Etiqueta: Elisabete Tavares

  • Saúde: O comando está nas tuas mãos

    Saúde: O comando está nas tuas mãos

    Título

    Eu escolho crescer com saúde!

    Autores

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora

    Oficina do Livro (Novembro de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Já era fã do Dr. Manuel Pinto Coelho. Mas este livro é daqueles que, além de útil, me falou ao coração porque se dirige aos jovens. Nunca foi tão importante um livro como este, pela sua componente informativa e pedagógica, dirigida a uma faixa da população que, infelizmente, tem sido alvo de campanhas nefastas na área da Saúde.

    Nada é mais preciso do que ensinar os jovens a serem autónomos a ajudá-los a tomar decisões baseadas na evidência e no melhor que a Ciência e o conhecimento acumulado têm para oferecer.

    Escrito numa linguagem acessível e direccionada para os jovens, o livro aborda temas muito diversos, de uma forma simples e acessível. As ilustrações, as caixas de pontos e o grafismo, são muito apelativos (mesmo para adultos). 

    O livro está estruturado em cinco capítulos. O primeiro versa sobre o corpo humano, o sistema imunitário e o ‘rei’ intestino. O segundo, com o título ‘Os quatro elementos’ aborda temas como a importância da vitamina D e da água do mar. O terceiro capítulo anda à volta dos hábitos saudáveis e quarto propõe um ‘Reset’, debruçando-se, por exemplo, sobre o lazer, a amizade, os ecrãs e as doenças mentais. Por fim, o quinto capítulo, são deixadas mais algumas dicas e considerações, incluindo sobre o tema do tabagismo.

    O livro tem ainda o chamariz de ter prefácios da autoria de Cristiano Ronaldo e da ginasta olímpica Filipa Martins.

    Se se preocupa com a saúde dos jovens, se tem jovens na família, este é um livro que deve estar lá em casa. Mas também deve estar em todas as bibliotecas e escolas porque é de leitura obrigatória. Não só pelos conteúdos informativos sobre saúde mas também pela informação relacionada com a protecção ambiental.

    Mas este livro não é só útil para os jovens. Os adultos podem beneficiar muito com a leitura da obra. Até porque é mais divertida de ler do que os livros escritos para os adultos. Como se diz em inglês, é mesmo um caso ‘Win-Win‘.     

  • Ser indiferente à cor da pele

    Ser indiferente à cor da pele

    Título

    O fim das políticas de raça

    Autores

    COLEMAN HUGHES (Tradução: Pedro M. Santos)

    Editora

    Guerra & Paz (Outubro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    O autor desta obra propõe algo que pode ser visto por muitos, designadamente de ideologia ‘woke‘, como revolucionário. Coleman Hughes propõe que se deve ser indiferente à cor da pele. 

    O que deveria ser óbvio para todos, infelizmente não é, apesar de estarmos em pleno século XXI: somos todos iguais, independentemente do tom que tem a pele de cada um. Discriminar com base na cor da pele é profundamente errada. É óbvio, mas ainda há quem defenda a divisão dos seres humanos com base neste critério. 

    E não, o autor não tem a pele de tom claro. O escritor, podcaster e colunista tem ascendência afro-americana e porto-riquenha e cresceu em Montclair, Nova Jersey, nos Estados Unidos. 

    Licenciado em Filosofia, Hughes falou perante o Congresso norte-americano, em 19 de Junho de 2019, numa audiência sobre reparações por causa da escravatura. Hughes mostrou ser contra aquela campanha, alertando que iria servir para apenas dividir ainda mais o país. Adiantou que a serem aprovadas reparações, todos os negros norte-americanos que são contra essa campanha iriam ser transformadas em vítimas sem o seu consentimento.

    Neste livro, Hughes propõe que se regresse aos ideais que inspiraram o movimento dos Direitos Civis americanos. Escreve que o afastamento desses ideais deu inicio a uma era de medo e ressentimento e políticas nefastas baseadas na raça. Para Hughes, as políticas ‘woke‘ supostamente anti-racismo criam uma falsa equidade. 

    O autor estruturou este livro em seis capítulos, sendo que começa com uma introdução em que responde à questão: ‘Porquê escrever sobre raça?’

