português, leva-nos a ter em conta, de modo muito especial, a sua caracterização pública dos jantares do “Braganza”.

    Segundo ele, no artigo acima citado, as conjecturas feitas pela imprensa e por um certo sector da sociedade portuguesa, que atribuiria uma aura negativa, um espírito derrotista, a esse grupo, era errada. Todos os  chamados “vencidos” eram, a seu modo, triunfantes, segundo Eça, e o jantar era um feito moral da mesma dimensão, no campo da ética, que o feito de armas, dos doze de Inglaterra, no campo do torneio heróico.

    Ora, torneios e simpósios são jogos, ritualizações de actos fundamentais da vida – mas jogos sérios. Enquanto jogos eles simulam confrontos de valores mas, de algum modo, produzem consequências que não são meras simulações. Enfatizando o acto alimentar, discursivo ou bélico, eles manejam de modo ostensivo, retórico, os materiais que estão em causa, realçando os processos segundo os quais eles funcionam e significam: a luta pela vida deixa de se processar apenas segundo os princípios cegos da natureza, para se culturalizar, tornando-se mecanismo significativo, dispositivo semiótico.     

    Por outro lado, a importância que o romancista português dá aos jantares está não só patente no uso que deles faz como cenas nos romances, numa quantidade pouco comum em romancistas seus contemporâneos, ou mesmo de outras épocas (se exceptuarmos a tradição menipeia – que, segundo Bakhtine, vai de Petrónio a Rabelais, autores que Eça evoca frequentemente –, e Sade), facto que já foi notado por alguns estudiosos ( Andreé Crabbé Rocha, por exemplo, no seu texto “Um motivo obsidiante na narrativa queirosiana”, Caderno de Literatura n.º 9, Coimbra, 1981),  como no modo elaborado segundo o qual constrói essas cenas e, ainda, na atenção que lhe merece o jantar mesmo em textos que não têm a elaboração no romance, ou ainda na crónica.

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    No que diz respeito a esta variante textual da sua obra, que constitui uma produção contextual à sua produção romanesca, podendo ser entendida como uma formulação intermédia entre as práticas culturais não artísticas, envolvendo vários processos semióticos – a prática socializada do jantar oitocentista, muito especialmente o jantar de artistas e escritores, de que seria caso paradigmático central o modelo histórico do grupo parisiense de Zola, por exemplo, ou o próprio cenáculo de Coimbra e de Lisboa, que marcou toda a vivência cultural de Eça – e as práticas propriamente literárias, deve ser lembrada a sua crónica “Cozinha arqueológica”, na qual ele reconhece que “a cozinha e a adega exercem uma (…) larga e directa influência sobre o homem e as sociedades” (Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, s/d:236). Afirma ele, aí, a necessidade de estudar de “um modo mais experimental e íntimo a cozinha dos antigos para lhes aprofundar mais completamente a estrutura moral” (p. 236).

    É interessante notar ainda que, na sua digressão por alguns lugares eruditos, ele sublinha a importância do moretum romano, “uma moxifonada genial em que entrava galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne migada” (p.239). Se ele vê nesse prato em que “tudo se fundia, se unificava”, formando “um petisco imortal”, a manifestação do “génio de Roma”, ou mesmo “o mais profundo e eloquente símbolo da história política e social do império” (p.239) – não será legítimo vermos nós como esse fascínio pela mistura insólita revela em Eça o reconhecimento de estar na forma dessa petisqueira a própria fórmula salutar da sátira?

    De qualquer modo, quer o comer, que ele aborda especialmente nesta crónica, quer o beber, que ele trata, por exemplo, em “O bock ideal”, publicado no mesmo volume de textos ensaísticos ou mesmo paraliterários (pp. 243-250) onde seria justo colocar a variedade textual da crónica, são mais do que meros motivos obsidiantes na sua obra. Se o são, por qualquer razão a desvendar pela psicologia das profundidades, ele tornou tais motivos mecanismos semióticos extremamente sólidos que usa de modo muito deliberado, desde as suas primeiras obras, fazendo-os emergir como lugares onde a significação trabalha profundamente.

    A significação que neles trabalha, porém, não se pode resumir a uma fórmula temática simples. Os simpósios, em Eça, não têm um sentido, uma radicação num material temático monosémico, onde se fixe um sentido simbólico ou alegórico único. Podemos dizer que, até certo ponto, nas cenas, nos jantares/simpósios, se joga o estado permanente do paradoxo, da ambivalência, da vacilação entre o perene e o perecível. É por essa razão que os consideramos, desde os jantares dos “vencidos”, até à ceia inesquecível do “peixe que se pesca cozinhado” em A cidade e as Serras, o lugar onde Eça faz defrontarem-se os valores do entusiasmo e os da mistura das coisas materiais com as espirituais.

    Não entendemos, nessa partilha, uma oposição mais ou menos dialéctica (embora funcione, aqui, um certo tipo de dialéctica) entre espírito e matéria, positivismo e idealismo ou entre triunfalismo e vencidismo. A questão, do nosso ponto de vista, apresenta-se muito mais matizada e rica, quanto ao conjunto de valores que são implicados neste modelo de funcionamento formal dos conteúdos históricos que Eça faz emergir através das suas cenas.

    Por um lado, funciona, nesse modelo de desenvolvimento das ideias e dos valores histórico-culturais, o entusiasmo que podemos entender, sumariamente, como um estado de espírito, como algo que se desprende das contingências materiais; por outro lado funciona o sistema do corpo que é, também muito sumariamente, o estado da carne, da matéria corporal, tal como ela se afigura às exigências do espírito. Em qualquer dos casos, não temos, nunca, a pureza: temos a aspiração a esta, pela sublimação, por um lado, e pela impossibilidade dessa sublimação, por outro. Tal impossibilidade manifestar-se-ia, por exemplo, numa certa metafísica da matéria, que muito seduziu o lirismo de Eça nas suas primeiras tentativas literárias, patente sobretudo nas suas “Notas marginais” primeiro texto da série que constitui as Prosas Bárbaras.

    Sobre o entusiasmo, no entanto, será interessante determo-nos no que, sobre ele, diz Madame de Staël: “É o amor ao belo, a elevação da alma, o prazer da devoção, reunidos num só sentimento que tem a grandeza da calma.

    O sentido desta palavra entre os gregos é a sua mais bela definição: o entusiasmo significa Deus em nós” (1968: 301, vol. II). Contudo, não é apenas a elevação, a devoção e a partilha da alma com Deus que caracteriza o entusiasmo. Segundo a ilustre divulgadora do romantismo alemão, ele exige a absorção plena do espírito, de tal modo que o corpo arrebatado pelo entusiasmo “experimenta um nobre estremecimento, o seu coração bate pelos sentimentos elevados” e chega mesmo a “fazer aliança com a outra vida” impedindo-o de “ter apenas um pouco de espírito que lhe serve simplesmente para dirigir os mecanismo da existência” (p. 302).

    Dentro dessa lógica, o entusiasmo não afasta o corpo da matéria. O próprio guerreiro, mesmo quando faz guerra por interesses pessoais sente “algumas das exaltações do entusiasmo” nem que seja na “pela embriaguez de um dia de batalha, o prazer singular de se expor à morte, contrariando tudo o que em nós nos ordena que amemos a vida”. Esse arrebatamento, contudo, deve ser sincero, pois é “o entusiasmo afectado” que conduz à “usurpação da admiração dos homens”. Por último, esse mesmo entusiasmo, quando é autêntico, raramente conduz aos excessos, causando, antes a “tendência contemplativa que perturba a capacidade de agir”.

    Contra esse lado negativo, que Madame de Staël pensa revelar as facetas menos positivas dos alemães, só o carácter pode servir de panaceia: “é preciso escolher o seu objectivo pelo entusiasmo, mas devemos conduzir as nossas acções pelo carácter”, porque o “pensamento não é nada sem o entusiasmo, e a acção não é nada sem o carácter” (pp. 302-303).

    Ora, se “o entusiasmo é tudo para as nações literárias” e o “carácter é tudo para as nações activas” (p. 303), para a concepção liberal de Madame de Staël um e outro são necessários desde que o apaziguamento da alma seja assegurado pelo entusiasmo que é essa “qualquer coisa de orgulho e de animado” que a arranca às condições da “existência física” e lhe dá “dignidade moral” (pp. 303-304). Todas estas características que constituem a essência do entusiasmo apontam, como se vê, para uma dominância, na ordem dos valores humanos, do espiritual e anímico sobre o corpóreo. Sem os contestar frontalmente, as cenas de Eça que temos estado a enfatizar apontam-nos para um jogo de relações em que tudo se inverte.

    Quando o espiritual se manifesta, está para se desenrolar, ganha ímpeto argumentativo a ordem da mesa, dos alimentos, dos objectos materiais, dos paladares e prazeres, enredando aquele nas suas malhas e desmontando-lhe a vacuidade, expondo a face negativa que a ele adere, tornando-o insustentável como reduto, lançando-lhe o lastro indelicado e galhofeiro das coisas vis da matéria.

    Andamos em conjecturas que muito estimularam Platão no seu Συμπόσιον o Banquete, onde o sentido da verdade (ueritas), procurado por Sócrates, o qual diz que em sua juventude ele foi ensinado sobre “a filosofia do amor” por Diotima (Διοτίμα) O amor, diz ela, leva o indivíduo a buscar a beleza, o entusiasmo primeiro da beleza terrena ou os corpos bonitos, leva-o por degraus na escada do amor e, quando um amante cresce em sabedoria, a beleza procurada é espiritual, “direciona a mente para a filosofia” (Diotima para Sócrates no Banquete de Platão).

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    Mas o que abre o discernimento à verdade, enquanto ἀλήθεια, convívio com o saber supremo da inteligibilidade, vislumbrada na escala suprema do amor, é o desenvolvimento do estado de espírito propiciado pelo banquete, o estímulo entusiasmante das bebidas: “A verdadeestá no vinho” (Ἐν οἴνῳ ἀλήθεια”/En oino aletheia o latino in uino ueritas).

    O mecanismo do jantar e o discurso do simpósio, em Eça, sempre se desenvolveu como a revelação da face inevitavelmente carnal do sujeito humano. Mesmo nos textos mais antigos, nos quais ele ainda não fazia uso da cena como dispositivo semiótico segundo o modelo que vimos sugerindo, o jantar já se revelava um mecanismo de manifestação da carne incontrolável. No seu texto inacabado de 1869/1870 “A morte de Jesus”, incluído em Prosas Bárbaras, já é digno de nota o tom profundamente carnal e carnavalesco que ele dá ao jantar a que o narrador assiste, na sequência do seu encontro com Jesus.

    O modelo que ele nos sugere é o do jantar de Trimalcião, que ocupa uma parte importante da narrativa Satiricon, de Petrónio. Não alongamos mais tal hipótese porque, não obstante a importância que teria a indagação sobre as fontes genológicas das cenas ou sequências de jantar em Eça, não nos é possível apresentar, no âmbito deste trabalho,  mesmo a título de meras hipóteses, mais do que as breves alusões que aqui ficam. Para desenvolvermos os nossos argumentos segundo a perspectiva que aqui privilegiamos, é mais importante ver como as cenas funcionam nalguns dos seus romances.

    A primeira sequência de jantar que Eça utiliza, como mecanismo semioticamente elaborado, com funções poeticamente pertinentes na sua construção romanesca, aparece logo no romance que, simplificando muito todas as questões historico-literárias que o envolvem, podemos considerar como aquele com se esteou nas letras portuguesas:  O Crime do Padre Amaro. A cena é, evidentemente, o jantar dos padres em casa do abade da Cortegaça.

    Na reescrita do romance, da versão de 1874 para a de 1876, aparecem duas diferenças dignas de nota: na primeira versão, a refeição era um almoço que, a partir da segunda, passa a ser um jantar; por outro lado, a conversa durante a refeição quase não existe na primeira versão, aparecendo o modelo de entrecruzar palavras com garfadas na segunda, numa forma que se mantém praticamente inalterada na versão  posterior  (ou edições, como propõe Carlos Reis no prefácio à edição crítica).

    Nesse entretecer de discurso e deglutição, é sempre notável como os valores de espiritualidade transportados pelas palavras são sempre negados pela acção de ingerir, ou como as expectativas de espiritualidade ou de afastamento da carne, na busca do “Deus em nós”, que seria o sentido etimologicamente mais puro do entusiasmo, se transforma numa espécie de entusiasmo negro, de desenfreado apelo da carne: “logo à sopa as exclamações começaram/ – Sim, senhor, famoso, disto nem no Céu, bela coisa” (1964:260, vol. I). O excelente abade, como cozinheiro era um “divino artista” segundo as palavras do chantre (p. 260) e como era do conhecimento geral, “vivia tão absorvido pela sua arte que lhe acontecia, nos sermões de Domingo, dar ao fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho” (p. 261).

    Mas, neste simpósio, o qual, pelo tom, poderia ser inspirado pela Coena Cypryani que, segundo Bakhtine, é um dos textos fundadores do simpósio satírico, não se define apenas uma dimensão de vivência religiosa sob o olhar imóvel das personagens escultóricas do santuário (cf. pp. 262-263). Uma ética manifesta-se, também, neste entrelaçar de palavras e garfadas, como se depreende das palavras do bom abade anfitrião, quando comenta a pobreza, a propósito de um pedinte que surgira à porta: “- Muita pobreza por aqui, muita pobreza!, dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!” (p. 265).

    Não se deve concluir, no entanto, que este processo de colocar o discurso dos diálogos, referido a matérias espirituais ou elevadas, em contacto contaminador com objectos de gula ou de luxúria, no sistema dialógico do simpósio, cumpre uma função meramente de crítica social ou de tomada de posição ideológica, em militância contra um estado de coisas político conservador ou mesmo reaccionário – de que, neste caso, a Igreja seria o exemplo paradigmático.

    Em todos os seus romances posteriores Eça, obtendo sentidos diferentes, trabalha sobre a dicotomia dialógica que o diálogo ao jantar lhe permite estabelecer, de um modo surpreendentemente criador, sobretudo pelo que consegue construir de dimensão paródica e carnavalesca em todos eles. Para seguirmos a sequência das suas publicações principais, os romances, tomemos como segundo exemplo a  sequência do jantar oferecido pelo conselheiro Acácio de O Primo Bazilio.

    Nesta, ao contrário do que se passava na cena dos padres, não se dá um encontro de correligionários em torno de um banquete, mas sim o debate ideológico entre amigos que têm, sobre a vida política portuguesa, a filosofia, o amor e a literatura opiniões diversas. O conselheiro é  conservador, católico e monárquico, Julião e Jorge e Savedra são pouco crentes e republicanos. Este último tem opiniões literárias diferentes das do conselheiro. Relativamente a mulheres, o anfitrião mantém a imagem pública de puritano, embora tenha ao seu serviço uma bela moça, e opõem-se-lhe, por opiniões libertinas e sensuais, Alves Coutinho e Savedra.

    O confronto entre estas várias personagens faz-se por um processo de debate típico do simpósio, de acordo com as características que lhe atribui Bakhtine, acima citadas, como se pode ver pelo excerto que em seguida apresentamos, de modo sumário. Na sequência da observação que Julião faz da ostentação católica de Acácio, Savedra comenta:

    “- Não o sabia carola, Conselheiro!/Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e sacudiu:/- Eu peço ao meu Savedra que não tire desse facto ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Mas reconheço que a religião é um freio…/ – Para os que precisam – interrompeu Julião./Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdito respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas de paio:/- Não o precisamos nós, decerto, que somos as classes ilustradas. Mas precisa-o a massa do povo, sr Zuzarte. Senão veríamos aumentar as estatísticas dos crimes. E o Savedra do «Século», erguendo as sobrancelhas, com a fisionomia muito sério:/- Pois olhe que diz uma grandíssima verdade. – Repetiu a máxima modificando-a: – A religião é um bridão! – Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava” (1990: 316).          

    Não é difícil encontrar aqui, bem explícitas, aquelas características do  simpósio que o tornam inequivocamente carnavalesco. O conselheiro desfaz-se, parcialmente, da sua veste oficial, dialoga com os amigos, contradiz-se pela denegação, procura assumir uma sinceridade que não ostenta na praça pública e, em todo o tom do diálogo vemos que, pela comunhão e camaradagem desenvolvida em torno da mesa, as opiniões combinam o sério e o cómico, o louvor e a injúria.

    As comidas e as bebidas, de cujo o uso o relato nos vai informando, amenizam as diferenças, possibilitam as aproximações e as aceitações mesmo quando a discórdia germina por detrás das piadas, das alusões insultuosas, das críticas mais ou menos acintosas. O riso, a gargalhada de boa disposição, são o grande mecanismo psicológico e sócio-cultural que permite essa aproximação de contrários. E o riso, tal como aparece aqui, é o dissolver das diferenças e das divergências, na mistura complexa da sátira, se entendermos esta no seu sentido pleno, tal como Bakhtine o pretende preservar, insistindo no facto de esta não poder excluir ninguém – parodiadores e parodiados, falantes e ouvintes, actores e espectadores – do seu alcance.

    Neste ponto, poderíamos dizer que, contra um entusiasmo sustentado pelo carácter – que arrastaria rectidão, perseverança e elevação nos propósitos ético-filosóficos – Eça propõe a o confronto sustentado pelo riso – que arrasta o consentimento, a ductilidade e a lucidez suprema, quer em relação aos outros quer em relação a si próprio.

    Para abreviarmos esta abordagem que, a seguir todas as emergências das cenas jantantes se poderia tornar demasiado longa, digamos que, todas elas, presentes em todos os romances de Eça, se deixam caracterizar pelos traços que já sublinhámos em relação às dos seus dois primeiros textos romanescos. Vale a pena, contudo, determo-nos na cena de um dos seus últimos romances, A Cidade e as Serras, em que os traços da carnavalização se tornam ainda mais evidentes. Referimo-nos, obviamente, ao jantar que Jacinto oferece, por sugestão do grão-duque seu amigo, na residência que tinha em Paris.  Sabemos que, tal ceia se faz por “reclamação” do grão-duque, contra vontade de Jacinto cujo tédio lhe recomendava um “almoço curto”, porque a “alteza real” queria aí saborear um peixe muito raro que ele próprio mandaria para tal fim.

    A chegada dos convidados é um verdadeiro desfilar de entidades parisienses da moda, notáveis pela origem social, pela fortuna, pelos cargos ou pelo valor artístico ou individual. Este desfilar da entrada, que lembra a paródia do jantar de Trimalcião, é observado na perspectiva céptica mas padecente de Zé Fernandes, que não conhecia quase ninguém, sentindo-se um ignorante. Já há mesa, um dos convivas repara que, no grupo, para estarem representadas todas as classes dominantes, só faltava um general e um bispo.

    O reparo tem uma dupla informação: os “grandes” estão quase todos representados; mas os representantes actuantes da autoridade não estão presentes. Nesta mistura, portanto, os valores defrontam-se com todas as condições retóricas do simpósio, sem a interferência inibidora das entidades do poder. E, o que se desenvolve é uma cena inteiramente carnavalesca, segundo as anotações verosímeis do mais fiel realismo grotesco.

    As formas femininas provocam os olhares lúbricos dos homens, as jóias ostentam-se com magnificência, as opiniões políticas, desde a anarquista, que sugere uma bomba a explodir no banquete, até às evocações senhoriais de caçadas feitas pelo grão-duque, cruzam-se com os golos de vinho, marcam o tom do ambiente onde se revela um acontecimento catastrófico: o peixe assado que vinha subir no elevador que ligava a cozinha ao salão jantar, requinte supremo da civilização, então, tinha ficado parado por causa de uma avaria. A real personagem, não se podendo conter, investe como guerreiro para ir resolver a situação, tentando puxar o elevador pelos cabos.

    Não o conseguindo e exaltado pelo peixe que podia ver, que o fascinava com o seu belo cheiro, bramava de angústia, «Que cheiro que ele deita, que delícia», enquanto ecoavam o som do canário que “gania”   e os berros e os tinidos dos metais provocados pelo facto de um dos convivas ter enfiado um pé dentro de um balde de gelo.

    É nessa confusão que um dos presentes tem a ideia de pescar o peixe assado, a qual é de imediato aceite pela real personagem que, “no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova”, faz “sumir a sua cólera” voltando a ser o “Príncipe amável, de magnífica polidez” (s/d: 78). De imediato decide que “ele mesmo seria o pescador”, usando, para o efeito, uma “bengala, uma guita e um gancho” (p.78). O material para o anzol é fornecido por uma daquelas elegantes e belas senhoras que, na confusão, poucos momentos antes, quando se descobriu a avaria, “roçavam os decotes pela farda dos lacaios” (p. 77) e é com um denodo que o faz suar que sua alteza tenta apanhar o peixe pela guelra. Embora os resultados tivessem sido negativos o Príncipe sente-se feliz porque «fora mais divertido pescá-lo que comê-lo” (p. 79), e é com verdadeiro prazer que regressa à mesa onde se regalam com “o Barão de Pauillac, cordeiro das lezírias marinhas que, preparado com ritos quase sagrados, toma esse grande nome sonoro e entra no Nobiliário de França” (p. 79).

    Depois da sobremesa, durante a qual o champanhe “cintilou e jorrou ininterrompidamente” (p. 79) enquanto os doces se derretiam na boca, um poeta presente declamou um poema. O agrado foi tão grande, apesar do percalço do peixe, que o carneiro ascendeu na escala nobiliárquica, tendo-o o nobre conviva “nomeado Duque de Pauillac” (p. 80).

    Esta nomeação, muito provavelmente, descende da inspirada verve de Rabelais. Bakhtine, sem dúvida, encontraria nela a clara expressão da “coroação do banquete” através do qual se entende, no festejo e celebração da carne, o triunfo da vida sobre a morte, e o “emergir de um princípio novo” (Bakhtine, 1970a: 282). Nada tem sentido, em toda a cena, a não ser a celebração de “uma verdade interiormente livre, divertida e materialista”, em que todos se despojam das máscaras e se misturam na alegre pesca ao peixe assado ou na renomeação do prato de cabrito.

    Simetricamente, dentro da mesma base de valores, é a imagem “materializada da verdade que não lhe permite arrancar-se à terra, na medida em que esta lhe conserva a natureza universalista e cósmica” (Bakhtine, 1970a: 284) que actua, como base, no jantar serrano em Tormes, e permite ao “príncipe” Jacinto abdicar dos objectos da civilização e retomar o caminho pleno da terra. Não é a crença nem o ideal que movem Jacinto: é a boa mesa farta, o paladar fragrante dos alimentos colhidos perto das fontes originais.

    Esta ideia da importância do baixo material como princípio valorizador da condição humana é uma constante na obra de Eça, não um mero elemento decorativo que ele coloca em certos passos das obras relativos aos banquetes, para lhe dar um sabor naturalista. É verdade que, tal mecanismo semiótico, por ele usado como processo poético, permite a construção de análises sociais, ideológicas e culturais que eram caras aos naturalistas. Mas o princípio de trabalho poético era muito mais do que um simples processo de escola. Dentro do que nos é dado conhecer, ninguém levou tão longe como Eça este processo do dialogismo, dentro dos modelos que podemos entender de um amplo realismo, profundamente impregnado do espírito da paródia e da carnavalização.

    De facto, o que encontramos nos simpósios queirosianos aparece muito claramente expresso, quase teorizado, por assim dizer, na análise que faz ao “Brasileiro Soares” (Notas Contemporâneas, s/d: 114-122) de Luís Magalhães. É o homem material, deste nosso solo, cheio de joanetes, com os seus pés pesados, tão diferentes do ideal romântico, apelando sempre para o pé alado, que nesse romance é valorizado. É pelo facto de Luís Magalhães conservar toda a realidade material desse brasileiro que ama e sofre, nem ideal nem besta, mas simplesmente humano, que ele o considera profundamente original, relativamente, sobretudo, ao estereótipo que os românticos tinham construído.

    Devemos acrescentar, para finalizar, que é grande a importância que Eça dá aos mecanismos de elaboração poética segundo os quais ele conserva essa dicotomia entre a elevação e a materialidade, pensando, sempre, uma ligada à outra. O caso mais flagrante é a imagem que de si próprio fornece, em “Um génio que era um santo” (Notas Contemporâneas, s/d: 251-288). No momento em que conhece Antero, em Coimbra, Eça, segundo as suas palavras, fez como os outros que o escutavam declamar: “também me sentei num degrau, quase ao pé de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como discípulo. E para sempre assim me conservei na vida”.

    Esta frase final não é um mero remate retórico. Eça pensa-se assim e, quanto a nós, apresenta-se muito bem, como julgamos que ele sempre foi: os olhos fitos no ideal, mas assumindo a postura descendente. A sua hugolatria, se virmos bem, assenta nessa mecânica fundamental de estabilidade terrestre com apelos e admirações cósmicas. E dizer-se hugolatra e não hugoliano, representa uma definição muito clara de si próprio. Talvez nenhuma imagem, enfim, dissesse tanto de si próprio, em tão breve alegoria, como a que ele usa num outro passo de “Um génio que era um santo”:

    “rondava em torno destas revoluções, destas campanhas, destas filosofias, destas heroicidades ou pseudo-heroicidades, como aquele lendário moço de confeiteiro que assistiu à tomada da Bastilha, com o seu cesto de pastéis enfiado no braço, e quando a derradeira porta da fortaleza feudal cedeu, a velha França findou, deu um jeito ao cesto leve, e seguiu, assobiando a «Royale», a distribuir os seus pastéis.” (p.260)         

    Não falta, a este comentário, nem sequer a referência ao elemento alimentar, como sugestiva alusão à fruição do material. Só talvez seja excessivo o assobiar a «Royale» – mas não é esse mesmo o processo da grande sátira, atingir o próprio autor, não deixar ninguém  de fora?

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bakhtine, Mikhail, 1970 La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1970a L’oevre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

    Queirós, Eça, 1964, O crime do padre Amaro, 2 vol. Lello e Irmão, Porto

    Queirós, Eça, 1990, O primo Bazilio, D. Quixote, Lisboa

    Queirós, Eça, s/d, A cidade e as serras, Lello e Irmão, Porto

    Queirós, Eça, s/d, Notas contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

    Queirós, Eça, s/d, Cartas inéditas de Fradique Mendes, Lello e Irmão, Lisboa

    Reis, Carlos, 1999, Estudos queirosianos, Presença, Lisboa

    Staël, Madame de, 1968, De l’Allemagne, 2 vol., GF/Flamarion, Paris

  • Eça e a viagem

    Eça e a viagem


    Um tópico central para descrever a mirada do viajante europeu, sobretudo quando se desloca pelos espaços subordinados ao domínio mercantil, colonial ou mesmo imperial do “Ocidente”, é o exotismo. Podemos mesmo postular, como hipótese de trabalho, que esse tema aglomera quase todos os outros procedimentos de representação e tematização que decorrem da focalização narrativa e descritiva do viajante europeu (e, de um modo geral, identificado com a civilização ocidental), quando se relaciona com os traços sobressalientes dos espaços sociais e físicos que divergem daqueles que assume como fundamentais do seu espaço civilizacional de inserção.

    O desenvolvimento do ponto de vista sobre o mundo e, principalmente, sobre o «Outro» (as populações, de costumes e organizações sociais diferentes das europeias, no fundo, quase sempre, os povos colonizados) a que chamamos exótico, assume, na Europa, uma importância extrema durante todo o século XIX que, segundo muitos estudiosos da história económica, se pode considerar o século da “expansão comercial” (cf. Hobsbawm, 1978: 191-219; Moura, 1992:70-94; Todorov, 1989: 315-340).

    O termo, tal como o conceptualizamos aqui, formula-se, na sua máxima amplitude, de acordo com o saber comum, patente nos dicionários e enciclopédias, como “aquilo que pertence a outro país ou clima”, mas entendendo o sentimento e o juízo, estético ou ético, relativo a outros espaços e humanidades como decorrentes dos discursos avaliativos, marcados pela dominante ideológica.

    O interesse por essas “outras humanidades” criou especialidades disciplinares como a etnografia, a etnologia ou a antropologia (sem esquecermos a “geografia humana” que, desde o antigo grego Estrabão, trata os outros povos como objectos, “outros” passíveis de atrair o interesse das políticas expansionistas) que, num primeiro momento, reflectiam um etnocentrismo que reduzia os outros a um «Outro»,  constituindo-o como uma alteridade, ou seja, predominantemente “um objecto, interessante, é certo, mas estranho” (Thines e Lempereur, 1984: 254 – entrada “Despaisamento” ;cf. tb. Said, 1995:11-110; Ashcroft e Ahluwalia, 1999: 57-86;Moura, 1992: 3-15).

    Segundo Segalen, autor francês para quem a aventura poética foi, essencialmente, a da encenação verbal do encontro com os povos distantes, sobretudo os da China, Japão e ilhas do Pacífico, o “Exotismo” é uma “sensação” que “não é mais do que a noção do diferente; a percepção do Diverso; o conhecimento de que qualquer coisa não é nós próprios” sendo inevitável concluir, por isso, que “o poder do exotismo é o poder de conceber o outro” (Segalen, 1986: 41).

    The Sphynx, Egypt

    Na obra em que reflecte sobre o processo da sua criação poética que, até certo ponto, muito deve à profunda consciência crítica com que praticou a postura etnográfica, face aos povos distantes entre os quais viveu, reconhece Segalen que, para atingir a capacidade de “conceber o outro” de forma tão aberta, despreconceituosa e receptiva, é necessário “despojar a palavra de todos os seus ouropéis: a palmeira e o camelo; o capacete colonial; as peles negras e o sol amarelo” devendo ser rejeitados os imaginários “dos programas de agências Cook” (1986: 41).      

    É claro que não basta um olhar lançado sobre regiões distantes, que se revele num discurso que tematiza esse próprio olhar numa narrativa ou registo descritivo de viagem, para produzir a alteridade como elemento exótico. Muitos são os espaços e os entes presentes nas odisseias antigas, nos romances de cavalaria medievais, que não instituem o Outro como entidade exótica, como objecto “interessante e estranho” a conhecer. Os monstros e maravilhas que emergem nessas narrativas não podem ser exóticos porque povoam o universo lendário comum aos autores, leitores, narradores e personagens que habitam, constroem ou actualizam esse mesmo universo.

    O Ciclope não é um ente “descoberto” por Ulisses que fosse necessário incluir no capítulo “Os Entes Animados da Natureza” da “Enciclopédia” grega de “Todos os Saberes” da Antiguidade Clássica. Ele já existia num “capítulo” dessa enciclopédia que constitui uma obra fundamental da na cultura em que cabem Homero e Ulisses (cada qual em seu nível de “realidade”): a Teogonia de Hesíodo. O interessante, nesses contactos clássicos da antiguidade, não reside na descoberta do desconhecido, mas sim na confirmação do universo lendário, revelação perceptível dos entes já constantes no inventário fantástico ou no bestiário de maravilhas.

    O exótico, no sentido que lhe atribuímos, apresenta-se como a figura ou registo retórico do que é “de fora”, como indica o termo grego quase homónimo. Sendo um procedimento retórico, ele liga-se aos modelos expressivos das culturas em que existe. De algum modo, todas as culturas e, sobretudo, todas as civilizações (entendendo estas como uma ampliação e uma organização ideológica reforçadas daquelas) determinam o exótico em relação a si. Entendemos, no entanto, que no processo de expansão dos países europeus, a construção do exótico assumiu formas e funcionamentos ideológicos que, entre os estudiosos modernos, acentuadamente críticos do colonialismo e das várias expressões do domínio imperial (sobretudo “ultramarino”), apresentam acentuada tendência para o etnocentrismo ideologicamente estruturado.

    No fundamental, este não difere muito dos outros – contudo assenta em instituições de poder (capital financeiro, exércitos expedicionários, enclaves de ocupação – quando não mesmo colónias – cimentados e fundamentados ao longo da história) e de conhecimento (estudos histórico-geográfico-antropológicos que localizam, delineiam e caracterizar o “Outro”) que lhe fornecem um escopo qualitativamente diferente.

    Segundo Moura, “se as viagens militares e comerciais e científicas se multiplicam, o importante para a vida literária é que os escritores não hesitam em deslocar-se para fora da Europa” (1992a: 70). O processo é, como o sublinha insistentemente Michel Serres, a propósito de Verne, o da “narrativa da segunda viagem”, que podemos ampliar considerando, por sugestão, a viagem segundo os traços dos outros: “a viagem mundial dos sábios”, a apropriação da terra, em nome da «expansão civilizadora e progressista», é feita pelos “Astrónomos no Cabo, físicos na América do Sul, agrimensores, cartógrafos, e geólogos por toda a parte” (1974:12).

