Etiqueta: Elsinore

  • Um livro desconfortável

    Um livro desconfortável

    Título

    Shy

    Autor

    MAX PORTER (tradução: Manuel Alberto Vieira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Setembro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Estamos em 1995. Shy é um adolescente de 16 anos com um currículo impressionante de delinquência e de comportamento de risco. “Grafitou, snifou, injuriou, roubou, feriu, esmurrou, fugiu, galgou, estampou um Ford Escort, destruiu uma loja, vandalizou uma casa, partiu um nariz, espetou uma faca no dedo do padrasto”. A lista poderia ser ainda mais extensa. 

    Por exemplo, num momento de descontrolo emocional, numa festa, pegou numa garrafa de cerveja, partiu-lhe o gargalo e “traça uma linha reta através do alto da testa do puto, abre-lhe a pele e vê uma mancha de sangue que escorre como numa foleira e sórdida cena de efeitos especiais”. Foi “expulso de duas escolas. Primeira advertência em 1992, aos treze anos.”

    É aluno do internato Last Chance, descrito como uma instituição “não convencional” para a reabilitação de “alguns dos jovens infratores mais perturbados e violentos do país”, e descrito por Shy como “uma mansão velha de merda, convertida em escola para meninos malcomportados, no meio de uma merda de lugar nenhum”.

    Parte do inferno em que vive Shy é precisamente o Last Chance e é lá que Shy vive, apesar de ter família. Deixando de lado a ironia do nome, o próprio Last Chance tem em si a sua própria condenação, uma vez que tem uma morte anunciada, esperando só o avanço da especulação imobiliária para se marcar a data em que o edifício vai despejar os jovens residentes e acolher gente abastada e desejosa de se instalar em apartamentos de charme, naturalmente renovados com os melhores acabamentos.

    Quando o romance começa é de noite, e Shy, com uma mochila cheia de pedras às costas, caminha sozinho em direcção a um lago. Atravessa os campos escuros com um walkman e um charro. A sua vida é um desastre de erros sucessivos e ele está farto.

    Enquanto caminha, vamos ouvindo o monólogo interior e atormentado de Shy num discurso confuso de más lembranças e sonhos piores. O monólogo é sobre estar perdido no escuro e aprender que está sozinho, é a história de algumas horas estranhas na vida de um adolescente problemático que ouve as vozes da sua cabeça: “não podes fazer isso contigo próprio, Shy, não te deves magoar assim…”. E vai ouvindo os seus professores, os seus pais, as pessoas que ele magoou e as pessoas que tentaram amá-lo. E sente o peso do seu passado e a pesada incógnita do seu futuro e a noite é enorme e toda a sua vida lhe dói. 

    “É cansativo seres tu?”

    E ouve as tentativas desesperadas da mãe para chegar até ele: “Mas porquê, mas o que é que te deu? Tu não me estás a ouvir, o que é que se passa contigo? Porque me fazes isso?”, e “O teu padrasto pergunta quando é que a merda de Jekyll e Hyde vai acabar?”.

    Shy é uma narrativa dura sobre um jovem a quem tudo falhou: a família, o Estado, a providência, algum equilíbrio no mundo. Ao longo destas páginas, perguntamo-nos como é que há alguém que nasça com tanta raiva acumulada, tanto desespero, tanta decepção. A linguagem é crua, muitas vezes obscena e incomodativa. A leitura perturba-nos. É um livro para ler num dia bom, porque nos vai deixar marcas. E não são boas. A capa é magnífica. O livro deixou-me desconfortável. 

  • Quo vadis, Humanidade?

    Quo vadis, Humanidade?

    Título

    A maldição da noz-moscada – Parábolas para um planeta em crise

    Autor

    AMITAV GHOSH (tradução: Miguel Romeira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Junho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Confesso que estava um pouco reticente em levar este livro na bagagem para preencher a ociosidade dos meus dias de veraneio. As férias pediam leituras mais ligeiras, para não dar muito trabalho ao miolo ou narrativas que fossem bem-dispostas, de preferência na companhia de um branco fresquinho. Como se diz, espalhei-me ao comprido, mas ainda bem.

    A partir de um episódio ocorrido em 1621 numa das ilhas Banda, no território das Molucas, na actual Indonésia, o romancista e ensaísta indiano, Amitav Ghosh (n. 1956), tece uma teia de relações entre os factos aí ocorridos, o massacre de toda a população local (provavelmente um dos grandes genocídios esquecidos pela História), e as presentes alterações climáticas que afectam todo o planeta. Uma alucinante viagem por tudo aquilo que o Homem (leia-se o Homem Branco e Ocidental) foi fazendo e provocando em vários lugares do globo, interferindo com a Natureza nas mais variadas maneiras, com consequências devastadoras. 

    Naquele tempo vivia-se uma corrida às especiarias, caracterizada pelo autor como “a corrida espacial da época”, em particular a tão demandada noz-moscada (Myristica fragans). Para a colher era preciso atravessar meio mundo. Com isso, “ao viajarem pelo mundo conhecido, a noz-moscada, o macis e outras especiarias fizeram nascer rotas de comércio que atravessavam o oceano Índico e entraram por África e pela Eurásia.” 

    A noz-moscada, além do uso culinário, também era procurada devido às suas propriedades medicinais, sendo cobiçada como símbolo de luxo e de estatuto: “No final da Idade Média, a noz-moscada tornou-se tão valiosa na Europa que uma mão-cheia pagava uma casa ou um navio.”

    Ao analisar este caso, a eliminação do povo Banda, levada a cabo pelos holandeses a fim de assegurar o monopólio do comércio da noz-moscada, Amitav Ghosh estabelece paralelismos com outros episódios ocorridos em diferentes partes do mundo e em outros tempos, como o caso das tribos indígenas nos Estados Unidos da América ou no Amazonas, e de como, ao destruíram as suas maneiras de viver, acabam por destruir todo um equilíbrio existente, com repercussões, por vezes, difíceis de alcançar. 

    O autor desdobra-se em múltiplas e inteligentes abordagens, seguindo um fio condutor, a acção do Homem Branco e Ocidental, tido como o pináculo do mundo civilizacional, contra um outro mundo, inferior, o dos outros, vistos como “bestas”. Abordagens essas que vão desde a biologia ao racismo, da escravidão aos actuais movimentos como o Black Lives Matter.

    Este é um livro que exige um certo nível de concentração, não por apresentar um discurso complexo, muito pelo contrário, explana uma narrativa bastante fluída, com diferentes histórias que se vão interligando numa malha mais ampla, quase gigantesca. A concentração é necessária para, com cada uma dessas histórias ou curiosidades (que são mesmo imensas), como se fossem folhas, não só conseguirmos ver a árvore como toda a floresta de conhecimento que o autor nos oferece.

    Uma leitura que além de ser um murro no estômago, provoca também um nó na garganta e um aperto no coração: o que andámos nós a fazer para deixar o mundo neste estado?