    Na obra, Hughes debruça-se longamente sobre o conceito de neo-racismo, que tem como alvo a população branca, baseado no estereotipo de que todos os brancos são arrogantes, racistas e sem compaixão pela luta das pessoas não brancas. O autor ataca a autora Robin DiAngelo e outros que também defendem este tipo do chamado ‘racismo investido’. O autor também se debruça sobre as instituições neo-racistas de elite.

    No último capítulo, Hughes propõe soluções para ‘Resolver o problema do racismo na América’. Para o escritor, “o verdadeiro problema do racismo na América” é que “a nossa sociedade continua a não conseguir consagrar o daltonismo como seu ethos orientador”. E adianta que “é este fracasso contínuo que tem permitido que o racismo sancionado pelo Estado surja repetidamente sob novas e diferentes formas – mais recentemente através do movimento a que tenho chamado de neo-racismo”.

    “O caminho neo-racista conduz a um mundo sombrio em que brancos e minorias trocam eternamente os papéis, de opressores e oprimidos, de culpados e inocentes − um mundo sem qualquer concepção do bem comum, mas em que os indivíduos colocam os interesses do seu próprio grupo racial em primeiro lugar, independentemente dos custos para os outros”, escreve Hughes na página 166.  A alternativa, segundo Hughes, “é o sonho” que passa, designadamente, por “uma nação onde as pessoas vivem em segurança e gozam da liberdade de procurar a sua felicidade; uma nação sem cidadãos de segunda classe onde o espírito democrático prevalece e os políticos são responsabilizados perante as pessoas que servem; […]”.  

      

  • Os pequeninos que torceram um reino

    Os pequeninos que torceram um reino

    Título

    A infância e juventude dos reis de Portugal

    Autor

    SÉRGIO LUÍS DE CARVALHO

    Editora

    Livros Horizonte (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Sendo um dos mais qualificados e profícuos romancistas e divulgadores de História, Sérgio Luís de Carvalho é um mestre na arte de contar estórias. Em ‘A infância e a juventude dos reis de Portugal’, os leitores serão transportados para um fascinante e, por vezes, tumultuoso mundo dos príncipes e princesas que marcaram o rumo do nosso país. Mas não são contos de fadas.

    Longe de uma abordagem académica ou árida, Sérgio Luís de Carvalho oferece uma narrativa viva, didáctica e deliciosamente anedótica, em muitos casos, que alia rigor histórico a um estilo leve e acessível. Com uma curiosidade quase insaciável, com apartes deliciosos e a propósito, e uma escrita desenvolta e cativante desde a primeira página, este livro é um verdadeiro deleite para quem deseja conhecer os ‘bastidores’, em alguns casos escandalosos ou doentios, da outrora Monarquia portuguesa.

    Percorrendo as infância e juventude dos futuros monarcas e suas famílias, o livro vai iluminando os caprichos, as arbitrariedades e as peculiaridades que moldaram não apenas os seus destinos, mas também os do reino. É um retrato humano, por vezes divertido, outras vezes chocante, daqueles que, por nascimento ou desígnio, assumiram o trono e marcaram os rumos de Portugal. As histórias destes príncipes e princesas revelam-se cheias de contradições: entre o esplendor e o grotesco, o privilégio e o sacrifício, a inteligência e a insensatez.

    Sérgio Luís de Carvalho estrutura o livro de forma meticulosa, organizando os capítulos por monarca e oferecendo ao leitor a liberdade de escolher por onde começar. O índice, que apresenta os reis pelos seus cognomes — como ‘D. Pedro I, o príncipe destrambelhado’, ‘D. Sebastião, o príncipe alienado’ ou ‘D. João V, o príncipe galante’ —, já antecipa o tom despretensioso e quase irónico da narrativa.

    Esta escolha editorial é, aliás, um convite à leitura não-linear, permitindo que o leitor explore as personalidades mais fascinantes ou as histórias mais curiosas de acordo com o seu interesse.

    A riqueza de detalhes é notável, fruto do extenso trabalho de investigação, que se baseia tanto em crónicas antigas como em análises modernas. Sérgio Luís de Carvalho apresenta os príncipes e princesas com uma imparcialidade que não tenta desculpar os seus erros, mas também não os reduz a caricaturas simplistas. Assim, conhecemos D. Pedro I, cujas paixões e vinganças o tornaram uma figura tão fascinante quanto controversa; D. Sebastião, cuja obsessão pela glória e religiosidade beirava a alienação; D. João V, que, entre festas e conquistas amorosas, simbolizava o apogeu e os excessos do barroco português; e D. Pedro IV, cuja vida dividida entre Portugal e o Brasil o tornou uma das figuras mais complexas e enigmáticas da nossa história.