    A viagem dos escritores relaciona-se com esta última modalidade. Podemos encará-la, seguindo Moura, de um modo geral, como “relação de viagem”, a qual “se torna uma espécie de género menor (simultaneamente produção e marca do escritor profissional)” (1992a: 70). “Já não são os marinheiros, os soldados, os agricultores ou os missionários que se apropriam da terra,” diz Serres, “são os cientistas” (1974: 12). O estudioso dos discursos entrecruzados da ciência e da literatura refere-se, nesta enumeração de profissões de captores da Terra, não só a entidades historicamente reais como, e sobretudo, a personagens de Jules Verne, que, quanto a esta matéria, merece ser uma referência piloto.

    Quando Serres acrescenta, como que em resumo daquela enumeração, que “a nossa geografia invadiu o planeta […] eis criada a viagem segunda […]” não conta apenas com as deslocações dos sábios propriamente ditos, mas também com os descritores que os acompanham de perto. Não serão, talvez, as personagens da “viagem terceira”, porque os saberes que ostentam são os que directamente revertem dos textos dos sábios, mas, muitas vezes, são os protagonistas da enunciação expansionista do imperialismo moderno. Essa atitude pode ser descrita, de acordo com a visão que Said apresenta a propósito das viagens dos escritores europeus do século XIX ao Médio Oriente, como a do autor “para quem a viagem real ou metafórica é a realização de um projecto urgente e profundamente sentido” pelo que “o seu texto é construído a partir de uma estética pessoal, alimentada e informada pelo projecto” (Said, 1995: 158). 

    Uma obra muito interessante, para ser observada segundo este ponto de vista, é o livro de “notas de viagem” de Eça de Queirós que foi publicado sob o título de O Egipto[i]. Nele se concentra, de modo muito versátil, essa dupla ambição da época, ao escrever relatos de viagens: apresentar um mundo tal como o concebem os “sábios” mas colocando-o sob a mirada do “autor”. Tal escrita mantém, por um lado, as marcas da reportagem e, por outro, as da elaboração literária. Serres usa uma fórmula muito sua para transmitir essa ideia de encanto, de transparência e dependência do saber: “então, a terra ciclo (cycle), o espaço curvo para as deslocações, é, igualmente, o lugar da enciclopédia.

    O saber é, sem hesitação, o das coisas e do mundo” (1974:12). O conhecimento do mundo é, segundo uma tal produção, valorizado literariamente, levando adiante um esforço de construção do pitoresco, seja ele “o das personagens autóctones”, seja o “dos espaços exóticos descritos” (cf. Moura, 1992a: 120). O objecto literário que produz esse pitoresco pode entender-se sob a designação geral de descrição, enlaçada com toda a problemática da ecphrasis (cf. Lausberg, 1972: 217-219).

    Segundo Jean-Michel Adam e André Petit Jean, assumindo como referência um texto de Hamon[ii],  a afirmação geral subentendida como uma crença pelo romance realista e naturalista é a de que  o mundo é rico, diverso, abundante, descontínuo; dessa convicção básica decorrem algumas posições assumidas pelo escritor realista/naturalista, quando procura  representar toda essa variedade e riqueza: transmitir uma informação acerca do mundo; copiar o real com a palavra; dar o primado a esse real, apagar, tanto quanto possível, a mensagem; fazer do estilo um processo de apagamento da marca estilística (ou seja, instalar, como desinência própria do estilo, um procedimento tendente ao grau zero),  deve apagar-se ao máximo; procurar que a informação fornecida sobre o mundo se torne documental, para produzir o efeito de evidência no leitor.

    Recorrendo aos esquemas analíticos de Ogden e Richards, pela ampla aceitação que tiveram nos estudos sobre a linguagem, podemos dizer que o principal objectivo do realismo romanesco é o apagamento do significante (símbolo, na terminologia por eles usada) em favor do significado (referência em Ogden e Richards) e, sobretudo no naturalismo, na sobrevalorização do referente. Escusado será dizer que, nesta escola, o primor estilístico aponta para a vontade de produzir um significante valorizado pela sua transparência, capaz de dar a ver um mundo experienciado pelos escritores e pelos seus contemporâneos.

    turned on desk lamp beside pile of books

    A obtenção dessa transparência valorizaria a produção de um verbo cristalino, dependente de um virtuosismo estilístico em quase tudo correspondente ao grau zero da escrita de que fala Barthes, mas empenhado na História enquanto processo artesanal de criação de um meio para não ser percebido, mera passagem para o que se dá a perceber – ou seja, mero acesso ao documentado (cf. Barthes, 1965: 59-68)[iii]

    A partir desta arrumação relativa de dados extraídos de teorias e práticas do romance clássico, Adam e Petitjean formulam três funções fundamentais na teoria da representação descritiva: uma função matésica, relativa à difusão do saber; uma funçäo mimésica, relativa à ilusão de realidade; uma função semiósica relativa à regulação do sentido (cf. Adam e Petitjean, 1989:26). Embora tomemos como base esta partilha esquemática de funções, que permite uma visão analítica muito útil para a nossa abordagem das narrativas de viagens de que Jules Verne, sobretudo, seria o exemplo supremo e epigonal, assumimos, em simultâneo, que a função onde primordialmente se dá o efeito de perturbação do sentido na obra romanesca ou “documental” de viagens é a mimésica.

    Se, na lógica da produção, a função matésica é a primeira, até por admitimos que uma sabedoria empírica experiencial antecede qualquer escrita, como “semiótica do mundo natural”[iv], a verdade é que, na literatura de viagens, a grande perturbação aparece com o sistema enciclopédico posto a funcionar hiperbolicamente e transbordando, muitas vezes, dos mecanismos mimésicos (nos quais deveria ser servilmente utilizada) e mesmo semiósicos (aos quais serviria de matéria para a construção da referência e, a partir desta, de produção de sentido do real ou de reprodução da natureza).

    A vontade enciclopédica dos escritores (como o de Eça, por exemplo, em O Egipto) ultrapassa a encenação ficcional, a naturalização mimética da tradição em que se inserem, para pôr esta ao serviço da informação documental da reportagem. É através da hiperbolização da enciclopédia que a ilusão de cópia do real se perde, que a mimese vacila e, em consequência, a obra dos autores realistas, ao referir-se a outras paragens, ultrapassa os limites intencionais da ideologia realista da representação[v].

    low angle photography of brown concrete building under blue sky during daytime

    Como J.-M. Moura afirma, tendo como referência as categorias de Adam e Petitjean que temos vindo a utilizar, a narrativa exótica realista torna-se uma “escrita paradoxal de uma realidade mal (ou nada) conhecida” pelo que “só a pode encarar na condição de conciliar a estranheza denotativa (léxico, temática do espaço exótico) e a narrativa simbólica subjacente”; e é por isso que, na sua opinião, a descrição exótica é original, ao representar, uma vez que  “constrói um espaço-tempo afastado da experiência comum do leitor – susceptível de derivar para a fantasia e para o maravilhoso –, embora a sua vocação principal seja a de autentificar a narrativa […]” (cf. Moura, 1992a: 125).

    A longa descrição que o Eça de Queirós narrador/relator de O Egipto nos faz das terras que visitou, desde Port-Said até às terras de lavradio do Nilo e ao deserto circundante, introduz, com toda a evidência, a novidade semiósica do modelo de descrição que, desde o Itinéraire de Paris à Jérusalem, de Chateaubriand, se vinha afirmando, através dele e de outros autores como Nerval, com a sua Voyage en Orient,até aos grandes realistas como Flaubert, que escreveu, antes de Eça, nas suas memórias, muitas notas documentais sobre a  viagem que efectuou ao Próximo Oriente e ao Norte de África  em busca de informação para Salammbô (1862). 

    Este novo modelo de escrita, que elege a descrição como estrutura textual privilegiada, para dar conta da narrativa do trajecto, tornando a enargeia (cf. Lausberg, 1972: 217-219) como o fazer fundamental do actante, apresenta o percurso deste  como uma espécie de pretexto, ou de elemento secundarizado, ao serviço da actividade do ver e, em seguida, do dizer o que se observou. A descrição, conforme se pode observar na imensidão da obra de Jules Verne, por exemplo, confunde-se com a própria acção da personagem, emergindo como um caso particular e revitalizado da ecphrasis.

    brown camel

    Se aceitarmos como válida a hipótese ainda actual da semiótica na abordagem de intensos efeitos de sentido, numa dinâmica polissémica, em “objectos textuais complexos” (Greimas) como o romance e admitirmos, com Denis Bertrand (cf.1985:29-30), que a «referência» não é uma referência ao “referente”, mas que, mais elaboradamente, o discurso toma como referência uma “realidade” já informada de sentido (um objecto já seria, em si mesmo, um significante carregado de sentidos); se, posto isso, aceitarmos o postulado de essa “realidade” ter sido erigida em figuras significantes que mantêm em conjunto relações explicitáveis, podemos assumir que o mundo a que nos referimos no discurso é ele próprio um discurso. Mas o pacto realista de leitura, o fundamental dos seus efeitos de sentido, assentava, pelo código literário-estético que acima apresentámos, numa “ignorância” prévia desse facto.

        Em Verne, por exemplo, e na escrita realista de viagens em geral, esse acordo tácito, esse pacto estético-poético entre escrever e ler, apresenta constantemente o perigo de ficar perdido. Não lidando com espaços, objectos, coisas e lugares já discursificados como “realidades” partilhadas por eles e pelos seus leitores, referindo-se a mundos desconhecidos, pela esmagadora maioria dos seus contemporâneos (entre eles o próprio Verne que, como viajante, foi muito limitado, se o compararmos com os seus heróis), os escritores que relatavam viagens  revelavam os mundos distantes, “conhecidos” apenas pelos aventureiros e viajantes ousados, como percursos extraordinários e cheios de peripécias.

    Os esquemas narrativos que enquadram tais viagens têm de enfatizar o elemento projecto de aventura para tematizarem o interesse da história para lá da factualidade já divulgada pelos relatos autênticos que servem de documentos aos escritores e, simultaneamente, precisam da prova documental, para não se tornarem suspeitos.

    Essa prática, em Eça, é patente, embora o uso que dela faz seja paradoxal, sobretudo se relacionada com os escritores da sua época que narraram viagens. Por um lado, “O Egipto de Eça de Queirósé, em grande parte, a descrição do país visitado naquele ano de 1869” o qual, segundo o resumo que Luís Manuel Araújo apresenta em seguida se pode considerar “um Egipto muçulmano, «romântica terra dos califas», das mesquitas, dos pachás, Cádis, ulemas, derviches, felás…” (Araújo, 1988: 21); por outro lado, não obstante os registos resultantes da observação directa, mesmo para a redacção das suas notas coligidas em O Egipto não deixa de recorrer a fontes: Maxime du Camp, Gérard Nerval, Edmond About e, sobretudo, Théophile Gautier (cf, Araújo, 1988: 36-37); e, por fim, encarando-o numa terceira modalidade de representar o espaço percorrido, verificamos, em A Relíquia, que praticamente não recorre às suas próprias notas de viagem sobre o Médio Oriente (ao contrário do que fez Flaubert, por exemplo), onde situa grande parte da acção do romance.     

    Propondo-nos observar o processo de representação, nas obras que estudamos enquanto narrativas de viagens ou textos que tematizam os seres e objectos distantes, é de toda a utilidade enfatizar o modo de se construir o outro, como é elaborada a sua imagem – eventualmente articulando-se num imaginário estruturado como paradigma – integrada nos espaços representados.

    Delimitamos, nas possibilidades de abordagem teórica, a que privilegia “o estudo das imagens do estrangeiro numa obra ou numa literatura” aquela que algumas conceptualizações do estudo da literatura comparada “têm chamado a imagologia literária” (Moura, 1992: 10). A designação que aqui mantemos atende, sobretudo, ao sentido circunscrito por A. M. Machado e D.-H. Pageaux, quando afirmam, por exemplo, que “um dos cumes da reflexão comparatista” é a “da representação do outro ou aquilo a que habitualmente se chama imagens” (1988:51), perspectiva dentro da qual cabe o conceito de homo viator. Assim, entendemos este, ora como “viajante solitário”, funcionário de estado, cientista ou mero turista, ora como “membro” de um grupo. Delineia-se, assim, um par contrastivo no imaginário das viagens: o viajante (quase sempre figura do “eu” ou do “nós”) e o nativo (quase sempre a figura do outro do ele ou eles cujas designações tendem a ligá-los aos espaços designados[vi]).

    O herói viajante que tem em Verne uma das suas máximas expressões, quando se movimenta por mundos estranhos, não busca apenas o pitoresco, procura, também, o conhecimento, é um “insaciável que corre mundo, jornalista ou repórter cosmopolita que acumula as experiências e os testemunhos recolhidos sobre o universo definitivamente fragmentado caótico” (Machado e Pageaux, 1988:44).

    De facto, no “espaço estrangeiro vai descobrir (ou esquecer !) o Outro” ou descobrir-se como alguém “para quem o Outro constitui também um elemento básico da narrativa de viagens” (1988: 45), integrando o seu olhar  num colectivo que, ou o acompanha, ou lhe serve de referência como “leitor”. Para ele, o Outro é aquele acerca do qual comunica ao leitor imóvel informações que poderão tornar-se preciosas e princípios de saber enciclopédico. Atendendo a essa funcionalidade, a primeira configuração que podemos dar do homo viator típico da época da expansão imperial é o seu carácter genérico, universal, tópico (no sentido que Eco lhe dá para se referir a um tipo estereotipado) e que tem importância no universo de ficção ou da representação em geral, sobretudo pela sua mobilidade.

    Em Verne, essa característica é a da mecanicidade que o aproxima muito da figura do mobilis in mobile, de que o célebre Nautilus é o modelo mais ilustre do século XIX. No universo ficcional de Eça, a figura de Topsius, tipificação do «orientalista»[vii] germânico, é o topos do viajante apetrechado enciclopedicamente, que viaja sobretudo para confirmar o “já conhecido e sabido”.

    Sem entrar na exploração fantasiosa, o relato “verídico”, O Egipto, Notas de Viagem, deixa transparecer a importância da referida mobilidade. Mesmo quando integra registos fantasiosos que poderá ter recolhido em leituras de mestres e amigos, como Théophile Gautier, que ele encontrou, aliás, no Cairo, durante a viagem de que nos dá conta no seu relato, Eça coloca os dados recolhidos ao longo da sua informação enquanto sujeito que percepciona um espaço que apresenta em tom de reportagem.

    brown and silver desk globe

    Mas deve notar-se que o seu modo de dar a conhecer as terras e os mares que atravessa reflecte o sentido da celeridade que os Europeus já obtinham nas viagens durante o século XIX. A viagem de Eça, que durou pouco mais de dois meses (de 23-10-1869 a 3-1-1870), é rica na representação da deslocação: menos de duas semanas é a duração do percurso de Lisboa a Alexandria, ao longo do qual Eça regista descrições das grandes escalas mediterrânicas.

    Da cidade do delta parte para o Cairo, regressa a Alexandria, vai de barco até Port Said, assiste à abertura do canal do Suez e segue, depois, para Jerusalém pela cidade egípcia do Norte, à qual regressa, vindo da Terra Santa, para embarcar para Lisboa. Mas como se esta movimentação que, ainda hoje, é notável, em tão pouco tempo, não lhe bastasse, ele “estendeu” o seu relato a terras onde não foi, representando um percurso ainda mais surpreendente pela extensão (cf. Luís Manuel Araújo, in Matos, 1993: 362-366; entrada EGIPTO) 

    A experiência do viajante pode perturbar uma interioridade perceptiva capaz de enriquecimento qualitativo, levando à alteração (melhoria, degradação, alteração das concepções do mundo), por se mover em espaços anunciados como novidade, onde o próprio humano aparece diferente. Ora, como Jean-Marc Moura nota, o exotismo, ou seja, o registo do outro e dos espaços diferentes exibidos ou mesmo apresentados ostentatoriamente, enquanto efeito de procedimento, não se faz sem uma certa dimensão do estereótipo, notório, sobretudo, nas narrativas de acção e/ou aventuras: “As formas romanescas rígidas da superioridade do Ocidente, sempre sob ameaça de um Terceiro Mundo pitoresco, carregado de cores, mas votado a uma desordem perpétua [representam ] a afirmação da excelência do primado ocidental sobre a ordem internacional […] A forma privilegiada desse maniqueísmo é o estereótipo” (Moura, 1992: 153).

    No entanto, e paradoxalmente, não só é estereotipado o que surge como figura do Outro, mas também o viajante surge, muitas vezes, sob os traços de tal tipificação.  Ambos os aspectos podem ser vistos, com forte relevo, em duas obras de Eça de Queirós: A Relíquia e O Mandarim. A sátira surge, em ambos os romances de Eça, sobretudo da rigidez do quadro mental do observador, que se torna, de algum modo, também ele, um estereótipo. No primeiro texto, uma das experiências mais curiosas da literatura de viagens portuguesa, no século XIX, o cruzar sugestivo dos dois estereótipos surge na figura de Topsios, nomeadamente quando o filho da “gloriosa Alemanha”, em “peregrinação científica” a “colher notas para a sua formidável obra” ([1987] s/d: 123) aparece a chamar Teodorico ordenando-lhe: “ergue-te e parte para Jerusalém”.

    Ele assume, a partir daí, o estereótipo do “europeu germânico”, regulando a observação do Outro através do aparato da sua “teoria”, produzindo, assim, ao longo do percurso em sonho de Teodorico, o efeito de guia de um imaginário, todo ele assente nos estereótipos das “sagradas escrituras”, da  representação de algumas das partes da Bíblia, da sua reprodução em textos escritos e pictóricos e, principalmente, das vulgatas, quer do livro sagrado da cultura judaico-cristã, quer das obras artísticas dele decorrentes.

    Algo de muito semelhante se passa na perspectiva que o romancista português nos oferece através do quase-irmão de Teodorico, Teodoro, na sua viagem à China, em O Mandarim[viii]. Com uma diferença fundamental: ao contrário do Egipto, a China não é, nem parcialmente, conhecida ou experienciada, através de qualquer contacto directo, por Eça de Queirós. Porque terá situado o escritor grande parte da sua história no espaço da civilização chinesa? A pergunta não é ociosa: temos a impressão de que, em Eça, se manifesta uma incongruência ou mesmo um artificialismo evidente relativamente às bases e pressupostos a partir dos quais construímos o horizonte de expectativas que guia a nossa leitura do romance realista.

    Tal artificialismo é mais patente em Eça do que em Verne, evidentemente, quando este busca, também, uma perspectiva do Celeste Império, em Tribulations d’un chinois en Chine. O que talvez se deva ao facto de, sendo o autor português, numa perspectiva histórico-literária, entendido como um realista-naturalista em sentido estrito[ix], esperarmos da sua criação romanesca uma apresentação de espaços directamente percepcionados pelo autor e reconhecíveis pelos seus leitores mais prováveis. 

    Se essa condição não se verifica, esperamos uma documentação histórica e geográfica desenvolvida (segundo o modelo flaubertiano, por exemplo) e uma forte argumentação cultural e epistemológica para justificar a digressão pela distância temporal e/ou espacial (patente, também, no percurso de Flaubert na criação da sua Cartago). Como Eça de Queirós nunca foi à China, é provável que a documentação seja indirecta, proveniente de relatos  com objectivos práticos de conhecimentos geográficos ou mesmo para utilização de turistas.

    Por outro lado, o filão histórico-cultural que ele convoca não parece constituir-se como espaço de uma experiência directa do protagonista, fundamental para a sua funcionalidade enbquanto carácter. No fundo, a China emerge em O Mandarim como metáfora (ou mesmo  como dimensão espacial alegórica) da distância: num primeiro momento, espacial, conotando, de imediato, o afastamento cultural e histórico (não por ser distante no tempo, mas por ser outra a historicidade da civilização chinesa), mas, logo de seguida, ética.

    Dois universos de alteridade que será interessante registar, também, como fortemente marcantes da configuração estética e ideológica que a viajem produz na ficção de Eça, são os dos países europeus tecnologicamente mais evoluídos do que Portugal (de que o exemplo flagrante é a Paris de A Cidade e as Serras) e o que se refere a África a Sul do Sara como um todo sincrético (como “aparece”, por exemplo, em A Ilustre Casa de Ramires ou n’A Correspondência de Fradique Mendes), carregado de apelos como espaço fascinante, mas nunca apresentado em pormenor. Como nota à parte, não podemos deixar de referir As Minas de Salomão de Rider Haggard, livro de que Eça se teria quase “apropriado” ao traduzi-lo (na opinião de alguns estudiosos, constituindo quase uma “versão” e não apenas uma simples “tradução”).

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    No interior do quadro de referências e observações que temos vindo a desenvolver, o romance A Relíquia vem enquadrar-se de modo curiosamente paradoxal. Por um lado, ele cumpre, em quase tudo, os códigos restritos da narrativa de viagens tal como funciona dentro do sistema regulador da poética realista e naturalista. Nem sequer resvala momentaneamente para o apelo do fantástico, tal como acontece em O Mandarim. O processo utilizado para introduzir uma diegese parcialmente fantástica, desenrolada ao longo de acontecimentos cuja narração ocupa uma boa terça parte do texto total do romance, no enquadramento de um mundo possível pautado pelas regras da verosimilhança realista, obedece inteiramente aos princípios de qualquer verificação empírica que um espírito positivista, experimental e naturalista reconhece como fazendo parte dos fenómenos normais. De facto, é através do sonho que o extraordinário aparece e é dentro dele que o universo distante no espaço emerge com a imponência que a distância no tempo lhe acrescenta.

    Tudo se revela aceitável, neste caso, porque o sonho, sendo embora uma representação do mundo não coincidente com a da percepção consciente da vigília, tem um lugar próprio para surgir – na mais ousada das hipóteses um pré-consciente onde se espraiariam os impulsos e os fenómenos inconscientes –,inteiramente compartimentado em firmes eclusas. A ciência, o bom senso e o senso comum reconhecem, milenarmente, o sonho como desvio à ordem fenomenal da percepção e representação do real que não contamina as regras deste, em virtude de a razão o poder enquadrar como uma estranheza exterior ao ser e fluir da consciência, não constituindo, portanto, matéria de inquietação para o conhecimento e a representação “normais”.

    Complementarmente, a intervenção das regras realistas e naturalistas fica assegurada, em A Relíquia, dado o universo diegético que o sonho manifesta emergir inteiramente regulado pelo discurso das crónicas sagradas bem como das narrativas da história que procuraram avaliar a veracidade dos registos religiosos e da tradição.

    A figura central da elaboração desse universo, o sábio Topsius, indica a presença do modelo da fiabilidade da representação realista, no plano da exigência de rigor e erudição documental – embora, como adiante veremos, a paródia hiperbolizante do enciclopedismo faça vacilar a firmeza de um tal saber acumulado. O Oriente que, de facto, se desenrola de modo algo colorido e carregado de entrecho romanesco, resulta da intromissão de Topsius no sono de Teodorico, dando origem, como figura inaugural, ao gigantesco sonho que se desenrola como presentificação do processo de Jesus, no quadro reconstituído da Palestina, no dealbar da nossa era, Anno Domini primordial (entre 30 e 33 da Nossa Era, os eruditos hesitam – cf. Fouilloux e outros, 1995).

    A personagem que intervém no sonho orienta-o como um indicador de percurso, instrutor de um programa de acção, como tinha sido, na diegese em que o sonho se integra, um instrutor da leitura dos objectos culturais avistados, monumentos e “lugares históricos”, durante a viagem realizada no real do romance.

    A sequência do sonho é iniciada com a intervenção ilocutória de Topsius, modalidade performativa de uma palavra de forte poder hortativo: “Teodorico, Teodorico, ergue-te e parte para Jerusalém!”. Já se vê, pelo estilo da exortação, que ela não se propõe apenas formular uma ordem, mas sim fazer ecoar, perlocutoriamente, a dimensão bíblica, ao evocar, por exemplo, a cura do paralítico por Jesus “Levanta-te, pega na tua enxerga e vai para casa” (Mateus 9, 6).

    book lot on black wooden shelf

    Pela intromissão de tal referência canónica, parecem ficar asseguradas duas dimensões de verosimilhança no relato de acontecimentos extraordinários, concatenados na magnificente minuciosidade de um sonho: a da possibilidade da intervenção do sagrado, como propiciadora das manifestações dos acontecimentos extraordinárias, e a da validação ética dos acontecimentos narrados como exemplos de dimensão alegórica.      

    De facto, não é fácil estabelecer quais as fontes que terão servido directamente a Eça, dado que, desde a Bíblia até aos escritos do seu contemporâneo Renan, que escreveu mesmo uma Vida de Jesus, poderíamos encontrar eventuais “documentos” para a narrativa encaixada que representa uma boa parte textual de A Relíquia. Sendo essa narrativa a do processo de Jesus, ou seja, que constitui parte dos relatos canónicos dos Evangelhos que relatam os últimos dias de Jesus em Jerusalém e nos campos e povoados dos arredores da grande cidade, o texto, inevitavelmente, presentifica um cenário natural, social e humano que não corresponde, de forma alguma, ao que se apresentaria, em finais do século XIX, aos olhos do viajante português.

    Eventualmente, muitos outros historiadores da religião e orientalistas que, sumariamente, aparecem caricaturados em Topsius, poderão ter fornecido bases documentais para a “restauração” praticada por Eça, ao apresentar uma “Judeia às portas de Jerusalém” (p. 129) bem como a própria cidade, com um colorido que parece querer rejeitar alacremente a visão sombria dos “caminhos” e das “colinas”, que Teodorico “vira dias antes, em torna da Cidade Santa, dissecadas por um vento de abstracção, e brancas, da cor das ossadas” (p. 128).

    De facto, a quase ausência, no romance, fora da sequência do sonho, de registos paisagísticos, geográficos ou topográficos é impressionante e a secura das breves descrições digna de registo, quando comparada com as narrativas de viagens, quer verídicas quer ficcionais, elaboradas durante o século XIX e conformes aos códigos do realismo. Se compararmos o procedimento de Eça, ao apresentar as terras percorridas pelo seu protagonista, nas páginas em que relata a sua permanência no Egipto, com as que ele próprio escreveu como notas de viagem sobre essa região que visitou, verificamos essa mesma discrepância.  

    a person riding a surfboard on top of a wave

    Uma das razões para tal opção será, talvez, como nota Luís Manuel de Araújo, relativamente às notas pessoais de viagens, o facto de Eça reconhecer que “o seu texto” não poder deixar de “conter”, eventualmente “demasiadas influências de outros autores, ter muitas passagens retiradas (mas não necessariamente copiadas), de obras anteriormente lidas” (1987: 234).

    Provisoriamente, na impossibilidade de podermos pretender compreender integralmente as motivações estéticas, poética e ideológicas para uma tal secura, podemos assumir, como hipótese de sustentação dos argumentos que desenvolvemos neste nosso trabalho, que Eça não só sentia o peso da documentação no seu texto, como entendia que dificilmente poderia escapar à repetição dos “lugares comuns” (topoi) relativos aos “lugares visitados” (loci) preso aos códigos da representação canónica da ecphrasis e da enargeia, caso usasse, no romance, os dados enciclopédicos acumulados como notas.

    Seja qual for o objectivo que encontremos nessa atitude, ela parece desenvolver-se, em Eça,  como uma posição crítica que partilha com outros escritores, mestres e émulos, relativamente a certos aspectos que se poderiam considerar formas estereotipadas da literatura de viagens,  como que em contraponto à exuberância da representação do pitoresco que se afirma na narrativa realista, posição essa tendente a minimizar os aspectos hiperbólicos para que muitas vezes  a descrição tendia nos relatos de viagens. De facto, como lembra Carlos Reis, quando Teodorico Raposo confessa, no prólogo de A Relíquia, ter pretendido que as páginas em que dá conta de outras terras “se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente” (p. 6), parece fazer eco do narrador de Viagens na Minha Terra quando afirma que não “adoptará como modelo «quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam a imprensa da Europa»” (Reis, 1999: 116).

    shallow focus photography of stack of books

    Assim, proposta a abertura de uma diegese onírica, retrospectivamente fantástica, seria possível verter toda a cor da experiência vivida e das sensações experienciadas, misturadas com os topoicitacionais, através de documentações inevitavelmente recolhidas dos historiadores do passado, dos orientalistas, arqueólogos e estudiosos das religiões, além das provenientes das fontes bíblicas, sem com isso iludir ou mesmo enganar o leitor, o receptor da mensagem cultural, sugerindo a utilização de processos de captação directa (documentação em primeira mão, presentificação pelos processos da reportagem, segundo os princípios da enargeia) quando, na verdade, o que inevitavelmente se fornecia era o decalque mais ou menos disfarçado de uma representação do mundo já amplamente textualizada segundo códigos estéticos e literários. Ora, parece evidente que a mais destacada textualização que Eça faz dessa textualidade anterior, a que dificilmente conseguiria escapar, é Topsius.

    Verdadeiro alfa e ómega do dispositivo poético (mas claro que, também e primordialmente, retórico e, em última instância, semiótico) que Eça põe em acção no seu romance, Topsius é a garantia de sustentação de uma superstrutura narrativa realista em equívoca ordenação de todas as propostas paradoxais que o romance apresenta: a naturalização da passagem de um licenciado português algo tacanho para um universo desconhecido, onde acaba por se mover como um verdadeiro cosmopolita, falante desenvolto de várias línguas (pelo que se deduz das suas práticas), capaz reconhecer e avaliar os espaços naturais e arquitectónicos; a importância bem como a limitação e fatuidade de um saber enciclopédico para a captação dos espaços desconhecidos e para a representação dos mesmos; a ordenação do discurso onírico sob a forma de uma narrativa actualizadora das sequências mitificadas ou legendarizadas do processo de  Jesus e da Paixão; e a possibilidade de presentificar textualmente todo o cenário de um espaço distante tal como teria existido há quase dois mil anos.

    De facto, Teodorico, dividido entre uma existência canalha de «Raposão», hipocritmente ocultada, e uma existência familiar, dominada por uma tia beata e preconceituosa que lhe garantia a sobrevivência e lhe assegurava as perspectivas de futuro, quando lhe é proposta a ida a Jerusalém, revela toda a sua ignorância e a estrutura ideológica retrógrada que o informa:

     “Ir a Jerusalém! E onde era Jerusalém? Recorri ao baú que continha os meus compêndios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com ele aberto sobre a cómoda, diante da Senhora do Patrocínio, comecei a procurar Jerusalém lá para o lado onde vivem os Infiéis, ondulam as escuras caravanas e uma pouca de água num poço é como um dom precioso do Senhor” (p. 61).

    man in black suit standing on brown wooden door

    A travessia rápida, até Alexandria, coloca-o, assim, de imediato, diante de um universo novo, para o qual Tpsius, quer na cidade do Nilo, quer “nas ruas fuscas de Jerusalém”, ou “junto aos destroços de Jericó” ou ainda “pelas estradas da Galileia” tinha sido “sempre instrutivo, serviçal, paciente e discreto”, um autêntico cicerone cujas palavras o viajante português “reverenciava” (p.71).

    O simulacro paródico de tal instrução, surge, no prólogo, quando o narrador, em tom de retrospectiva mais distanciado do que aquele que usa na narrativa propriamente dita, indica a peça erudita de Topsius a que o leitor curioso se deverá reportar caso queira saber pormenores acerca da terra visitada, “Jerusalém Passeada e Comentada”. Fazendo a apresentação sumária do monumento de erudição publicado, “em sete volumes […] impressos em Leipzig”, Raposo revela como se processou o intercâmbio cultural luso-germânico, ao referir as palavras do companheiro de viagem: “o esclarecido Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar, ficticiamente, nos meus lábios e no meu crâneo, dizeres e juízos de beata e babosa credulidade – que ele logo rebate e derroca com sagacidade e facúndia!” (p. 7).    

    Tudo sugere que a língua em que falavam seria a “adâmica”, embora possamos acreditar que Tupsius, entre as suas imensas capacidades eruditas, possuísse também a de falar Português. Ainda que nada nos seja dito sobre isso, poderíamos aceitar que comunicavam em Latim, língua que o «Raposão» poderia ter aprendido no colégio para onde a tia o mandou e que Topsius, verdadeiro académico do século XIX, certamente dominaria. O que já não é tão claro é qual a língua que peregrino lusitano utilizaria com a inglesa que conhece em Alexandria e com a qual mantém uma arrebatada relação erótica, a vivência emocional intensa de toda a viagem, ou com Potte, o guia grego, ou ainda com Fatmé, a dona do prostíbulo de Jerusalém.  

    gold and purple beaded necklace

    Fica sempre a dúvida sobre a língua que é utilizada, tanto mais quanto a comunicação nos parece simplificadamente fantasiosa, ao ponto de a barreira da língua só ser evocada no momento em que, no bordel de Fatmé, ao tentar “seduzir” a jovem núbia, Teodorico reparar com uma agudeza que não é a da personagem  mas, eventualmente, a da instância autoral autor através dela: “Não compreendia o meu falar: e nos seus olhos esgazeados flutuava a longa saudade da sua aldeia na Núbia, dos rebanhos de búfalos que dormem à sombra das tamareiras, do grande rio eterno que corre eterno e sereno entre as ruínas das religiões e os túmulos das dinastias…” (p. 105). O que nos leva a pensar que a comunicação é aqui um acto convencional, que não conhece barreiras na construção ficcional, excepto quando a sua falha se revela poeticamente significativa, como é aqui o caso.