    Mas não é apenas o conteúdo que cativa: o estilo de Sérgio Luís de Carvalho é uma das maiores virtudes do livro. A sua escrita combina leveza e profundidade, didactismo e humor. Mostra bem como captar a atenção do leitor – não se tivesse ele dedicado a ser professor do ensino secundário –, seja através de uma anedota curiosa, seja por meio de uma reflexão mais séria sobre o contexto histórico.

    A violência, os desmandos e a opulência que marcam muitas dessas histórias não são romantizados, mas apresentados como parte integrante de uma realidade histórica muitas vezes desconcertante.

    Apesar do carácter lúdico deste livro, Sérgio Luís de Carvalho também nos oferece uma reflexão implícita sobre a natureza do poder e a formação das elites. Ao explorar como as infâncias e juventudes muitas vezes arbitrárias e traumáticas moldaram os futuros monarcas, o autor lança luz sobre os mecanismos que perpetuavam (e, em alguns casos, ainda perpetuam) as desigualdades e os privilégios. Não se trata apenas de reviver episódios pitorescos ou dramáticos, mas também de compreender as forças sociais e políticas que moldaram a História de Portugal.

    Para os leitores contemporâneos, ‘A infância e a juventude dos reis de Portugal’ é também uma oportunidade de olhar para os bastidores da monarquia com o mesmo fascínio que hoje as revistas cor-de-rosa dedicam às casas reais da Europa. No final, fica sobretudo um retrato humano, um mosaico de vidas extraordinárias e, muitas vezes, contraditórias. E Sérgio Luís de Carvalho consegue transformar o que poderia ser apenas um inventário cronológico de príncipes e princesas num relato fascinante e acessível, que diverte e ensina ao mesmo tempo. Uma leitura obrigatória para os apaixonados pela História de Portugal e para todos os que desejam descobrir os traços humanos por debaixo das coroas.

  • A arte como instrumento de superação

    A arte como instrumento de superação

    Título

    Faca − Meditações na Sequência de Uma Tentativa de Homicídio

    Autor

    SALMAN RUSHDIE (Tradução: J. Teixeira de Aguilar) 

    Editora

    Dom Quixote (Maio de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Salman Rushdie é um autor tão amado quanto odiado. Sobre ele foi decretada uma sentença de morte. Foi em Fevereiro de 1989 que o aiatola Ruhollah Khomeini, o líder supremo do Irão, ordenou, através de uma fatwa, que o escritor fosse assassinado. Trinta e três anos depois desse decreto, a 12 de Agosto de 2022, Rushdie subia ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, quando foi atacado por um jovem armado com uma faca. O autor de ‘Os Versículos Satânicos’ sobreviveu ao atentado e decidiu responder ao violento ataque escrevendo este livro.

    A obra acaba por ser uma espécie de exorcismo combinado com a decisão de expurgar a ‘vítima’ existente no escritor, fruto da experiência de ser um alvo a abater por fundamentalistas.  Rushdie expõe ao detalhe a experiência traumática por que passou, naquele fatídico dia de Agosto, numa catarse. Ao mesmo tempo que liberta a dor e as recordações, o autor procurou, sobretudo, usar a escrita como instrumento para superar a dor, a injustiça, a perseguição e a violência de que foi alvo (e continua a correr perigo diariamente). De resto, o escritor dedica a obra aos homens e mulheres que lhe salvaram a vida. 

    As páginas dedicadas ao ataque em si, e aos dias em que esteve internado, são difíceis de ler e de digerir. São íntimas, pessoais e gráficas em muitos aspectos. “Abri os olhos − apenas o olho esquerdo, conforme parcialmente percebi; o olho direito estava tapado com uma ligadura macia − e as visões não desapareceram, tornando-se, ao invés mais fantasmagóricas, translúcidas, e comecei a tomar consciência da minha verdadeira situação. A primeira descoberta, a mais premente e menos confortável foi o ventilador. Mais tarde, quando mo retiraram e pude dizer coisas, disse que era como se me enfiassem a cauda de um tatu pela garganta abaixo”. Relatos como este atingem-nos de uma forma brutal e fria. São relatos contados na primeira pessoa por alguém que foi atacado de forma vil. Os detalhes sucedem-se, página após página, e tocam-nos de uma maneira desconfortavelmente íntima. “O meu pescoço e a minha face direita tinham sido retalhados pela faca e eles podiam ver ambos os bordos do corte unidos por agrafos metálicos”.

    Mesmo as páginas dedicadas à recuperação nos catapultam para um dia-a-dia de alguém que é, no mais profundo sentido, um sobrevivente. “Era entusiasmante fazer coisas tão ‘normais’ como ir a casa de amigos”. O ‘regresso’ ao mundo é descrito ao pormenor; como foi sentido, por dentro; as impressões. Mas era um novo mundo. Uma nova vida. Uma entrevista publicada na The New Yorker, em Fevereiro de 2023, simbolizaram como que o ‘anúncio’ desse regresso.  “Quando a entrevista a fotografia foram publicadas, foi como uma reentrada no mundo após meio ano no Limbo. Fevereiro significava tudo isso. Além disso, 14 de Fevereiro era o 34º aniversário da fatwa. Eu deixara de me recordar dos aniversários da fatwa, mas agora tinha de recomeçar.”

    Rushdie é o vencedor; sobreviveu e vive, recusando submeter-se ao peso da sentença decretada. Recusa esconder-se. Recusa render-se. E vive. “Mas 14 de fevereiro era também o Dia dos Namorados e Eliza e eu decidimos comemorá-lo indo jantar a um restaurante pela primeira vez em seis meses. Fomos com segurança, mas fomos. Pareceu-me um momento profundo. olá, mundo, estávamos a dizer. estamos de regresso, e depois do nosso encontro com o ódio estamos a celebrar a sobrevivência do amor. Depois do anjo da morte, o anjo da vida.” 

    Ler este livro não nos atira apenas para dentro da vida de um escritor que foi retalhado física e emocionalmente por um ataque de ódio e recuperou. Recorda-nos da brevidade da vida e da liberdade que temos para a viver. Uma liberdade diferente da de quem olha por cima do ombro e sai com um segurança atrás, como Rushdie. E o escritor, mesmo assim, escolhe viver. Livre.  

  • Amar sem amarras

    Amar sem amarras

    Título

    Relacionamentos amorosos

    Autor

    MARIA GORJÃO HENRIQUES

    Editora

    Albatroz (Outubro de 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Viver relacionamentos mais autênticos. Esta é a principal proposta deste livro de Maria Gorjão Henriques, terapeuta, professora e facilitadora de ‘consciência sistémica‘. Assim, a autora propõe ao leitor que tome consciência de que pode não estar a ser autêntico nos seus relacionamentos por trazer consigo as histórias e traumas familiares. Em simultâneo, propõe que o leitor se liberte dessas amarras que o impedem de ser ele próprio nos relacionamentos.

    O livro sugere um caminho de auto-descoberta e de abertura de consciência. Saliente-se que se trata de uma obra que se segue a uma outra da autora: ‘O despertar da consciência com as constelações familiares’ (Albatroz, 2023). 

    A autora estruturou o livro em 10 capítulos, incluindo um sobre ‘Uma visão sistémica sobre a importância sistémica da família de origem’ e outro sobre ‘Os arquétipos masculino e feminino’ e termina com o capítulo sobre ‘O relacionamento amoroso enquanto caminho para a nossa evolução espiritual’. Também incluiu no livro algumas propostas de exercícios, bem como páginas com frases como: “o que pensas crias, o que sentes atrais”.

    No fundo, a proposta do livro é que o leitor faça todo um percurso de se descobrir a si próprio, quem é o que o move nos relacionamentos, se são crenças familiares e comportamentos aprendidos e traumas vividos ou se vive os relacionamentos de forma autêntica, estando presente na sua essência.

    No livro também são abordadas temáticas sobre as dinâmicas pragmáticas que podem existir em relacionamentos amorosos e de como se pode ter relacionamentos harmoniosos, sublinhando-se, por exemplo, a importância de haver um equilíbrio entre o dar e o receber. 

    A autora pretende, sobretudo, transmitir boas práticas com base na permissa de que “não existem relacionamentos perfeitos, mas podem existir bons relacionamentos”. Sempre num contexto de uma existência espiritual, em que existe uma conexão do leitor consigo mesmo e que está ‘presente’ na vida, incluindo nos relacionamentos, não espelhando no outro os traumas e ‘heranças’ familiares, mas consciente e desperto. 