    De facto, ela revela a impossibilidade do encontro amoroso, causado pela imensa distância cultural que separava as duas personagens, sublinhando a tosca ignorância de Teodorico sobre a mulher que procurava seduzir, construído numa espécie de litotes, em que uma imagem poética, que é o reverso da mentalidade do narrador, exprime, pelo seu contrário, a boçalidade do sujeito a quem a enunciação é atribuída.

    Já se vê que, mesmo no modo como fantasia as realidades linguísticas, Eça contorna os preceitos da representação realista que, nos diálogos do mundo, encontra a matéria mais dócil para transpor segundo esses mesmos princípios. Essa fantasia parece querer representar, exactamente, o reverso da descuidada facilidade com que toda a comunicação se processa, nova série de litotes que surge paralelamente à que exprime a quase nula comunicação existente entre os viajantes – sobretudo Teodorica Raposo – e os habitantes dos países visitados.

    O contraponto entre o fracasso da relação com a mulher núbia e a plenitude da relação, em Alexandria, com a inglesa Mary é revelador de uma percepção estética, exposta segundo os mecanismos da paródia e do burlesco, da intransponível barreira existente entre o viajante europeu, eivado dos seus conhecimentos e preconceitos, e os  naturais dos países ou regiões com as quais se punha em contacto: afinal o viajante português vai encontrar, no Egipto, não uma mulher oriental – tipo feminino ao qual quer Nerval quer Flaubert, por exemplo, deram forte relevo nos seus relatos, apresentando-o como objecto de extrema atracção – mas uma europeia que, embora aparecendo como luveira, vendia os seus “favores”, encontrando nessa relação o objecto fatal, embrulhado como fetiche,  que transforma completamente as suas perspectivas de futuro, ao ser aberto, por gafe, pela “titi”, que recebe o embrulho como contendo uma “relíquia”.

    interior building

    Se nos lembrarmos que, na Palestina, lugar por onde Jesus andou, não conseguiu encontrar nenhuma relíquia, acabando por recolher um ramo de espinheiro para fazer um simulacro de troço da coroa de espinhos, percebemos quão fracassada é a carreira deste peregrino e de que modo lhe estava vedado o acesso à compreensão do Oriente. 

    Tendo em vista o objectivo de contornar as exigências de uma estética realista estrita, sem, contudo, abandonar o seu horizonte poético ou epistemológico, Eça parece ter enveredado pela acumulação de paradoxos e contradições na utilização dos modelos e dos elementos que costumam ser empregues com dispositivos produtores dos efeitos de real e naturalização da representação.

    Por um lado, o seu narrador autodiegético focalizador quase exclusivo da história contada, centro da maioria dos processos de percepção das ocorrências relatadas e dos objectos, seres e espaços percepcionados, revela-se equívoco pelas suas limitações culturais e ideológicas; por outro lado, o parceiro de viagem que poderia ser a fonte de informação canónica, garante da função matésica ou enciclopédica, aparece como focalizador distorcido por a sua perspectiva ou o seu discurso emergirem através do testemunho limitado do narrador, o que leva a uma hiperbolização paródica do seu saber – qualquer coisa que o aproxima das figuras patéticas de Bouvard e Pécuchet, copiadores e acumuladores de ideias e conhecimentos já “feitos”, como se sabe; e, por outro lado ainda, relativamente à percepção do mundo diferente e estranho, é dada uma dimensão textual maior ao sonho do que à vigília e, como que em corolário de uma lógica do imaginário, uma maior importância ao passado, evocado pelo sonho,  do que ao presente, revelado (mal) em estado de vigília.

    brown rock formation under white sky during daytime

    Entre outras coisas, ao sonho pode ser atribuída a função de fazer emergir, no discurso do narrador, uma versatilidade imaginária e uma capacidade de compreensão que os processos mentais de Teodorico, anteriormente, não tinham revelado. Se o sonho for esse processo a que podemos chamar “iluminação de uma mente embotada pela sua própria brutalidade”, podemos dizer que o seu resultado foi dar uma “visão do mundo”, uma sageza, a um indivíduo que, desperto, não seria capaz de a alcançar.

    A diferença de percepção é notória, entre a personagem que viaja, em estado de vigília, e a que sonha, embora a entidade romanesca Teodorico englobe ambas. Assim, podemos apreciar o espírito obtuso do narrador protagonista quando, alertado pela voz cicerónica para o facto de estar diante do Santo Sepulcro, reage do seguinte modo: “Fechei o meu guarda-chuva. Ao fundo de um adro, de lajes descoladas, erguia-se a fachada de uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como supérflua; a outra timidamente, medrosamente entreaberta” (p. 94). Não nos deve ser indiferente o facto de o quadro cultural em que emerge a personagem de Teodorico ter antecedentes culturais importantes, como nota, esclarecedoramente Said, estudioso atento e profundamente conhecedor dos relatos de viagens ao Médio Oriente:

    “Todas as peregrinações ao Oriente passaram através das terras bíblicas, ou a isso foram forçadas; a maior parte delas eram, de facto, tentativas, ora para resgatar, ora para libertar do grande e incrivelmente fecundo Oriente uma parte da realidade judaico-cristã/greco-romana. Para esses peregrinos, o Oriente Orientalizado, o Oriente dos académicos Orientalistas, era um percurso obrigatório, assim como a Bíblia, as Cruzadas, , o Islão, Napoleão e Alexandre eram temíveis predecessores a serem reconhecidos. Esse Oriente aprendido não se limitava a inibir os prazeres e as fantasias privadas dos peregrinos; a sua posição prioritária coloca barreiras entre o viajante contemporâneo e a sua escrita, a não ser que, como era o caso de Nerval e Flaubert ao utilizarem os textos de Lane, a obra do Orientalista seja separada da biblioteca e integrada num projecto estético” (1995: 168).

    ocean sea waves on seashore

    De facto, a obtusidade de Teodorico parece provocar um contraponto demasiado gritante relativamente ao acervo cultural que antecede a sua observação, sobretudo quando a confrontamos com um texto  como o de Chateaubriand que podemos ler no seu  Itinéraire de Paris a Jérusalem, o qual é tanto mais impressionante quanto ele o faz preceder pela descrição de um historiador francês do qual cita, na íntegra, quatro páginas:

    “Deshayes, tendo, assim, descrito, segundo a ordem das Estações, tantos lugares veneráveis, só me resta, agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores. Vemos, antes de mais, que a igreja do Santo Sepulcro é constituída por três: a do Santo Sepulcro, a do Calvário e a da Invenção da Santa Cruz. A igreja do Santo Sepulcro propriamente dita está construída no vale do monte Calvário, e no lugar onde sabemos que Jesus Cristo foi sepultado. Essa igreja forma uma cruz; a capela do Santo Sepulcro constitui a nave central do edifício: é circular como o Panteão de Roma e só recebe luz através de uma abóbada, sob a qual se encontra o Santo Sepulcro. Dezasseis colunas de mármore ornam os contornos deste redondel; sustêm, ao demarcar dezassete arcadas, uma galeria superior igualmente composta de dezasseis colunas e dezassete arcadas, mais pequenas do que as colunas e arcadas que a suportam. Nichos correspondentes às arcadas elevam-se por sobre o friso da última galeria; e a cúpula nasce sobre o arco desses nichos. Estes eram, outrora, decorados por mosaicos que representavam os doze apóstolos, santa Helena, o imperador Constantino, e três outros retratos desconhecidos” (1968: 278-279)        

    Esta breve amostra do modelo de descrição reinante na literatura de viagens, provem de uma das mais marcantes figuras literárias do dealbar do romantismo, que imprimiu à prática da ecfrasis os traços marcantes que ela assume na literatura de viagens daí em diante. Tal prática propõe o objectivo de funcionar como enargeia, ou seja, como registo documental que produz uma representação de objectivos testemunhais acompanhando o relato, provando que o narrador ou o focalizador esteve lá e presentificando o objecto (normalmente cultural) tal como ele é, pelo que pode, como diz Chateaubriand, “agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores” incluindo-os no acto perceptivo afirmado: “vemos”.

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    Percebe-se, comparando os dois textos, quanto os silêncios, as reduções, ou eufemismos ou, até, as depreciações de Teodorico significam profundamente, desenvolvem uma decisão estética cuja amplitude e consequências apenas podemos sugerir aqui. E a diferença que podemos registar não aparece apenas quando o texto de Eça é confrontado com o modelo canónico da prosa de Chateaubriand.

    Mesmo quando comparado com autores geracionalmente mais próximos, como Nerval ou Flaubert, a mesma marca de diferença mantém-se, cabendo a Eça a ostentação de uma estética a que podemos chamar, provisoriamente, da elipse descritiva. Nerval, por exemplo, manifesta o prazer da descoberta dos espaços urbanos, das ruas e dos bazares, na sua chegada ao Cairo, todo o presente do Egipto com que se depara, aparece sob um registo de entusiasmo, podendo encontrar-se no seu texto imagens que poderiam ser vistas como inspiradoras de algumas que Eça usa nas suas notas de viagem publicadas postumamente com o título, O Egipto. Mas nada, ou quase nada dessa vontade descritiva aparece.

    A primeira imagem que é dada de Alexandria, talvez a mais longa descrição de uma cidade que Eça conheceu muito bem e à qual se refere longamente noutros textos, é bem exemplo da estética da representação depreciativa ou da elipse descritiva que Eça usa, numa espécie de formulação da estética parnasiana às avessas:

    “No cais faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da Alfândega. Mais além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o céu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um lânguido palácio dormia à beira da água; e ao longe perdiam-se os areais da antiga Líbia, esbatidos numa poeirada quente, livre, da cor de um leão” (p. 69).            

    Será possível maior esquecimento do presente, do percebido aqui e agora, em nome da evocação do passado, do longe e do esbatido, de uma Líbia distante no tempo e no espaço? E como difere uma tal visão disfórica do presente da vigília, daquela que caracteriza os momentos “vividos” do sonho! Não teríamos melhor maneira de terminar a exposição da nossa perspectiva de leitura do que a que nos oferece um dos olhares de Raposo, iluminado pela dinâmica do sonho ao apresentar uma paisagem pertencente a um passado distante.

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    O contraponto é feito pela própria personagem, no sonho, como já acima referimos: “Oh que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes” (p.127-128). Com esta operação verbal, é o presente da viagem que se torna passado, sendo o passado evocado de um modo quase triunfal de omnipresença:

    “Agora tudo era verde, regado, murmuroso e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida , com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém: as folhas do ramos de Abril desabrochavam num azul moço, tenro, cheio de esperanças com elas. E a cada instante se me iam os olhos nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres e mais esplêndidos que o rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!” (p.128).

      Mesmo atendendo às suspeitas que o texto explicita de que tudo corresponde a uma “Escritura”, fica ainda a sensação de que é no processo onírico que a presença do mundo se oferece como plenitude aos sentidos, sobrepondo-se essa fruição ao desencanto que era encontrar um presente das “coisas” em tudo conforme aos modelos banalizadores dos relatos de viagem.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia activa

    Chateaubriand,  François-René  de,  1968,   Itinéraire  de  Paris  à  Jerusalem, GF  /Flammarion, Paris

    Queirós, Eça, 1992, O Mandarim, IN/CM, Lisboa (edição crítica de Beatriz Berrini com texto da edição de 1889 e do folhetim do Diário de Portugal,)

    Queirós, Eça, s/d, A Relíquia, Livros do Brasil, Lisboa (texto fixado e anotado por Helena Cidade Moura de acordo com a edição de 1887)

    Bibliografia passiva

    Araújo, Luís Manuel de Araújo, 1987, Eça de Queirós e o Egipto Faraónico, Comunicação, Lisboa

    Braudel, Fernand, 1989, Gramática das Civilizações, Teorema, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa

    Fouilloux, Daniel e outros, 1995, Dictionnaire Culturel de la Bible, Marabout, Paris

    Martins, António Coimbra, 1967, Ensaios Queirosianos, Europa-América, Lisboa

    Matos, A. Campos, 1993, Dicionário de Eça de Queirós, Caminho, Lisboa

    Moura, Jean-Marc, 1992, Images du tiers monde dans le roman français contemporain, PUF, Paris

    Moura, Jean-Marc, 1992a, Lire l’exotisme, Dunod, Paris

    Reis, Carlos, 1999, Estudos Queirosianos, Presença, Lisboa

    Segalen, Victor, 1986, Essai sur l’exotisme, Livre de Poche/Fata Morgana, Paris

    Said, Edward W., 1995, Orientalism, Penguin, London

    Thiner, G. e Agnés Lempereur, 1984, Dicionário Geral das Ciências Humanas, Edições 70, Lisboa

    Todorov, Tzvetan, 1989, Nous et les autres, Seuil, Paris

    Todorov, Tzvetan, 1990, A Conquista da América, Litoral, Lisboa


    [i] Como sumária apresentação editorial transcrevemos a que consta na entrada “(O) Egipto na obra de Eça de Queirós” da autoria de Luís Manuel de Araújo, publicada no Dicionário de Eça de Queirós, organizado por Campos Matos: “Em 1926 saía finalmente a público, editado pela Livraria Chardron de Lello & Irmão, do Porto, o volume O Egipto, Notas de Viagem, obra póstuma cuja publicação se fica a dever ao empenho e dedicação dos filhos […]” (1993: 363).

    [ii] “Um discours contraint”, in Poétique, nº16, Seuil, Paris.

    [iii] Como resumo do problema aqui colocado, citamos, do texto referido de Barthes: “O artesanato do estilo produziu uma sub-escrita derivada de Flaubert, mas adaptada aos objectivos da escola naturalista […] A escrita neutra é um facto tardio, só será inventada muito depois do realismo, por autores como Camus, menos sob o efeito de uma estética do refúgio do que em resultado da busca de uma escrita que fosse, enfim, inocente” (1986: 59).

    [iv] Cf. Greimas e Courtés, Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo, s/d, p. 410 (entrada: Semiótica)

    [v] Para um aprofundamento desta questão, segundo pontos de vista próximos e complementares dos que aqui apresentamos, é muito útil o texto introdutório de Maria Alzira Seixo ao seu livro Poéticas da Viagem na Literatura (1998: 11-38).

    [vi] Essas designações processam-se segundo uma nomenclatura que, ao especificá-los enquanto seres do lugar visitado os apresenta como autóctones, nativos, indígenas ou aborígenes – sendo esse indicativo da origem percebido como depreciativo. Não é inconsequente esse modelo classificatório, pois vai participando na elaboração de um imaginário que é o léxico privilegiado da ideologia da expansão, do império e do domínio global. Assim, e sumariamente, o espaço global pertence-“nos”, temos uma pátria de onde tiramos “valores universais”, mas “somos do mundo inteiro” – enunciado que pode perverter-se, num discurso que sirva de apoio às razões de domínio global, em “o mundo inteiro é nosso” expressão que não pode, por si, ser submetida à luz da razão, evidentemente – e os “aborígenes” são da Austrália, os “indígenas” são de África, os “nativos” são da Nova Guiné e das ilhas do Pacífico, podendo reservar-se um dos termos, autóctone,  para uma utilização mais neutra, em que caibam indianos, índios, malaios … e surgindo sempre hesitações sobre o modo como designar chineses e japoneses segundo um tal paradigma de localizantes.          

    [vii] Tomamos como prática orientalista, parodiada, a que é utilizada por Eça ao apresentar o seu companheiro de viagem como “o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bona e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas, pois ele representa, no espaço alemão, a tradição  da“actividade académica empenhada no estudo da Bíblia” que de acordo com Said “teve particular importância na emergência do moderno Orientalismo” (Said, 1995: 18).

    [viii] Desenvolvemos esta matéria sobre o romance em causa, em Figuras do Tempo e do Espaço (Jorge, 2001: 53-70)

    [ix] Referimo-nos, evidentemente, aos códigos básicos de escola, de filiação, de relação literária segundo os quais tem sentido ler Eça, num primeiro momento, os quais não se aplicam do mesmo modo a Verne que, embora se possa considerar integrado nos mesmos códigos, desenvolve uma produção que, editorialmente, se apresenta como a de narrativas de “viagens extraordinárias”. Com este reparo visamos apenas um delineamento dos processos segundo uma perspectiva comparatista, sem pretendermos, de modo algum, apresentar Eça como um autor datado, rigidamente arrumado numa compreensão histórico-literária conformista, em que surgisse, segundo o dizer de Barthes, como  autor “legível”.

  • Literaturas africanas, colonialismo e pós-colonialismo

    Literaturas africanas, colonialismo e pós-colonialismo


    Quando, no dealbar da constituição das novas pátrias africanas, se procurava estudar as literaturas em língua portuguesa dos países emergentes do processo de descolonização, a tendência geral dos investigadores e especialistas, de algum modo comprometidos com os ideais independentistas (desde os inspirados pela democracia liberal até aos de raiz marxista), era a de considerar urgente a delimitação das literaturas nacionais dos novos territórios independentes. Procurava-se fundamentar, de modo forte, com claros delineamentos, o conjunto dos traços que fariam específicas e diferenciadas as novas literaturas emergentes.

    Visando esse fim, era comum enfatizar o que constituiria a base da diferença entre as produções poéticas ou ficcionais  das literaturas africanas (em língua portuguesa – mas, também, generalizando, em língua francesa, ou inglesa; em língua de uma potência colonizadora, enfim) e as equivalentes das metrópoles (pela época histórico-literária, pelos modelos poético-estilísticos, pelos modelos retóricos e/ou pragmáticos dominantes, como formações discursivas[i], na época) de que essas se iam afastando, sobretudo após o corte político e administrativo.

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    Ora, do nosso ponto de vista, embora aquela seja uma boa base para iniciar o entendimento das questões que são preliminares quando avançamos para o estudo das literaturas dos países que até recentemente estiveram sob o jugo colonial, parece-nos urgente reformular, pelo menos dentro de uma óptica comparatista, alguns dos princípios então estabelecidos.

    Entendemos, por essa reformulação, não tanto a anulação dos conceitos, o seu esquecimento, ou mesmo a substituição de antigos por novos, mas o reordená-los segundo pertinências e regimes de dominâncias diferentes. Tal operação impõe-se porque, tal como os estudiosos de há uma década os agrupavam, quase se torna impossível o reconhecimento ou mesmo o estabelecimento conceptual dos termos da relação cultural que, inevitavelmente, instituem laços historicamente evidentes.

    Antes de passarmos à abordagem breve da interdiscursividade, que procuraremos demonstrar através de um diálogo com as propostas de alguns estudiosos (sobretudo críticos e estudiosos do campo científico anglo-saxónico) que se posicionam na área dos estudos pós-coloniais, gostaríamos de comentar algumas concepções, vingando ainda como orientações positivas na investigação e teorização genológica e histórico-literária, relativamente a obras pertencentes às literaturas africanas em língua portuguesa. Aproximamo-nos, deste modo, de uma postulação como a que formula Jean-Marc Moura quando afirma no seu “livro” (que se intitula, exactamente, Littératures francophones et théorie postcoloniale) que o encontro de ambos os pontos de vista “poderia contribuir para renovar um pouco o estudo das letras de expressão francesa”, quando pretende mostrar como as noções de francofonia literária e pós-colonialismo “se esclarecem mutuamente” (1999: 1).

    landscape photography of brown mountain

    Adiando para outro momento a explicitação da nossa própria posição face à “lusofonia” (deslocando-a para  “um nosso texto a vir”, portanto) ou aos estudos que se desenvolvem sobre literaturas das ex-colónias recorrendo à noção de “literatura lusófona”, preferimos assumir que os traços gerais dessas posições teóricas estão integrados na área disciplinar a que se tem chamado “literaturas africanas de expressão portuguesa” e que dentro desta (embora muitas vezes para rebater o que de colonialista em tais estudos pode haver) se têm apresentado os problemas  fundamentais que desenvolve a perspectiva “lusofonista”.

    Por esse motivo, parece-nos que a tarefa mais importante neste ponto da nossa argumentação é conhecer as posições dos autores que se nos afiguram como representantes mais significativos da área de estudos das literaturas africanas, quer como críticos quer como docentes académicos que praticaram as delimitações julgadas necessárias para o estudo dessas literaturas tendo em vista a constituição das histórias de cada uma delas. Para o efeito, baseamo-nos sobretudo nalgumas das postulações explícitas de Manuel Ferreira – atendendo, antes de mais, à sua posição de fundador coerente e eruditamente qualificado dos estudos sobre “literaturas africanas de expressão portuguesa [ii]”.

    Ora, segundo este autor, o momento fundador das literaturas africanas não passa por uma rejeição linguística, mas sim pelo processo poético representativo segundo o qual “o escritor pensa a sua terra em termos de pátria, nação, rejeita o Outro – o colonizador –, e está determinado a uma prática literária integrada na nova situação, toda ela voltada, de vez, para a conquista da libertação nacional” (Ferreira, 1989: 32). Pensada deste modo, a demarcação literária nacional é profundamente político-cultural e não pode ser compreendida fora de um quadro ideológico claramente anticolonialista.

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    Por assim dizer, essas literaturas nascem, de acordo com o seu ponto de vista, quando podem ser objectos produzidos e historicamente seriáveis, dentro de fronteiras relativamente claras que as tornam geográfica e politicamente independentes.   Nessa dimensão, a proposta de Manuel Ferreira articula-se, antecipando-as, com algumas das propostas que os investigadores a trabalhar na área do pós-colonialismo têm defendido, como adiante veremos.

    Pelo modo como desenvolve as condições que lhe parecem necessárias para a afirmação de uma literatura nacional, liberta da metrópole colonial, convém apresentar o texto de Manuel Ferreira que imediatamente se segue ao que acabamos de citar, no qual ele procura caracterizar o “escritor” em geral de qualquer país que se torne independente dos valores culturais a que esteve submetido:

    Assume-se como homem inteiramente livre, repensa as suas raízes culturais, faz o reencontro consigo próprio e integra-se no destino colectivo da sua gente. Libertado interiormente, na sua qualidade de cidadão, como dissemos, mas enquanto escritor são ainda alguns e significativos os aspectos que impedem a destruição total da sua dependência e, consequentemente, não permitem a posse da sua inteira individualidade. Pelo menos em relação aos que ficaram na (…) situação de semiclandestinidade. A sua voz está condicionada por diversos liames, que lhe limitam o gesto e a expressão literária. É certo que ele, inclusive, busca nos valores populares e até nas próprias línguas maternas os elementos que há-de incorporar nos seus textos, o que contribui em grande parte para a sua libertação, mas ainda a não alcançou totalmente. Essa só virá a consegui-la com a independência nacional e a destruição completa do sistema colonial” (1989:32-33).

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    Compreende-se, de imediato, que, segundo tal ponto de vista, na base de uma literatura nacional em países constituindo-se a partir do estado de dependência colonial, é necessário estruturar-se um ethos do “homem novo”. O que parece ficar elidido em tal proposta é o quadro concreto do estatuto desse escritor, bem como a entidade texto completamente construída fora do colonialismo. Nessa óptica, o que se delineia é mais um programa carregado de projecções utópicas (o dever ser de um escritor a vir que, por estar em construção, não se pode descrever como aquilo que é), do que uma entidade abstraída de um conjunto de práticas efectivamente verificadas.

    Decorre deste ponto de vista, que nem sempre foi fácil de construir para os primeiros estudiosos de literaturas nacionais desenvolvidas em espaços recém-descolonizados, a necessidade de estabelecer os princípios que deveriam permitir separar os escritores reconhecíveis como pertencendo às novas nações daqueles que não o são.

    É ainda Manuel Ferreira quem mais ousada e cuidadosamente esquematiza o critério para tal distinção que ele próprio designa  “destrinça”, considerando que ela tem de ser “implacável (…) para o entendimento da questão (…) que se coloca ao estudioso das literaturas africanas, sobretudo após a independência dos países africanos [que] é a de descortinar quem vai ter o direito à condição de escritor africano” (1989:216 – linhas 7 a 23).

    brown and black desk globe

    Mantendo, quanto a este ponto, a posição de seu discípulo (entendendo nisso a continuidade e não a mera repetição), Pires Laranjeira estabelece como dicotomia de base a literatura colonial e a negritude (Laranjeira, 1995: 26-29). É atendendo a esta divisão que ele estabelece, desenvolvendo o estudo de Manuel Ferreira acima citado, sete grandes períodos para as literaturas nacionais, sendo o ponto discreto central, em torno do qual constitui “um antes e um depois”, aquilo que ele define como negritude.

    No centro da sua conceptualização, que usamos pela sua simplicidade operatória e por nos parecer sumariar de modo claro as teses fundamentais que vão de Césaire a Fanon, está a ideia de que a negritude “nega a dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial”, da cultura europeia, sem que, por essa negação, se ignorasse ou diminuísse “o valor das culturas europeias ”(Laranjeira, 1995:29). 

    Sugerem estes estudiosos que a existência de tais literaturas se constitui em plena igualdade quando as obras se afirmam independentes, libertas dos laços coloniais, ostentadoras dos símbolos e imaginários que assentam em dois grandes campos ideológico-culturais:   na tradição dos povos ancestralmente naturais dos territórios que assumem como pátrias de origem; na adesão aos valores explícitos e representações emblemáticas da luta anticolonial.

    Ora, mesmo admitindo que  tais obras representam e “encenam”, nos sentidos que constróem textualmente, a evidência da sua nacionalidade e que, portanto, reconhecê-las como independentes (angolanas, moçambicanas…) não carece de uma operação pragmática em que o leitor e a sua interpretação as entende desse modo por contextualização e integração histórica do texto, o que se passa é que essa mesma encenação da nacionalidade dialoga com os discursos históricos que são produzidos a partir de uma matriz, funcionando como enunciado de facto na globalidade planetária, que afirma sempre a presença do colonialismo: quer como realidade presente, actuando política, económica e ideologicamente; quer como sombra de um sistema que se evidencia por sequelas e estigmas.

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    Como exemplo de que a observação dos factos literários mais actuais revela essas mesmas sequelas, resumimos o quadro (ele próprio brevíssimo) que Pires Laranjeira nos dá da produção literária angolana entre 1981 e 1993, lapso de tempo que considera 7º (e último, à data) período da literatura angolana. Entendendo esse período por o da “Renovação”, descreve-o como sendo o da criação da Brigada Jovem de Literatura, instituição “dependente sempre do apoio estatal” que “partiu em busca de certa autonomia decisória e estética”, mas que “se revelou herdeira do realismo social” (1995: 42).

    Vê-se bem que todo o conjunto de movimento e deliberação, anunciados na decisão do corte, acaba por assumir, como temática central, a própria conjuntura sócio-político-cultural do estado política e administrativamente “pós-colonial”.

    As circunstâncias assim evidenciadas levam-nos a pensar que, para formularmos com justeza uma área de estudos que desenvolva, a partir dos centros de produção intelectual e académicos europeus (as instituições do saber, enfim), o conhecimento das literaturas nos países outrora colonizados, temos de operar, na constituição dos nossos discursos, com os instrumentos conceptuais que inscrevam inequivocamente a presença do colonialismo (os seus discursos, os seus aparelhos ideológicos) nas práticas de produção dos textos que dela resultam e na retórica (ou na pragmática) que orienta a leitura ou recepção desses mesmo textos.

    Assumimos, deste modo, com Ania Loomba que o “«discurso colonial» [nos estudos  pós-coloniais, como se depreende do resto da sua argumentação], não é apenas um novo termo fantasioso a aplicar ao colonialismo; ele indica um novo modo de pensar o processo cultural, intelectual, económico e político, modo esse em que tais processos são perspectivados segundo o seu laborar conjunto na formação, perpetuação e desmantelamento do colonialismo.” (1998: 54).

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    Resulta, desta tomada de posição no plano teórico, que se manifesta um conjunto de conceitos, de noções, de instrumentos operatórios de análise a serem reavaliados, de modo a tornarem-se dominantes, nas abordagens de pendor anticolonialistas, ou a serem revelados, no caso de discursos de perpetuação da ideologia colonialista tornados objectos de tais análises. Desse modo, e ainda segundo Loomba, o pós-colonialismo não se caracteriza pelo que vem “depois do colonialismo”, se entendermos pelo prefixo “pós” a dimensão cronológica segundo a qual o que devemos ter em conta, predominante ou exclusivamente, é o que se segue ao pretérito, totalmente encerrado.

    Devemos, sim, entender esse depois como uma temporalidade “mas, tornando o termo mais flexível, assumindo-o também como a contestação da dominação colonial e as heranças do colonialismo” (1998: 12). Pensado desse modo, o pós designa uma causalidade que, como no-lo ensinaria a teoria estrutural ao estudar a armadura da fabulação, se demarca da estrita sucessividade temporal. Afirma-se, assim, a causa como o processo complexo, desenrolado no plano cronológico, mas com fortes incidências quer no que o precede, quer no que lhe é coevo, quer ainda no que vem depois. “Pós”, usado como conceito operatório forte, permite pensar todo o campo literário, bem como o campo cultural que o envolve, no quadro amplo de um processo histórico complexo, onde o passado não é, forçosamente, pretérito, encerrado e causa permanente, mas pode, também, ser construção do que se lhe sucede.  

    Não pretendemos afirmar que assim é em relação a todos os conceitos que se formem com a associação do prefixo, mas, quando aplicado a um conceito periodológico de grande amplitude espacial e/ou temporal, como é o caso de colonialismo, não se nos afigura que as coisas se passem de outro modo. Quanto a esta extensão temporal e espacial, devemos ainda acrescentar que consideramos ser evidente o facto de muitos fenómenos que podem ser encarados numa perspectiva diferente, serem pensáveis numa óptica de estudos pós-coloniais como integrados numa conexão que lhes dá matizes peculiares.

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    O caso mais interessante, que nos parece de perspectivar aqui, é o que diz respeito à actual conjuntura que une/desune as literaturas dos novos países africanos entre si e relaciona, na mesma bipolaridade (união/independência) o conjunto destes com a “ex-metrópole”. O aspecto perfeitamente óbvio dessa relação é o que liga temática e formalmente escritores de origem africana ou portuguesa residindo em África, mas em países diferentes, entre si, ou qualquer deles a escritores que são originários de África (ou que nela “nasceram” literariamente) mas não vivem lá e optaram por ser portugueses.

    Não só encontramos afinidades entre eles, mas também entre eles e escritores de países aparentemente sem sequelas coloniais, ou desligados de um processo colonial recente. Também as encontramos entre autores africanos e escritores que apenas estiveram em África de passagem, e entre qualquer deles e escritores de países com outra língua oficial. Mia Couto, por exemplo, está ligado formalmente a escritores como Guimarães Rosa, brasileiro e Amos Tutuola, nigeriano.

    Encontramos afinidades entre os seus textos e os de Luandino Vieira. Percebemos que, nalguns aspectos pontuais, Lobo Antunes se aproxima de Luandino. A lista poderia continuar, se o espaço e o tempo para uma análise mais aturada fosse possível. Fiquemos por aqui, quanto a este ponto de contactos, para levantarmos outro tipo de aproximações: o que une, quanto à temática das vivências em tempo de guerra, escritores portugueses e escritores das ex-colónias.

    Se atendermos à tónica que Loomba, a autora que acima citámos, coloca no facto de a abordagem pós-colonial “permitir incorporar a história da resistência anticolonial nas resistências ao imperialismo e à cultura dominante Ocidental” (1997: 12), percebemos que um vasto campo de investigações, sobre as representações literárias da guerra colonial travada entre o salazarismo e os movimentos de libertação, ganharia muito em ser perspectivado numa posição teórica que acentuasse a dimensão da relação. Poderiam revelar-se com mais segurança e proveito, sem com isso se estar a incorrer numa inclusão abusiva ou tendencialmente neocolonialista, as relações entre os escritores modernos dos novos países africanos e os seus homólogos europeus.

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    Do nosso ponto de vista só se ganharia em pensar o que de profundamente original há na negritude, por exemplo, associada ao surrealismo ou mesmo a outras vertentes das vanguardas europeias, ou a certas posições dos escritores independentistas africanos que, durante o regime salazarista, se aproximaram do neo-realismo português. É certo que Manuel Ferreira, por exemplo, apontou essas “aproximações”; mas fê-lo, quase sempre, para demonstrar quanto a necessidade da separação era importante.

    Na sua peugada, Pires Laranjeira propõe o mesmo processo de valorização dos nacionalismos, mesmo culturais, proclamados pela valorização do homem negro na negritude, acabando por minimizar o lado universal e de relação intensa que se desenhava na atitude vanguardista dessa mesma negritude, ao partilhar valores temático-formais com o surrealismo e com várias correntes de modernismo ou das vanguardas históricas.

    Neste ponto, parece-nos ser possível argumentar plenamente a favor de uma óptica que permita ler o conjunto dos autores “militantes”, segundo um aparato de noções e conceitos (instrumentos de observação e discernimento, enfim) capazes de abordarem os elementos semelhantes, comparáveis entre si, sem a deixarmos arrastar-se para uma posição em que umas das partes seja política e culturalmente dominante entre os elementos do conjunto em confronto.

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    A manutenção do estado conflitual dos elementos comparáveis estaria sempre assegurada pela própria evocação do estado litigioso das situações e dos discursos que as transmitem, pois esse mesmo estado é designado, como tópico supremo, pela convocação de tudo o que decorre do termo colonialismo (a relação entre dominadores e dominados), e pelo reconhecimento de uma situação que se perpetua, em repetições, sequelas e estigmas, assegurado pelo termo “pós”.

    Resumindo com anuência a tese de Jorge de Alva sobre o sentido inovador que os estudos coloniais podem ter, Loomba sublinha a afirmação desse autor, que sumaria a compreensão da atitude teórica que aqui avaliamos, ao citá-lo: “a pós-colonialidade deve ser afastada do estado de dependência de um antecedente que seria a condição colonial, devendo o termo ser colocado no suporte pós-estruturalista que evidencia a sua emergência”.

    Tal perspectiva leva-nos para leituras que têm em conta os jogos de “ desvio, transgressão, paródia e desconstrução dos códigos europeus tal como eles têm sido afirmados na cultura que está em causa” (Moura, 1999: 5), e não apenas  evidências constatáveis em códigos civis, ou éticas pautadas por um patriotismo espectacular. Parece-nos que a razão mais ampla e profunda pela qual os estudos pós-coloniais e as concepções teóricas, que os consolidam na abordagem da literatura, triunfaram nos meios académicos anglo-saxónicos foi a de evitar “tratar [as literaturas dos países ex-colonizados] como simples extensões que não careceriam de serem situadas para serem compreendidas” (Moura, 1999: 7).

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    Contudo, um certo eurocentrismo condescendente pode esconder-se por detrás de tal atitude. Seguindo ainda Moura, poderíamos dizer que a concepção desenvolvida pelos estudos pós-coloniais desliza facilmente para uma “globalização” em perspectiva europeia, “incapaz de compreender a diversidade das práticas de escrita e das situações culturais” (1999: 7). Admitimos tal possibilidade, mas essa atitude não difere muito da que se revela sempre que pretendemos compreender um “Outro” qualquer, mesmo que nessa posição de desconhecimento da alteridade em causa não esteja pressuposta uma atitude de dominância.

    E, do nosso ponto de vista, a perspectiva teórica do pós-colonialismo é mais correcta do que qualquer outra que não convoque explicitamente a dimensão globalizante do colonialismo exactamente por abrir o seu campo teórico à evidência incontornável do colonialismo como acto, quer em curso quer perpetuando-se em sequelas. É essa possibilidade que poderá levar a criar uma postura relativamente normal e “saudável” face à alteridade que se revela nos textos oriundos dos países ex-colonizados, ou a outras emergências culturais dentro do quadro afectado pelas dominações mais ou menos recentes ou pelas dependências relativamente a uma potência imperial.

    Reconhecemos, ao assumirmos tal posição, que lidamos com um processo marcado por violências, violações e usurpações. Mas reconhecemos também que ele se inscreve num processo global que assim tem de ser encarado e pensado para, a partir dessa explicitação, podermos reordenar os factos e as sequelas graves e desestabilizadoras a que o colonialismo deu origem.

    brown pencil on white book page

    A atitude contrária, que seria, quanto a nós, a de um respeito por culturas inassimiláveis, levaria, quanto a nós, a um olhar de admiração pelo “exótico”, que teríamos de sacralizar na sua pureza. Para já não falar no processo de apagamento do outro, pela inclusão numa comunidade linguística de que ele seria o elemento subsidiário, sujeito às avaliações em que surgiria como menor ou imperfeito.

    Ora, quando sabemos que a realidade institucional da cultura dos países que foram outrora colónias é a de uma dependência de “terceiro-mundo” face a um “primeiro”, não seria hipocrisia respeitar a pureza dos conteúdos, quando sabemos que os suportes materiais, e muitas das práticas socioculturais dependem dos países ex-colonizadores ou de franca dominância imperial?

    Do nosso ponto de vista, a correcta continuação dos estudos que em Portugal foram iniciados por Manuel Ferreira implica o reassumi-los numa óptica pós-colonial. Não para tirar o sentido aos estudos das várias nacionalidades literárias que se manifestam, e que continuarão, independentemente das nossas considerações e vontades, a delinear-se e a circunscrever-se segundo princípios que cada nacionalismo cultural determinar internamente – sobretudo internamente. Mas não será operação de má-fé, hoje, agrupar cinco países africanos como constituindo uma literatura, ou um conjunto de literaturas, visto não podermos, hoje em dia, com toda a pertinência, ostentar os critérios militantes que norteavam os estudiosos nos primeiros momentos da descolonização? 

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    Na ética subjacente a um conhecimento das literaturas africanas, julgamos ser mais justo, permitir maior discernimento, assumir a má-consciência teórica de nos inscrevermos num campo afectado pela expansão imperial do Ocidente – que se demarca, desde a primeira ocupação “legitimada” por códigos “internacionais” (mas nunca planetários), como pós-colonial. Ela permite-nos perspectivar fenómenos como o da edição, o da procura do público, o da definição de um “leitor” virtual, todos eles revelando uma franca e persistente dependência dos “autores africanos de língua (ou expressão) portuguesa” relativamente à ex-metrópole, sem que com isso tenhamos de construir “silêncios”, “não-ditos”, “eufemismos” ou acanhados circunlóquios.

    Uma das dimensões que fica claramente estabelecida na abordagem às literaturas das ex-colónias segundo a posição teórica do pós-colonialismo é, para o bem ou para o mal, o sistema das relações, das dependências, dos confrontos e da busca da igualdade assente no longo processo das interacções culturais.       

    A construção de uma perspectiva baseada na evidenciação dos processos coloniais permite-nos tornar centrais aspectos que, de outro modo, seriam periféricos ou mesmo esquecidos, para não dizer silenciados. Sobretudo ela dá-nos a possibilidade de desenvolver o conhecimento dos processos de relação sobre problemáticas literárias que, de outro modo, em qualquer das histórias literárias que se constróem, se poderiam tornar adiáveis, matéria que, como já foi caso, seria objecto de uma disciplina de “estudos de literaturas marginais”.

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    Também beneficiarão dessa perspectiva os grandes escritores mundialmente reconhecidos que, por serem oriundos desses territórios periféricos, poderão deixar de figurar como modelos. Com efeito, por estarem, paradoxalmente, desprovidos de relação de paridade integral (integradora e integrada) com a série literária onde de processa a legitimação do grande “cânone”, a do país colonizador, poderão ser desfigurados como entidades dependentes, visto pertencerem a uma série dependente por inerência, se os perspectivarmos fora do sistema pós-colonial, tal como o temos definido.

    Contudo, em vez de figuras inoperantes num cânone de “exóticos”, poderão ser pensados, numa perspectiva pós-colonial, no lugar de onde herdam valores e de onde activamente se inserem como mestres. Obter essa justeza de valoração já é razão suficiente para ter em conta, nem que seja a título de hipótese provisória, a perspectiva pós-colonial nos estudos literários.  

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Adam, Jean-Michel, 1990, Éléments de linguistique textuelle, Madraga, Liège

    Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas africanas de expressão portuguesa, U.Aberta, Lisboa

    Loomba, Ania, 1998, Colonialism/Postcolonialism, Routledge, London/New York

    Ferreira, Manuel, 1977, Literaturas africanas de expressão portuguesa, (1º vol.) ICP, Lisboa

    Ferreira, Manuel, 1989, O discurso no percurso africano, Plátano, Lisboa

    Moura, Jean-Marc, 1999, Littératures francophones et théorie postcoloniale, PUF, Paris

    Ricard, Alain, 1995, Littératures d´Afrique noire, CNRS/Karthala, Paris


    [i] Designamos deste modo o produto resultante daquilo que Foucault nomeou, inicialmente, ordem discursiva. Os objectos resultantes dessa ordem, que sobredetermina, através de instituições político-sociais de dimensão retórica –desde a escola à instituição política, sendo, nesta, evidente a pragmática da oratória deliberativa –, as produções discursivas de uma época os aspectos que, num texto, se ligam mais directamente à história, constituem a formação discursiva. Como nota Ania Loomba, num texto a que voltaremos para redimensionar a questão na perspectiva dos estudos coloniais/pós-coloniais, o conceito foucauldiano de discurso (e os seus correlatos “ordem discursiva” e “formação discursiva”) permite abordar o conceito de “«discurso colonial» […] como um novo modo de pensar, no qual os processos cultural, intelectual, económico ou político  são encarados como trabalhando em conjunto na formação, perpetuação e desmantelamento do colonialismo” (Loomba, 1998, 54). É evidente que, abordando a questão literária, a dimensão verbal do discurso se torna dominante, ou seja, o discurso é observado na sua dominante mais especificamente discursiva/textual, sendo o aparato institucional económico político o quadro que temos de considerar como “de fundo”. Entenda-se, desde já, que uma formação discursiva não delineia apenas o território da ideologia dominante, ou seja, a dos aparelhos que dominam politicamente um sistema – sobredeterminados por estes, pela sua “ordem”, emergem também, na formação, os contra-discursos, como se pode depreender das palavras da estudiosa acima citada. Para uma boa compreensão do conceito de formação discursiva são de considerar os desenvolvimentos que M. Pêcheux apresenta no seu artigo “Analise du discours, langue et idéologies” in Langage, n. 37, 1975. A análise do discurso nas suas várias formações com base nas instituições de dimensão cultural, de interacção social e ideológica é retomado, a partir dele, por Maingueneau referido por Jean-Michel Adam (1990: 20-21).

    [ii] Inclinamo-nos, hoje em dia, para o uso do termo “língua”, em vez de “expressão”. É preciso que se note, no entanto, que a opção de Manuel Ferreira (que, aliás, “fez escola”: o manual de Pires Laranjeira, editado pela Universidade Aberta, por exemplo, tem como título Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – exactamente o mesmo título do pequeno livro de Manuel Ferreira publicado na Biblioteca Breve – e é essa, também, a designação da cadeira que recentemente temos leccionado na Licenciatura em Português/Francês, na Universidade de Évora) se inspira no conceito hjelmesleviano de “expressão” como oposto a “conteúdo”. Evitava ele assim, com alguma razão, o uso do conceito de língua que, segundo algumas posições filológicas (não de todo desaparecidas, pois ainda se manifestam por detrás de alguns usos do termo lusofonia, por exemplo, que, por sua vez, busca fundamentos numa compreensão antropológica “lusotropicalista” das relações culturais asseguradas por uma espécie de “anima lusíada”, eventualmente “legítima” civilizadora, ou pelo menos aculturadora benéfica das possessões tropicais – ou atrás de expressões como a que frequentemente se atribui a Pessoa: “a minha pátria é a língua portuguesa”), seria representativa e até fundadora do “espírito” de um povo. Os conhecimentos mais actuais revelam-nos, no entanto, que a língua é um instrumento complexa e dialecticamente actuante que, se permite a fundação de uma visão do mundo, não fica ontologicamente ligada a ela – nem como produto de uma “alma” preexistente, nem como cimento imóvel de uma fundação de espiritualidade. A língua, como hoje a entendemos, não é portadora de essências imutáveis: permite criar espiritualidades diferenciadas sempre que o seu interagir o permite. Assim, a língua portuguesa, ao deslocar-se para outros espaços e outras vivências (africanas, por exemplo), e ao ser utilizada por pessoas que têm outras línguas de uso (maternas ou não), naturaliza-se. Se o nome da primeira pátria se mantém, a realidade das práticas torna a língua brasileira, ou angolana, ou passível de qualquer outra designação que a ligue ao espaço geopolítico onde atinge um determinado grau de representatividade cultural.  

  • O horizonte mítico do western em “Shane” de Schaefer e Stevens

    O horizonte mítico do western em “Shane” de Schaefer e Stevens


    O filme, Shane, realizado em 1953 por George Stevens, parece-nos uma obra extremamente estimulante para ser estudada de um ponto de vista comparatista. Em primeiro lugar, porque é em relação a criações surgidas dentro dos cânones dos sistemas artísticos, sobretudo literários, que a crítica muitas vezes procurou apreciar o filme, no que toca ao interesse estético, à valorização ética e à ponderabilidade ideológica e epistemológica – colocando-o entre as obras do género que aspiram  a um estatuto artístico, mesmo atendendo a que tem origem nos padrões da produção “clássica” americana de cinema, altamente determinada pelos processos da cultura popular de massas.

    Em segundo lugar, pela sua estreita ligação com a obra romanesca de Jack Schaefer – autor de qualidade pouco comum na produção literária que assumiu os temas e figuras do Oeste americano como matéria dominante ­–, que está na base do argumento a partir do qual foi elaborado o guião.

    Quanto à primeira ordem de questões, é de assinalar que, desde a sua estreia, a obra cinematográfica foi pensada e avaliada pelos críticos, nomeadamente Bazin (1961[1]: 150), tendo como referência canónica os grandes modelos genológicos da literatura – nomeadamente o romance de cavalaria, pelo que neste há de continuação dos valores característicos da epopeia, ou seja, os propósitos e os feitos positivos do herói enquanto padrão supremo, representativo dos ideais mais caros à comunidade em que se integra.

    Relativamente à valorização do filme, enquanto obra cinematográfica, dentro do universo cultural em que imediatamente emergiu, na época das suas primeiras exibições, é patente a perplexidade que gerou. No artigo de Bazin já citado, deparamo-nos com a problemática,  numa compreensão quase formalista das determinações genológicas, segundo modelos que, só mais tarde, com o estruturalismo, se tornaram usuais. O eminente crítico francês começa por traçar as grandes linhas daquilo que era a nova tendência do western do pós-guerra, nos termos que se seguem,  em que as motivações se explicitam em forma  de modelo hipotético: “digamos que o ‘superwestern’ é um western que teria vergonha de se limitar a ser ele próprio e procuraria justificar a sua existência através de um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica…para abreviar, por um qualquer valor extrínseco ao género, valor esse que, supostamente, o enriquece” (1961: 148).

    E, poucos parágrafos depois, referindo-se ao filme em questão, não hesita em o colocar como exemplar supremo dessa variante, então, moderna: “Quanto a Shane, ele constitui, por sua vez, o ponto extremo (la fin du fin) da ‘superwestrnização’. Com efeito, propõe-se, aí, justificar o western pelo…western. Os outros empenhavam-se em fazer surgir mitos implícitos, teses muito explícitas, mas a tese de Shane… é o mito. (…) A ‘superweternização’ levou tão longe a sua ultrapassagem que  volta a encontrar-se nas Montanhas Rochosas” (1961:150).

    Podemos deduzir destas palavras, e atendendo ao que conhecemos do filme, que o efeito mítico, de um herói carregado dos símbolos da sua própria plenitude, emergindo das Rochosas e voltando a desaparecer nelas, permite pensar a obra de Stevens como um cruzar de todos os valores mito-poéticos da matéria relativa ao pioneirismo e os aspectos formais dos sub-géneros épico-narrativos, como veremos adiante.

    Antes de voltarmos às considerações posteriores de Bazin, que nos conduzem, pelo que já se adivinha das citações anteriores, aos  outros pontos que queremos desenvolver – respeitantes à relação do filme com os géneros e as obras literárias de prestigiosa linhagem  – oiçamos  um outro estudioso, mais recente, John Saunders, que, já com uma ampla distância histórica, enquadra o filme que aqui abordamos numa perspectiva sócio-cultural mais ampla no seu livro, The Western Genre.

    Tal enquadramento  revela, em consequência de ter como objecto de abordagem uma obra típica do cinema americano, além de outros aspectos, duas vertentes ferozmente concorrentes: o sistema de produção, com a sua dominante económica; e o processo de representação, sob controlo do sistema dos estúdios, nomeadamente através dos seus códigos ético-estéticos altamente esteriotipados, em interacção simultânea com uma tendência poética e estética, aleatoriamente situada e com um poder de decisão extremamente variável, entre a fragilidade e a quase inoperância. O que poderíamos generalizar, corroborando o que observa Raphaële Moine, na sua abordagem à genologia no cinema,

     “ a produção de filme de género, que supõe, ao mesmo tempo, uma repetição de  traços característicos e uma variação, inscreve-se numa dialéctica de standardização/diferenciação. Ela é uma das combinações possíveis entre a lógica normativa e a lógica de inovação que caracterizam a produção e o consumo de «bens culturais» na cultura de massas” (2002: 61). 

    Voltando aos pontos de vista do estudioso inglês acima referido, a questão parece colocar-se com toda a pertinência dentro dessa perspectiva, no que diz respeito ao filme de Stevens: “Shane é frequentemente recordado como o  western arquétipo (archetypal), uma tentativa autoconsciente de reproduzir os temas e os caracteres familiares num estado clássico puro” (Saunders, 2001:13).

    Assim, dado  que o realizador, George Stevens, “não tinha qualquer crédito particular no western” (de facto, além de Shane, o único filme que realizou parecido com um western foi O Gigante, posteriormente, em 1956) e  não era mais do que “um muito respeitado artesão”, Saunders regista como digno de especial reparo o facto de o realizador ser considerado um “especialista na produção de bons proventos para os investimentos do estúdio” (2001:13).

    No que diz respeito segunda ordem de questões que nos propusemos tratar no início deste nosso trabalho, ou seja, a relação entre o filme e o romance de que é adaptação, pelo que nos confirmam os dados de investigação recolhidos pelo académico inglês que acabamos de citar, a fidelidade do primeiro à narrativa literária  é bastante grande – nomeadamente os diálogos, no guião de A.B. Guthrie Jr., são, muitas vezes, ipsis verbis os do romance (cf Saunders, 2001: 14). Ora, tal fidelidade, cujos limites abordaremos seguidamente, tende a ser – além do que toca à mimesis dramática já referida – do nosso ponto de vista, uma homenagem ao discurso ético-avaliativo (ideológico, moral e mesmo de quase religiosa admiração da criança pelo vislumbre da aura do herói) que o romance desenvolve.

    Não podendo ser marcadamente laudatório, segundo os processos verbais da retórica argumentativa, o filme (porque nele prevalece a acção e a ostentação dos traços físicos, como exigems as regras do género) desenvolve, para enaltecer positivamente o herói, o aparato dos adereços simbólicos, dos elementos ritualizados da acção típica e do emblematismo de certos traços icónicos.

    George Stevens, realizador de “Shane”.

    No que diz respeito ao dispositivo enunciativo também se encontram transposições.  Assim, por exemplo, na obra verbal, toda a evocação do “homem que vem de longe” é feita através de um  efeito de distância, não tanto espacial, como no filme se acentua, pela lenta aproximação do cavaleiro, na sequência inicial, mas temporal – do momento da narração para o momento evocado, no passado: “He rode into our valley in the summer of ’89. I was a kid, then…” (Schaefer, 1975: 1). Atendendo a que o romance é publicado em 1949, podemos aceitar que o discurso do narrador, confundindo-se com o da entidade autoral, coloca logo como abertura da história o cronótopo do western, enquanto rememoração nimbada de nostalgia: o homem maduro de hoje (tempo da escrita), com mais de cinquenta anos, evoca a criança que “in the clear Wyoming air (…) could see him plainly, though he was still several miles away” (1975: 1). De qualquer modo, o que se revela em ambas as obras é a estruturação de uma mensagem poética em que o Oeste se valida, como mito, pela evocação de um passado a que o herói pertence – e que, por essa pertença, só aí se valida plenamente.

    É evidente que, esse mesmo dispositivo, no filme,  como já o nota o próprio Saunders, sofre alterações: “a primeira pessoa narrativa da personagem que se torna Joey no filme dá aso, neste, a uma perspectiva mais objectiva, mas, apesar disso, vemos os eventos através dos seus olhos e os ângulos da câmara asseguram que, como ele, olhemos para cima, para Shane, em muitos momentos” (2001:14).

    Quanto aos procedimentos enunciativos autorais,  é respeitado, segundo Saunders, pela contagem que faz das sequências, o número de capítulos do romance do que resulta, grosso modo, dezasseis sequências, no filme, para dezasseis capítulos, no livro. A extensão do filme, comparativamente com os westerns típicos da época, apresenta-se mais longo, pelo que respeita das cenas do livro, inserindo na película uma ambiência mais romanesca do que a que é típica de outras obras cinematográficas do género, habitualmente mais marcadas pelo ritmo da acção – próximas, talvez, da dime novel de acção, que se publicava nos EUA desde segunda metade do século XIX.

    Em contrapartida, os traços mais exteriores da figura  do herói, tal como o filme no-la apresenta, afasta-se bastante da que sobressai do livro. De facto, neste, Shane “wore dark trousers…tucked into tall boots and held at the waist by a wide belt, both of a soft black leather tooled in intricate design. A coat of the  same dark material (…).The handkerchief (…) around his throat was black silk. His hat (…) was plain black (1975: 2). Mas não são só as roupas a acusarem a persistente dominância da cor negra. Quando desmonta, o recém chegado tira o chapéu e penteia o seu longo cabelo negro (p. 4).

    Traços do adereço e da aparência física que sublinham a  obscuridade quase enigmática do seu semblante, longamente descrito na cinco primeiras páginas, de onde sobressaem “the man’s eyes (…) bright and deep in the shadow of the hat’s brim” (p.5). Tal brilho será evocado, ao longo do romance, em situações cruciais, como na cena de pancadaria no bar com Morgan e os seus homens, onde a  acção de inesgotável energia parece ser um prolongamento do  semblante do herói quando se preparava para a refrega: “His face was clear, is eyes bright. He was somehow happy, not in the pleased and laughing way, but happy that the waiting was over and what had been ahead was here and seen and realized and he was ready for it”(1975:89).

    Shane, romance de Jack Schaefer, foi publicado em 1949.

    Ora, no filme, os traços da personagem são bem outros. Os elementos luminosos, parecendo emergir da escuridão e do negrume sombrio, tal como erradia da fonte cintilante que são os seus olhos nem sempre perceptíveis, no livro, são substituídos por traços físicos, adereços e trajes brancos claros ou mesmo representativos da luminosidade, no filme. O  herói, Shane, na versão cinematográfica é, segundo uma generalizada perspectiva da crítica especializada, com a qual estamos de acordo, uma espécie de virtuoso cavaleiro andante que emerge do fundo montanhoso e selvático  com o aparato das  vestes muito claras, e montada com uma grande malha branca na parte dianteira da cabeça, que parecem anunciar, como índices reconhecidos da matriz temática dos livros cavalaria, a  missão de justiceiro que o norteia.

    O intérprete, Alan Ladd, é loiro, de olhos azul-claros, traz uma pistola de coronha de marfim e luzidio cano prateado, por sobre a sua veste de peles de antílope (buckskins), a evocar as dos pioneiros das primeiras sagas da fronteira, tão caros ao romanesco americano das origens (cf. Saunders, 2001: 16).

         De facto, é  importante frisar um pormenor que foi muitas vezes esquecido: a literatura foi ela própria criadora do mito do western, com os seus procedimentos específicos. O passado e o mito que o filme convoca, de modo implícito, ao fazer emergir Shane sob os aparatos evocadores do primeiro pioneirismo, o dos caçadores de peles, parece querer assegurar ao herói uma densidade temporal e cultural simbólicas. Não só, pelo seu emergir da distância, ele nos surge como um senhor dos míticos espaços da liberdade, como se patenteia, também,  carregado dos adereços dos homens que fundaram a marcha para o Oeste: os pioneiros vestidos de peles. Mas, com este acréscimo, Stevens adiciona um elemento cultural forte ao seu filme: a referência literária nacional. Porque, se o western se desenvolve, sobretudo, como complexa mensagem artística do cinema americano (tendo como antecedentes e contemporâneos, como narrativas verbais, quase só folhetins populares – a dime novel que, habitualmente, contava a saga de algum pistoleiro ou bandoleiro histórico, mais ou menos mitificado), o caçador pioneiro é uma das primeiras figuras emblemáticas da literatura americana. Ora, o que o filme parece evocar, com o aparecimento do seu herói, é esse passado de que, de algum modo, com espectacularidade ostentatória, o herói se reveste.

    Assumimos, por isso, que  Fenimore Cooper podendo ser visto como um fundador, quer da literatura dos EUA, ao narrar as aventuras dos heróis que participaram no desbravamento das terras e nos actos de afirmação da liberdade e da independência, quer da ideologia americana do horizonte aberto e a conquistar,  introduz, com os seus romances, os primeiros elementos da matéria temática, de amplas ressonância culturais, da marcha para Oeste e do progresso da fronteira civilizacional.

    Se, com a sua imensa saga dos caçadores de peles, não funda o Oeste como ficcionalidade (as terras selvagens eram, na época a que ele se refere, ainda muito a Leste) a acção de desbravamento, como prática do westerner, é iniciadapelo seu herói, Natty Bumppo, desde The Pioneers (1823). Ele é, assim,  uma das mais importantes entidades mitificadas da cultura que  constroem, com a sua acção, os conteúdos temáticos e as figurações expressivos que dão substância, posteriormente, quer como matéria narrativa, quer como figuras emblemáticas, às noções de pioneiro, fronteira, desbravamento. Sem elas, a expansão ideológica do mito do western  e a sua integração profunda na cultura americana não teria tido a força que teve, ou não seria mesmo possível. Quase todos os motivos e desenvolvimentos temáticos que o western veio a ter estão, de algum modo, contidos, de modo mais ou menos embrionário ou desenvolvido, na obra do autor de The Last of the Mohicans.

    Jack Schaefer (1907-1991)

    Na deslocação do pioneiro, o Oeste é o seu horizonte e, de certo modo, o seu Graal (se quisermos manter a aproximação sugerida por outros críticos), pois é nele, enquanto além, que estão os fundamentos e os princípios mais sagrados da liberdade e da lei que dela emana – e é preciso notar que essa harmonia buscada era, então, “vivida” pelo herói “branco” das leather-stocking novels de Cooper, no seu convívio pleno com os Moicanos. A glorificação desse espaço além fronteira manter-se-á um dos conteúdos mito-poéticos mais fortes da literatura americana, por muito tempo.

    Se a frase “Go west, young man…” vem de um político, Horace Greely, que assim pretendia oferecer um programa salutar para a resolução do problema do desemprego nas cidades de Leste, em 1837, o cantor do horizonte que ficaria lá para as bandas do Pacífico, em muito poemas, foi Whitman, no seu Leaves of Grass, de 1852.

    Ora, se o filme constrói o seu horizonte histórico cultural, sugerindo o além de onde Shane emerge e, no final, desaparece, como região mítica de quase sacralidade, invisível para lá das montanhas, através do cenário ostentado pelas panorâmicas, isso deve-se, por certo, ao facto de o género, no cinema, rejeitar, por motivos ainda hoje justificados (a dominância da matéria específica icónica, em detrimento da verbal, que tende a ser substituída por aquela – por exemplo), o discurso ético-avaliativo e argumentativo que tão bem cabe no romance, mesmo que ele tenha como matéria lendária o justiceiro do Oeste, homem mais de acção do que de palavras, de suprema rapidez a disparar. Demonstram bem essa possibilidade os parágrafos finais da obra de Schaefer:     

    He was there. He was there in our place and in us. Whenever I needed him, he was there. I could close my eyes and he would be with me and I would see him plain and hear again that gentle voice./ I would think of him in each of the moments that revealed him to me. (…) I would see again the power and the grace of a coordinate force beautiful beyond comprehension. I would see the man and the weapon wedded in the one indivisible deadliness. I would see the man and the tool, a good man and a good tool, doing what had to be done./ And always my mind would go back at the last to that moment, when I saw him from the bushes by the roadside just on the edge of town. I would see him there in the road, tall and terrible in the moonlight, going down to kill or be killed, and stopping to help a stumbling boy and to look out over the land, the lovely land, where that boy had a chance to live out his boyhood and grow straight inside as man should./ And when I would hear the men in town talking among themselves and trying to pin him down to a definite past, I would smile quietly to myself. For a time they inclined to the notion, spurred by the talk of a passing stranger, that he was a certain Shannon who was famous as a gunman and gambler way down in Arkansas and Texas and dropped from sight without anyone knowing why and where. When that notion dwindled, others followed, pieced together in turn from scraps of information gleaned from stray travellers. But when they talked like that, I simply smiled because I knew he cold have been none of these./ He was the man who rode into our valley out of the heart of the great glowing West and when his work was done rode back whence he had came and he was Shane”  (150-151)

    Não conhecemos nenhum comentário, quer ao livro quer ao filme, que se tenha interrogado sobre o enigmático nome do herói. No entanto, impõe-se-nos, perante este panegírico final, em que todos os processos retóricos da evocação estão atendidos (a distância temporal sublinhada, o empolgamento da afirmação da presença que a anula, a repetição que enfatiza o objecto de admiração, o uso do pretérito como processo narrativo concluso, da legenda e da figura lendária que se detém como entidade inteiramente dominada pela recordação – a ausência, enfim, do ente evocado, como processo de o tornar inteiramente captável pelo sujeito da percepção, que o presentifica como total interioridade da recordação), pensar que, de algum modo, é o brilho ofuscante, shineshine, glow, bright, são propriedades constantes do seu estar, em modalidades quer substantivas quer verbais –, que se revela por detrás (ou vindos da sombra, como algumas descrições deixam transparecer) do seu nome – Shane.

    De qualquer modo, em ambas as obras, a sugestão pode desenvolver-se com pertinência: porque, da figura aos actos, é como se o herói fosse a própria afirmação da presença enquanto força esmagadora da plenitude e da potência: o irradiar, shining, de Shane, no estar e no fazer. O que anuncia resume-se ao que dá a ver em si próprio, o seu brilho – o mistério ou enigma é o que fica para trás ou para além de si, num percurso em tudo similar ao de uma demanda arquetípica, como a do Graal, ofuscante.

    O  trilho da demanda de Shane, evidentemente, é o estabelecimento de um estado de ordem e de justiça, numa axiologia que, implicitamente, se assume como sendo de origem celeste. Após abater o bando de malfeitores, o cavaleiro desaparece no horizonte de onde emergiu – figurando assim uma harmonia entre o cosmos e a lei que parece reproduzir a conjunção entre a transcendência e a imanência que, numa perspectiva lukacsiana, por exemplo, seria o traço fundamental do herói épico.

    No romance, o delineamento desse valor supremo, que parece pairar numa transcendência que só o herói sabe traduzir para a acção imanente – colocando o seu braço, numa espécie de ritual sagrado, do lado certo  do litígio, transformando a sua acção e o  resultado desta na esfera da harmonia cósmica como feito resultante da busca – é percebido, como que vislumbrado, pelo narrador, de modo que, literariamente, é possível elaborar com elegância segundo um processo consagrado na tradição da narrativa verbal: a memória evocativa.

    De facto, a voz do narrador distancia-se, deixando transparecer, na maturidade, a evocação do seu perceber, enquanto criança, a acção das personagens adultas; e isso quer no que toca às observações mais elementares, relativamente aos comportamentos visíveis dos adultos cujas motivações se mantêm enigmáticas para a criança (que o narrador era, então, como personagem): “What happned in our kitchen that night, was beyond me in those days. But it did  not worry me because father had said it would be all right, and haw could anyone, knowing him, doubt that he would make it so.” (p. 103); quer no que toca à persistência das imagens construídas como ícones de valores pela criança, que se reformulam aparentemente inalteradas: “This was the Shane of the adventures I had dreamed for him, cool and competent, facing that room full of men in the simple solitude of his own invincible completeness.” (p. 137)      

    Regressando ao  texto de Bazin já acima citado, vejamos como ele se refere a  duas dimensões que constituem ordens discursivas  diversas a convergir no filme:

    “seria um esforço gratuito reduzir a essência do westerna qualquer das suas componentes manifestas. Os mesmos elementos encontram-se noutros sítios, mas não os privilégios que parecem estar-lhe ligados no western. É necessário que este seja qualquer outra coisa, e não apenas a sua forma. Cavalgadas, lutas, homens fortes e corajosos numa paisagem de austeridade selvagem não chegariam para definir ou circunscrever os encantos dum género. Tais atributos formais, através dos quais se reconhece vulgarmente o western, são apenas os signos ou os símbolos da sua realidade profunda que é o mito. O western nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão: a saga do Oeste existia antes do cinema sob formas literárias ou folclóricas, e a multiplicação de filmes, aliás, não matou a literatura western que continua a ter o seu público e a fornecer aos argumentistas os seus melhores enredos. Mas não há comparação entre a audiência nacional e limitada das «western stories» e a outra, universal, dos filmes que se inspiram nelas” (p.137).