  • Um livro que vai irritar libertários e conservadores

    Um livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    Reflexões sobre a liberdade, identidades e famílias

    Autor

    VÁRIOS

    Editora

    Oficina do Livro (Agosto de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não foi de propósito. Calhou assim, na mesma edição fazer recensão de um segundo livro que serve como ‘repelente’ de libertários e conservadores. A capa do livro é enganadora. Lendo o título, pensamos estar perante um daqueles livros das associações de famílias numerosas ou cristãs, das que defendem as chamadas famílias tradicionais, que, em Portugal, assumem tantas formas quanto o número de géneros inventados que já existem na comunidade LGBTxpto. Existe a ‘família tradicional’ sem amante, com amante. Com ‘afilhados’ e ‘afilhadas’. Com divorciados recasados. Com uniões de facto. Com casais que já não se amam há demasiado tempo. Etc. Etc. 

    Mas não é um livro desses, em defesa dos ‘valores’ das ‘famílias tradicionais’, dos ‘bons costumes’, nem do respeito pelos ensinamentos bíblicos. Só percebemos isso quando colocamos os óculos e lemos, à cabeça, o nome de Joana Mortágua na lista de coordenadoras da obra. Mais abaixo, saltam nomes como o de Fernanda Câncio, Catarina Furtado, Daniel Oliveira, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, … É um daqueles livros que transpira a enganadora palavra ‘progressista’ quer queira, quer não. 

    Esteticamente, considero o livro feio e não me é fácil usar este adjectivo aplicado a um livro. Mas é. Por isso, achei que seria um desses livros ‘sóbrios’ para famílias cristãs, com fundo bege e letras garrafais em grená escuro e a palavra ‘famílias’ ali a rondar. Depois, está escrito com letras cinzentas. Sim, leu bem. Quando abri o livro até pensei estar com os óculos sujos e a ver desfocado, mas não. Era mesmo do livro e nem com anos de ioga ocular conseguiria ler melhor esta obra com letras desta cor. É como tentar compreender algumas etiquetas de roupa desbotadas, sendo que, inevitavelmente, após uns segundos de esforço, se decide colocar tudo junto a lavar na máquina, no programa para ‘algodão’, e rezar. 

    Debruçando-me sobre o conteúdo, os textos parecem mesmo ter sido escritos pelos autores mencionados, admitindo, aqui e ali, alguma ‘ajuda’ de escritores-fantasma ou de um jornalista ‘amigo’, que nem todos nasceram com o dom da prosa e alguns, tendo-a, têm mais o que fazer com o tempo (que é dinheiro). Quanto aos temas que aborda, considero-os pertinentes e relevantes. Vários textos abordam o tema da interrupção voluntária da gravidez, que, sendo-se a favor ou contra, é uma realidade na sociedade, que afecta muitas mulheres. Não falta a questão da inclusão e da comunidade LGBT+nãoseiquê. (O ser humano gosta de complicar o que é, por natureza, simples). 

    Nos dias que correm, a tolerância voltou a ser um tema no mundo ocidental, tal como a inclusão, nomeadamente direccionada para a comunidade transgénero. Mas, de fora, está, por exemplo, a defesa e protecção de meninas, raparigas e mulheres, que perdem privacidade e espaços seguros, perdem lugares em pódios e na meta, em nome de uma ideologia que mete impressão, sobretudo, às amigas lésbicas e amigos gay. Por outro lado, alguns destes nomes que escrevem palavras como ‘inclusão’ e ‘diversidade’, defenderam a segregação insana, anti-científica e criminosa durante a pandemia. Ou seja, defendem que a mulher é dona do seu corpo e cada um escolhe o género que quiser, desde que aceite ser forçado a tomar fármacos e a usar máscara facial, mesmo que a Ciência tenha uma palavra diferente a dizer. O consentimento, afinal, é só para a ‘cama’? Onde estão os direitos humanos quando há coacção e invasão do corpo? Ou quando se invade a privacidade e o ‘mundo interior’ de crianças e jovens com perguntas pornográficas nas escolas, sem conhecimento das famílias?

    Com este aparte, recomendo a leitura deste livro, sobretudo se se discordar do direito à interrupção voluntária da gravidez ou do direito a assumir o género que se quiser. Ouvir versões da realidade diferentes das nossas e outras visões do mundo é uma forma de nos mantermos despertos e atentos, conscientes, e activar o botão do diálogo e a ponte para a empatia. Do mesmo modo, quem se preocupa com questões como inclusão e tolerância, vale a pena ler alguns dos textos que integram esta obra.  As letras do livro até podem ser cinzentas e estar desbotadas, mas o mundo também não é a preto e branco. (Nem feito de unicórnios e arco-íris de manhã à noite).

  • Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    São favas contadas

    Autor

    GUIDA CÂNDIDO

    Editora

    Dom Quixote (Outubro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nada como um par de brócolos para tirar conservadores do sério. Como bónus, também funciona para deixar libertários à beira de um ataque de nervos. É verdade: as dietas e opções nutricionais transformaram-se numa das armas a usar nos vastos campos de batalha em que se tornou o espaço público mediático e digital. Como quando éramos crianças, hoje, não há meio termo: ou se é do Benfica ou do Sporting. Nada de ser do Belenenses ou do Académica. A rivalidade é a valer. Assim, é também esse o cenário que encontramos no mundo de uma vasta camada de adultos ocidentais. Se não és do meu ‘clube’, és do ‘clube’ rival. Não há cá meio termo.

    Estará o leitor a questionar se me enganei no texto e a indagar o que é que isto tem a ver com o livro analisado nesta recensão. Tem tudo a ver. As dietas sempre foram sintomas de credos e religiões e dão pistas para a origem familiar de cada um. O indiscutível bacalhau e o embaixador pastel de nata que o digam. Mas a dieta é também um sintoma ideológico. Ninguém que se diga conservador se assume como vegetariano numa qualquer rede social. Ficava mal. O mesmo vale para um libertário. É tudo gente que come carne ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Se, por acaso, algum for apanhado a comer uma saladinha vegetariana ao almoço, está frito. Irão surgir suspeitas de tiques de wokismo com uma pitada de extrema-esquerda, caviaríssima, naturalmente. 

    Por isso, este livro é tão bom… Permite, de uma só cajadada, ‘matar dois coelhos’, irritando conservadores e libertários. Traduzido para a realidade ‘tuga’ corresponde, mal comparado, à malta que usa polo ou roupa boa de marca, bem como todos os amantes de tourada, caça e monarquia, com socialistas e social-democratas à mistura. Mas, na realidade, este livro permite ‘matar três coelhos’ com uma só cajadada. É que vai também irritar a malta woke, da extrema-esquerda e ‘liberal’. Em linguagem lusa, apanha parte dos que votam no PAN, dois ou três do Bloco e toda a seita da Climáximo. Isto, porque o vegetarianismo está ali no limbo, ideologicamente falando. Num mundo ocidental polarizado ideologicamente, ser vegetariano é não ser nem carne nem peixe. Literalmente. Ou se é vegan ou totalmente carnívoro. No fundo, qualquer vegetariano vai ser odiado pelos wokistas de cabelo rosa e, em simultâneo, pela malta da ‘direita’, em geral. 

    Claro que há excepções. Aliás, acabei de me lembrar de uma amiga ultra-conservadora que não come carne. Mas é um caso e vamos ver quanto tempo resiste à pressão dos pares ‘liber-cons’.

    Em resumo: com tantos bónus, acresce que se trata de uma obra que dá gosto ler, ver e sentir. O papel é daqueles que já pouco se vê. Tem fotografias catitas e ‘cheira a livro’. Está recheado de receitas e, como acompanhamento, apresenta uma componente histórica sobre a arte da cozinha, dos saberes antigos, daqueles que misturam nutrição com mezinhas milagrosas.

    Apesar de ser um livro sobre vegetarianismo, pesa que nem um naco de carne para assar. Com osso. Por isso, não é aconselhável para se levar de trotinete até à Baixa ou de bicicleta até aos Anjos, a não ser que se tenha aquele acessório tipo cesto, próprio para mostrar na vizinhança os legumes biológicos comprados a cada Sábado, depois do brunch e antes do almoço-piquenique com manta adequada. É que isto de ser de esquerda, hoje, em dia, é muito trabalhoso. Além de caro.