    É evidente que a crítica que segue as pisadas de Bazin se concentra nos elementos formais do conteúdo do mito para desenvolver a caracterização do “filme do Oeste” em aspectos fundamentais que o colocam em paralelo aos modelos da narrativa literária: os do herói épico, os do conflito trágico e os da intriga romanesca (cf. Glucksman, 1966: 71-88). A perspectiva é frutuosa, como poderíamos ver evocando alguns  filmes de John Ford ou de John Sturges, por exemplo.

    Em Shane (livro e filme), no entanto, o facto de todos esses aspectos se cruzarem, na sua vontade de “superwesternização”, como sugeria Bazin, não significa que todos aí se encontrem plenamente desenvolvidos, ou no máximo das suas potencialidades: a dimensão mítica tem algo de “revisitada”; o trágico perde-se na ambiência banal da família de acolhimento e na perspectiva excessivamente romanesca do narrador ou do seu olhar enquanto criança; e o romanesco nunca se completa como dominante plena porque nunca desfaz a dimensão mítica construída como evocação.

    Assim, sem deixarmos de nos limitar ao filme e ao livro de que nos ocupamos aqui, vejamos como, sobretudo em relação ao western, a crítica, numa matriz em muito devedora a Hegel, tal como ela se reformula de Lukacs a Frye,  desenvolveu algumas abordagens que se fundamentam nos grandes géneros miméticos estabelecidos para a literatura: o dramático e o narrativo.  Segundo André Glucksman, são três, os níveis segundo os quais se pode ler o western: o épico, o trágico e o romanesco. No entanto, segundo ele, na origem coloca-se o mito: “o western é uma mitologia secularizada onde uma sociedade tenta reflectir as suas contradições na intenção de lhes compreender as origens” (1966: 71).

    Ora, a primeira imagem, ou, pelo menos a mais forte imagem da primeira cena ou sequência de Shane  (quer no livro quer no filme), é exactamente a saída do herói, dos horizontes desconhecidos, para o espaço humanizado dos “trabalhos  quotidianos” de uma quinta. Nessa sequência de imagens, construindo-se como cenário, em cruzamento com o nó da acção que é o aparecimento do herói perante aqueles pelos quais se vai pôr à prova, expande-se toda a iconografia daquilo a que Gluksman  chama, nesse mesmo texto, “o «comunismo primitivo»”, onde se processa “a humanização da natureza”, estado típico do “western épico” (1966: 71).

    No entanto, não é ao mito ou ao universo mítico que Shane retorna. Se o toma como fundo, depressa nos apercebemos que o mundo ali patente já atingiu o “momento da instauração da lei, momento esse em que a sociedade se divide na separação de poderes” (Glucksman, 1966: 71). Tal separação é complexa, relaciona-se com as contradições existentes entre o local e ao global, o primitivo e o civilizado, a cidade clã e a cidade estado, o poder político e o judicial, os interesses nómadas e os sedentários, a industrialização e sociedade agrária e, sobretudo, o herói e a comunidade que serve : “o bem dividiu-se, o herói entra na cidade como cavaleiro solitário, pacifica-a e depois deixa-a, sendo marginalizado por sua vez” (Glucksmann, 1966: 73).

    Quase todas essas contradições, que se cruzam patentemente em Shane, estão no cerne de  outras importantes abordagens ao western  que se desenvolvem a partir de Bazin, como a de Glucksmann, que temos vindo a citar, a de Bernard Dort, “La nostalgie de l´épopée” (1966)  e revelam ainda a sua pregnância  em estudos como os  de Jim Kitses, Horizons West, de 1969, e de Will Wright, SixGuns and Society, de 1975, que ordenam mesmo esses elementos de modo a constituir uma matriz mítica, explicitamente elaborada a partir modelo de Lévi-Strauss (cf. Raphaële Moine,2002: 51-53). 

    A imagem desse contradição pode ser encontrada no plano histórico-civilizacional, na conturbada relação do pioneiro com o ianque, por um lado, e com o farmer do Sul, por outro lado. Como Diz Vianna Moog: “o nortista ampliava para Oeste o seu espaço vital; o sulista avançava para o Norte e para Oeste. O pioneiro, aborrecendo igualmente o Norte e o Sul, não via de momento outro recurso senão avançar sobre o território dos índios e dizimá-los às duas margens do Mississípi”  (s/d: 189-190).

    Mas  já não é exactamente esse o estado da matéria, a ser reelaborada pelo mito, que se  apresenta no território onde Shane toma partido. Os índios, ali, já são uma ameaça distante, para lá das montanhas. No entanto, a tensão verificada decorre desse “depois do índios”. Ainda para utilizarmos as palavras de um historiador da cultura americana, como Moog, podemos dizer que a formulação do mito subjacente à estrutura temática de Shane resulta de que “o pioneiro afastava-se da heresia de Calvino para cair na heresia de Rousseau abolindo o pecado original e a culpa, (transferindo-os) às sociedades em que o homem é compulsoriamente obrigado a viver a integral responsabilidade dos desacertos do mundo e dos males que o afligem” (s/d: 193).

    Ora, o mito, sendo um material cultural trans-semiótico ( ou seja, representado e representável em diversas linguagens, por não ter forma fixa ou primeira em nenhuma língua ou sistema de representação – podendo apenas atribuir-se-lhe, por vezes, uma forma historicamente mais antiga), permite que o utilizemos como referência simbólica, pauta de valores e imagens poderosa, mesmo quando a matriz narrativa considerada primordial ( a versão conhecida mais antiga) não é aspecto dominante do texto concreto, ou mesmo o sistema de construção narrativa singular (ou recorrente, em vários casos singulares) que pretendemos observar.

    Os atores Alan Ladd, Jean Arthur e Van Heflin posam para uma foto publicitária do filme “Shane” 

    Como diz Raphaële Moine, comentando a operação lévi-straussiana de definição do mito, fazê-lo é construir “uma estrutura” que “leva  à desnarrativização dos mitos, à sua destextualização, reduzindo-os a paradigmas de elementos isolados, entre os quais são buscadas as oposições pertinentes” (2002: 50) – mas, diríamos nós, construir esses elementos e paradigmas é encontrar os pólos imaginários e simbólicos que nos permitem perceber melhor e valorizar mais os universos construídos pelas ficções. 

    André Bazin, no texto já citado afirma: “É fácil dizer que o western «é o cinema por excelência», porque o cinema é o movimento” (p.136). Procurando estabelecer o valor dos elementos constituintes dessa acção que, para a opinião consensual  que ele analisa, são fundamentais, o estudioso francês enumera um conjunto que nos parece de reter: a cavalgada, a cena de pancadaria e a integração desses constituintes da acção num determinado quadro geográfico; desse quadro podemos ainda salientar alguns traços que constituem um cenário de reconhecimento: a cidade feita de casas de madeira, a pradaria, os rebanhos de bovinos que pastam, os condutores desses rebanhos.

    A estes elementos que o  crítico francês enumera, podemos acrescentar, por nossa conta, outros que nos parecem fundamentais para a nossa própria exposição sintética: os bisontes, os índios, a floresta quase virgem, os desertos, as armas pendentes dos cinturões dos vaqueiros, a cavalaria armada em movimentos de batalha.

    O realizador George Stevens (de chapéu e óculos) no set de filmagem de “Shane”.

    De facto, na paisagem, por detrás dos elementos que podem ser enumerados de modo estático, evocando um espaço idílico ou primordial onde os nossos sentidos se fixam e assenta toda a tensão dramática, surgem os sinais do conflito que pode ter duas dimensões fundamentais: a da ordem que assegura a paz e a da ameaça que pode originar o caos. O universo presente  recorta-se com base em configurações discursivas que, poderíamos dizer segundo Greimas (s/d: 73 – entrada: Configuração),  emergem como produções semióticas de  níveis discursivos primários: o da história e o do mito.

    No plano da história a paz e a ordem tem como equivalentes a civilização e o discurso jurídico; o espaço selvagem e os povos “pré”-históricos são a ameaça e o caos. No discurso do mito, no fundamento tópico que o alimenta, é o sistema da tradição fundado nos laços de sangue, a lei anterior à organização da cidade,  o que representa a ordem; a legislação escrita, o exército, a estrutura civilizacional e tecnológica  são a origem do mal. 

    O que incomoda Bazin, quando se refere, negativamente, a Shane (filme) como superwestern, talvez resulte mais do modo romanesco como o mito é posto em perspectiva, do que o facto de “a tese de Shane… ser o mito” (cf. citação de Bazin no início do nosso artigo). Ora a marca do romanesco não se evidencia, em Shane, apenas ao nível do enunciado narrativo (quer do livro quer do filme), mas enuncia-se, também, ao nível da narração, da própria marca autoral que o romanesco implica, sobretudo pelos traços de distância que cria entre o ponto de vista (anos decorridos, valores do quotidiano banal) e o herói vindo do horizonte distante e que a esse horizonte regressa (na memória do narrador ou no para lá das montanhas). Bellour, ao comentar o texto de Bazin que temos vindo a referir, toca no centro dessa mesma questão: 

    o western, que Bazin tão justamente chamava o cinema por excelência, constitui-se de maneira autónoma numa arte da tradição em que tudo, a repartição dos filmes por géneros, o desenvolvimento prodigioso da indústria, o aparente apagamento dos autores por detrás de  uma criação colectiva e das mitologias comuns, tudo isso dava o sentimento de um certo jogo… O western (…) aparece na aurora do cinema americano, quando a conquista do Oeste mal acabava de se realizar; e esse humor lúdico que em maior ou menor grau se anuncia nos filmes, na atitude do herói em relação à sua vida, estrepita na relação que o autor mantém com o seu próprio filme, objecto,  em certo sentido,  de uma aposta no real ainda próximo e numa tradição (1966: 15).

    Ora, julgamos que, hoje em dia, perdidos alguns dos preconceitos “estético-poéticos” que alimentavam a crítica dos anos 50 do século XX, observar a relação, ou mesmo a contradição, entre o cenário mítico convocado de modo dominante por algumas obras, e a sua reavaliação como matéria evocada na problemática do romanesco, sobretudo a que revela  a fractura entre o herói excepcional, quase celeste, e o universo da sociedade banal, do direito civil, não revela um pecado capital da actividade criativa.

    Brandon deWilde (1942-1972), interpretou Joey Starrett em “Shane”.

    Ao contrário, parece-nos que uma tal operação poética se revela, a essa observação crítica, extremamente produtiva para o redimensionamento teórico da “relação que o autor mantém com o seu filme”, problemática que parece ter sido considerada importante por Bazin, como o entendemos através das palavras de Bellour que acima citámos. Poderíamos perceber melhor o alcance e importância dessa operação, fazendo apelo à concepção de Jauss, segundo a qual a “experiência  literária do leitor” (neste caso, “a experiência cinematográfica ou fílmica do espectador”, também) se move no interior de um “horizonte de expectativas”. Assim, autores, leitores e espectadores necessitam, para fazer funcionar o sistema comunicativo das obras artísticas, de um

    “sistema de referências objectivamente formuláveis que, para cada obra, no momento da história em que ela aparece, resulta de três factores principais: a experiência prévia que o público tem género ao qual ela pertence; a forma e a temática das obras anteriores, das quais ela pressupõe o conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática, mundo imaginário e realidade quotidiana”  (Jauss, 1978: 49).   

    Talvez já não valha a pena insistir em todos os aspectos que, em Shane, são referências a um passado artístico-formal e expressivo  que lhe substancia a estrutura significativa. Limitemo-nos a sumariá-los segundo grandes tópicos: os antecedentes culturais e literários da valorização do pioneirismo, do desbravamento, da instauração da ordem e da glorificação do espaço aberto da fronteira; a valorização da figura do herói como praticante de uma demanda; o cenário em que os espaço civilizado e o território virgem se confrontam, valorizando-se pelo acentuar das suas características e dos elementos que o exemplificam; a segmentação do horizonte vivencial em três zonas fundamentais – o agora do conflito, onde a civilização se elabora, onde Shane tem de enfrentar os malfeitores/ o espaço aberto e livre, com o limite natural das montanhas, de onde Shane emerge e onde desaparece/ e o além, invisível, onde a tradição e o mito se misturam com a história, na vastidão da Nação.

    Ora, as determinações do género, segundo as quais os autores (romancista e realizador) fundamentam o seu discurso, tornam-se uma orientação para um público que tem das normas um conhecimento difuso, feito de aquisições culturais resultantes da repetição, não reflectidas. A forma e a temática constituem, também, uma sintaxe e uma semântica apreendidas da mesma maneira, estruturando um quadro de referências muito geral. O que fica em aberto, para outro sistema de relações, que é o reconhecimento da obra nova,  é a oposição entre a linguagem prática e a poética, e o mundo imaginário e o da realidade quotidiana; e, sobretudo no caso do cinema, que é o que determina o género, no que diz respeito ao western, o que se torna equivalente a linguagem prática e realidade quotidiana, é a produção do passado: de algum modo, esta acaba por substanciar a realidade histórica, o discurso real e mesmo banalizado, com que se diz a matéria reelaborada pela expressão artística.

    Assim, é exactamente o modo como o filme e o romance se singularizam, dentro do género e das restantes tradições de onde decorrem, que suscita a produtividade do género, da tradição formal e da temática. É porque Shana retoma o mito e as suas figurações centrais para as colocar nas representações de um quotidiano banal, que o confronto entre o herói e os malfeitores e, muito  especialmente, entre Shane e o pistoleiro contratado,  reformulam não apenas o “confronto entre bons e maus”, ou o “ajuste de contas”, segundo as regras do género, ou segundo sintaxes previsíveis.

    De algum modo, é o próprio horizonte mítico do western – tornado referência de grau zero, ou aquisição cultural estabilizada…e, portanto, “adquirida”, banalizada – que é reavaliado e reenquadrado. Ao contrário do que acontece com Ringo, em Stagecoach,  de J. Ford (1939), por exemplo,  o duelo não  integra Shane na cidade – expulsa-o para o além de onde veio. O conflito, que, por tradição, se centrava na defesa da comunidade contra estranhos ou fora-da-lei é, agora, interno à comunidade, e é um herói de passagem que o resolve. Pale Rider (1986), de Clint Eastwood, retomará essa tradição, quase numa “citação” directa de Shane.

    O espaço exterior à cidade é o da civilidade idílica, quase arcádica (sobretudo se pensarmos no conjunto de relações de ternura e mesmo de paixão em embrião, harmoniosamente resolvidas no pequeno rancho da família do narrador/Joey), sendo a cidade o palco das acções selváticas. Também são os pequenos ranchos que rodeiam a cidade onde se processa o quotidiano banal do trabalho benigno, opondo-se à ameaça do lazer preguiçoso e mesmo vicioso da cidade. E, para terminarmos este pequeno conjunto de observações sobre os aspectos característicos do género que são transformados inovadoramente em Shane, lembremos que o destinatário é incorporado, de forma muito criativa, na história – mais do que comparsa ou interveniente na acção, o narrador/Joey é o espectador in presentia.

    E esse traço poético de um novo modelo de enunciação, demarcando-se, no filme, como inovação dentro do género é, em muito, devedora ao facto de, antes de ser filme, Shane ter sido um livro no qual o narrador evoca não tanto os horizontes do Oeste, tal como ele existiu – mas os do western, tal como ele emerge numa memória encantada.

    Restaria dizer que o interessante, para nós, na abordagem do western sob a perspectiva de uma relação entre a literatura e o cinema, provém sobretudo do facto de, ao contrário de muitas outras grandes obras que estiveram na origem do cinema (D. Quixote, de Cervantes/Pabst, A Mãe, de Gorky/Pudovkin), os grandes momentos do género não terem assente a sua qualidade estética em obras literárias de reconhecido mérito cultural a servirem de “origem” ao argumento. Os textos literários, paraliterários ou escritos documentais  que estiveram na base de quase todos os grandes westerns não provinham de cânones culturalmente reconhecidos.

    A sua valorização não assentava, portanto, à partida, numa mais valia estética anterior, “originária”, que lhes servisse de caução ou auréola prestigiadora. Pensar o western como género narrativo poeticamente válido, em relação com a literatura, resulta de uma operação posterior, introduzida pela crítica, que procura olhar a linguagem da narrativa cinematográfica com os instrumentos conceptuais fornecidos pelas poéticas clássicas mais globalizantes (nomeadamente a de Aristóteles) e a própria teoria da literatura, como é entendida desde os formalistas russos (cf. Saunders, 2001: 8-12). Mas também é  motivo estimulante, para nós, no caso de Shane,  que uma criação romanesca, como o de Schaefer, tenha originado uma operação metapoética de tão interessante produtividade, ao desenvolver uma matriz narrativa, já poderosa no cinema, no campo romanesco que pouco ou nada a cultivava. 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa: 

    Schaefer, Jack, 1975 [1949], Shane, Bantam, New York

    Passiva:

    Bazin, André, 1961, Qu’est-ce que le cinéma ? III Cinéma et Sociologie, Cerf, Paris

    Bellour, Raymond, 1966, “Le grand jeu”, in Bellour,

    Raymond (org.),  Le Western, U.G.E-10/18, Paris  

    Dort, Bernard, 1966, “La nostalgie de l´épopée” , in Bellour,

    Raymond (org.), 1966, Le Western, U.G.E-10/18, Paris  

    Gluksman, André,  “Les aventures de la tragédie” in Bellour,

    Raymond (org.), 1966, Le Western, U.G.E-10/18, Paris  

    Greimas, J. A. e J. Courtés, s/d [1979], Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo

    Jauss, Hans Robert, 1978, Pour une esthétique de la réception, Gallimard, Paris

    Moine, Raphaële, 2002, Les genres du cinéma, Nathan, Paris                                                                            

    Moog, Vianna, s/d, Bandeirantes e pioneiros, Livros do Brasil, Lisboa

    Saunders, John, 2001, The Western Genre, Wallflower, London/NY


    [1] A data do artigo, recolhido em Qu´est-ce que le cinéma? Vol. III, é, de facto, anterior. Foi publicado no número dos Cahiers de Cinéma de Dezembro de 1955.

  • Clint Eastwood: os horizontes míticos em “High plain drifter” e “Pale rider”

    Clint Eastwood: os horizontes míticos em “High plain drifter” e “Pale rider”


    High plain drifter (1973) – em português, Os pistoleiros do diabo – e Pale Rider (1985) – em português, O justiceiro solitário –, dois filmes realizados por Clint Eastwood, têm, em comum com Shane (1953), de Georges Stevens, o grande campo de sentido em torno do qual as histórias giram: a chegada a um povoado quase isolado, geograficamente, e em crise social, de um herói enigmático e solitário – e a acção desse recém-chegado pela reposição da ordem, assente em valores transcendentes e míticos, relacionados com o para lá do horizonte que as montanhas circundantes traçam.

    A sequência da chegada do cavaleiro solitário, em Pale Rider (1985), depois do ataque da trupe de sicários do banqueiro, grande proprietário dos terrenos auríferos, contra o acampamento dos garimpeiros vivendo na precaridade, é a que mais lembra, ou evoca (levando mesmo a pensar numa citação), o filme de George Stevens, Shane (1953).

    Não é inicial, mas, sucedendo-se à cavalgada em grande parte filmada em picado, dos homens de mão de LaHood, compósito bando de “semi-mão-de-obra mineira”, “semi-malfeitores armados”, fica mais marcada toda a sua imponência de cavaleiro solitário, descendo pelas faldas, com destaque para a montanha que surge como o gigantesco limite de horizonte, ocultando todo o para lá da sua impositiva presença. Esta descida de uma altura que parece tocar o céu, opõe-se à anterior cavalgada dos malditos, que saem de uma floresta, vistos em plano geral, do alto, num ângulo a aproximar-se do picado, como se saíssem de uma caverna infernal.

    E isso é tanto mais evidente quanto a posição da câmara que acompanha o cavaleiro em traveling lateral ou de recuo, com pequenas variações focais, ora o apanha na posição angular horizontal, em planos médios e de conjunto ou, por vezes, em ligeiro contra picado: o ponto de vista da câmara situa-se, aparentemente, num nível inferior da encosta de onde o seu “olho”, a objectiva, em grande angular aberta para o limite do infinito, a montanha, capta o conjunto do cavaleiro, cavalo e porção da terra e da vegetação próxima do seu ponto de percurso e, por vezes, como que em pano de fundo, os pontos mais altos da falda estruturando um horizonte fechado, fazendo, por vezes, um pequeno recuo para acompanhar, de frente, o avanço do cavaleiro, outras, o plano médio é em ligeiro picado, com a câmara imóvel enquadrando o cavaleiro na sua movimentação para um destino, mirando-o por detrás, enquanto ele se encaminha para onde as palavras da adolescente clamando por auxílio, em salmo, parecem convocá-lo.

    O efeito dominante é, assim, o da pressuposição de um para lá dos picos, de um além de onde o cavaleiro desce, vislumbrados por efeito de uma forte iluminação, em que cavaleiro e cavalo já cobrem uma boa parte do horizonte e as faldas parecem um pano fundo próximo em que se enquadra, para acorrer à “chamada”. Fica bem patente como, a propósito do “cinema de Hollywood, e no western em particular, se pode dizer que o cenário da montanha funciona como um substituto da religião, um modo de introduzir uma dimensão espiritual secular” (Buscomb, 1998: 118) que pode articula-se, ou comunicar, com as regiões celestes.

    Sequência quase inicial, da descida e sequência final, a do duelo com os marshals, em Pale Ride

    A montagem pode ser entendida como simples construção de uma continuidade: primeiro aconteceu uma coisa, o ataque aos prospectores pobres, garimpeiros, na terminologia da actividade de prospecção artesanal, que se opunha à mais elaborada e de dimensão industrializante que os LaHood praticavam; depois, a oração da jovem Megan[1], quando enterra o cão que os assaltantes abateram, na sua bestial crueldade. A temporalidade, durante a prece, aparenta ser só marcada pela captação do passo do andamento do cavaleiro, em galope lento, e o salmo que Megan recita em montagem alternada: plano do cavaleiro/plano de Megan ajoelhada, alternando-se várias vezes, em repetição de imagens; o que tanto apela à sugestão de alternância de duas cenas ocorridas ao mesmo tempo, em lugares distantes; como de paralelismo, criando um plano transcendente, no qual, ao pedido de ajuda de Megan, se dá a aproximação de alguém que se sugere ser seu aliado ou adjuvante. Assim, a cavalgada do solitário responde à outra, colectiva, do bando, em paralelo, pela similaridade de movimentos para um destino, e pelas contrastivas diferenças em antíteses. Por outro lado, liga-se, num paralelismo modal e aspectualmente profético, à prece da ofendida, embora possa ter com esta uma simultaneidade temporal. O encontro apresenta-se como consequência, pelo menos na dimensão da justiça transcendente, em relação ao grupo de pistoleiros e como prolepse, em atendimento da prece, no que diz respeito ao encontro a realizar-se com a  jovem em busca de proteção.

    Comparando esta aproximação com a que Stevens apresenta no seu filme, já acima referido, diz-nos Fran Benavente:

    “Megan (Sydney Peny) a adolescente protagonista do filme, que ocupa a posição equivalente a Joe Starrett de Shane, caminha por um bosque brumoso que apenas deixa passar alguns raios e luz. Leva o cadáver do seu cãozinho nos braços. […] Do percurso em senda algo misteriosa, passamos para as mãos da rapariga, que acaba de enterrar o animal. […] O imaginário da tumba manifesta-se.A rapariga coloca um tronco de árvore como se fosse uma cruz, e inicia uma oração que assinala a falta, o vazio, que reclama uma presença. «Nas lendas orientais a cruz é a ponte ou a escada pela qual os homens sobem até deus (…); situa-se no ‘centro do mundo’ é a encruzilhada entre o céu, a terra, e o inferno» escreve Mircea, Eliade  (Tratado de história de las religiones. Madrid: Ediciones Cristandade, 2000, p. 429)./ Fala-se de milagre, Em seguida, o anelo, em forma de oração, desloca-se pela montagem, como um eco que ressoa nas paragens montanhosas. A oração sobre a tumba invoca uma imagem que aparece de forma evanescente, por encadeamento, como resposta à palavra formulada. A imagem do herói, ainda precária, ainda não se materializou completamente. Tal não acontecerá até que a oração termine. O «predicador» surge da paisagem; […] fantasma conjurado do próprio lugar do sepulcro, de onde jazem os mortos” (2017: 300).

    Os encontros processam-se numa ordem que dá primazia ao plano da factualidade mais banal, ou seja, primeiro, como qualquer viajante que vem de longe, o recém chegado dirige-se à cidade onde se depara com  o garimpeiro Hull, e alguns membros do bando de LaHood e, só mais tarde, ao visitar o acampamento, a convite de Hull, encontrará Megan cuja oração, como vimos acima, parece tê-lo chamado.

    De facto, a vinda do cavaleiro enigmático, parece ser convocada pelas preces da jovem habitante da aldeia de  prospectores humildes, numa montagem que não só sublinha a simultaneidade de aparição do ginete com a enunciação da prece, mostrando, ora Megan, ora o cavaleiro, como torna essa junção simbolicamente significativa, pois da parte mais longínqua do horizonte, em imagens que alternam com as duas séries anteriores, surgem as imagens luminosas do céu, cerrado de nuvens, antecedendo a chegada do cavaleiro[2].

    Depois do ataque ao acampamento quando Hull se dirige à cidade mineira para obter as coisas que faziam falta no acampamento, inclusivamente em resultado do assalto, quatro membros do bando que invadira a aldeia mineira, atacaram-no com cabos de machado em exposição na loja do retalhista. Para surpresa de todos, intervenientes e espectadores, é salvo pela intervenção do cavaleiro que usa um quinto cabo, disposto na  entrada do armazém, para travar os atacantes. Como reconhecimento Hull convida o desconhecido para jantar em sua casa.

    Quando se aproximam, a sua namorada, Sarah Wheeler, com quem coabita, numa relação a que poderíamos chamar pré-marital, escuta Megan, a sua filha, que lia, em voz alta, o livro bíblico do “Apocalipse”, também chamado “Livro da Revelação”. No momento em que ela pronuncia a visão do que continha o quarto selo — “And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him” (Book of Revelation, chapter 6, verse 8; King James Version – KJV)[3] — o cavaleiro misterioso, que nunca terá nome, aparece, sobre o seu cavalo, no enquadramento da janela perto da qual ela lê.

    Ghost riders in the sky, por Vaughn Monroe.

    “[…] Uma força, um certo desejo, atrai Sarah do exterior; olha pela janela esperando um advento.  A rapariga acaba a sua leitura no momento em que a sua mãe se chega à janela, atraída por aquele que está a chegar. […] No umbral [que forma a janela] aparece a figura do forasteiro como resposta à frase bíblica, recém pronunciada, . Dessa forma se aquilata o universo mortuório que acompanha o herói, o qual é designado directamente como «a morte»” (Benavente, 2017: 301).

    Quando o desconhecido muda de roupa, no quarto de Hull, este verifica que ele tem nas costas a marca de vários tiros, rodeando a região vitalmente vulnerável do pulmão e do coração. Aquele homem tinha, de facto, os indícios de poder “ter sido morto”, mas não dá explicações sobre isso ao anfitrião. Quem não o toma por aparição, mais ou menos numinosa, é Sarah. Antes o olha com uma admiração, misto de fascinada e temerosa, e, a entendê-lo dentro dos modelos bíblicos, podíamos ver o seu encontro, já antecedido por todo o simbolismo que envolveu a sua imagem e a sua chegada, como uma derivação do “Cântico do cânticos”[4], expressão, neste caso, do seu desejo carnal.

    Mesmo quando o vê um pouco depois, encontrando-se ele já lavado e envergando nova roupa, da qual fazia parte um colarinho de padre, ou pregador, ela aceita-o e venera-o como representante de  uma igreja (Preacher, epíteto que passa a ter o valor de seu nome próprio), mas mantém sempre um olhar eroticamente interessado sobre ele. Facto muito parecido com o que ocorre com a sua filha, ainda que, nesta, tudo tenha uma tonalidade mais mística, ou talvez, ingénua ou infantil. 

    Na sua tentativa de estudar a Bíblia do ponto de vista do crítico literário, Northrop Frye, ao procura apresentar o modo como os seus “elementos ergueram um enquadramento imaginativo ­- um universo mitológico, como eu lhe chamo – dentro do qual a  literatura Ocidental operou até ao século XVIII e continua, em laga escala, a operar ainda” (Freye, 1983: XI), abre-nos um campo teórico de indagações que, como acabámos de ver nos parágrafos anteriores, tem  um forte halo de intensificação semântica  no cinema e, em particular, no western, até finais do século XX. Tal como manteve na literatura ocidental, pelo menos até meados do século passado. Facto que nos é dado a ver em obras como as de Faulkner, de Dostoievsky ou de Martin du Gard (para dar exemplos alargados a toda a literatura Ocidental), mesmo quando a descrença generalizada numa ordem regida por uma transcendência divina se manifestava em representações que dramatizam essa perda mais ou menos, ou não a dramatizam de todo. Algumas obras de Steinbeck, como The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira cf. Apocalipse 14: 19-20) e In Dubious Battle, (Luta Incerta), cujos próprios títulos evocam esse enquadramento mito-ideológico, desde o texto antigo até ao elementos simbólicos e narrativos que são retomados em Paradise Lost de Milton  no século XVIII[5], remetem-nos para uma presença forte desse universo mitológico na cultura americana, na qual o western se integra, ainda que a posição dos autores seja de suspeição ou de dúvida relativamente aos tópicos que constituem artigos de fé.

    Um dos cronótopos mais fecundos que Bakhtine usa é o do idílio (Do grego eidýllion, «quadrinho», pelo latim idyllĭu-, «poema pastoril; idílio»), dentro do qual, por problematização da “perda”, se desenvolve, por exemplo, o romance de aprendizagem, em estreita relação com a narrativa pastoril, ou o romance regionalista. Não o é apenas, no entanto, pelo que permite circunscrever e determinar de tempo e espaço enquanto coordenadas do lugar, coordenadas intimamente ligadas às vivências assumidas como valores antropológicos e que a literatura incorpora ( “a adesão orgânica, a dedicação de uma existência a um lugar – a terra de origem – com os seus recantos, as suas montanhas, os seu vales, pradarias, ribeiras e florestas natais, a casa paterna” – Bakhtine, 1978,:367), que o conceito de idílio é produtivo. É, também, pelo seu jogo com outros cronótopos referidos por Bakhtine (o cronótopo da estrada, o do encontro) ou, por vezes, pensados a partir dos seus (como o do exílio, que podemos conjecturar, em relação de oposição, com o do idílio, projectando, sobre este, o do encontro e o da estrada) que nos encaminhamos, muitas vezes, para a construção teórica de algumas figuras caracterizadoras dos sub-géneros temáticos da literatura. (Jorge, 2010: 136)  

    Se recorrermos às propostas teóricas de Bakhtine, podemos dizer que a Bíblia impõe à cultura americana , com forte relevo no cinema e especial intensidade no western, a matriz de um cronótopo já de si complexo. De facto “a correlação essencial dos intercâmbios espácio-temporais” de que ele fala (Bakhtine, 78: 237) mantém uma permanente tensão entre as duas instâncias fundamentais: a espacialidade dos settelements, lugares  de assentamentos coloniais, pequenos povoados em torno dos quais se desenvolvia uma comunidade, quase sempre conduzida por uma ideologia cristã, que era a sua base ética e de  ordem social; e a temporalidade  da deslocação, da viagem, da travessia. Os índices do tempo, revelam-se em espaços, e os espaços, são medidos e percebidos segundo o tempo.

    A estrada dos pioneiros, por exemplo, tem como modelo, quase simbólico, a “pista de Oregon” com as suas caravanas, e como representação da motivação dos exploradores, a “corrida ao ouro” na Califórnia. Ambos os filmes de Eastwood estão relacionados com estas variantes do cronótopo da estrada, assim como com cronótopo do idílio, entendendo-o como aquele “em que se processa a adesão orgânica, a ligação de uma existência e dos seus acontecimentos a um lugar” e relaciona-se com o “recanto em que viveram pais e antepassados e viverão filhos e netos”. É claro que a sua junção nos dá a grande composição cronotópica do Western.

          Torna-se necessário esclarecer, sobre o cronótopo do idílio que este “micromundo, se sustem a ele mesmo” e, tal como noutros universos que podem ser considerados, estes espaços, no western, “não estão ligados a outros lugares” (cf. Bakhtine, 1978: 367). Pelo menos na aparência, ou numa certa restrição de dimensão do desejável, do modelo exemplar…e é na transgressão dessa regra que os westerns do modelo de Shane, têm o valor dinâmico, e a intensidade dramática. Porque eles consubstanciam, pelo modo como valorizam um dos elementos aparentemente ausente do idílio: a estrada, como trilho, ou rota.

    Reintegrando-o como nova instância, a do horizonte mítico dentro do idílio. Todos estes traços permitem delimitar, tendo em conta a importância composicional da variante, um subgénero, manifestação histórica e nacional do idílio, que é o povoado retirado do tempo histórico e que evoca, como espaço mítico, um universo exterior, de onde vêm os impulsos da mudança, e os agentes repositores da ordem. Podíamos chamar-lhe cronótopo do settelement ou dos assentamentos coloniais, opondo-o, por emparelhamento, ao que que enfatiza a pista, para a descoberta, ou a rota ou mesmo a corrida, para a ocupação ou a apropriação.[6]

    Como notam alguns estudiosos da narrativa cinematográfica popular, em grande parte, aquilo a que se chamou a cinematografia, ou a filmografia da Série B, uma das tensões que surge no confronto de valores, é a que assenta na divisão entre a “cartilha” pela qual se pautam os agricultores, ou garimpeiros pobres, enfim, todos aqueles que vivem do seu trabalho, e residem nos meios rurais, e os textos de lei que servem de referência aos habitantes da cidade: embora o registo codificado comum seja a Bíblia, as fundamentações evocadas divergem. Uma outra partilha de pauta de valores assenta na que existe entre os que sobrevivem em campo aberto (o tão evocado open range, dos criadores de gado, mas também dos vaqueiros e dos fora-da-lei), nos qual se confundem os grupos que vivem laborando num relativo nomadismo.

    O tipo de herói que temos aqui, prioritariamente, em consideração, a partir dos filmes de Eastwood, mas também o de Stevens, identifica-se com o grupo nómada, pelo seu modo de vida itinerante e independência relativamente a qualquer comunidade, mas assume a defesa dos valores humanos básicos (direito à vida, à liberdade, à dignidade), antes de mais, em grande parte os da LEI, a Lei vigente, emanada da sociedade civil no seu sentido mais amplo e, no limite, pratica um respeito pela transcendência religiosa, sobretudo relativamente aos princípios explícitos no discurso que dela emana (através do texto bíblico — Gospels ou Old Testament —, ou de outros discursos claramente decorrentes deste: a palavra dos padres, pregadores, entidades santificadas pelos colectivos a que pertencem). Daí o facto de estes heróis se identificarem, muitas vezes, com as entidades míticas da cavalaria celeste, presentes nos romances de cavalaria.

    A marca identificadora do espaço fechado, universo com limite no horizonte, é a cadeia de montanhas, em muito equivalente e parecida com a que fecha os horizontes da região onde se movem as personagens do filme de Stevens, Shane. No seu esforço aparentemente objectivante, de extrair toda a força alegórica da realidade sensível, numa procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, este tipo de narrativa faz variar os pontos de vista a partir dos quais “o referente” da paisagem surge, com o seu cerco de montanhas como “um «universo imaginário» uma versão singular do mundo” no fundo uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente” ficcional, captado pela objectiva se afirma como um universo fechado como uma realidade social e física “com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).  

    O filme de Stevens estrutura e fundamenta o seu horizonte histórico-cultural, sugerindo o além de onde Shane emerge e, no final, desaparece, como região mítica de quase sacralidade, aquilo que Mircia Eliade designaria por “as regiões superiores, inacessíveis ao homem, as zonas siderais,” que “adquirem os prestígios do transcendente” aonde “só chegam alguns privilegiados” e para onde “se elevam as almas dos mortos” (Eliade, 1978: 129)[7]. É preciso notar que nos dois westerns de Eastwood que aqui comentamos o justiceiro misterioso vem dessas altitudes remotas e regressa a esses espaços de ascensão, apresentando sempre certos sinais ou marcas que o ligam directamente ao mundo dos mortos, surgindo entre nós como aparições ou mesmo fantasmas.

    Esse além invisível, para lá das montanhas, surge, no cinema, através do cenário ostentado pelas panorâmicas e pelos planos de conjunto com grande ou extremamente grande afastamento focal. Isso deve-se, por certo, ao facto de o género, no cinema, rejeitar, por motivos ainda hoje justificados (a dominância da matéria específica icónica, em detrimento da verbal, que tende a ser substituída por aquela – por exemplo), o discurso ético-avaliativo e argumentativo que tão bem cabe no romance, mesmo que ele tenha como matéria lendária o justiceiro do Oeste, homem mais de acção do que de palavras, de suprema rapidez a disparar. Demonstra bem essa possibilidade o parágrafos final da obra de Schaefer: “He was the man who rode into our valley out of the heart of the great glowing West and when his work was done rode back whence he had came and he was Shane”  (150-151)[8]. O que o cinema traduz, na expressão de Stevens, por um longo plano de Shane, a cavalo afastando-se em direcção às montanhas, similar a e inverso plano inicial, em que se aproxima, vindo das regiões montanhosas. Assim fazem, também, os cavaleiros solitários dos dois filmes de Eastwood.

    Como diz Collot, num outro texto:

    “O horizonte é um limite de abertura, não uma vedação. Dá à paisagem os seus contornos e a sua aparência, mas, igualmente articula-a com o algures indeterminado; pelo que, recuando indeterminadamente, ele abre-a para o ilimitado. Se, por um lado, desenha uma fronteira, por outro lado fá-la permeável: o horizonte  dá ao lugar a sua identidade, mas ele coloca-o em relação com todos os outros, e, virtualmente, com o mundo inteiro, que é o “horizonte de horizontes” (Husserl)”.

    Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro, para espanto dos nosso olhos” (Collot,1989: 174) é o da epifania,  que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência, mas que, ao mesmo tempo, absorve pela força da sua presença. Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[9]. Este procedimento, que foi muito caro e Joyce, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, apresenta-os como reveladores do que que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca  traços emotivos e afectivos a ela ligados.

    Por esse procedimento, qualquer dessas aparições  era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito. Parece-nos evidente que este efeito de aparição (com o seu correspondente contraponto, a desaparição) resulta com muito maior facilidade no cinema do que no romance, por exemplo, embora, depois da afirmação estética e poética do cinema, muitos tenham sido os ficcionistas, como Dos Passos ou Faulkner, por exemplo, que procuraram produzir o efeito através da palavra, a partir do próprio Joyce.[10]

    Como já dizíamos, a propósito do filme de Stevens, há um efeito mítico de um herói carregado dos símbolos da sua própria plenitude, emergindo da Sierra Nevada  (cenário postulado, atendendo a que o universo diegético é a Califórnia, como em Shane eram as Montanhas Rochosas) e voltando a desaparecer nela, o que nos permite pensar a obra de Eastwood, tal como a do cineasta anterior, como um cruzar de todos os valores mito-poéticos da matéria relativa ao pioneirismo, e à fundação dos povoados, e os aspectos formais dos sub-géneros épico-narrativos (cf Jorge, 2005), como veremos melhor adiante.

    Um aspecto que se revela em ambas as obras, de Stevens e de Eastwood, é a estruturação de uma mensagem poética em que o Oeste se valida, como mito, pela evocação de um passado a que o herói pertence – e que, por essa pertença, só  se afirma plenamente como retorno potencial, ou mesmo putativamente, fantasmático. Essa  característica  é ténue, no filme de Stevens – ainda marcado pelo efeito de memória evocativa com os seus contornos retóricos de discurso verbal produzido pelo romance de Schaefer –,   mas que emerge com toda a força nos de Eastwoood. Aspecto que se torna muito mais evidente quando destacamos High Plains Drifter (O pistoleiro do diabo) de 1973. Se acrescentarmos a este cotejo comparativo, o que resulta do confronto  entre os sistemas de enunciação da narrativa, que apoia, pelo tipo de sujeito que a suporta essa dimensão mítica, a objectiva mecânica, e dos que resultam de enunciados verbais, torna-se-nos evidente que, esse mesmo dispositivo enunciativo, no filme,  como já o notara o próprio Saunders, e já por nós sublinhado no referido texto sobre Shane, sofre alterações que facilitam, ou quase apelam, para as sugestões do sobrenatural e do fantasmático, pela sobrecarga de presença sensível que as suas representações, mais ou menos fantasiosas, propiciam[11].

    Podemos reafirmar, com ele, que a entidade responsabilizada pelos valores éticos e epistémicos do filme é menos conotada como um Sujeito da verdade, notando que “a primeira pessoa narrativa da personagem do livro, se torna Joey” personagem dramatizada na mise-en-scène cinematográfica, o que,  “no filme, dá aso a uma perspectiva mais objectiva, mas, apesar disso, vemos os eventos através dos seus olhos e os ângulos da câmara asseguram que, como ele, olhemos para cima, para Shane, em muitos momentos” (2001:14), o que nos faz vacilar relativamente à fonte mais segura do discurso positivo e esclarecedor.

          Contudo, há uma mudança de quase 180º, na fundamentação e valorização ética e mito-religiosa, nos filmes de Eastwood de que vimos falando, dos heróis recém-chegados, de modo algo misterioso, sendo o seu comportamento, também, razoavelmente enigmático. Enquanto o herói de Stevens (nesse aspecto alterando mesmo, nos adereços e complementos talismânicos, o romance homónimo) é uma espécie de virtuoso cavaleiro que chega de um horizonte circundante e não domesticado, com um aparato de signos e talismãs que evocam o pioneirismo como uma missão de cavaleiro andante, vestido com um traje  que lembra os cavaleiros  sem mácula, dos romances de Chrétien de Troyes[12] não  faltando ao seu cavalo a gigantesca malha branca que sugere, nele, as míticas qualidades de um unicórnio, perseguindo um destino com inquebrantável perseverança; os heróis que Eastwood compõe ostentam os valores da justiça virtuosa, mas segundo um aparato ético mais próximo daquilo que as igrejas bíblicas tendem a apontar como marcas do diabo.

    Conviria, talvez, ver, neste, o recuperar de uma faceta do satanismo, de dimensão astral, no seu tom luciferino, em substituição do angelismo branco de que Shane está carregado. Shane pede bebidas sem álcool, no bar, ao passo que o Pregador, por exemplo, apesentando-se como tal, aceita bebidas alcoólicas “a partir das 9 da manhã”. Igualmente, o herói de High Plains Drifter (O Pistoleiro do Diabo), não deve nada ao angelismo seráfico, é brutal, bebe e é agressivo. Neste, a relação com o além é mais difusa, mas a sua presença vital, carnal e activa, manifesta-se sem negar as relações com o mundo dos mortos. No entanto, o registo é mais realista.

    A sua deriva arrasta-o, das terras altas, possivelmente de longe, dado que o título é o viajante das planícies ou terras elevadas, mas na planície estagnada junto ao lago de águas mortas, o seu centro de atracção é o cemitério, e a sua atenção fixa-se numa campa sem nome. No entanto, com ele vem a morte e a vingança, exercendo-se numa cidade junto ao lago, chamada Lago, e que tem, a circundá-la, complementarmente ao lago, uma cadeia de montanhas, de onde o vagabundo, o cavaleiro, errante, vem: dessas montanhas que, como diria Pierre Jourde, são “a forma telúrica por excelência; a terra elevada, o material terrestre colocado em relevo, em três dimensões, de tal forma que exaltam a sua espessura e a sua consistência”, impondo ao olhar “uma presença, concreta, compacta, que barra o horizonte e encerra o espaço” (1991: 58).

    Mas a característica do trilho de chegada do cavaleiro que vem das terras altas, não é, tão intensamente como em Pale Rider, a descida das regiões ignotas, embora elas também sejam ponto de origem, menos enfatizado do que neste último, é certo, mas presentes. É, sobretudo, o ponto de passagem, o cemitério já nos arrabaldes da cidade, junto ao lago.

    Na passagem por este lugar dos mortos, o cavaleiro avança lentamente, como que perscrutando as campas. A continuação da narrativa, nomeadamente as imagens de recordações ou pesadelos, podem ligar-se a estas imagens iniciais, bem como a sequência final, da partida do cavaleiro: ao passar no cemitério, o marshal anão, prepara-se para identificar uma campa sem nome, quando o cavaleiro misterioso se cruza com ele e, perante a perplexidade que este manifesta na expressão, o visitante, antes de pôr o cavalo em andamento mais rápido, diz-lhe que ele bem sabe qual o nome que deve estar na lápide:  Jim Duncan

    O trilho da demanda de Shane, recém-chegado a uma região de pequenos agricultores que colonizavam Wyoming, é, sem dúvida, o modelo dos dois filmes de Eastwood, nos seus traços gerais. Os colonos lutam contra os grandes criadores de gado, e o objectivo de Shane, ao envolver-se no conflito, é a tentativa de obter ordem e justiça, numa axiologia que, implicitamente, se assume como sendo de origem celeste. Este percurso é, praticamente idêntico ao do Pregador de Pale Rider.

    Após abater o bando de malfeitores, o cavaleiro desaparece no horizonte de onde emergiu – figurando assim uma harmonia entre o cosmos e a lei que parece reproduzir a conjunção entre a transcendência e a imanência que, numa perspectiva lukacsiana, por exemplo, seria o traço fundamental do herói épico (s/d[196…]66-67)[13]. A activação desse valor supremo, que parece pairar numa transcendência que só o herói sabe traduzir para a acção imanente, realiza-se pelo seu braço, tal como nos romances de cavalaria medievais, sempre do lado certo  do litígio, transformando a sua acção e o  resultado desta na esfera da harmonia cósmica como feito resultante da demanda.

    Mono Lake, Califórnia, palco de filmagens de High Plains Drifter.

    No caso do High Plain Drifter, a intriga difere ligeiramente, sobretudo na pormenorização da fábula: o herói chega para redimir, pelo castigo, a quase totalidade dos habitantes da cidade, e pela humilhação, os outros que, pelo seu silencia ou pela anuência, foram, cúmplices de um crime e de uma vivência de culposa ignomínia. É claro que a identificação, por fortes sugestões, nos sonhos maus do cavaleiro recém-chegado, com o marshal anos antes assassinado, torna a figura deste justiceiro muito próxima da pura fantasmagoria.

    E a sua justiça raia quase o rigor do fio da navalha: deixa matar os instigadores do assassinato do antigo agente da lei, pelos próprios assassinos deste, que, entretanto regressam da prisão para onde os tinham mandado forjando um delito que as autoridades estatais puniram; mata os assassinos com os mesmos processos com que eles tinham assassinado o marshal deixa uma censura e um aviso aos restantes cidadãos, que se cumpliciaram pelo silêncio. Para já não falar da sua enigmática intenção ao ordenar aos habitantes de Lago que pintem todos os edifícios da sua cidade de vermelho, tendo ele próprio pintado no marco com a designação da cidade, LAGO, colocado no caminho de acesso, um outro nome que cobre o original, HELL, com a mesma tinta vermelha.

    De facto, “quando tem uma conotação negativa, o vermelho cristão está quase sempre associado aos crimes de sangue e às chamas do Inferno” além de que “os teólogos” o associaram a “vários vícios” entre os quais se contam quatro dos pecados capitais, a saber, a “ira”, a “soberba”, a “luxúria” e a “gula” e, “mais banalmente” mas em decorrência do sistema erudito, “o vermelhos é associado a tudo o que lembra a violência, a devassidão, a traição e o crime” (Pastoreau, 2019a: 123). Ora é bom relembrar, a este respeito, que o grande código que está presente no western, mais do que em qualquer sistema artístico ou tendência narrativo-fabulatória, é a Bíblia: o”Velho Testamento” e os “Evangelhos”.

     Registemos, neste ponto, a quase enfatização do alegórico em High Plain Drifter, em detrimento do real – que. noutros aspectos, até parece cultivar –, no que diz respeito à recriação da cidade enquanto espaço edificado. Ela é tratada claramente como lugar de uma cenografia, ou mesmo como um plateau de filmagens. O recém-chegado usa-a para projectar os seus humores, sem qualquer consideração por qualquer dos habitantes, tratando-os como actores ou mesmo títeres.

    A cena do treino de tiro é bem exemplificativa disso, quando os figurantes humanos são emparelhados com os bonecos de palha. Por outro lado, exceptuando os culposos habitantes, com estabelecimento comercial ou funcionários da empresa de exploração mineiras, alguns residentes já idosos, a cidade é particularmente desértica, e parece não ter existência nos arredores. Não há crianças, não há mineiros, nem cultivadores de terrenos.

    Fran Benavente, numa apresentação que transcrevemos como recapitulação resumida da nossa análise, declara o seguinte:

    “Assim, pois, do passado surge uma violência transbordante, que deve ser exorcizada no presente, reduplicada e, em consequência desactivada. E, neste caso, essa reduplicação patenteia-se deste uma evidente encenação, desde a construção de um cenário. Monta-se todos um dispositivo para reeditar o momento do passado. Pinta-se o  povoado de vermelho, e o inferno convocado, no momento da sua morte, pelo representante da lei que fora assassinado, torna-se presente. Sobretudo  na noite, quando as chamas inundam tudo, e o inferno já se apresenta palpável. […] Assim se produz a reduplicação da cena original, a violência reescreve a violência. O final do filme estabelece o sentido da narrativa. Uma vez cumprida a vingança, uma vez saldada a dívida original, o forasteiro pode ir-se. O fantasma já pode ser nomeado. O nome que não tínhamos, ainda, conhecido, vem encher a imagem, e, agora, sim, está inscrito na lápide. O espectro pode descansar em paz e a comunidade pode voltar a reconstruir-se. A figura reingressa no reino fantasmal, pode voltar a desvanecer-se no horizonte, na mesma paisagem fluida que abre o filme” (2017: 295-297).

    O cenário citadino mais semelhante ao deste filme, que conhecemos, em westerns, é o de Warlock (1959) – em português, O homem das pistolas de ouro –, de Edward Dmytrick, mas o pequeno lugarejo cercado de colinas, tem actividade, há minas, pessoas que figuram como possíveis trabalhadores das minas, vaqueiros, que são, aliás, o grupo que causa problema, os comerciantes activos, um hotel a funcionar, com hóspedes visíveis e tudo isso. Coisa que não acontece no filme de Eastwood: quase todas as pessoas presentes num quotidiano em que não se observa qualquer labuta, são as que já existiam no tempo do marshal que foi morto, e que parecem estar ali apenas para penitência. A cidade de Lago parece apenas uma excrescência ao lado do cemitério, uma dependência deste que domina a  planície, ou uma sua extensão.

    Warlok, vista do alto da colina sobranceira, pelos marshall e acompanhante recém-chegados: o pequeno mundo, ou lugarejo…com a sua matriz de actividade fundamental, a mina, assinalado pelo fumo.

    O  complemento que o forasteiro  lhe dá, mandando os habitantes pintá-la de vermelho, torna-a ainda mais evidentemente alegórica, tomando-a como um pórtico ou uma antecâmara do Inferno (HELL, é o nome que ele escreverá sobre LAGO, na tabuleta que marca os limites dos arredores da cidade). Paul Simpson, numa breve apreciação do filme aponta para algumas linhas temática e de estruturação narrativa que são de considerar aqui: “um gótico sobrenatural que se tece em torno dos temas de High Noon, 1952, (O comboio Apitou Três Vezes)” de Fred Zinnemann, tomando-o como referência” (2006: 74).

    O que, de facto, nos faz reforçar a ideia que, desde Shane, pelo menos, o horizonte mítico incorpora várias fontes que estão na origem dos valores que foram sempre evocados como bases da construção da “América” (com o significado de USA): a fundamentação bíblica, a sagração dos pioneiros enquanto mitos, e a acumulação de arquétipos de figuração dos pioneiros, como civilizadores, construtores, sobretudo, de um estado de direito inspirado pelo “Antigo Testamento” e pelos “Evangelhos”. Para a iconográfica mitificante do pioneiro, ou peregrino[14] civilizador, muito contribuiu, como fonte, o western cinematográfico, razão pela qual as obras mais recentes tendem a citar amplamente os “clássicos” do género, sobretudo quando andam em torno das origens míticas e dos horizontes que se criaram em torno destas. Quer sejam elementos de difusão da doutrina quer seja os espaços de culto, de oração ou de cerimonial fúnebre.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

    N.D. Versão alargada de  uma comunicação aceite em 28 de Janeiro de 2020 para o congresso internacional Mediterranean Studies Association, prevista para Maio desse ano, mas adiada para data a confirmar.


    [1] O Pregador parece ter chegado em resultado da prece de Megan na qual ela cita o Salmo 23 da Bíblia (apresentamos o salmo completo, em português – que não é dito integralmente – e no qual Megan intercala manifestações dos seus próprios sentimentos: Salmos 23: “1 O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. 2 Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. 3 Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. 4 Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. 5 Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. 6 Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias”).

    [2] Podíamos evocar aqui, em complemento da  tentativa de configuração da figura do cavaleiro solitário, enquanto alegoria, a canção clássica do estilo country escrita em 1948, nos EUA pelo compositor Stan Jones, (Ghost) Riders in the Sky: A Cowboy Legend, normalmente designada apenas por Riders in the Sky: Letras: An old cowboy went riding out one dark and windy day/Upon a ridge he rested as he went along his way/When all at once a mighty herd of red eyed cows he saw/A-plowing through the ragged sky and up the cloudy draw/Their brands were still on fire and their hooves were made of steel/Their horns were black and shiny and their hot breath he could feel/A bolt of fear went through him as they thundered through the sky/For he saw the riders coming hard and he heard their mournful cry/Yippie yi ooh/Yippie yi yay/Ghost riders in the sky/Their faces gaunt, their eyes were blurred, their shirts all soaked with sweat/He’s riding hard to catch that herd, but he ain’t caught ‘em yet/’Cause they’ve got to ride forever on/ that range up in the sky/On horses snorting fire/As they ride on hear their cry/As the riders loped on by him he heard one call his name/If you want to save your soul from hell a-riding on our range/Then cowboy change your ways today or with us you will ride/Trying to catch the devil’s herd, across these endless skies/Yippie yi ooh/Yippie yi yay/Ghost riders in the sky/Ghost riders in the sky.

    Fonte: Writer/s: Stan JonesPublisher: Kobalt Music Publishing Ltd., Lyrics licensed and provided by LyricFind . Tradução: Instant Grammar Checker.

    Cavaleiros Fantasmas correndo no céu

    Um velho vaqueiro foi montar/em um dia escuro e ventoso/No céu, porém, a noite ficou/rubra num clarão/E viu passar num fogaréu um rebanho/com olhos vermelhos no céu/Um arar através do céu áspero/levanta a tração da nuvem/Suas marcas ainda estavam em fogo/e seus cascos eram feitos de aço/Seus chifres eram pretos e brilhantes/e sua respiração quente que poderia se sentir/Um relâmpago de medo atravessou/ enquanto trovejou através do céu/Ele viu os cavaleiros que vinham duramente/e ouviu seus gritos de tristeza/Yippie yi oh/Yippie yi yay/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Suas caras desoladas, seus olhos borrados/suas camisas embebidas todas com suor/Eles cavalgam forte para pegar aquela manada/mas ainda não conseguem alcançar/Porque começaram a montar para sempre/nesse nível acima no céu/Nos cavalos que bufam fogo/eles montam ouvindo seus lamentos/Enquanto os cavaleiros galoparam sobre ele/ouviu-se um chamada pelo seu nome/Se você quiser conservar sua alma/do inferno de uma equitação conosco/Então hoje mude suas maneiras de ser vaqueiro/ou connosco você montará/Tentando coletar o rebanho do diabo através destes céus infinitos/Yippie yi oh/Yippie yi yay/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu” (vd. aqui).

    [3] “And when he had opened the fourth seal, I heard the voice of the fourth beast say, Come and see. And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him. And power was given unto them over the fourth part of the earth, to kill with sword, and with hunger, and with death, and with the beasts of the earth.” Revelation 6:1-17 KJV (King James Version).

     Numa versão portuguesa podemos ler o parágrafo versicular da abertura do quarto selo: “E, quando abriu o quarto selo, ouvi <a> voz da quarta criatura, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo verde*, e o quem se  senta em cima dele tem por nome morte; e o Hades seguia atrás; e foi-lhes dada autoridade  sobre a quarta parte da terra, para matarem  com espada, e com fome, e com morte, e por intermédio as feras selvagens da terra” (Bíblia, vol II: 569; Tradução de Frederico Lourenço).

     *A cor do cavalo é designada de várias formas: no “Apocalipse” 6:7,8, da tradução Almeida Corrigida, aparece o termo amarelo; Pale em inglês, amarelo, em português (as legendas portuguesas do filme apresentam-no como esverdeado…o que corresponderá, eventualmente à designação verdâtre, a partir de alguma versão francesa, correspondendo, em geral, a várias versões francesas que se refiram ao “Apocalipse”; sendo outra possibilidade da designação alternativa, portuguesa – ou francesa – dada nas legendas do filme, o termo glauco). Numa nota feita para o versículo 6.7, Frederico Lourenço acrescenta: “não sendo, é certo, a cor habitual dos cavalos, a palavra «verde» (klôrós) poderá talvez significar aqui «pálido» (p.569). Pode-se pensar na coloração atribuída aos cadáveres dado que o animal é cavalgado pela morte. Esclarecedoramente, escreve Michel Pastoureau: “Aquoso, viscoso, não saturado” é um “verde negativo” que “é também por vezes um esverdeado. A cor não é, então, viva nem pura, antes acinzentada, mortiça, esbranquiçada. Na imagens como na realidade, essa tonalidade esverdeada  – que o latim medieval exprime pelo adjectivo subvirdis – é sempre inquietante, se não mortífera. É a cor do bolor, da doença, da putrefacção e sobretudo das carnes decompostas. É também por isso a cor do cadáveres e, por uma relação analógica, tão habitual na Idade Média, a cor das almas do outro mundo, que deixam o país dos mortos para virem à terra atormentar os vivos e o seu direito à vida eterna” (2019: 122-123).

    [4] “Voz de meu irmãozinho! Eis que ele chega, saltando nas montanhas/ pulando nos montes,/saltando sobre as colinas/Semelhante é meu irmãozinho à gazela/ou à corça de veados nas montanhas de Baithel,/Eis  que ele está de pé atrás do nosso muro/por detrás do nosso muro,/Espreitando pelas janelas,/Espreitando pelas persianas” (tradução de Frederico Lourenço, Bíblia, vol IV, Tomo 1 2018: 63).

    [5] Verso 104 [p.6].

    [6] Rio Vermelho (em inglês: Red River), 1948 western, dirigido por Howard Hawks e Arthur Rosson, podia ser um bom exemplo dessa amálgama, de actividades nómadas mais ou menos respeitadoras dos valores humanos básicos, religiosos e legais.

    [7] Esta visão pode ser completada pelo que Eliade nos diz, na mesma obra: “[…] a montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam nos dessas montanhas – míticas ou reais –situadas no Centro do Mundo, visto que a montanha sagrada é um […] Axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo […]” (1978: 51).

    [8] “Ele foi o homem que cavalgou  até ao nosso vale, vindo do coração do imenso Oeste cintilante, e quando acabou o seu trabalho regressou ao lugar de onde tinha vindo e ele era Shane”.

    [9] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, com defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado  por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV – Tradução nossa, CJFJ: “Stephen explica, em Stephen Hero que a apreensão da beleza envolve o reconhecimento da integridade, plenitude, simetria e esplendor. Aqui ele aproxima-se da estética de Gerard Manley Hopkins e da sua filosofia de haeccitas (‘thisness’ – [‘istismo’]). Joyce demonstra a maneira pela qual o objeto contemplado é revelado: a sua alma, seu “quêismo”, salta-nos de sob a cobertura da sua aparência. A alma do objeto mais comum, cuja estrutura é  ajustada deste modo, parece-nos radiosa [sublinhado nosso]. O objeto atinge a sua epifania. (cf. Stephen Hero, capítulo XXV).

    Cf tb. Bernard Richards, in `The English Review’.

    O conceito aparece  menos explicitado em The Portrait of the Artist as Young Man, 1916.

    [10] O final do conto, “The Dead” do livro Dubliners, p. e. com a quase fantasmagórica percepção da presença de um morto na sua evocação. O início do romance Sanctuary 1931, que, muitas vezes, quase parece  o texto de de uma planificação cinematográfica, é o seguinte: “From beyond the screen of bushes which surrounded the spring, Popeye watched the man drinking. A faint path led from the road to the spring. Popeye watched the man a tall, thin man, hatless, in worn gray flannel trousers  and carrying a tweed coat over his arm – emerge from the path and kneel to drink from the spring.” — 1965 p. 5, Penguin/Modern Classics, Midllesex,  

     “Por trás do biombo formado pelas moitas que cercavam a nascente, Popeye observava o homem que bebia. Mal definida trilha levava da estrada à fonte. Popeye vira o homem – sujeito  alto, magro, sem chapéu, metido em surradas calças de flanela cinza e tendo no braço o paletó de tweed –, emergir da trilha e ajoelhar-se para beber”. — Santuário / William Faulkner; tradução de Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

    [11] É claro que se joga aqui, com uma conceptualização que sugere que a fantasia (Phantasie*) com reforço fantasmático pode apelar para a aparição assombrada, ou simplesmente assombração (Phantom*), que, segundo a teoria freudiana (em textos como “Le créateur littéraire et la Fantasie” — in Freud, 1985: 29-46) são efeitos com que jogam persistentemente os ficcionista mas que se destacam, em toda a dimensão da sua ambiguidade, nos filmes de Eastwood, mesmo quando não fazem desse tema uma matéria central da suas história como é ocaso dos dois filmes em que aqui enfatizamos. Mas igualmente noutros, como The Outlaw Josey Wales (O Rebelde do Kansas), 1976, o tema do regresso do mundos mortos ou o da inexplicável evanescência (Josey Walls “morre” segundo os registos que os rangers tomam, para fazer constar no estatuto civil do perseguido    fora-da-lei), estão presentes, ainda que num registo mais realista.

    *Cf., p. e., para mais amplo esclarecimento, Mardem Leandro Silva, (2014: 41-42) in: “[…]fantasia se refere à imaginação, cenário imaginário e 42 representação, tal como Freud a faz valer. E para ser exato, o termo alemão que Freud utiliza é Phantasie, que em português é traduzido e dicionarizado como fantasia. Em francês, o Phantasie é traduzido como fantasme e, como fantasme, possui os mesmos sentidos que fantasia em português. O termo fantasma em alemão não se traduz por Phantasie, mas sim por Phantom, e a significação também é bem distinta, se refere a espectro e a algo que assombra. Em francês, fantasma se traduz por fantôme e segue a mesma linha de significação. Em Freud (1919/1996l), o termo Phantom aparece no texto Das Unheimlich, em português, O Estranho. Nesse texto, o campo semântico do familiar (heimlich) permite inferir que se trata de “[…] um lugar livre da influência de fantasmas.” (p. 243). Ora, se o heimlich não seria habitado por fantasmas, o unheimlich poderia ser pensado como o lugar da própria influência do fantasma? Freud não se ocupa dessa articulação, para ele, o conceito de fantasia era suficientemente eficaz para lidar com a problemática tanto clínica quanto teórica.”.                                                                                                                                               

    [12] Poeta/ficcionista francês, do séc. XII, autor (possivelmente a partir de versões orais das tradições, por vezes designadas “matérias”, bretãs e celtas) das mais conhecidas narrativas do Cavaleiros da Távola Redonda. É provável que nos Estados Unidos essas narrativas fossem mais divulgadas pela versão que aparece em Le Morte d’Arthur ou Le Morte Darthur,  escrito, no século XV, pelo inglês Thomas Malory.

    [13] Na edição indicada é recomendável, para um melhor esclarecimento da matéria, a leitura das páginas de 61 a 76.

    [14] Usamos o termo no seu sentido mais amplo, obviamente: o que atravessa terras desconhecidas ou a elas se dirige.

  • O melodrama amoroso: entre o gótico, o negro e a novela romântica

    O melodrama amoroso: entre o gótico, o negro e a novela romântica


    Comecemos com uma epígrafe extraída, parafraseadamente, de uma das autoras matrizes da matéria aqui em causa:

    “É uma verdade universalmente reconhecida; qualquer homem de boa fortuna necessita de uma esposa” in Orgulho e Preconceito, de Jane Austen,

    Enquanto uma vertente, mais virada para os acordes negros do melodrama[1], escolhe os símbolos marcantes do universo melancólico e, mesmo, de pendor trágico, como acontece com Poe, que, “pensando cuidadosamente em todos os efeitos artísticos costumeiros”, achou “que nenhum tinha sido tão empregue como o refrão” dependendo, para o seu efeito da “força da motonia” (2004: 40); outra parece inspirar-se francamente na narrativa picaresca e na sua evolução para o Bildungsroman ou, seja, aportuguesando o conceito, romance de formação (ou de aprendizagem, ou de educação…todos esses termos já têm sido empregues e usamos formação por nos parecer o de termo de sentido mais amplo) e tem, como grande modelo literário para as comic strips, não o romance de Johann Wolfgang von Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister [2] (Wilhelm Meisters Lehrjahre) mas as histórias romanescas de Dickens, como Oliver Twist.