  • O ABC das hipersensibilidades

    O ABC das hipersensibilidades

    Título

    Alérgico

    Autora

    THERESA MACPHAIL (Tradução: Dinis Pires)

    Editora

    Casa das Letras (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não estou a mentir quando escrevo que, assim que abri este livro, comecei a sentir pó nas narinas e uma ligeira comichão nos braços, mãos e olhos. Se há algo que aprendi ao longo da vida, é que a sugestão funciona. O nosso corpo reage à sugestão. Portanto, assim que li a palavra ‘alérgico’ no título da obra, o meu corpo começou a ‘inventar’ sintomas. Dirão que, se calhar me acontece sempre o mesmo quando pego num livro e que eu é não reparei. Mas, como estava com este livro nas mãos, fiquei mais atenta. Admito essa possibilidade, embora, conhecendo o meu corpo como conheço, ele é mesmo ‘sugestionável’. Ou ‘sensível’ a sugestões. Não me pergunta nada. Entra de imediato em modo de reacção. Até que lhe digo ‘calma, não se passa nada’ e ele lá se acalma e regressa ao seu ‘normal’. 

    De resto, este é um dos temas mencionados na obra: a definição de alergia e como saber se se é alérgico ou não. É algo mais complexo do que pensava. O certo é que, até 2030, metade da população humana sofrerá de algum tipo de condição alérgica, segundo estimativas citadas pela autora. Actualmente, a percentagem está na casa dos 40%.

    A autora não poupou em investigação e terá, acredito, de ter ‘lambido’ e estudado muitas páginas de livros empoeirados e cheios de ácaros para escrever esta obra. Apresenta-se como antropóloga, médica, ex-jornalista e professora associada de estudos científicos e tecnológicos que investiga e escreve sobre saúde pública global, biomedicina e alergias. Como se não bastasse, fez doutoramentos na Universidade da Califórnia, em Berkeley e em São Francisco (ou seja, esteve bastante exposta ao vírus do ‘wokismo’, o que nada tem a ver com esta recensão).

    Esta antropóloga experienciou, na sua vida pessoal, o pior que pode acontecer no que toca ao tema das alergias. Quando tinha 24 anos, o seu pai, James MacPhail, morreu devido a uma grave reacção alérgica que sofreu depois de ser picado no pescoço por uma abelha. Tinha apenas 47 anos. 

    Anos depois, chega-nos esta obra, na qual Theresa MacPhail descreve muitos casos e exemplos de situações de pacientes que ajudam a ilustrar as diversas facetas da realidade de quem vive com algum tipo de alergia. Mais do que os casos, a autora debruça-se sobre a história, os mecanismos e o que a Ciência diz sobre essa condição que atinge grande parte da população.

    No caso do pai da autora, por exemplo, nem sequer sabia que era alérgico à picada de abelha. Quantos de nós seremos alérgicos a algo e nem sabemos? Desconhecer que se padece de uma alergia pode ser positivo, pois viveremos sem preocupação, mas também podemos morrer mais cedo, de algo que podíamos ter prevenido. Ou não, se olharmos a vida sob o conceito de destino e da crença de que tudo acontece por um motivo, mesmo a morte física. Nem que o motivo seja inspirar o nascimento de um livro que irá ajudar outros. 

  • As (últimas) lições de Calvino

    As (últimas) lições de Calvino

    Título

    Seis propostas para o próximo milénio

    Autor

    ITALO CALVINO (Tradução: José Colaço Barreiros)

    Editora

    Dom Quixote (Abril de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    São as últimas ‘lições’ de um grande escritor. Trata-se dos textos sobre literatura, os rascunhos, que Italo Calvino preparou em 1985, no âmbito de um ciclo de seis conferências que iria apresentar em Harvard, nos Estados Unidos. Antes de partir, teve de ser internado e já não voltou a sair do hospital. 

    Lendo o livro, senti que estava a assistir às conferências que Calvino planeava dar. Detive-me na página 79 e numa das suas ‘lições’: a ‘exactidão’ na literatura. Só a introdução que faz, antes de ‘atacar’ o tema, é de nos transportar para Harvard e, cerrando os olhos, conseguimos imaginar o orador a expor a sua posição. “Exatidão para mim quer dizer sobretudo três coisas”, escreveu Calvino. A saber: “um projeto da obra bem definido e bem calculado; a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis […]; uma linguagem o mais precisa possível como léxico e na sua capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação”.  O parágrafo seguinte é revelador do pensamento do escritor e do seu modo de viver a literatura e a escrita, à luz das exigências da sua ‘exatidão’. “A literatura […] é a Terra Prometida em que a linguagem se torna o que realmente deveria ser.” (Mais adiante, contrapõe: “Giacomo Leopardi afirmava que a linguagem é tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for”.)

    E o que dizer sobre a ‘lição’ acerca da ‘leveza’? E da homenagem a Cyrano de Bergerac? “É um escritor extraordinário, Cyrano, que mereceria ser mais recordado, e não só como o primeiro verdadeiro precursor da ficção científica, mas pelas suas qualidades intelectuais e poéticas.” E ainda: “Cyrano celebra a unidade de todas as coisas, inanimadas ou animadas, a combinação de figuras elementares que determina a variedade das formas vivas, e acima de tudo dá-nos o sentido da precariedade dos processos que as criaram […]”.

    Ainda sobre a ‘leveza’, recorda que Cyrano chegou a “proclamar a fraternidade dos homens com as couves”, imaginando o protesto de uma couve prestes a ser cortada. E cita Cyrano: “Homem, meu querido irmão, que te fiz que mereça a morte? […] Desabrocho, estendendo-te os braços, ofereço-te os meus filhos em semente e, como recompensa da minha delicadeza, cortas-me a cabeça!”

    Muito teria ainda por contar, aqui, sobre as ‘lições’ de Calvino, que abrangem ainda a ‘rapidez’, a ‘multiplicidade’, a ‘visibilidade’ e o ‘começar e acabar’. Mas termino aqui, recomendando a leitura deste livro, tenha ou não interesse em literatura, nem que seja pelo prazer de ler Calvino. E, só por isso, já vale a pena. (Os olhos e a carteira, neste caso.)

  • O inconformado

    O inconformado

    Título

    Carlos Antunes Memórias de um Revolucionário

    Autor

    ISABEL LINDIM

    Editora

    Oficina do Livro (Abril de 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Um homem pode ser um herói ou um vilão, dependendo de quem relata a sua história. Neste livro de memórias relatadas na primeira pessoa e recolhidas pela sua enteada (Isabel Lindim), Carlos Antunes sai, sobretudo, com a imagem de alguém que nunca se conformou com as coisas.

    Sem dúvida, que Carlos Antunes, que liderou com outra dissidente do PCP, Isabel do Carmo, a criação das Brigadas Revolucionárias (BR), será um vilão para muitos, ou mesmo um terrorista. A organização esteve por detrás de vários atentados e assaltos. Também para a PIDE, a polícia política do Estado Novo, era visto como um delinquente perigoso. 

    Para muitos da extrema-esquerda, Carlos Antunes, será um herói, bem como todos os que participaram nas acções da BR.  As actividades da BR mantiveram-se mesmo após o 25 de Abril e acabaram por ser seguidas e ainda mais radicalizadas pelas FP-25. 

    Carlos Antunes não queria ir para a tropa. A clandestidade salvou-o do serviço militar. O seu caminho ficou traçado. Acreditava ser um pacifista (“e ainda hoje tenho essa mania“, afirmou, citado na obra). 

    Para mim, nascida em Abril de 1974, é surreal (e aterrador) ler os relatos de  quem fez testes a bombas na serra da Arrábida, em preparação para assaltos e atentados. Mas ler este livro é isso: ver, por dentro, como foi que actuaram alguns destes militantes de extrema-esquerda na luta contra a ditadura e mesmo depois da chegada da democracia. O que sentiam, como viviam, com quem falavam e se relacionavam.

    Ler esta obra pode causar indigestão a alguns. Pode deixar outros inspirados. Será útil para investigadores e historiadores. Permite ter um vislumbre, a partir de dentro, de um movimento que se radicalizou na busca de uma sociedade que queria que fosse mais justa e solidária, nomeadamente com os povos das antigas colónias ultramarinas. 

    Numa altura em que políticas e ideologias de raiz totalitária renascem nos governos no poder de países do Ocidente, nomeadamente na Europa, esta pode ser uma obra para se reflectir. Vivemos, actualmente, numa era em que regressam a censura, a eliminação da liberdade de expressão, a perseguição a “dissidentes”. Hoje, os meios de censura e perseguição são as leis e o silenciamento das opiniões no espaço digital. A cultura de cancelamento e ostracização laboral, económica e social. A propaganda nos media está em níveis máximos. Vivemos in loco a obra distópica ‘1984’, de George Orwell. Por isso, o conhecimento da História é cada vez mais relevante. Para que não se caia nos mesmos erros. Nem no lado dos governantes e ditadores, nem do lado de quem combate as ditaduras. Para que o futuro possa ser moldado, não por ditadores nem por extremistas e radicais, mas por inconformados moderados.