    Embora o seu animal emblemático seja o corvo o qual dá nome ao poema que procura apresentar na sua construção, passo a passo, a fórmula encontra-se muito apropriada à história de Annie: logo no título e subtítulo o termo órfã, que volta a ser repetido mais duas vezes em duas das quatro vinhetas da primeira tira da história, com a sua “ênfase prolongada da vogal” nasal ressonante e não o “ ‘o’ longo como sendo vogal mais sonora em relação com o ‘r’ como sendo a consoante mais reveladora”, sem deixar de ter ao mesmo tempo muitas das modalidades de melancolia de “’nevermore’”… e, é claro, onde a história de Annie envereda claramente pelas pinceladas góticas do melodrama é no modo como a pequena heroína nunca se aproxima verdadeiramente da extrema beleza almejada por Poe: “a morte então de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tópico mais poético do mundo” 2004: 41-42). Mas desenrola-se, inversamente, no melodrama em pequenos suspenses que, quase sempre formam uma peripécia entre o picaresco e o carinhoso. Não tenhamos dúvidas que Dickens, por exemplo, é um dos grandes inspiradores de tais histórias quadrinizadas, de gosto popular.

    Por outro lado, numa outra variante da primeira vertente acima descrita, sobretudo atenta à juventude mais adulta, amor e casamento são a referência temática mais vulgarizada pelo entendimento imediato dos leitores de narrativas sentimentais[3] consideradas populares pelo favor generalizado que recebem, de um público minimamente alfabetizado, sobretudo feminino que, no entanto, enquanto efabulações de amor são mais complexos do que se diria à primeira vista.

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    Menosprezadas frequentemente, com alguma razão, por explorarem um erotismo exibicionista, num jogo de revelação, sugestão e elipses muito elaborado, à vezes narrativamente gratuito por, em quase nada, contribuir par o funcionamento cardinal, a que acima nos referimos, e serem muito pouco importantes como índices para a construção da diegese, apresentam-se sobretudo como elementos de consumo complementar, estímulo suplementar, ou para manifestar abertura e ousadia na compreensão da dimensão erótica do amor.

    Embora por esses aspectos, tais obras sejam consideradas leituras de lixo, os relatos de entrecho romanesco-sentimental provêm de duas importantes tradições literárias – a narrativa ou novela sentimental e o romance. “Embora o casamento entre a heroína e o herói seja mais frequentemente o objetivo da história” como lembra Neylon, “é o casamento do modo e o meio que tornam as novelas sentimentais únicas. Na definição do romance popular, devemos analisar o modo [características da história que diferenciam uma novela sentimental de outros géneros] bem como o meio [características do romance].

    Segundo a autora citada, “histórias contendo elementos sentimentais (“romantic”) surgiram em todas as gerações e culturas”. Vários escritos  da Babilónia e do Egipto[4], contêm histórias de amor e paixão. Mas a diferença entre uma história com elementos “romantics” e um romance não é fácil de estabelecer, sobretudo desde que os grandes valores do realismo e do naturalismo dominaram o nosso entendimento do discurso narrativo, incluindo a própria BD.

    No século XVIII, Pierre Daniel Huet, bispo de Avranches, ainda podia sustentar com credibilidade: “não considero que o romance  seja mais do que ficções de aventuras amorosas, porque o amor tem de ser o principal assunto… chamo-lhe ficções para os distinguir das histórias verdadeiras; e acrescento aventuras amorosas porque o amor deve ser o principal assunto ‘romantic’ [“we esteem nothing to be properly Romance but Fictions of Love Adventures … I call them fictions, to discriminate from True Histories; and I add, of Love Adventures, because Love ought to be the Principal Subject of Romance ”]  (in Ioan Williams, 1970: 46). 

    O romance popular, nome que podemos dar ao conjunto de narrativas com alguma extensão, que podem ir das poucas dezenas às várias centenas de páginas, em que o modelo da narrativa ou novela sentimental se revela central, apresenta variantes que vão da narrativa humorística e picaresca à novela de aventuras, com entrecho amoroso entrecruzado com a viagem, a pirataria e a acção violenta, é herdeiro de vários géneros.

    Ele é, de modo evidente, um produto da polifonia, no sentido que Bakhtine dava ao termo no seu estudo sobre Dostoievski, de elementos literários e culturais  de vários géneros, pois compartilha características de relatos mistério, de suspense, de descrições ou sugestões eróticas, aventuras e outros géneros narrativos; no entanto, pode ser diferenciado desses géneros pelo fato de que a história central não é o mistério ou aventura, mas sim o romance entre o herói e a heroína[5].

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    “O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros). Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor. Os géneros introduzidos no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade linguística e estilística. Porém, existe um grupo especial de géneros que exercem um papel estrutural muito    importante nos romances, e às vezes chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco. São eles: a confissão, o diário, o relato de viagens, a biografia, as cartas e alguns outros gêneros. Todos eles podem, não só entrar no romance como seu elemento estrutural básico, mas também determinar a forma do romance como um todo (romance confissão, romance-diário, romance epistolar, etc.). Cada um desses géneros possui suas formas semântico-verbais para assimilar os diferentes aspectos da realidade. O romance também utiliza esses gêneros precisamente como formas elaboradas de assimilação da realidade” (Bakhtine, 1978: 141).

    É por intermédio de elementos como os géneros, que “servem de clichés externos”, que o escritor dialoga com a história, que estabelece o terceiro (não só o que ouve, mas também o que é ouvido pelo seu discurso), nos horizontes em que o seu discurso é parte de um diálogo que mantém com a sua época. Por um lado, tem em conta o já dito, o modelo dos outros discursos, aos quais responde, que se revitalizam pela resposta que lhes dá.

    Por outro lado, modera, no seu próprio discurso, o que pressupõe de resposta por parte daqueles que escutam a sua intervenção no diálogo, como leitores, como ouvintes, como espectadores. Ora, a praça pública na festa carnavalesca é o modelo mesmo que a cultura popular oferece do diálogo a três: assim como ninguém fica excluído do riso, quer o burlado, que o burlador quer o espectador, também ninguém fica fora do diálogo: nem os dialogantes nem o ouvinte (ou o leitor, nos modelos historicamente decorrentes da praça pública e da festa, como os diálogos socráticos, os simpósios, as farsas populares, a paródia). 

    Assim, a hipótese de Iris Zavala merece ser considerada, pelo que abre de perspectivas sobre esta questão, quando afirma: “O que deve examinar-se […] é a compreensão do dialógico […] como uma estrutura de conhecimento, vinculada à organização situacional sistemática do discurso, […] porque o seu modelo triádico garante um elemento poderoso na evolução genérica e no estilo, uma vez que o ouvinte é o participante sempre presente num discurso interno e externo” (1991: 163).

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    Para este processo em que, segundo Zavala, a consciência é vista historicamente (p.163), Bakhtine, segundo a mesma autora, terá seguido os estudos dos retóricos clássicos de Port-Royal sobre a ironia, sendo esta, de acordo com eles, produto do jogo de três níveis na produção do discurso: os dois primeiros produzem o efeito do sentido em conflito, mas o terceiro não só se apercebe desse efeito, como gera um efeito resultante da sua situação dramática no lugar da recepção. Não que escape ao alcance da sua ironia, mas porque se apercebe, atingido por ela, que “também ele” faz parte do mundo que lhe surgia, num primeiro momento, como espectáculo, ou como parte interessada num debate que, à partida, lhe poderia parecer nada ter a ver consigo (cf. Zavala, 1991: 164-165).

    Este modelo de compreensão do discurso, a que Zavala chama epistemologia do «terceiro» através do qual se desenvolve um modelo histórico-social da comunicação, postula o terceiro como o próprio espaço do entimema, enquanto “inarticulado” – mas, em nosso entender, ao mesmo tempo, como a “opinião de todo o mundo”. Ou, do ponto de vista estético, esse terceiro pode ser entendido como o outro que se coloca como tema, eventualmente o herói que o autor recria a partir dos dados da tradição genológica e que pode ser designado por sujeito do enunciado (cf. Zavala, 1991: 167). Ou ainda, se atendermos à dimensão histórica, o terceiro, poderá ser visto, segundo a mesma autora, como o acontecimento (a publicação do livro, a emergência do discurso como demarcação ou escândalo, a polémica estabelecida, a permanência da obra na memória cultural) enquanto facto plural do discurso, aquilo que lhe abre o sentido no intercâmbio social (1991: 171-174).

    Este não dito da verdade, que inclui o discurso (ou, nos tempos modernos, o cauciona, como verdade detida pelo poder) em horizontes onde se revela o sentido desse mesmo discurso, é conceptualizado em duas dimensões: uma que Bakhtine formula através do termo ideologema, desde os seus primeiros escritos; a outra que remete para uma alteridade ampla, que Zavala destaca (1991: 205), citando Bakhtine, como o entimema social. Ambos os conceitos foram utilizados por Jameson.

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    O primeiro praticamente é utilizado segundo as propostas do autor soviético. Através dele, simplificando muito a questão, enuncia-se a afirmação temática da obra ou de cada elemento temático, constituindo o seu (ou os seus) horizonte(s) ideológico(s), a entrar em diálogo (concordância ou conflito) com outros horizontes (perspectiva de uma personagem, de um acontecimento, de uma situação vs. opinião de uma tradição, de uma personagem similar de outra época, de um leitor posterior) (cf. Bakhtine/Medvedev, 1978: 21-22; Zavala – in Reys, org., 1989: 102). No ideologema expande-se, também, a questão do cronótopo, pois é aí, em nosso entender, que ele melhor se enquadra.

    Ao contrário, o entimema social, ou a noção que envolve a ideia de comunidade semiótica (cf. Bakhtine/Volochinov, 1977: 35-45), permite um desenvolvimento dos estudos literários, em Jameson, em franca comunhão com os estudos culturais, através da reformulação que o autor americano dá, ao propor o conceito de inconsciente político. Através deste conceito, Jameson permite-se pensar os termos do imaginário segundo duas séries de valores: os da classe dominante e os dos grupos secundarizados ou marginalizados.

    Como a prática de hegemonia separa o privado (construindo o domínio do psíquico como o da mente, desligada do corpo) do público, rejeitando os valores das classes baixas como meramente materiais e corpóreas, os sistemas de representações recorrem aos elementos do imaginário que partilham, porque este funciona como material semiótico híbrido, sem sentidos pré-definidos. É o uso que cada indivíduo lhe dá, dentro dos valores da sua classe, que lhe gera um sentido.

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    Em consequência disso, a “exclusão  [praticada pelas classes no poder, entenda-se] dos outros grupos e classes na luta pela conquista da identidade própria, aparece como um dialogismo especial, um agonismo de vozes – às vezes, até, sob a forma de argumento [onde o entimema se revela como a verdade que é o indiscutível do poder, aquilo que não necessita de ser expresso para se tornar a imagem da verdade última que não se sente obrigado a exprimir as asserções pressupostas pelos interlocutores ─ de algum modo, o ideologema em que assenta a sua imposição de verdade ] ─ dentro do imaginário que a classe em questão partilha com os grupos que exclui. A própria acção dirigida para construir a singularidade de uma identidade colectiva é, simultaneamente, produtora de heterogeneidade inconsciente, com a sua variedade de figuras híbridas, soberanias em competição e exigências exorbitantes” (Stallybrass & Withe, 1986: 194).

    Já se vê que, dentro destas perspectivas assim abertas, os estudos que privilegiam uma focagem assente nas elaborações do imaginário para o seu entendimento da literatura  –  posições teóricas ortodoxamente freudianas, concepções do imaginário como estruturas antropológicas, na via de Durand, ou como arquétipos ou mitos, segundo Durand ou Frye – podem entrar em franco diálogo com as propostas bakhtinianas para a construção de modelos de compreensão do fenómeno literário, ou de exploração das relações entre a literatura e outros fenómenos culturais e artísticos.         

    O modo “romântic” é mais do que uma história com explosão de afecto e emoções. O objetivo da história deve ser o romance em si. No entanto, romances populares exigem mais do que o amor como tema central. A heroína e o herói não podem estar felizes no amor e trabalhando para resolver um mistério juntos. Desafios e obstáculos devem disputar a união feliz. Mesmo que o romance contenha elementos de mistério, os obstáculos para resolver esse mistério não podem ser o foco principal.

    Os obstáculos entre a heroína e a união do herói devem permanecer centrais na história. John Stevenson afirma que “O que exigimos em uma história de amor é uma atração e um obstáculo, e esses dois princípios fundamentais de construção podem ser honrados de várias maneiras.” Os romancistas precisam “criar desejo trazendo casais adequados para a proximidade e, em seguida, sustentar esse desejo, encontrando razões plausíveis para atrasar sua união” (1990: 110) A heroína e o herói devem ser desafiados e trabalhar para sua união.

    Escritores de “romance” (narrativas românticas) podem usar uma variedade de subtramas para entrelaçar” com a função cardinal “dessa luta, mas, no entanto, a luta na relação emocional entre a heroína e o herói deve reinar suprema. Na verdade, parte do design do romance, e sua coerência como forma pode estar na justaposição de ambos os elementos (1990: 61). A ideia de Freedman de projeção externa e interna é muito importante em termos do que os romances fazem. Os romances definem a cena e descrevem personagens, lugares e situações (dimensão externa). Ao mesmo tempo, os romances permitem que o leitor entre em uma ou mais mentes dos personagens para entender seus pensamentos e emoções (dimensão interna). A capacidade de ver a história por fora e por dentro torna a história mais realista e pessoal para o leitor.

    O casamento do modo e do meio define os parâmetros do romance popular. Sabemos que nossa heroína e herói sofrerão com desafios e obstáculos à sua união. Eles podem estar tentando resolver um mistério ou escapar à captura, mas sua luta emocional permanecerá central. Seremos capazes de nos identificar com eles e suas situações através da representação realista de cenas e diálogos. No final, sabemos que nossa heroína estará feliz em se unir ao seu herói de uma maneira que os eleve. Pode-se imaginar no fascínio de um gênero onde os leitores sabem que o resultado sempre será a união harmoniosa da heroína e do herói. Talvez no caso de romances populares, é realmente a jornada e não o destino que mantém os leitores lendo.

    Em A família, Sexo e Casamento de Lawrence Stone na Inglaterra, 1500-1800, Stone afirma que “a Inglaterra se afastou de uma maneira de pensar sobre o casamento que era amplamente dominado pelo interesse (ou seja, interesses familiares, muitas vezes financeiros, e com pouco respeito pelos sentimentos dos futuros companheiros) para um que era baseado no afeto mútuo de marido e mulher” (in Stevenson, 1990: 115). Embora essa mudança cultural tenha afetado a forma como mulheres e homens se sentiam sobre o casamento, isso não aumentou o poder das mulheres dentro do casamento. As mulheres ainda eram muito sujeitas à tagarelice e à valorização dos caprichos.

    A organização Romance Writers of America concorda que a história central de amor no romance “diz respeito a duas pessoas se apaixonando e lutando para fazer o relacionamento funcionar… O conflito no livro centra-se na história de amor… O clímax do livro resolve a história de amor” (Romance Novels – O que são?). No entanto, eles também estipulam que para um romance ser qualificado como romance popular, ele deve ter “Um Final Emocionalmente Satisfatório e Otimista – Romance novela termina de uma maneira que faz o leitor se sentir bem.

    Romances são baseados na ideia de uma justiça emocional inata – a noção de que as pessoas boas no mundo são recompensadas e pessoas más são punidas. Em um romance, os amantes que arriscam e lutam um pelo outro e seu relacionamento são recompensados com justiça emocional e amor incondicional.” (Romance Novels – O que são?) É na exigência acima que romances populares diferenciam ainda mais.

    E esse é um dos procedimentos narrativos que a dupla Simon e Kirbi souberam aproveitar. “Romance Jovem” – O Melhor de Simon & Kirby’s Vol. 1 – 3 (2012). Young Romance é um dos títulos mais antigos da DC Romance, e que a DC comprou para aumentar sua participação no mercado no gênero romance. A certa altura, os títulos que não eram de super-heróis dominaram o meio, e Young Romance representou parte do domínio de outros gêneros, principalmente, neste caso, o gênero romance. Young Romance é uma série romântica de banda desenhada criada por Joe Simon e Jack Kirby para a Crestwood Publications imprint Prize Comics em 1947. Geralmente considerada a primeira história em quadrinhos de romance, a série correu por 124 edições consecutivas sob a marca de Prêmio, e outras 84 (edições #125-208) publicadas pela DC Comics depois que Crestwood parou de produzir quadrinhos.[6]

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    [1] Embora algumas semelhanças existam entre as narrativas góticas, românticas e pré-românticas, designadas pelos franceses por roman noir, e as narrativas policiais hard boiled, sobretudo por, nas versões cinematográficas e mesmo de BD (veja-se a série Sin City, por exemplo), as tintas contrastantes de claro escuro e a representação asfixiante do espaço se ter tornado marcante, sobretudo por herança do expressionismo alemão, acabando por tingir o policial literário com as mesmas marcas de “família”, convém não dar como equivalentes ou muito semelhantes os dois géneros “negros”.

    [2] Tradução de Paulo Osório de Castro, que, muito bem traduz por aprendizagem o título, que é parte da formação, nome do género.

    [3] Por vezes chamadas românticas, termo que evitamos para tentar escapar à confusão com a designação dada a uma das épocas em que na literatura, nas artes visuais e de espectáculo, a produção mais se desenvolveu, de modo marcante, na cultura ocidental.

    [4] Um papiro colocado na tumba egípcia que conta a história de uma misteriosa “adormecida”, serve de tema para um pequeno romance, ou conto alongado, de Théophile Gautier.

    [5] “[…] em Dostoievski essa heterogeneidade de materiais literários e de estilo, assumia um sentido novo, transcendia-se por via do polifonismo fundamental da sua obra.[…] Com efeito, a aliança da aventura que integra a problemática da violência, com o dialogismo, a confissão, a hagiografia não é um fenómeno completamente desconhecido […]. O que é novo é o uso que dele fez Dostoievski […]. Mas a combinação de géneros, propriamente dita mergulha as suas raízes até à antiguidade” (Bakhtine,1998: 159).

    [6] Deve notar-se que a série se designa desse modo por corresponder ao conceito que,  em língua inglesa, o termo romance tem, ou seja, uma narrativa que cabe, em grande parte, nas modulações daquilo a que nós chamamos romance (e ao que, em francês, corresponde ao termo roman, mas que tem a designação de novel, em inglês, e em espanhol novela), mas conota, naquela língua, de modo dominante, o sentido de narrativa de uma relação sentimental e/ou, amorosa, mais ou menos carregada de erotismo, e que poderemos designar, para simplificar a questão, em português, “narrativa romântica”. Sobre a série será interessante reter alguns dados, remetendo para aqui.

  • O “romance” ou a narrativa romântica

    O “romance” ou a narrativa romântica


    No momento em que o comic strip atinge um alto grau de expressividade e aprofundamento quase filosófico, pela via do riso, do cómico e de um humor por vezes cáustico, um novo género emerge no panorama das publicações diárias, ou de periodicidade mais alargada, mas no máximo semanal, nas páginas dos jornais.

    Pelo ano em que o Gato Felix surge como tira semanal, em 1924, vindo da figura de cartoon de animação, de Pat Sullivan, de 1919, que o disputa com o seu desenhador  Otto Messmer, torna-se quase um sucessor, pelo sucesso, em comic do seu mais paradoxal antepassado, Crazy Cat, nascido em 1911 como comic pela mão de George Herriman, emerge, nas tiras de cartoon, uma figura que fará o género inflectir em novas ressonâncias temáticas Little Ophna Annie de Harold Gray, com o subtítulo de série, “ou as desventuras de uma órfã”.

    Primeira strip, publicada em 5 de agosto de 1924 no jornal Daily News, de New York.

    As aventuras de Little Orphan Annie eram contadas num estilo, que, em termos genéricos poderia ser comparada com a novela picaresca, com pinceladas de ambiência gótica e a presença de muitas situações melodramáticas. A personagem principal deambula, abandonada por um mundo corrupto, em histórias episódicas e independentes. No primeiro ano da publicação, aparecem as personagens que se manterão como recorrentes comparsas coadjuvantes: “Daddy” Warbucks e o cão, Sandy. Os vilões, opositores ou mesmo adversários, manifestam-se desde esse primeiro momento, mas apenas se manterá mais longamente Madame Warbucks, esposa do “Daddy”, cuja adversidade é mais motivada pelos ciúmes do afecto que o marido dedica à órfã do que propriamente por maldade ou desumanidade, como serão muitos dos outros casos.

    A história começa em um orfanato pobre como os das histórias de Charles Dickens, com Annie submetida a frequentes maus-tratos causados por uma matrona pouco dada a generosidades e mais entregue a prazeres sádicos escondidos sob a aparência da virtude. Um dia, uma senhora rica mas caprichosa e narcísica, Madame Warbucks por razões várias, vê Annie e a leva para sua mansão. O marido da mulher desenvolve imediatamente uma afeição paternal por Annie e pede à menina que o trate “papá” (“Daddy”). Para infelicidade de Annie, o seu pai adoptivo passa longos períodos fora, viajando a negócios, e a menina fica desprotegida, sofrendo a agressividade da esposa enciumada que acaba devolvendo-a ao orfanato.

    A preceptora profissional do orfanato põe a órfã desprotegida a trabalhar numa doçaria. Como o trabalho era muito pesado para sua idade, e a desgostava, certo dia, Annie, depois de arrancar um cão chamado Sandy das garras violentas de um grupo de jovens marginais cruéis, resolve fugir do seu trabalho. Anda sem rumo pelo campo, como uma criatura abandonada, mas, por sorte encontra um lar acolhedor na quinta do casal Silo. Quando “Daddy” Warbucks oferece uma grande recompensa para quem encontrar Annie, um agiota, que tinha conhecimento da “adopção” sem formalização legal tenta fazer chantagem com o casal Silo, procurando apoderar-se dos seus parcos bens.

    Mas, como numa boa abertura de melodrama, o bem triunfa neste primeiro episódio de peripécias, quando, casualmente, numa das suas incursões em busca da “filha adoptiva” (depois de uma eventual ruptura com a esposa, que se perde como personagem) Warbucks passa pela modesta morada dos Silos para pedir um copo de água e reencontra Annie. Warbucks faz melhorias na fazenda e volta à cidade com Annie e Sandy, prometendo à menina que os Silos poderão visitá-la sempre que quiserem[1].

    Comentando este sistema estruturado de confrontos, valores, sofrimentos, em grau hiperbólico, Peter Brooks considera-o “MELODRAMÁTICO”. E acrescenta que tal “adjectivo” lhe “pareceu […] descrever, como nenhuma outra palavra o modo das dramatizações” de Balzac e Henry James bem como outros autores “e, muito especialmente, a extravagância de certas representações, a intensidade de uma  reivindicação moral a afectar a consciência das suas personagens” (2010: 7), pelo que pensamos que não será descabido sublinhar o desenrolar folhetinesco da história em tiras de Annie, com essas obras de autores que, “num contexto aparente de ‘realismo’ e quotidianidade, se revelam antes como encenadores de um grande drama hiperbólico, remetendo para puros conceitos de trevas e luz, de redenção e danação” (Brooks, 2010: 7). 

    Parece que é neste modelo de histórias que mais claramente se plasma, no desenho, e no desenrolar da intriga o conjunto de funções presentes na narrativa que Barthes designa por índices podendo-se distinguir, na sua função de correlação de aspectos do lugar e da situação os “índices propriamente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia, e” como sistema complementar daqueles, os elementos propiciadores de “informações, que servem para identificar, para situar no tempo e no espaço”. Emergindo no desenrolar da acção estes dois tipos de registo são unidades verdadeiramente semânticas, pois, contrariamente às ‘funções’ propriamente ditas, eles remetem a um significado não a uma ‘operação’” (a acção, o desenrolar dos eventos).

    São elementos ou frases que compõem, por assim dizer a situação da narrativa, que a ancoram como cronótopo, ou seja, “a sanção dos índices é ‘mais alta’, por vezes mesmo virtual, fora do sintagma explícito (o ‘carácter’ de uma personagem pode nunca ser nomeado, mas ser, entretanto, ininterruptamente indexado), é uma sanção paradigmática” (Barthes, 1966: 9).

    Se compararmos as vinhetas dos comic propriamente ditos e as histórias marcadas pelo romance sentimental, ou pelo melodrama verificamos que o pano de fundo desta última variante é muito mais profusamente ilustrado do que aquela. Exceptuamos o caso de muitos dos sonhos de Little Nemo, pois, como boas criações oníricas, estes são povoados, muitas vezes, de uma miríade de maravilhas – mas, repare-se que não são propriamente funções cardinais, elementos funcionais da intriga, mas sim divagações erráticas penetradas pela intromissão maravilhosa e fascinante.

    Ora esta manifestação errática constituída por uma atenção vectorial do tempo por parte da narrativa, mas que não a configura no modelo de causa efeito e sentido da acção destinado, ou sustentado por uma armadura mítico-ético-avaliativa que a conduz a um desenlace, remete-nos para um outro tipo de funções conceptualizado por Barthes, no mesmo texto: as catálises.

    Tal como nos sonhos de Nemo, estas não se deixam conduzir, por um destino ou uma finalidade logicamente formulável. São erráticas e tem algumas afinidades com as funções indiciais, na sua luxuosa inutilidade “aparecem entre duas funções cardinais, onde é sempre possível dispor de notações subsidiárias, que se aglomeram em torno de um núcleo” (1966: 10). Nemo entre o adormecer e o acordar, dispõe desse conjunto de acções que não dão sentido nem se deixam explicar por um destino, mas são interrompidas pelo despertar.

    Mas, mais explicitamente, muitos dos elementos narrativos de Annie, são meras acções que nos dizem sobre o seu quotidiano ou o seu estado existencial, mas pouco sobre o seu destino ou a configuração de um litigar que adensa, ora no episódio de uma fuga, ora na denúncia de uma acção malévola: “estas catálises permanecem funcionais, na medida em que entram em correlação com um núcleo”, e sendo “uma notação, na aparência expletiva, tem sempre uma função discursiva: ela acelera, retarda, avança o discurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorienta: faz o notado” como que por acaso “aparecer sempre como o notável” e desse, a catálise desperta sem cessar a tensão semântica do discurso, diz ininterruptamente: houve, vai haver significação” (1966: 10).

    Ora, é esta chamada de atenção permanente que, em grande parte alimenta o melodrama, até pela simples recorrência dos seus tipos estereotipados e redundantes, Um opúsculo anónimo do princípio do século XIX apresentava assim a “receita” de um “bom melodrama”: “escolher um título. É preciso, em seguida, adaptar a este título, um assunto qualquer, ou histórico, ou inventado”, processo que vemos realizar-se, por exemplo em Little Orphan Annie, logo no título e no subtítulo desventuras de uma órfã; “depois deve-se fazer aparecer como principais personagens, um idiota, um tirano, uma mulher inocente e perseguida, um cavaleiro e tanto quanto seja possível qualquer tipo de animal amestrado, um cão, um gato, um cavalo, um corvo ou uma pega”, o que acontece com o encontro de Annie com o cão abandonado. Os espaços são importantes pelos seus contrastes, o opúsculo da receita sugeria o contraste entre um “ballet”, e uma “prisão” para em seguida colocar a protagonista face a ameaças de “grilhetas” e os anelos do “discurso sentimental” (Thomasseau, 1984: 19).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    [1] Mesmo um comic mais tardio, (1931) aparentemente desenvolvendo-se prioritariamente como história de acção, inicia-se com o duro detective num contexto melodramático: Dick Tracy tornou-se um polícia para vingar o assassinato de Emil Trueheart, pai da antiga namorada de Tracy, Tess. Tracy foi retratado como um detective à paisana, incorruptível, numa cidade do Midweste, muito parecida com Chicago.

    Primeira tira, de 4 de outubro de 1931

    Mas não termina aí o cruzamento, nas origens, da intriga melodramática nesta história/ série de acção, que alguns críticos consideram das mais violentas e sanguinárias que a banda desenhada produziu, em todos os tempos. O melodrama marca o aparecimento de Júnior.

    A sua primeira vinheta aparece a 8 de Setembro de 1932, menos um ano depois do seu “pai adoptivo” ter sido criado, e desenhado pelo mesmo cartunista, Chester Gould, em 1931, para uma tira de quadrinhos do jornal. A tira, que estreou em 4 de outubro de 1931, no The Detroit Sunday Mirror, foi distribuída pelo Chicago Tribune New York News Syndicate. Passando a aparecer em múltiplos jornais pelos Estados Unidos, tem a sua nova incursão no melodrama, através da regeneração do jovem Júnior de quem Tracy se torna pai adoptivo, retirando-o do domínio de Steve Trump um vagabundo malfeitor.

    The Kid (como era originalmente conhecido) era um jovem sem-abrigo e sem nome que vivia com um marginal que o tratava mal e com violência e o fazia roubar em troca de proteção e comida. Por várias vezes, depois de Tracy o fazer seu auxiliar, o vagabundo procura recuperar a sua “mão-de-obra”, mas sem o conseguir. Durante a sua relação filial com Tracy, em mais de uma situação, é raptado e chega a ser preso por suspeita de agressão a Tracy num reformatório. Noutra altura Steve sequestra Júnior na tentativa de receber uma recompensa oferecida por um rico (mas cego) engenheiro de minas que estava à procura seu filho há muito perdido. Por um acidente do destino que vai muito bem nestas narrativas que manipulam as coincidências, revela-se que, de facto Júnior era o filho desaparecido deste mineiro cego do Colorado, Hank Steele e sua esposa Mary. Hank identificou Júnior (cujo nome verdadeiro era Jackie Steele) por uma cicatriz atrás da orelha resultante de um acidente de infância. Mas segundo as posteriores peripécias, volta a trabalhar com Tracy já quase como colega.

    [2] Nos anos 30, uma publicação, em formato quase de página dá continuação ao protagonismo da Órfã perseguida pelos infortúnios num argumento de Barandon Walsh e desenho de Darrel McClure. Os seus antecedentes vinham de uma canção de Michael Nolan, muito popular em finais do séc. XIX, do sucesso do filme mudo protagonizado por Mary Pickford, e das tiras diárias de Ed Verdier: Jan 10, 1927 – July 20, 1929; Ben Batsford: July 22, 1929 – Oct 4, 1930; seguidas das tiras que Brandon Walsh escreveu e Darrell desenhou: Oct 6, 1930 – 1954; ou ainda as que Darrell McClure continuou a fazer sozinho: 1954 – April 16, 1966

  • Os comics: da strip ao book

    Os comics: da strip ao book


    Observemos um dos processos básicos da criação da banda desenhada a partir das suas formas mais simples que deram origem ao termo mais universalmente adoptado no mundo para a designação desta forma gráfico-narrativa: comic ou comic strip, como os americanos lhe chamaram no momento inaugural em que ela era usada e difundida em tiras nos jornais.

    No fundo, segundo Jolles (1972), trata-se de um embrião mítico, de acordo com o qual o “homem pede ao universo e aos seus fenómenos que se deixem compreender” (1972: 81) ou enigmático, que ele entende ser com a forma que “apresenta a questão” à qual o “mito ‘dá’ a resposta” (1972: 105). No sentido que Jolles dá a estes termos, eles são apresentados de tal modo que o cómico desponta no desenlace e na revelação típicos do conto, no qual “um facto ou um incidente chocam de tal maneira que que temos a impressão de um acontecimento real e que esse incidente nos parece, por si só, mais importante do que as personagens que o vivem” (1972:183).

    person holding opened book

    Contudo, no caso do cómico surgem ligados ao riso ou mesmo à paródia sob forma de uma reviravolta ou peripécia que altera o curso dos acontecimentos, de maneira inesperada, e modifica o sentido da acção agir das personagens.

    No exemplo apresentado acima, podemos entender a sua produção de comicidade acompanhando a proposta de Charles Mauron, referente ao riso e à sua relação com uma situação, ou seja, ao modo como se processa a “diferença de potencial entre duas representações.

    A primeira é a visão prevista como provável do que se seguirá, segundo a vamos construindo, em cada minuto, mais ou menos consciente e que tende sempre a formar-se e preside à nossa atitude” (1998: 20). Assim aparecem, na gravura as evocações relacionadas com um projecto (o apetite), emblematicamente evocado nas gravuras do cabeçalho, de um adolescente com a mãe, à esquerda, e um jovem com a namorada ou noiva, à direita, que fazem escolhas em listas, que podem fazer parte de sonhos ou fantasias.

    As imagens inferiores vão fazendo o mesmo uso do projecto, em fases de duas filas de dois quadrados cada, com “a visão prevista” relativa à vontade de comer. A primeira série é, em si mesma a revelação do final feliz daquilo que Danny pensa, ou como diria Mauron, “está carregada de afectos a formarem-se, mas faz-se acompanhar também de uma certa estimativa do esforço para adaptar-se à nova realidade” (1998: 20), o que é evidente na figura inchada que se vêm objecto de admiração na sua rotundidade ─ a qual, pelo exagero acaba por lançar a suspeita dos inconvenientes não considerados.

    Convenhamos, com o autor que aqui acompanhamos, que “esta espécie de previsão implica uma mobilização da atenção, do interesse e, em geral da energia psíquica disponível de forma imediata” e que, “uma representação deste tipo se forma, embora de modo mais vago, no nosso espírito quando consideramos como exemplo o que se passa com os outros” (1998: 20)

    Os quadradinhos desenhados do comic, apresentam a representação da personagem mas, em simultâneo oferecem-se-nos como representações, e, neste caso, o “acontecimento real” que seria a confrontação do nosso devaneio com o real que se nos oferecesse, aparece como representação “da estimativa” da personagem, que aparece a corrigir o devaneio, e revelando-se como o seu contrário, ao apreserntar a tremenda indisposição de Danny depois de comer com sofreguidão a refeição real que conseguiu obter. (cf. Mauron, 1998: 20-21) 

    No entanto, o entendimento do cómico como aspecto do chiste (a que Eça, frequentemente, se referia como pilhéria,[1] mas que poderíamos traduzir por facécia, em gosto mais clássico, evocando a facetia) cuja a melhor tradução para o termo freudiano witz, que deve estar na origem do termo inglês wit, com o qual o cómico, nos comics, acaba por se entrosar de modo quase inextricável, parece-nos de ponderar. Como diz o fundador da psicanálise:

    “Parece-nos que os chistes, ordinariamente considerados como uma subespécie de cómico, oferecem-nos bastante peculiaridades para serem atacados diretamente; assim evitamos sua relação com a categoria, mais inclusiva, do cômico, enquanto isso foi possível, embora não tenhamos deixado de colher, en passant, algumas sugestões que podem lançar luz sobre o cômico”. (1969: 177)

    A nossa ideia, neste ponto, é que o cómico, podendo apresentar dimensões onde o mecanismo da revelação súbita possa parecer independente, acaba por denunciar, em muitas características o trabalhar do dinamismo do chiste. Regressando ainda a Freud, vejamos: “o cómico comporta-se diferentemente dos chistes. Pode contentar-se com duas pessoas: “a primeira que constata o cómico e a segunda, em quem se constata. A terceira pessoa, a quem se conta a coisa cómica, intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (1969: 277).

    Ora, esta “terceira pessoa”, no funcionamento dos processos artísticos, performativos e de representação é aquela a quem o procedimento do cómico se destina e, o efeito, como acto poético, se comunica, “é indispensável para a completação do processo de produção de prazer” (277).

    woman in black, blue, and red shirt lying on surface while reading magazine

    Assim a terceira pessoa, no caso das produções poéticas, que se apresentam como integráveis no género cómico, ou fazendo parte da criação mais recente e afeita ao gosto popular, toma o lugar de leitor, espectador ou visualizador, uma vez que “a segunda pessoa do chiste”, está no lugar da entidade ficcionalizada,  já que nos chistes, jocosidade ou trocadilho  a segunda pessoa pode estar ausente, “excepto quando se trata de um chiste tendencioso, agressivo” (1969: 277) podendo nós encontrar casos limites fronteiriços dessa utilização em discursos poéticos como as cantigas de escárnio e maldizer, ou nas diatribes de cuidadosa elaboração retórica “Um chiste produz-se, o cómico constata-se ─ antes de tudo, nas pessoas; apenas por uma transferência subsequente, nas coisas, situações etc.” (1969: 277). Ora, ainda segundo Freud, no mesmo texto:

    “O tipo de cômico mais próximo dos chistes é o ingénuo. Como o cómico em geral, o (cómico) ingénuo é ‘constatado’ e não ‘produzido’, como o chiste. De facto, o ingênuo não pode absolutamente ser confeccionado, enquanto no interior do cómico puro devemos levar em conta o caso em que alguma coisa é tornada cómica – a evocação do cómico. O ingénuo deve originar-se, sem que tomemos parte nisso, nos comentários e atitudes de outras pessoas, que assumem a posição da segunda pessoa no cómico ou nos chistes” (1969: 279).

    Não é preciso um grande esforço para o ver aparecer na comic strip que se segue, Mutt & Jeff  de Al Smith, na linha herdada de Bud Ficher em que um ponto de vista perfeitamente infantil, acerca do peixe dourado de aquário como mecanismo de agitação do líquido  para dissolver o açúcar. O gesto, na sua inverosimilhança, é bem ilustrativo de como a lógica infantil prevalece, sobre a dos adultos que a praticam e aceitam.

    books on black wooden shelf

    Alguns estudiosos, na cultura anglo-americana,  consideram esta última nuance central, no chiste, designando o fenómeno por wit, que pode significar “inteligência” mas, com mais pertinência, “ingenuidade” ou “raciocínio rápido” ou seja desde a “divertida inteligência verbal” até à capacidade de “invenção” (a ‘inventio’ da sabedoria retórica) através da qual “os escritores podem descobrir apropriadas figuras e conceitos, na percepção e compreensão de semelhanças entre coisas aparentemente dissemelhantes” (cf Baldick, 1990: 242; entrada WIT).

    A historieta comic, “à semelhança” por exemplo “da obra teatral, como toda a obra artística apresenta um universo” que nos é “necessário desde esse instante” e por um período variado de tempo, desde os poucos minutos da leitura de uma tira, ou de um pequeno conjunto delas, como vimos acima, até à hora e meia de um filme padrão, podendo ser alargada para quase o dobro, nalguns filmes modernos, ou em peças de teatro (cf. Souriau, 1950: 15).

    Mas pode ser bem mais longo, como acontece no romance, na novela de aventuras, ou, mais modernamente, nos episódios narrativos comuns às televisões. É claro que o quadro clássico comum à arte ocidental, pelo menos desde o renascimento como “obra pictórica também tem a sua duração” embora mais distanciada da figura humana encarnada que o teatro nos dá e o cinema simula com muita plenitude em duas dimensões.

    No quadro, ou no desenho, ou mesmo na escultura, há realização “de um mundo, pela instrumentação de uma presença concreta” seja “uma tela coberta de pigmentos coloridos” seja “uma pedra ou um madeiro, talhados nas três dimensões do espaço” ou, para outro, “a atmosfera ritmicamente agitada”, ou, ainda “as folhas impressas” (cf. Souriau, 1950: 17).

    assorted photos on white table

    Porém, a duração varia infinitamente: no teatro “uma duração real, à qual é dada uma certa feição”, mas, obra pictórica “o jogo é quase livre”, a contemplação é feita segundo o “nosso capricho”. Apenas as outras artes, narrativas, literárias ou não, afastam-se da pintura e aproximam-se do teatro. Mas uma desenvolvendo-se numa forma substancial totalmente diferente, a palavra apenas, outra desenvolvendo duplicações visuais de pessoas reais, e misturando essa figuração humana, com a dimensão verbal, mas numa matéria distinta, a língua oralmente modulada e a sonorização similares ao teatro (cf. Souriau, 1950: 19).

    Diz-nos Montandon que, o “jogo de palavras assim como a história cómica, são formas breves, particularmente apreciadas pelos leitores de jornal, e aparecem, nestes, nos cantos das páginas […] (sublinhados nossos). Na sua opinião estas curtos narrativas, que acompanham, muitas vezes, relatos jornalísticos de intenção informativa, e vontade documental, por vezes de forte rigor factual, “são formas trivializadas, pelo conteúdo ou pela técnica […] ” entendendo que a sua técnica pode ser descrita como “um termo polissémico do qual dois termos são actualizados em simultâneo” que podem ser o “equívoco em que uma palavra tem dois sentidos”, ou “uma legião de outras figuras: Um sentido próprio e outro figurado” ou as “homonímias”, rimas, rimas “holorimas (homofonia total entre dois versos…”, o “calembour simples ou complexo” a “passagem do concreto ao abstracto” o “provébio falacioso”, a “antanáclase, que é a retomada da mesma palavra mas de modo falacioso”, que pode ser “insólita”, “gozona” ou burlesca” (Montandon, 1992: 129) e mais algumas a   em que o trocadilho aparece mas que não vamos apresentar, exaustivamente.

    Bud Fisher 1913

    Na banda desenhada, desde os tempos mais antigos de publicação periódica em jornais e revistas, todos estes elementos são retomados, ou trabalhados de forma distinta: a figura humana passa a traços pictóricos, o tempo é modulado pela sucessividade das imagens sequenciais, e a palavra é mantida associada a sugestão onomatopaica.   

    O desenrolar de tais programas verifica-se, na comic strip apresentando com brevidade os traços acima identificados, sendo colocada na última imagem a resposta ou revelação paradoxal se apresente quase sobe a forma de um trocadilho ou dito espirituoso, elemento de gosto que os românticos tinham relegado para uma posição de inferioridade aceitando-os apenas nos modelos da diversão literária do epigrama, que os modernistas de todas as vertentes, cultivaram sob a concepção de ironia.

    Não é de estranhar que o termo tenha assentado plenamente nesse tipo de pequena narrativa divertida ou histoire drôle, que, de Rabelais a Jarry, passando por Balsac, fizeram as delícias do espírito picardo (amusant, bizarre, cocasse, comique, coquin, curieux, désopilant, divertissant) encheu a cultura popular francesa do início do século XX, confundindo-se e entrecruzando-se com produções de mais elevados horizontes culturais, mas sempre presa desse gosto das drôleries,(bêtises, bizarreries, blagues, bouffonneries, clowneries, couillonnades, facéties, gaillardises), como o Dadaismo ou o Surrealismo.

    Em muitos aspectos, o tipo de narrativa a que nos referimos como comic, tendo como característica de duração prevalecente, o strip, a série linearizada em poucos momento pictóricos ou gráficos, variando de dois a cinco, raramente mais ou menos, é o padrão em que assentam outras, um pouco mais longas, de um página[2] como acontece quase sempre em Little Nemo ou em Crazy Cat e obedece a um modelo linear narrativo, comum, também em manifestações apenas verbais que Violette Morin caracteriza como histoires drôles, do seguinte modo: “é algumas vezes tão curta ou tão ‘engraçada’ que seu valor de narrativa poderia ser posto em questão.

    girl in purple dress painting

    No entanto estas ‘historias’ são, também, narrativas. Como estas, e melhor ainda, “fazem evoluir uma situação viva em função de reviravoltas imprevistas.” (Morin, 1966: 102).

    Nada mais elucidativo, para colocarmos mais uma base no nosso entendimento destes começos da banda desenhada como género, aspirando a uma colocação entre as artes, como 9ª, no dizer de muitos apologetas, do que voltar ao texto de Violette Morin sobre as “histoires drôles” que ela analisa, e, “a fim de confrontar sua inesgotável variedade de estilo e, de falas (ou expressões: paroles)”teve, “muitas vezes de reconstituir seu discurso, restabelecer aqui elipses destinadas a torná-las mais percucientes, suprimir, acolá, redundâncias destinadas a enchê-las de ‘suspense’”.

    De tal modo, diz-nos a investigadora francesa, que teve “de localizar funções que sua desordem calculada tornava mais surpreendentes”, constatando que, “com a linearidade do traço de espírito restabelecida, estas narra1ivas apresentaram enfim cercas constâncias, de construção que temamos classificar” (1966: 102).

    Por estas características, elas “são comparáveis” com as comic strip, “pelo número de palavras, pois que a maioria contém apenas de 25 a 40” além de que são “todas redutíveis a uma sequência única que coloca, argumenta e resolve uma certa problemática” e, ainda por cima tal sequência 

    “parece ser uniformemente articulada por três funções que ordenamos como se segue: uma funçãodenormalizaçâoque situa os personagens; uma função locutorade encadeamento,com ou sem locutor, que coloca o ‘problema a resolver, ouquestiona; e, enfim, uma função interlocutora de distinção, com ou sem interlocutor, que resolve ‘comicamente’ o problema, que responde ‘comicamente à questão. Esta última faz bifurcar-se a narrativa do ‘sério’ para o ‘cómico’ e dá à sequência narrativa existência de narrativa disjunta, de ‘última’ (dernière) [versão] como história. A bifurcação é possível graças a um elemento polissémico, o, disjuntor sobre o qual a história encadeada (normalização e locução) volteia numa peripécia, para tomar uma direção nova e inesperada. É a existência necessária deste disjuntor que tende a fazer classificar indiferentemente todas estas história nas diversas variedades de jogos de palavras” (1966: 102-103).

    Apresentamos, a título comparativo, como as comic strip, o exemplo de uma das história que Violette Morin apresenta: “FUNÇÃO DE NORMALIZAÇÃO: O viajante tendo perdido o comboio fala ao chefe da estação; FUNÇÃO LOCUTORA DE DESENCADEAMENTO: Oviajante: Se os comboios nunca estão no horário, para que servem os quadros afixados de horários?; DISJUNTOR:cartaz/sala de espera; FUNÇÃO INTERLOCUTORA DE DISJUNÇÃO: O chefe da estação: Se os comboios andassem no horário, de que serviriam as salas de espera?” (1966: 104). Como se pode constatar, a semelhança com as sequências narrativas em tiras de vinhetas ou quadradinhos, e o desenvolvimento que a autora descreve como próprio a estas sequências narrativas justifica-se inteiramente:

    “são as narrativas em que a disjunção é apenas uma palavra-significante, uma palavra tomada somente na sua existência visual ou fónica, independentemente das significações que pode veicular. Obtém-se um jogo de palavras que liberta os significados e as significações de qualquer constrangimento do sentido. Ao cabo da sequência, a narrativa desagrega-se propositadamente num caos perfeito; pode mesmo, por essa arte de acrobacia no vazio, quase não ser uma narrativa, e com frequência não é mesmo” (1966: 103).

    man in green vest and red dress standing beside woman in red dress

    Usando uma outra formulação, sob a designação de piada, aproximamo-nos ainda melhor do fenómeno tal como é possível formulá-lo, mas neste caso num processo bifásico:

    “[…] a piada é um texto sui generis. É uma forma de narração dialogal, tendencialmente curta, que tem por objetivo gerar um sentido humorístico. Para tanto, a piada cria uma situação verossímil, apenas para desmascará-la em seu desfecho. A mudança do modo sério (bona fide) para o modo jocoso é a fonte do riso. A semelhança na estruturação de uma piada é a maior especificidade dessa forma de texto. A estrutura, por assim dizer, é dividida em duas partes. A primeira, chamada de antecedente, introduziria o tópico, bem como os personagens e a situação verossímil. A segunda parte, o consequente, seria a conclusão do texto. […] o consequente nunca é explicitado, fica sempre implícito […]. A passagem do antecedente para o consequente é feita por um elemento mediador, de ordem linguística, em geral voltado aos níveis fonético-fonológico, morfossintático ou semântico” (Ramos, 2005: 1158-1159).

    A estes traços, acrescenta o autor mais alguns que acompanham exemplos das tiras diárias, que “seria uma história que apresenta uma gag, termo entendido [..] como uma piada diária (dado que, na maioria dos casos, é publicada diariamente pelos jornais)” (p.1158) e apresenta uma tese muito próxima de Morin, e talvez de mais simples formulação: “uma situação inicial; um elemento que muda o curso da narrativa; uma disjunção provocada pelo elemento anterior. O resultado da mudança de curso na história surpreenderia a expectativa inicial do leitor, provocando em seu desfecho uma função narrativa anormal, fonte do riso. (p.1158)

    shallow focus photography of books

    Se dermos, mais uma vez, a palavra a Freud, verificamos a importância da colocação em posição dramática de personagens que sejam produzidas por uma encenação (no sentido mais amplo do termo, de produção representativa de uma acção, verbal ou física, numa determinada situação para obter um efeito de sentido):

    “O ingênuo (no discurso) e os chistes coincidem, no que diz respeito à verbalização e ao conteúdo: efetua um uso impróprio das palavras, um non sense ou um smut. Mas nele, o ingénuo, enquanto primeira pessoa, o processo psíquico, que produz, que levanta para nós questões tão interessantes e enigmáticas a respeito dos chistes, está aqui completamente ausente. Uma pessoa ingênua pensa estar utilizando seus meios de expressão e processos de pensamento normal e simplesmente, não tendo qualquer arrière pensée em mente; não deriva igualmente o menor prazer em produzir algo ingênuo. Todas as características do ingênuo inexistem a não ser na compreensão da pessoa que o escuta – pessoa que coincide com a terceira pessoa nos chistes. Alem disso a pessoa que o produz faz isso sem o menor esforço. A complicada técnica que nos chistes se destina a paralisar a inibição procedente da crítica racional, está ausente nela; não possui igualmente a inibição, de modo que pode produzir nonsense e smut diretamente e sem compromisso. A este respeito, o ingênuo é um caso marginal do chiste; emerge quando, na fórmula de construção dos chistes, reduzimos o valor da censura a zero” (1969: 283).

    Sobretudo, é importante que as personagens formem “um sistema de forças em confronto ligadas por acções e reacções de que cada momento privilegiado deve desenhas uma figura dinâmica, relativamente simples, clara, poderosa, original e intensa nesse dinamismo interior que resulta da sua estrutura” Souriau, 

    black and white zebra print textile

    Completaríamos melhor este raciocínio, a partir do qual pretendemos valorizar os procedimentos inerentes às histoires drôles que nos narram os comics, introduzindo, como conceito, o termo voz. Assim, o aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em é o da segunda voz.

    Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

    Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca — ou daimon — que também assaltava Sócrates.

    Nas tiras ou mesmo nos conjuntos que formam página (ou prancha, como os autores gostam de lhes chamar) essa voz pode surgir como uma personagem onírica, ou partilhando desse estatuto, como um alter ego provocador, ou mesmo desencaminhador, que surge nas narrativas em que a personagem protagonista desafiada ou confrontada em devaneios e sonhos de que os paradigmas seriam o Grilo de Pinóquio, e o esverdeado Flip que aparece nas comics storys de Little Nemo como a que apresentamos abaixo.

    O que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a  sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

    Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o sonhador está integrado nesse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da interlocução mais um elemento constituinte do espectáculo integral em que o processo imaginário cruza o elemento icónico e verbal. (cf. Jorge, 2000: 2-3) [3]

    É claro que o sonho e o retorno ou despertar inconsciente da infância que Freud nos lembra (Freud, 1969: 248 e 278), e como vamos encontrar, por exemplo em Little Nemo “Entre as técnicas comuns ao espírito e ao sonho, duas oferecem um cesto interesse: a representação pelo seu contrário e o emprego de contrassenso” (Freud, 1969: “266) aqui, é claro, o repouso do leito, que levará ao sono e o sonho surge como que negado, ou invertido pela movimentação e articulação dinâmica da própria cama, e o interior do quarto muda-se para o imaginário espectáculo do “telhados” dos arranha céus visto de cima ou ao mesmo nível. 

    Segundo Freud no mesmo texto um pouco adiante, essa representação pelo contrário representa uma sobrevalorização, que se “aproxima da ironia” a qual “consiste em dizer o contrário do que se pretende sugerir, evitando aos outros a ocasião de a contradizer” uma vez que ela exibe os artifícios, neste caso o aspecto hiperbólica dimensão que a cama apresenta no seu passeio.

    Ora, mais pausadamente, podemos ver, na sequência da história, o modo de Flip funcionar como a emergência de um desafio ou desejo de libertação, arrastando o imaginário de Nemo à criação de uma fantasia em que a cama passeia, saltita, sobe aos telhados dos arranha céus, acabando, na euforia da exaltação libertária, por gerar no sonhador o pânico causado pela culpa da sua desobediência, e leva-o cair, num mergulho que parecia fatal e que é, afinal, um real tombo da cama para o chão.

    Sobre esta matéria ainda nos parecem pertinentes as considerações de Freud “A elaboração onírica, entretanto, exagera esse método de representação indireta além de todos os limites. Sob a pressão da censura, qualquer espécie de conexão é bastante boa para servir como substitutivo por alusão, permitindo- se o deslocamento de um a outro elemento. A substituição de associações internas (similaridade, conexão causal etc.) por outras, conhecidas como externas (simultaneidade no tempo, contigüidade espacial, similaridade fônica), é muito especialmente notável e peculiar à elaboração onírica. Todos esses métodos de deslocamento ocorrem também como técnicas do chiste. (p.264)

    E, completaríamos esta percepção da comic story, na sua dimensão onírica com apoio no seguinte excerto do mestre austríaco sobre a matéria:

     “Na elaboração onírica, a representação pelo oposto desempenha uma parte ainda maio que nos chistes. Os sonhos não são simplesmente favoráveis à representação de dois contrários pela mesma e única estrutura composta, mas tão frequentemente mudam parte dos pensamentos oníricos nos seus opostos, o que leva o trabalho de interpretação a impasses difíceis. Não há maneira de decidir à primeira vista se algum elemento que admite um contrário está presente nos pensamentos oníricos como um positivo ou como um negativo.

    Devo afirmar enfaticamente que esse fato até agora não mereceu reconhecimento. Mas parece apontar para importante característica do pensamento inconsciente no qual, com toda probabilidade, não ocorre nenhum processo que se assemelhe ao ‘julgamento’. No lugar da rejeição por um julgamento, o que encontramos no inconsciente é a ‘repressão’. Esta pode, sem dúvida, ser corretamente descrita como estágio intermediário entre um reflexo defensivo e um julgamento condenador.

    O nonsense, o absurdo, que aparece com tanta frequência nos sonhos, condenando-os a desprezo tão imerecido, nunca ocorre por acaso através da mesclagem dos elementos ideacionais, podendo sempre demonstrar sua admissão intencional pela elaboração onírica, cabendo-lhes representar nos pensamentos oníricos a crítica amargurada e a contradição desdenhosa. Assim o absurdo no conteúdo dos sonhos assume o lugar do julgamento ‘isto é apenas nonsense‘ nos pensamentos oníricos.” (268-269).

    Jost Amman – Xilogravura de 1568 mostrando a produção de xilogravuras: na primeira um homem usa um buril para cortar o bloco de madeira; na segunda ele entinta a matriz realizada para a impressão.

    A estrutura que o pequeno relato em quadradinhos, cuja modalidade dominante, fundadora do género se verificou como comic americano é a da narrativa fundada na sequencialidade, num sistema gráfico de leitura que tem como aspecto fundamental, como já vimos acima os vectores direcionais: da esquerda para a direita e de cima para baixo, aproveitando o modelo da própria escrita.

    Tal dinâmica vectorial cria o sentido da história com a concepção de um antes e de um depois, inserida nas práticas milenares da cultura ocidental, com pequenas variantes, das quais, a principal é a variabilidade horizontal (esquerda —> direita), que pode ter a variante inversa, ou a mista, bustrofédon, (βουστροφηδόν[4]), podendo, eventualmente, essa a variante ser a da vectorialidade ascendente, ou seja, de baixo para cima. Esses dois últimos casos verificam-se nalguns registos mais antigos e a na nossa cultura, entre o Médio Oriente e a Europa, sendo o primeiro, a inversão apenas ou as sequências de imagens de culturas não ocidentais, cujo exemplo mais impressionante é o da Coluna de Trajano, em Roma com feitos e eventos sequenciais talhados na pedra em sentido ascendente em sequência pela curvatura elicoidal, em ordem horizontal bustrofédon (ou que a torna uma excepção no que respeita ao sentido de leitura).

    Thomas Rowlandson (britânico, Londres 1757-1827) – Reform Advised, Begun and Compleat, 1793.

    Devemos notar, no entanto, no caso que nos interessa e, maioritariamente, se podem considerar “duas grandes classes de unidades, funções e índices”, as quais “deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas.

    Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e, em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances ‘psicológicos’)” caracterização a que voltaremos, adiante, a propósito daquilo na BD se tem chamado “romance” ou narrativa romântica” (1966: 10) “entre estes dois pólos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do género” (1966: 10).

    Para falarmos das comic strips, sobretudo, mas mesmo das comic, em geral, até à dimensão da prancha ou página retomar será interessante retomas, de Barthes a “classe das Funções” uma vez que, suas unidades. não têm todas a mesma ‘importância’ e isso ajuda-nos a analisar melhor o processo, destas pequenas histórias. “Algumas”, dado que “constituem verdadeiras articulações da narrativa (ou de um fragmento da narrativa)” o que as torna importantes para nós, dado que a dimensão das histórias cómicas assentam sobretudo na força de uma articulação nuclear” e pouco utilizam as “outras” que, segundo o mesmo autor “não fazem mais do que ‘preencher’ o espaço narrativo que separa as funções-articulações: chamemos as primeiras de funções cardinais (ou núcleos) e as segundas, em consideração à sua natureza completiva, catálíses.

    Ora, ainda segundo Barthes, “para que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza” (1966: 10) e é  nesta incerteza que, como vimos acima, na análise de Violette Morin, a ruptura ou irrupção cómica se torna possível, pela intromissão de um disjuntor, a que Barthes preferiria, certamente, chamaria índice[5] visto que “os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera […]serve para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizara ficção no real: é um operador realista […] possui uma funcionalidade incontestável, não ao nível da história, mas ao nível do discurso.” (1966: 11), no fundo são imformantes que, num troço da história cómica a fazem inflectir para um sentido inesperado, como que um choque de real interrompendo o curso da expectativa.

    E neste caso das comic strip, ou comic, tout court, é depois dessa disjunção provocada pelo índice, que se reata o  “liame que une duas funções cardinais, o qual se investe de uma “funcionalidade dupla”, tornando-as “ao mesmo tempo consecutivas e consequentes.

    Tudo deixa pensar, com efeito, que a mola da atividade é a própria confusão da consecução e da consequência, o que vem depois sendo lido na narrativa como causado por; a narrativa seria, neste caso, uma aplicação sistemática do erro lógico denunciado pela escolástica sob a fórmula post hoc, ergo propter hoc, que bem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativa não é em suma mais que a «língua» (Zangue); e este ‘esmagamento’ da lógica e da temporalidade é a armadura das funções cardinais que o realiza. Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação enunciada), é, se assim se pode dizer, o risco: as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa.

    Para terminar sobre este modelo aparentemente embrionário da narrativa, a partir do qual a própria banda desenhada assentou, em base que consideramos sólida, lembremos, com Eisenstein, ao falar de Disney, que os comics se fortalecem exemplarmente como narrativas de metamorfoses. Mesmo que isso não implique modificações excessivas, como em tiras modernas quase universais, como Mafalda, de Quino, ou Mónica e sua Turma, de Maurício a verdade é que ela é cultivada à exaustam, e, tão fundamental se tornou, que muitas vezes não damos por ela, e não reparamos na mobilidade fantástica dos elementos do universo de um Winsor McCay, e no seu espectro altamente transfigurável. Assim:

      “Em Shakespeare […] nas suas comédias, as personagens metamorfoseiam-se até ao infinito…travestizam-se ou sofrem uma mudança mágica” lembramo-nos de Alice, do Burro de Oiro, mas

    “Em Disney passamos de um processo a outro, porque um dos recurso do cómico é a literalização da metáfora. […] É por isso, então que a metáfora poética actua comicamente em Disney, porque a apresenta como transposição literal. A metamorfose não é um lapso ─ porque, quando folheamos Ovídio, <vemos que> algumas das suas páginas têm ar de curtas metragens de Disney”[6] (Eisenstein, 2013: 53)

    Por outro lado, no plano do discurso, naquilo que a própria Retórica tão rigorosamente formalizou, pelo menos desde Aristóteles, se a epopeia e tragédia tinham origem em hinos laudatórios ou discursos ecomiásticos e epidícticos, “A comédia é”, segundo o mesmo Estagirita, na sua Poética, “imitação de homens inferiores, mas não, todavia, quanto a toda a espécie dos vícios, mas só quanto àquela parte do torpe e do ridículo.

    eyeglasses near mug on table

    O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anónima e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor. (1986: 109 [V; 22]). Característica clássica e fundadora que nos ajuda a compreender melhor o próprio funcionamento dos comics, na sua origem, de difusão entre as massas leitoras pouco exigentes, dificilmente cultivadas, mas sempre perante o espectáculo do mundo em que tinham de abrir espaço para a sua própria existência ser possível, mundo esse carregado de personagens típica que um discípulo de Aristóteles arruma em quatro grandes grupos: sujeitos auto-depreciados, impostores, e bufões, normalmente acompanhados por um outro que os confronta, como herói, quase sempre um vigarista simpático e la dino “na arte de explorar as fraquezas alheias” (Escohotado, 2006: 10).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


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    [1] “Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assumptos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas… Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão… Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?” // “Eusebiozinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha aparecido com uma rapariga portuguesa… Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.

    – A Corneta…?

    – Sim, do Diabo, disse o Eusebiozinho. É um jornal de pilhérias, de picuinhas… Ele já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou para o Palma; ele vai-lhe aumentar o formato, e meter-lhe mais chalaça

    – Enfim, disse Carlos, qualquer coisa sebácea e imunda como ele…(Os Maias, caps. 4 e14, pp.76 e302, Círculo de Leitores, 1975; itálicos nossos)

    [2] Daniel Barbieri, esclarece os parâmetro históricos destes factos lembrando que no em finais do século XIX e pincípios do século seguinte, “tradicionalmente a unidade gráfica de narrar em BD (‘fumetto) são de dois tipos: a tira e a página (ou prancha ─ ver imagens de Yellow Kid em baixo). A BD [no sentido de comic, em italiano, fumetto] nasce como página dominical a cores, dos quotidianos, e só depois de alguns anos se torna, também tira quotidiana. Apenas nos anos 30 nasce, enfim, o comic book, ou seja, o álbum de Bd. Em geral a tira é […] composta de três ou quatro quadradinhos ou vinhetas, raramente de duas ou quatro” (1991: 149). YellowKid4É claro que é o uso sistemático balão (no vestido, amarelo, primeiro, mas depois no gramofone e no papagaio) com fala que determina, historicamente, o nascimento, questão histórica a que voltaremos adiante. As manga, bandas desenhadas japonesas, têm uma configuração de leitura diferente que não trataremos aqui, por obedecerem a códigos mistos da cultura nipónica e ocidental, cada vez mais sob influência ocidental, para entras no mercados europeus e americanos

    [3]Texto apresentado a 17 de Outubro de 2000, em Évora, a convite da Delegação Regional da Cultura, numa sessão integrada nas comemorações do Centenário da Morte de Eça de Queirós.

    [4]  Transcrição fonética: boustrophēdón , um composto de βοῦς , bous , “boi”; στροφή , strophē , “virar”; e o sufixo adverbial – δόν , “semelhante, na maneira de” – isto é, “como o boi vira [ao arar]”. Curiosidade: O folclorista húngaro Gyula Sebestyén (1864–1946) escreve que a escrita boustrophedon antiga se assemelha aos rovás-sticks húngaros da escrita húngara antiga, que  foram feitos por pastores. Primeiro o entalhador segura a vara de madeira com a mão esquerda, cortando as letras com a mão direita da direita para a esquerda até ao fim do pau. Para continuar ele vira o pau, invertendo as pontas, e começa a entalhar o lado oposto da mesma maneira. Quando é desdobrado horizontalmente (como no caso das inscrições do boustrofédon lapidadas), o resultado final é uma escrita que começa da direita para a esquerda e continua da esquerda para a direita na linha seguinte, com as letras viradas de cabeça para baixo. Sebestyén afirma que os antigos escritos do boustrophedon foram copiados de tais varas de madeira com letras recortadas, requeridas para inscrições epigráficas (não reconhecendo o real significado do tipo original de madeira). Hieróglifos Rongorongo, escritos com dentes de tubarão na Ilha de Páscoa, permanecem indecifráveis.

    [5] 2 ‘índices’ (no sentido muitogeral da palavra) […] a unidade remete então, não a um acto  complementar e consequente, mas a um conceito mais ou menos difuso, necessário entretanto ao sentido da história: índices caracteriais concernentes às personagens informações relativas à sua identidade, notaçõesdas «atmosferas», etc.; (1966: 8-9).

    [6] “[…] Eis que a patrona do herói, Palas, descendo do céu, ordena-lhe que ponha sob a terra os dentes vipérios, matriz de homens futuros. Ele obedece e, abrindo sulcos com o arado, lança os dentes, sementes de mortais, ao solo.  Logo, incrível prodígio, o chão põe-se a mover, e, então, dos sulcos surge a ponta de uma lança, logo, elmos com penachos multicores trêmulos emergem, e ombros, peitos e braços armados, e uma seara de homens com escudo cresce.  Assim, quando em teatro em festa o pano desce, surgem figuras que primeiro a cara mostra, e após o resto; até que se tornam visíveis por completo e se põem de pés no proscênio. Aterrado com a nova hoste, Cadmo se arma […]” Ovídio, Livro III, Cadmo, v. 101-115 ─ Trad. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho.