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  • Autoridade de segurança alimentar em França põe em xeque águas minerais da Nestlé

    Autoridade de segurança alimentar em França põe em xeque águas minerais da Nestlé

    É um ‘escândalo das águas minerais’ por agora apenas em França, mas que poderá vir a ter repercussões em todas as marcas. A Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) concluiu, num relatório oficial confidencial divulgado ontem pelo jornal Le Monde, que as nascentes da Nestlé Waters, líder mundial do mercado de águas minerais, apresentam problemas de poluição bacteriológica e de contaminantes persistentes, e acusa o grupo suíço de recorrer a técnicas não autorizadas de purificação. Em declarações ao PÁGINA UM, a directora de comunicação da Nestlé Waters na França defende que as águas comercializadas pelo grupo suíço são “regularmente” testadas pelas autoridades, mas não quis comentar o relatório, alegando desconhecer o seu conteúdo. Apesar de uma presença residual da Nestlé Waters no mercado nacional, onde comercializa sobretudo a marca Aquarel (engarrafada em Espanha), na França este caso está a causar grande polémica, e a eurodeputada Marie Toussaint, do partido Les Écologistes, já exigiu que sejam retiradas das prateleiras dos supermercados as garrafas de águas minerais deste grupo suíço, como a Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, que provêm de nascentes de Vosges e Vergèze.


    A multinacional Nestlé, líder mundial no sector das águas minerais, está sob a mira das autoridades francesas depois de ser revelado um relatório oficial que alerta para a “qualidade sanitária” das águas minerais engarrafadas pelo grupo suíço. Apesar de ser um segmento residual, com 3,5% do total das vendas do grupo, as águas da Nestlé representaram vendas de 3,4 mil milhões de euros em 2023 a nível mundial, embora a quota em Portugal seja marginal, vendendo sobretudo as marcas Aquarel e Perrier.

    O jornal Le Monde e a France Info revelaram ontem que um relatório da Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) afirma que as águas minerais do Nestlé Waters não têm garantida de qualidade sanitária. Esta conclusão surge depois de um outro relatório desta entidade enviado ao Ministério da Saúde em Outubro do ano passado recomendar uma monitorização mais intensa aos procedimentos de captação e engarrafamento das águas minerais. Apesar de ter outras nascentes, em diversas países, as principais fontes da Nestlé Water, que comercializa sobre as marcas Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, entre outras, localizam-se em Vosges e Vergèze, em território francês. Em Portugal, a Nestlé comercializa a Aquarel, proveniente de nascentes em Herrera del Duque, na Extremadura, e no Parque Natural de Montesny, na Catalunha.

    Foto de uma garrafa de água mineral da marca ‘Vittel’, da Nestlé. (Foto: D.R.)

    As aguas minerais naturais (AMN) são águas de circulação subterrânea, consideradas bacteriologicamente próprias, com características físico-químicas estáveis na origem, distinguindo-se das águas de nascentes que, para serem comercializadas apenas necessitam de ser bacteriologicamente puras. Por lei, com excepção de alguns tratamentos físicos específicos, nenhuma destas águas pode ter qualquer adição de produtos de purificação ou de alteração das características organolépticas, como cor e sabor.

    As suspeitas sobre a qualidade das águas da Nestlé surgiram depois de um denunciante do Grupo Alma em 2021 ter desencadeado sucessivas investigações por parte da agência de controlo do consumidor francesa (DGCCRF) sobre as práticas dos produtores franceses de água engarrafada. Da investigação, saiu a descoberta de que a Nestlé Waters utilizaria métodos de desinfecção proibidos, como purificação por luz ultravioleta, tratamentos com carvão activado e microfiltração inadequada. Esses métodos são geralmente usados em tratamento de água para torneira, vendida obviamente a preços mais muitíssimo mais baixos.

    De acordo com o Le Monde, as autoridades públicas francesas passaram meses a desvendar gradualmente até que ponto os fabricantes de águas minerais engarrafadas estavam a usar tratamentos proibidos para lidar com a deterioração da qualidade das nascentes. Em teoria, o interesse comercial, e de marketing, das águas minerais é de serem provenientes de zonas isentas de poluição bacteriana ou química.

    (Foto: D.R.)

    No documento da ANSES, ontem citado pela imprensa francesa, confirmava-se a contaminação generalizada com bactérias, pesticidas, produtos perfluoroalquiladas (PFAS) – considerados contaminantes sintéticos de longa duração – das fontes naturais de água mineral exploradas pelo grupo Nestlé em França. Os especialistas apontam também um “nível de confiança insuficiente” para garantir “a qualidade sanitária” das águas minerais naturais engarrafadas das marcas Perrier, Contrex, Vittel e Hépar, entre outras, propriedade do grupo. 

    Perante um caso que já é considerado como o “escândalo da água”, o partido francês Les Écologistes, onde se destaca a eurodeputada Marie Toussaint, exigiu hoje a retirada das águas da Nestlé dos supermercados.

    Já no final de Janeiro deste ano, a Radio France e o Le Monde revelaram que um relatório da Inspeção-Geral dos Assuntos Sociais, apresentado ao Governo em Julho de 2022, que estimava que pelo menos 30% das marcas de água engarrafada utilizavam tratamentos proibidos por regulamentos, incluindo todas as marcas operadas pela Nestlé.

    O PÁGINA UM colocou questões à Nestlé Portugal sobre estas revelações e sobre os impacte no mercado nacional. As respostas vieram, porém, da própria directora de comunicação da Nestlé Waters em França, Elodie Lemeunier, não esclarecendo as questões concretas sobre as águas comercializadas em Portugal. Segundo esta responsável, “nos últimos três anos, a Nestlé Waters France empreendeu um plano de transformação com total transparência e sob o controlo das autoridades, partilhando com elas todos os
    dados relativos às nossas águas minerais naturais nas nossas duas unidades de produção em Vosges e Vergeze”, acrescentando que ainda não tiveram acesso ao relatório da ANSES “referenciado nos meios de comunicação social, pelo que não estamos em posição de comentá-lo”.

    Partido Les Ecologistes exige retirada das águas da Nestlé.

    E reitera que “a Nestlé Waters France sempre operou sob um sistema integrado de gestão da qualidade”, baseando-se “num sistema de filtragem combinado com um programa rigoroso de limpeza das tubagens de água e na análise de mais de 1.500 parâmetro, incluindo parâmetros físico-químicos, microbiológicos e sensoriais, para garantir a segurança das águas minerais naturais durante todo o processo produtivo”.

    Elodie Lemeunier garante também que houve reforços no controlo através de análises que “são constantemente partilhados com as autoridades que testam regularmente as nossas águas minerais, tanto na origem como no produto acabado, para confirmar a conformidade com os requisitos regulamentares aplicáveis, incluindo padrões de segurança e qualidade alimentar”.


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  • O ‘império das rádios’ de Luís Montez está em colapso e com contas escondidas

    O ‘império das rádios’ de Luís Montez está em colapso e com contas escondidas

    As duas principais empresas de rádio e de promoção de festivais de Verão de Luís Montez estarão em falência técnica com capitais próprios negativos de 12 milhões de euros. E usa-se o verbo ‘estar’ na forma condicional porque esse montante ser o último passível se conhecer, pois a Música no Coração e a Rede A não registaram as demonstrações financeiras de 2022 na Base de Dados das Contas Anuais, como é obrigatório por lei. Em todo o caso, a evolução dos últimos anos mostram uma crescente descapitalização e um aumento dos passivos que indiciam que o conhecido genro de Cavaco Silva transformou as suas empresas em ‘fábricas de calotes’.


    O outrora pujante ‘império de rádios’ do empresário Luiz Montez, também conhecido por ser genro de Cavaco Silva, está a desmoronar-se por completo, com indícios de gestão danosa, com descapitalização das suas empresas e um assombrosa acumulação de dívidas aos fornecedores e até ao Estado, em especial da Música no Coração (também promotora de espectáculos) e da Rede A – Emissora Regional do Sul, que detém a Rádio Sudoeste, associado ao festival na Zambujeira do Mar.

    A gravidade da situação financeira atinge tamanha dimensão, segundo apurou o PÁGINA UM, que Luiz Montez – que criou o seu ‘império, assente no sucesso das promoções de festivais de música como o Super Bock Super Rock e o Festival Sudoeste – nem sequer inseriu até agora a Informação Empresarial Simplificada do ano de 2022 daquelas duas empresas na Base de Dados das Contas Anuais (BDCA). As contas de 2023 ainda estão em fase de elaboração.

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    Conforme ontem foi noticiado pelo PÁGINA UM a pretexto da venda de duas rádios de Luís Montez à Medialivre (a dona do Correio da Manhã e da CMTV), quase todas as sete empresas radiofónicas detidas pela ‘holding’ Música do Coração estão em situação de falência técnica. No caso da Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação – que será uma das adquiridas pela Medialivre – está em falência técnica pelo menos desde 2017, consultando os registos do Portal da Transparência dos Media. No mais recente exercício com contas fechadas, a empresa que tem a filha e a neta de Cavaco Silva na administração apresentava capitais próprios negativos de quase 200 mil euros e um passivo total de mais de 2,3 milhões de euros.

    Este último montante inclui 407.273,99 euros de dívidas o Estado e outros entes públicos, que serão dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda por cima não declaradas no Portal da Transparência dos Media, uma vez que ultrapassa os 10% do passivo.

    A segunda empresa que vai ser vendida à Medialivre tem uma a situação financeira bastante similar, apesar dos capitais próprios negativos serem menos baixos (-8.777 euros). Em todo o caso, o passivo ultrapassa a fasquia de um milhão de euros, dos quais quase 482 mil euros será empréstimos (com juros) do próprio Luís Montez e 319 mil euros são dívidas ao Estado. 

    Luís Montez vai livrar-se de duas empresas de rádios que são ‘máquinas de fazer calotes’.

    Contudo, apesar de Luís Montez esconder intencionalmente as contas de 2022, a situação da ‘holding’ Música do Coração ainda é mais problemática do que as suas subsidiárias. No final de 2021, a ‘holding’ estava com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, registando, nesse ano, um pouco mais de um milhão de euros de prejuízos. Saliente-se que as contas da Música no Coração não estão consolidadas.

    Na verdade, somente por via de alguma engenharia financeira, o colapso da Música no Coração não se mostrava mais patente, pois existem sinais de exagero na avaliação dos activos financeiros e excedentes de revalorização. Além disso, em 2021, esta ‘holding’ de Luís Montez tinha uma liquidez praticamente nula, inconcebível numa empresa promotora de espectáculos: em caixa apenas se registaram 3.099 euros. Grande parte dos activos (cerca de 11,2 milhões de euros) estavam então contabilizados em participações financeiras através do método da equivalência patrimonial, mas, na verdade, esse montante poderá estará fortemente inflacionado face à actual situação financeiras das subsidiárias.

    Além disso, o endividamento da Música no Coração era, já em 2021, asfixiante, com empréstimos bancários de longa duração de 14,6 milhões de euros, mais quase 2,8 milhões de euros de contas a pagar a fornecedores, mais 1,4 milhões de euros de dívidas ao Estado e mais cerca de 6,3 milhões de euros em outros compromissos. Neste caso, não deixa de ser curioso que, apesar de ter uma empresa em falência técnica, com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, Luís Montez ainda tinha 786 mil euros emprestados a juros. A ‘sangria’ á sua própria empresa ‘moribunda’.

    Também promotora de festivais de Verão, a Música no Coração está em falência técnica e acumula ‘calotes’.

    No caso da Rede A, a situação financeira mostra-se em tudo similar. Apesar de Luís Montez não ter entregado as contas de 2022 no BDCA, enviou, porém, alguns indicadores financeiros mais básicos para o Portal da Transparência dos Media. E a situação é, efectivamente, de pasmar: nesse ano, os capitais próprios eram negativos em quase 5,4 milhões de euros e o passivo seguia nos 5,6 mihões de euros. Significa isto que o activo (‘património’) da Rede A era já somente de um pouco menos de 240 mil euros.

    Será de um optimismo desmesurado ter a esperança de, entretanto, ter ocorrido uma inversão da situação financeira da Rede A – que contabilizou em 2022 apenas rendimento de 14 mil euros e prejuízos de 184 mil euros. Pelo contrário, pela análise das contas de 2017 e 2021 (o último ano com contas disponíveis), feita pelo PÁGINA UM, esta empresa de Luís Montez está em franco processo de descapitalização e é um caso patológico de ‘maquina de fazer calotes’.

    Com efeito, em 2017 a Rede A ainda deu lucro (44.688 euros) e tinha uma situação financeira equilibrada com capital próprios positivos (251 mil euros), activos não correntes de um pouco mais de 2 milhões de euros. O único indicador que destoava era uma dívida ao Estado de 467 mil euros. A partir de 2018 começaram os prejuízos e, sobretudo, a descapitalização da empresa, com uma diminuição absurda de activos que acabaram por fazer resvalar a empresa para um abrupto estado de falência técnica. Assim, se em 2019, a Rede A apresentava activos da ordem dos 3,8 milhões de euros com o capital próprio já no vermelho (-171.373 euros), no ano seguinte registou-se um ‘terramoto’ financeiro: os activos para apenas 182 mil eeros (um ‘rombo’ de mais de 3,2 milhões de euros) e os capitais próprios despencaram para arrepiantes valores negativos (5.016.762 euros).

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    Nas contas de 2021 da Rede A que constam na BDCA, analisadas pelo PÁGINA UM, torna-se evidente o desaparecimento completo dos activos não correntes da Rede A (que ultrapassavam os 2 milhões em 2017), e um aumento colossal da rubrica ‘Outras contas a pagar’ (5,3 milhões de euros) – que não se referem a dívidas a fornecedores nem ao Estado (neste caso, o valor situava-se então nos 91 mil euros).

    Contas feitas, e descontando as contas escondidas de 2022 e também de mais um ‘ano de vida’ – que não terá, pela tendência histórica, sido muito favorável -, o ‘império das rádios’ e dos espectáculos de Luís Montez só existe ainda porque as empresas mesmo quando são ‘fábricas de calotes’ perduram enquanto houver alguém – leia-se, Governo e reguladores – que lhes permita docemente continuar a ‘safra’. Ou seja, a acumular dívidas indefinidamente ao estilo Ponzi. Alguém um dia ficará a ‘arder’. Pelo andar da carruagem, Luís Montez – que não se mostrou disponível para responder ao PÁGINA UM – ficará a salvo. As empresas são de responsabilidade limitada.


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  • Grupo do Correio da Manhã compra rádios falidas e com dívidas fiscais a familiares de Cavaco Silva

    Grupo do Correio da Manhã compra rádios falidas e com dívidas fiscais a familiares de Cavaco Silva

    O segredo é a alma do negócio, mas há negócios que, desvendando-se alguns pormenores, custa a acreditar que se concretizem. A Medialivre – que detém o Correio da Manhã e a CMTV, tendo Cristiano Ronaldo como principal accionista – vai adquirir, para ficar com estações de rádio em Lisboa e no Porto, duas empresas de Luís Montez, uma das quais tem como administradoras a filha e a neta de Cavaco Silva. Os montantes do negócio são desconhecidos, mas as contas públicas destas empresas do genro do ex-presidente da República mostram que têm sido ‘máquinas de fazer calotes’ sem ninguém as incomodar: capitais próprios negativos, prejuízos sucessivos, faltas de liquidez crónicas e existem mesmo indicadores de fluxos de caixa que indiciam atrasos em salários e fornecedores à míngua. E, claro, há dívidas ao Fisco, que parece ter-se tornado um ‘ponto de honra’ de certas empresas de media com o beneplácito do regulador (que nada vê) e do Estado (que fecha os olhos).


    A Medialivre – o grupo de media que detém o Correio da Manhã e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista – está em processo de aquisição de duas rádios detidas por empresas em falência técnica de Luís Montez, genro de Cavaco Silva. Numa das empresas, as vogais do Conselho de Administração são a filha (Patrícia) e a neta (Mariana) do ex-presidente da República e ex-primeiro-ministro.

    Os montantes envolvidos não são revelados – o PÁGINA UM aguardou uma semana por comentários oficiais da Medialivre –, mas, na verdade, se este fosse um ‘puro negócio’ ao estilo capitalista, na verdade deveria ser Luís Montez – que detém a Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação (tendo a mulher e a filha na administração) e a Rádio Festival do Norte – a dar dinheiro ao comprador, porque as duas empresas deram prejuízo nos últimos anos, estão com capitais próprios negativos e estão inundadas de dívidas, incluindo ao Estado.

    Luís Montez vai livrar-se de duas empresas de rádios que são ‘máquinas de fazer calotes’.

    O único activo apetecível destas duas empresas de Montez – que através da sociedade unipessoal Música no Coração detém sete empresas radiofónicas – encontra-se nas suas licenças radiofónicas, um ‘bem restrito’ a poucos e que podem ser mantidas mesmo por empresas que devem dinheiro ao Fisco. Para concretizar a sua estratégia de expansão, a Medialivre não se importou assim de manifestar interesse em comprar empresas falidas para obter as licenças da Rádio SBSR (que emite a partir de Lisboa) e da Rádio Festival do Norte, mesmo que tenha agora de assumir, em passivo, um passivo elevado.

    As autorizações para a transmissão das licenças para a Medialivre, por aquisição das duas empresas de Montez, já foram concedidas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social no final de Fevereiro, embora o negócio ainda não se tenha concretizado.

    Embora seja expectável que a Medialivre tenha capacidade financeira para encaixar na sua estrutura o passivo das empresas das duas rádios que vai adquirir, não deixa de causar espanto a situação financeira do universo empresarial da família de Luís Montez. A Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação está em falência técnica pelo menos desde 2017, consultando os registos do Portal da Transparência dos Media. No mais recente exercício com contas fechadas, a empresa que tem a filha e a neta de Cavaco Silva na administração apresentava capitais próprios negativos de quase 200 mil euros e um passivo total de mais de 2,3 milhões de euros, que vai assim passar, em princípio, a ser assumido pela Medialivre.

    Este último montante inclui 407.273,99 euros de dívidas o Estado e outros entes públicos, que serão dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda por cima não declaradas no Portal da Transparência dos Media, uma vez que ultrapassa os 10% do passivo. As omissões e falsas declarações dos media perante a ERC é uma situação que se tem vindo a tornar banal.

    Neta do ex-presidente da República, agora com 27 anos, já tem experiência de administração de uma empresa… em falência técnica e com dívidas ao Estado.

    Mas o mais absurdo da contabilidade da Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação – e que causa estranheza não ter sido motivo de preocupação por parte da Medialivre – é ter terminado o ano de 2022 com a rubrica Caixa e depósitos bancários literalmente a zeros. Ou seja, a conta bancária estava a zeros e nem sequer havia um mealheiro na sede da empresa com meia dúzia de tostões para o café da manhã de Janeiro de 2023. A ausência absoluta de liquidez desta empresa é de pasmar: apesar de ter declarado vendas e serviços prestados de 209.443,47 euros, no fluxo de caixa – que ‘mede’ a entrada e saída de ‘dinheiro vivo’ –, só entraram 11.841,53 euros.

    No caso de saídas de dinheiro, está apenas contabilizado o pagamento ao pessoal de 31.654,69 euros, apesar de ter sido contabilizado gastos com pessoal de mais de 286 mil euros, o que denuncia salários em atraso. Também a empresa está a deixar fornecedores a ver navios. Apesar de contabilizar gastos de quase 33 mil euros em fornecimentos e serviços externos, os fornecedores só viram ser-lhe pagos 115,86 euros, o que, sabendo-se tratar de uma empresa de comunicação, até em electricidade se deu calote em 2022.

    Quanto à Rádio Festival Norte – a empresa que detém rádio com o mesmo nome –, a situação financeira é bastante similar, apesar dos capitais próprios negativos serem menos baixos (-8.777 euros). Em todo o caso, o passivo ultrapassa a fasquia de um milhão de euros, dos quais quase 482 mil euros será empréstimos (com juros) do próprio Luís Montez e 319 mil euros são dívidas ao Estado. Também com esta empresa a ERC anda a ‘ver navios’, porque todos os detentores de mais de 10% do passivo de um órgão de comunicação social têm de ser identificados. Ora, Luís Montez detém 41% do passivo e o Estado 27,2% do total do passivo., mas nenhuma dessa informação se encontra registada no Portal da Transparência, incumprindo a mesma lei que determinou a suspensão dos direitos de voto de um obscuro fundo das Bahamas que controlava a Global Media.

    Ao contrário da sua ‘irmã’ Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação, a Rádio Festival Norte terminou o ano de 2022 com dinheiro em caixa, mas apenas 66,96 euros – dariam apenas para três espartanos almoços, talvez sem sobremesa, mas com café, seguramente. A falta de liquidez é, aliás, apanágio das empresas de Luiz Montez. Também a Rádio Festival Norte anuncia valores de vendas e serviços prestados que acabam por dar em pouco. Em 2022, a empresa declarou rendimentos de quase 315 mil euros, mas só foram efectivamente pagos nesse ano pouco mais de um terço (113 mil euros). Quanto aos pagamentos a fornecedores e ao pessoal foram custos que depois não se reflectiram em saídas de dinheiro, até porque a empresa não o tem, até porque já nem possui crédito junto da banca, como se intui do balanço e da demonstração dos fluxos de caixa.

    Cristiano Ronaldo é, actualmente, o principal accionista da Medialivre, dona do Correio da Manhã e da CMTV, que agora está a apostar na rádio.

    Com efeito, apesar de em 2022, esta empresa de Luís Montez – em que este surge como administrador único – ter contabilizado gastos de quase 132 mil euros em fornecimentos e serviços externos e cerca de 194 mil euros em gastos de pessoal, apenas assumiu pagamentos de 2,3% e 4,8% do total. Ou seja, comporta-se como uma ‘máquina de fazer calotes’.

    Numa análise a partir do Portal da Transparência dos Media, gerido pela ERC – o que coloca sempre algumas dúvidas da completa veracidade da informação –, pode-se dizer que as outras cinco empresas do grupo da Música no Coração estão também em dificuldades financeiras ou apresentam indicadores ou pouco risonhos ou estapadúrdios.

    A Radiodifusão – Publicidade e Espectáculos tem capitais próprios negativos (-83.182 euros), um passivo de quase 868 mil euros em 2022 e pelo menos desde 2017 nunca teve lucros. A Rádio Clube de Gondomar – que detém a rádio Meo Sudoeste – estava em 2022 com capitais próprios negativos de 90 mil euros e é uma empresa (se assim se pode chamar) muito sui generis: em 2017 o seu activo (‘património’) era de 23.017,11 euros; em 2022 era de 270 euros, sendo que teve um rendimento declarado de 1 euro e prejuízos de 4.025 euros.

    Quanto à Rádio Voz de Setúbal – que detém a Rádio Amália –, está em pouco melhor estado do que a diva do fado que pretende homenagear. Apesar de recentemente ter realizado uma gala para comemorar os seus 14 anos, a empresa declarou no Portal da Transparência dos Media – e a ERC achou razoável suceder – um rendimento de apenas 2 euros e resultados líquidos de 1,50 euros. Esta estranha empresa tinha nesse ano, no entanto, capitais próprios negativos de 103.736 euros. E nos registos geridos pela ERC não há sombras de actividade, isto é, rendimentos entre 2017 e 2021.

    A SBSR FM, actualmente detida pela Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação, em falência técnica, estará em breve nas mãos do grupo de media do Correio da Manhã.

    A Rádio Nova Loures tem, por sua vez, um capital próprio ainda positivo (158 mil euros), mas aumentou o passivo de 431 mil euros em 2017 para quase 1,5 milhões de euros em 2022.

    A Rádio Nova Era é a única das empresas de Luiz Montez no sector da comunicação social com rendimentos em 2022 acima de um milhão de euros (1,7 milhões), e em até teve lucros nesse ano, apesar de magros (um pouco menos de 26 mil euros). Porém, em cinco anos, o passivo disparou de 1,2 milhões para 1,6 milhões de euros, e os capitais próprios baixaram de 114 mil euros para 95 mil.

    O PÁGINA UM enviou há mais de uma semana diversas questões a Luís Montez, que não respondeu.


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  • Regulador confirma perda de controlo da World Opportunity Fund na Global Media

    Regulador confirma perda de controlo da World Opportunity Fund na Global Media

    Já tinha sido antecipado pelo PÁGINA UM, mas formalizou-se hoje: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) suspendeu os direitos de voto e os direitos patrimoniais ao World Opportunity Fund, que assim deixa de poder gerir, através da Páginas Civilizadas, os periódicos da Global Media, entre os quais o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias. Esta é a primeira vez que o regulador toma uma decisão desta natureza com base na Lei da Transparência, abrindo assim as portas ao anunciado desmembramento do grupo de media. Resta saber quem vai pagar, no processo, as avultadas dívidas fiscais do grupo que regressa de novo às mãos de Marco Galinha.


    Faltava o formalismo, veio hoje em reunião da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). O regulador dos media deu como verificada a falta de transparência do World Opportunity Fund, Ltd. (WOF), confirmando o projeto de deliberação aprovado no passado 15 de Fevereiro que formaliza a perda de direitos de voto do fundo das Bahamas sobre a participação de 51% do capital social da Páginas Civilizadas, que detém uma participação indireta de 25,628% na Global Notícias, mas que, na prática, a controlava.

    Em comunicado, a ERC salienta que “perante a ausência de elementos ou medidas tomadas pelos interessados que pudessem pôr fim à situação identificada [a recusa do fundo em identificar os seus investidores], o Conselho Regulador deliberou prosseguir com a publicitação da falta de transparência” no seu site, implicando de imediato a suspensão do exercício dos direitos de voto e dos direitos patrimoniais” do World Opportunity Fund tanto na Páginas Civilizadas como na Global Notícias.

    O regulador destaca que a sua deliberação “do Conselho Regulador “não restringe a possibilidade de transmissão da participação” do fundo das Bahamas, “desde que, sob prova bastante […] resulte uma inequívoca sanação da situação de falta de transparência identificada. Em concreto, significa que o empresário Marco Galinha, um dos sócios minoritários da Páginas Civilizadas – e que foi o responsável por introduzir o fundo das Bahamas no negócios do Grupo Global Media, inclusive concordando com a contratação de João Paulo Fafe antes da concretização da transacção em Setembro do ano passado – tem agora ‘carta branca’ para negociar ainda melhor a recuperação do que vendeu.

    Por outro lado, saído o fundo das Bahamas – que está longe de ter criado uma situação financeira grave, já que em 2022 a Global Media terminou o exercício com prejuízos acumulados de 42 milhões de euros desde 2017 e uma dívida ao Estado que aumentou 7 milhões de euros em apenas um ano -, Marco Galinha pode agora concretizar, com despedimentos colectivos à mistura, o desmembramento dos diversos órgãos comunicação social. Resta saber quem vai ficar com a dívida ao Estado, porque nesse processo de desmembramento, se as autoridades tributárias e a ERC permitir, pode bem suceder que o Jornal de Notícias, um título ainda apetecível, fique ‘limpo’ de dívidas, ficando todo o ‘calote’ à Autoridade Tributária em títulos que, mais tarde ou mais cedo, o mercado tratará de falir, excepto, claro, se o Estado intervir para o sanear


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  • Do céu ao purgatório: Pfizer cota em mínimos de cinco anos e despede 26 em Portugal

    Do céu ao purgatório: Pfizer cota em mínimos de cinco anos e despede 26 em Portugal

    Em três anos, a Pfizer vendeu 85,8 mil milhões de euros de vacinas contra a covid-19, mas os tempos da pandemia já lá vão. A ‘ressaca’ financeira está agora a bater forte: os resultados em 2023 foram decepcionantes e as expectativas para este ano são pouco risonhas. A cotação da empresa no mercado de capitais norte-americano está em mínimos dos últimos cinco anos. Depois de uma ‘festa’ em que conseguiu vender vacinas até para deitar ao lixo, é agora a altura de despedir sem contemplações. Em Portugal, apurou o PÁGINA UM, está a decorrer um despedimento colectivo que atinge, para já, 26 funcionários.


    A Pfizer está em processo de despedimento em Portugal, que atingirá, nesta primeira fase, um total de 26 empregados. O despedimento colectivo atinge mesmo altos funcionários em Portugal da farmacêutica norte-americana, tendo o PÁGINA UM tido acesso à lista completa de rescisões.

    Fonte da farmacêutica confirma esta decisão, não querendo indicar qual o impacte operacional deste despedimento colectivo – que está a criar um sentimento de ‘traição’ após resultados financeiros excepcionais durante a pandemia –, dizendo que se enquadra num “programa de restruturação da sua actividade a nível global, de que resulta a necessidade de ajustamento da dimensão da Companhia em Portugal face ao novo modelo de funcionamento”, acrescentando que pretende “minimizar o impacto desta decisão nos colaboradores, e, sempre que possível, proporcionar oportunidades de realocação em funções disponíveis dentro da organização”.

    Ursula von der Leye, presidente da Comissão Europeia, e Albert Bourla, presidente da Pfizer
    Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer. Negócios de compra de vacinas deram resultados excepcionais entre 2020 e 2022. Agora, é a ‘ressaca’.

    A Pfizer reitera ainda “o compromisso de que todas as decisões serão tomadas com transparência, respeito e em conformidade com as leis aplicáveis”, mas o PÁGINA UM sabe existirem casos de despedimentos com cláusulas de confidencialidade para evitar queixas futuras.

    Depois de um triénio de ouro, no decurso da pandemia, a actual situação financeira da Pfizer assemelha-se ao mito de Ícaro: de forma demasiado ambiciosa, quis rentabilizar ao máximo a pandemia, recorrendo a um modelo de negócio de lucros iniciais excepcionalmente elevados, mas de repente está a sofrer os efeitos de uma menor procura de vacinas contra a covid-19 e do antiviral Paxlovid, devido à menor agressividade das variantes do SARSC-CoV e à perda de eficácia dos dois fármacos.

    No final de Janeiro, a farmacêutica norte-americana anunciou resultados decepcionantes com lucros por acção (EPS) em 2023 de apenas 0,37 dólares, que representam uma queda de 93% face ao ano anterior. As receitas caíram para 58,5 mil milhões de dólares, que resultaram de uma descida de facturação da vaciona Comirnaty e do Paxlovid de 41% face a 2022. Este último ano já se revelara mais fraco do que o de 2021.

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    Pandemia já foi ‘chão que deu uvas’ à Pfizer, e a ‘peritos’ que promoveram as vacinas Comirnaty e o antiviral Paxlovid. Agora, é tempo de despedir.

    As ‘coqueluches’ da Pfizer durante a pandemia têm agora expectativas de vendas bastante fracas: a farmacêutica prevê vender apenas 5 mil milhões de euros de vacinas Comirnaty e 3 mil milhões de euros de Paxlovid. As receitas da vacina contra a covid-19 da Pfizer – a mais vendida de todas as autorizadas – tinha totalizado uma facturação de 11,2 mil milhões de dólares em 2023, que já mostrava uma queda de 70% face ao ano de 2022, quando tinham sido vendidas doses no valor de 37,8 mil milhões de euros.

    Saliente-se que, em apenas três anos, a Pfizer consegui com as várias versões da vacina Comartiny facturar um total de 85,8 mil milhões de dólares entre 2021 e 2023. Agora, previsivelmente, mesmo se as expectativas de vendas para 2024 não falhem para a vacina contra a covid-19, esta perderá a liderança para o fármaco Eliquis, usado para tratamento de trombose venosa profunda, cujas vendas andam na ordem dos 6 mil milhões de dólares por anos.

    Quanto às vendas do antiviral Paxlovid – que nunca mostrou uma grande adesão por parte da generalidade dos médicos, mas que beneficiou de fortes compras pelo Governo Federal norte-americano –, em 2022 ainda conseguiram uma facturação bastante significativa (18,9 mil milhões de dólares), colocando-o no segundo lugar dos fármacos mais rentáveis (apenas atrás da vacina contra a covid-19). Porém, no ano passado descambou para menos de 1,3 mil milhões de dólares de receita, reposicionando-a na quarta posição. Nesse sentido, dificilmente se atingirá em 2024 as expectivas de vendas de 3 mil milhões de dólares indicada pela administração da farmacêutica.

    Evolução da cotação da Pfizer no New York Stock Exchange (NYSE) nos últimos cinco anos.

    Quem também não está nada optimista sobre o desempenho da farmacêutica são os investidores, que estão a penalizar as acções. Hoje, os títulos da Pfizer negociados no mercado de Nova Iorque (NYSE) fecharam em mínimos dos últimos cinco anos, cotando nos 26,58 dólares, caindo quase 14% no último ano, e estando 55% abaixo do máximo atingido em 17 de Dezembro de 2021 (59,48 dólares).

    A evolução da cotação da Pfizer nos últimos cinco anos mostra uma queda de 35,3%, um cenário que não se observa em grande parte das farmacêuticas que estiveram muito ‘activas’ durante a pandemia. Mesmo a Moderna – com uma cotação hoje em redor dos 95 dólares, apesar de ter caído quase 80% em relação ao máximo de 2021 (quando teve um pico a 449,38 dólares) – regista ainda uma valorização de 329% face à cotação registada em Março de 2019.


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  • Administração Central do Sistema de Saúde mente: não há jurisprudência do Tribunal de Contas sobre ‘contratos perpétuos’

    Administração Central do Sistema de Saúde mente: não há jurisprudência do Tribunal de Contas sobre ‘contratos perpétuos’

    “A jurisprudência invocada não existe” – é assim, de forma taxativa, que o Tribunal de Contas põe por terra os argumentos (falsos) da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) que tem um contrato desde 1994, no tempo de Cavaco Silva, com a sociedade de advogados BAS, em cujo escritório tem ‘residência profissional’ Diogo Lacerda Machado, o amigo de António Costa no epicentro da Operação Influencer. A ACSS insiste na legalidade do processo, agora usando outros argumentos, e diz ainda que coloca os contratos no Portal Base, mas sem os expor ao público, uma atitude surpreendente se considerarmos que essa plataforma serve apenas para uma coisa: informar o público.


    O Tribunal de Contas nega que haja qualquer jurisprudência sobre a possibilidade de renovações contratuais sem limite de tempo como o contrato ‘perpétuo’ da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) com a sociedade de advogados BAS, onde Diogo Lacerda Machado – o amigo de António Costa que está no epicentro da Operação Influencer – tem o seu escritório. A reacção do Tribunal de Contas, hoje enviada no decurso de uma notícia de ontem no PÁGINA UM, permite assim concluir que esta entidade tutelada pelo Ministério da Saúde, e presidida por Victor Herdeiro, usou um argumento falso para continuar a manter uma avença mensal de serviços jurídicos desde 17 de Fevereiro de 1994, ainda no tempo do Governo de António Costa. O contrato está, assim, à margem da lei.

    De acordo com a informação ontem revelada, a ACSS justifica a contínua renovação do contrato com a BAS – que representa esta entidade num diferendo com o PÁGINA UM para tentar não cumprir uma acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de acesso a uma base de dados de internamentos hospitalares – “com base em jurisprudência do Tribunal de Contas”, que alegadamente determinaria que os contratos celebrados ao abrigo de um diploma de 1999 não estariam sujeitos a qualquer limite de vigência.

    Um argumento que se revela completamente falso.

    Victor Emanuel Marnoto Herdeiro, presidente da ACSS.

    Fonte oficial do Tribunal de Contas, presidido pelo juiz conselheiro José Tavares, foi peremptória, quando solicitada a comentar a informação integral da ACC: “A jurisprudência invocada não existe”, acrescentando que, “pelo contrário, a jurisprudência do Tribunal em matéria de contratação pública é no sentido de procedimentos concursais, regularmente renovados”. E adianta ainda que “os contratos em causa [que se iniciaram antes do Código dos Contratos Públicos] estão sob o controlo do Tribunal de Contas, embora não sujeitos a fiscalização prévia até ao montante de 750.000 euros”. O contrato com a sociedade BAS é de 54 mil euros por ano.

    Mais do que este caso, a existência desta interpretação pela ACSS à margem da lei indicia que possam existir muitos mais casos de contratos públicos de prestação de serviços teoricamente vitalícios na Administração Públicas, escondidos até do Portal Base. Conforme o PÁGINA UM revelou ontem, ninguém na Administração Pública sabe (ou quer dizer) quantos procedimentos destes existem e quais os montantes.

    Instada a comentar as declarações taxativas do Tribunal de Contas – e sem margem para outras interpretações –, ou seja, não há jurisprudência que sustente a renovação do contrato ‘perpétuo’ com a sociedade de advogados BAS, a ACSS insiste na legalidade da contratação. Numa longa argumentação, a entidade presidida por Vitor Herdeiro diz ser “absolutamente legítima a contratação (sucessiva) de serviços jurídicos de patrocínio judiciário (objeto deste contrato) por ajuste direto, independentemente do valor”, argumentando com interpretações de uma sentença do Tribunal de Contas que não se aplica ao caso em concreto, e invocando mesmo uma directiva que também não se aplica.

    Informação que renova novamente um contrato de avença entre a ACSS e a sociedade BAS que começou no Governo de Cavaco Silva invoca jurisprudência do Tribunal de Contas como fundamento. A jurisprudência não existe.

    Por exemplo, no caso da directiva referida pela ACSS (Diretiva 77/249/CEE do Conselho), refere-se que existe uma excepção na contratação de serviços jurídicos para os casos de uma “arbitragem ou conciliação realizada num Estado-Membro ou num país terceiro ou perante uma instância internacional de arbitragem ou conciliação, ou — em processos judiciais perante os tribunais ou autoridades públicas de um Estado-Membro ou de um país terceiro ou perante tribunais ou instituições internacionais”, ou ainda em casos de “aconselhamento jurídico prestado em preparação” de determinados processos” de qualquer dos processos referidos na subalínea i) da presente alínea, “, ou ainda “ou “quando haja indícios concretos e uma grande probabilidade de a questão à qual o aconselhamento diz respeito se tornar o objeto desses processos, desde que o aconselhamento seja prestado por um advogado”. Ora, para a ACSS, a sociedade de advogados BAS tem sido a representante legal desde 2022 no processo que corre no Tribunal Administrativo de Lisboa, intervindo em processos que exigem um contrato regular.

    A ACSS diz ainda que, como o contrato com a BAS é anterior ao Código dos Contratos Públicos, “tem procedido ao registo de todos os procedimentos na plataforma [de contratação pública], mas os mesmos não são visíveis para o público”. Mas não explica a fundamentação legal nem o motivo ético para não os colocar acessíveis no Portal Base, sabendo-se que esta plataforma foi concebida com um único e singelo objectivo: a transparência da gestão pública – algo que, tudo indica, não integra os pergaminho do conselho directivo da ACSS, a começar por invocar, como verídica, jurisprudência do Tribunal de Contas que não existe. Mas, em Portugal, aparentemente, isso (ainda) pode fazer-se sem penalizações.


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  • Perpétuo obscurantismo: ainda há contratos com o Estado por tempo indeterminado, mas ninguém sabe quantos são nem quanto valem

    Perpétuo obscurantismo: ainda há contratos com o Estado por tempo indeterminado, mas ninguém sabe quantos são nem quanto valem

    Obscurantismo mais obscurantista não há. O Código dos Contratos Públicos já tem 15 anos, mas ainda perdura um número indeterminado de avenças e outras relações comerciais que fogem a todas as regras da transparência e livre concorrência, perpetuando-se no tempo, sem sequer caírem no ‘radar’ do Portal Base. O PÁGINA UM descobriu uma estranha avença entre a sociedade de advogados BAS – onde ainda tem assento Lacerda Machado, o amigo íntimo de António Costa no epicentro da Operação Influencer – e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que começou no dia 17 de Fevereiro de… 1994. Ou seja, fez há dias 30 anos. Ninguém no sector do Estado sabe dizer quantos contratos desta natureza ainda existem, nem a razão para persistirem, porque as renovações nem sequer são obrigatórias.


    Há um número indeterminado de contratos públicos de prestação de serviços teoricamente vitalícios na Administração Públicas, escondidos até do Portal Base, mas ninguém sabe quais os montantes nem sequer se existe uma fundamentação legal para se perpetuarem. São contratos ‘invisíveis’, completamente fora do ‘radar’ da fiscalização pública e até do Tribunal de Contas.

    Esta conclusão é obtida depois do PÁGINA UM ter identificado uma prestação de serviços jurídicos entre a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e a sociedade de advogados BAS que perdura desde 1994, mas sem que essa relação contratual seja assumida através de um contrato público formal divulgado no Portal Base.

    Time and Money

    Foi apenas após um pedido expresso do PÁGINA UM à ACSS para consultar os eventuais contratos de serviços jurídicos prestados pela BAS, recorrendo à Lei do Acessos aos Documentos Administrativos (desta vez sem necessidade de apresentar intimação em tribunal administrativo) que foi assumido que aquela sociedade de advogados tem vindo a beneficiar de sucessivas renovações de “um contrato de avença para acompanhamento judicial dos processos em que este Instituto [ACSS] é parte, celebrado em 17.02.1992 [17 de Fevereiro de 1994] e que foi objecto de adicionais (nos anos de 1998 e 2008) e de adendas sucessivas que prorrogam o prazo de execução”.

    Esta situação consta de uma informação de Janeiro passado escrita por uma técnica superior da ACSS, consultado pelo PÁGINA UM, com vista à autorização da despesa e aprovação da minuta de adenda da renovação deste patrocínio judiciário – e que tem permitido, por exemplo, à ACSS manter em ‘despique’ jurídico o legítimo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, mesmo depois de o PÁGINA UM ter conseguido vitórias sucessivas, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.

    Recorde-se que é nas instalações da sociedade de advogados BAS que se mantém, ainda hoje, o endereço profissional de Diogo Lacerda Machado, o amigo de António Costa que está no epicentro da Operações Influencer. Isto apesar de a BAS ter negado já em 2016 não ter relações com Lacerda Machado, quando foram noticiados contratos ganhos a entidades associadas ao Ministério da Saúde, mas a ligação ao escritório manter-se quando implodiu a Operação Influencer. Desde Novembro do ano passado, as ligações formais mantêm-se de pedra e cal, tanto mais que o registo do endereço não é um pro forma; é uma obrigação imposta pela Ordem dos Advogados, tanto aos advogados como às sociedades.

    Contrato de avença entre a ACSS e a sociedade BAS começou no Governo de Cavaco Silva, passou pelos de António Guterres, de Santana Lopes, de José Sócrates, de Passos Coelho e de António Costa. São 30 anos de avença sem sequer ser revelado no Portal Base. Caso único? Ninguém sabe. Ou melhor: ninguém quer saber.

    Para justificar esta avença – que em 2023 atingiu os 54.000 euros, pagos mensalmente –, a ACSS argumenta com uma alegada “jurisprudência do Tribunal de Contas” que determinará que “os contratos celebrados ao abrigo do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de junho [anterior ao actual Código dos Contratos Públicos de 2008], não estão sujeitos a qualquer limite de vigência”.

    Mas existe um outro problema com estes ‘contratos perpétuos’, para além da evidente violação do princípio da livre concorrência: na verdade, estas prestações de serviços estarão a ser ocultados na actual plataforma da contratação pública, o Portal Base.

    De acordo com a informação da ACSS, e outros documentos consultados, a renovação deste contrato com a BAS, através de um parecer prévio vinculativo do Governo, tem sido sistematicamente deferido tacitamente – ou seja, autorizado por ausência de resposta – e depois também tacitamente aprovado pela Secretaria de Estado da Saúde. E nada disto é depois remetido para o Portal Base.

    Sobre esta matéria, a resposta do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) – a entidade responsável pela gestão do Portal Base – é completamente dúbia e completamente evasiva. Apesar de questionado pelo PÁGINA UM sobre se o caso concreto das renovações sucessivas da avença com a BASA deveria ou não ser inserido naquela plataforma pública, aquele instituto diz apenas que o actual Código dos Contratos Públicos “não se aplica a prorrogações, expressas ou tácitas” em procedimentos que tenham sido iniciados “previamente à data de entrada em vigor daquele”, ou seja, em 2008.

    Sociedade BAS tem sede no Pátio Bagatela, em Lisboa, exactamente no mesmo edifício e andar onde Diogo Lacerda Machado tem o endereço profissional activo.

    E acrescentando ainda que “o Portal dos Contratos Públicos constitui um espaço multifuncional destinado a disponibilizar a informação sobre a formação e a execução dos contratos públicos sujeitos às regras de formação ou execução”, pelo que “assim, todos os contratos celebrados após a entrada em vigor do CCP devem ser registados no Portal BASE”, não respondendo explicitamente se aqueles que se prolonguem por adendas artificiosas não devem ser considerados novos contratos. Saliente-se que são proibidos ‘contratos perpétuos’ no actual Código dos Contratos Públicos e limites de vigências.

    Além de tudo isto, ninguém sabe quantos contratos, além daquele detectado pelo PÁGINA UM, andam aí a circular sem sequer serem ‘apanhado no radar’ do Portal Base, tanto mais que o IMPIC também não respondeu se tinha conhecimento de casos similares.

    O PÁGINA UM sabe também que, até final de 2020, existia forma de conhecer, pelo menos no caso concreto das prestações de serviços jurídicos, quais os contratos estabelecidos pela Administração Pública, uma vez que estavam sujeitos ao parecer prévio do Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP), que começou a funcionar em 2018.

    Cockroach Lying on Its Back on the Ground

    Contudo, mesmo para o curto período em que havia necessidade de parecer prévio, a directora da JurisAPP, Virgínia Silva, admite que entre 2018 e 2020 muitos contratos de avença jurídica “possam não ter sido enviadas a parecer prévio [as] renovações de avenças nos casos em que a entidade contratante” tenha feita outra interpretação sobre a obrigatoriedade, “escapando tal facto ao controlo ou escrutínio deste Centro”.  

    Ou seja, obscurantismo mais obscurantista não há. O PÁGINA UM detectou um contrato de uma longa vida de 30 anos com outras tantas renovações. Pode ser só este? Claro que sim; é uma hipótese com um certo grau de probabilidade. Ou podem ser milhares; também com um certo grau de probabilidade. Mas, neste caso, misturando a lei das probabilidades com o empirismo tende a acreditar-se que os contratos sem limite temporal (e bem escondidos) sejam tantos quantas as baratas que realmente existem num imundo compartimento cheio de mobiliário quando vemos uma a passear-se descontraidamente pelo soalho, e a pisamos. Percepcionamos, nessa altura, que centenas, senão milhares, nos miram pelas frinchas. Talvez seja mesmo aquilo que sucede, mas com uma diferença: ninguém quer saber quantas são nem parece estar interessado em ‘fumigar’ estes contratos ‘vitalícios’.


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  • Miguel Guimarães e Ana Paula Martins geriram em conta pessoal fundo solidário de 1,4 milhões pejado de irregularidades. Não se sabe onde pára auditoria prometida

    Miguel Guimarães e Ana Paula Martins geriram em conta pessoal fundo solidário de 1,4 milhões pejado de irregularidades. Não se sabe onde pára auditoria prometida

    Miguel Guimarães (ex-bastonário da Ordem dos Médicos) e Ana Paula Martins (ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos) serão, no próximo hemiciclo, colegas de bancada do PSD, mas já são ‘velhos conhecidos’, a tal ponto que geriram uma conta bancária pessoal conjunta (com Eurico Castro Alves) para gerir 1,4 milhões de euros de uma angariação de fundos em 2020 durante a pandemia, com financiamento quase em exclusivo de farmacêuticas. A gestão do dinheiro em conta pessoal – e não titulada pelas duas ordens profissionais – foi uma das muitas irregularidades e mesmo ilegalidades detectadas no decurso de uma investigação do PÁGINA UM no final de 2022. A existência de facturas falsas de quase 980 mil euros na Ordem dos Médicos foi apenas um dos problemas mais graves então encontrados. Miguel Guimarães garantiu então que estava a ser concluída uma auditoria às contas pela consultora BDO, mas mais de um ano depois, não se vislumbram conclusões. Perante a recusa da Ordem dos Médicos, uma sentença do Tribunal Administrativo exige agora que o actual bastonário, Carlos Cortes, revele o contrato da auditoria com a BDO (para confirmar se existe) e provas cabais que expliquem o alegado atraso. Há meses que o PÁGINA UM insiste em saber se a Procuradoria-Geral da República está a investigar a gestão muito particular da campanha ‘Todos por Quem Cuida’, mas nunca obteve resposta.


    A gestão de um fundo de 1,4 milhões de euros de uma campanha para apoiar entidades na luta contra a pandemia da covid-19, promovida pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos a partir de 2020, estava pejada de irregularidades e mesmo ilegalidades, incluindo facturas falsas e fugas ao fisco, mas em 11 de Dezembro de 2022, em reacção às notícias do PÁGINA UM, o então bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, garantia ao Correio da Manhã que o “fundo é à prova de bala e que foi tudo contabilizado” e que “está a ser concluída uma auditoria, pedida pelas duas ordens e pela Apifarma”.

    Catorze meses depois, sem ser conhecida publicamente qualquer auditoria – a Ordem dos Médicos garante agora nunca ter sido concluída –, o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigou anteontem, por sentença (que incluiu também os pareceres do Colégio de Pediatria sobre vacinação de menores contra a covid-19), que a Ordem dos Médicos, agora liderada por Carlos Cortes, disponibilize ao PÁGINA UM “a cópia do contrato celebrado entre a Ordem dos Médicos e a BDO & Associados, SROC, Lda., ou os documentos que comprove a adjudicação da auditoria às atividades e contas da ação solidária ‘Todos por Quem Cuida’, e ainda as comunicações que existam e estejam na posse da Entidade Requerida de ‘onde seja possível compreender os motivos para a eventual não conclusão da auditoria’ expurgados os dados pessoais deles constantes”. A Ordem dos Médicos tem 10 dias para cumprir a sentença.

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães (D.R./Ordem dos Médicos)

    Na verdade, existem sérias dúvidas sobre a existência de qualquer auditoria às contas daquele fundo gerido pessoalmente por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins (antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos), ambos agora na iminência de se tornarem deputados na Assembleia da República pelo PSD. A alegada realização da auditoria serviu, numa primeira fase em 2022, para tentar convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa, a não disponibilizar o acesso às contas e operações logísticas da campanha “Todos por Quem Cuida” então solicitada pelo PÁGINA UM. Não teve as duas ordens sucesso. Depois, com a publicação das investigações do PÁGINA UM sobre as ilegalidades e irregularidades na gestão do fundo, o anúncio da realização de uma auditoria serviu para dar uma aura de credibilidade e seriedade.

    Contudo, a existir um contrato entre a Ordem dos Médicos e a BDO & Associados, este deveria obrigatoriamente constar no Portal Base. E não está. Aliás, até à data nunca houve qualquer relação contratual entre estas duas entidades. Também entre a Ordem dos Farmacêuticos e a BDO não existem, até à data, quaisquer contratos registados na plataforma de contratação pública, como é obrigatório por lei.

    Continuam assim sem se descortinar – e aparentemente assim continuará, se a Procuradoria-Geral da República mantiver um silêncio de meses face aos pedidos sobre a existência de eventuais investigações – quaisquer consequências relativas à gestão de um fundo de solidariedade que arrecadou e geriu cerca de 1,4 milhões de euros, através de uma contabilidade paralela, uma completa ausência de declarações de transparência, várias situações de fuga ao fisco, centenas de declarações falsas com abuso de benefícios fiscais e ainda facturação falsa, tudo numa promiscuidade institucional sem limites.

    Em 11 de Dezembro de 2022, no decurso das primeiras notícias do PÁGINA UM, Miguel Guimarães garantia que o fundo era “à prova de bala”, estando a ser concluída uma auditoria. Mais de um ano depois, nem sequer existem provas de ter sido iniciada.

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, mas numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.

    A gestão ficou a cargo de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, continuando a ser coadjuvados por uma comissão de acompanhamento de sete pessoas, entre representantes das duas Ordens (três, cada) e da Apifarma, com obrigação de actas de reunião. Apesar de ter sido sempre apresentada publicamente como uma campanha da sociedade civil, coordenada pelas duas ordens profissionais – que, em menos de dois meses angariara mais de um milhão de euros que teriam sido doadas pelos portugueses [as contas finais apontam para 1.422.962 euros] –, na verdade o grosso do financiamento proveio das farmacêuticas.

    Em investigação do PÁGINA UM detectou-se que a conta solidária para a campanha “Todos por Quem Cuida”, bem como os cheques que a movimentavam, tinham como primeiro titular Miguel Guimarães. Os donativos, incluindo quase um milhão de euros de farmacêuticas, nunca entraram na conta da Ordem dos Médicos, mas as facturas das compras aos fornecedores (para os bens a doar a instituições) foram contabilizadas como se daí tivessem saído verbas, apesar dos pagamentos serem feitos através da conta solidária co-titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    De acordo com os extractos consultados no último trimestre de 2022 pelo PÁGINA UM – por autorização obtida através de uma outra sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, apenas pouco mais de 38 mil euros vieram de donativos particulares, ou seja, 2,7% do total. As empresas farmacêuticas, incluindo a Apifarma, canalizaram 1.313.251 euros, ou seja, 92,3% do total. No entanto, não foi por aqui que esta campanha por uma boa causa mostrou os seus maus procedimentos.

    A génese de um vasto conjunto de irregularidades e ilegalidades envolvendo esta campanha, algumas com eventual consequência penal, começou no simples e evidente facto de a conta solidária da campanha “Todos por Quem Cuida” não pertencer nem à Ordem dos Médicos (que foi quem garantiu a logística da operação) nem à Ordem dos Farmacêuticos, apesar de serem estas entidades que pediram a autorização necessária para angariações deste género de campanhas junto do Ministério da Administração Interna.

    Na verdade, a conta foi criada, a título individual, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Os documentos do balcão da Portela de Sacavém da Caixa Geral de Depósitos não deixam, a esse propósito, quaisquer dúvidas sobre essa titularidade da conta solidária, sendo que nos cheques surge o nome de Miguel Guimarães, apresentando-o como “cliente há mais de 31 anos”.

    Mesmo já depois de ter abandonado funções como bastonária na Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, Ana Paula Martins – que foi vice-presidente do PSD em final de mandato de Rui Rio, e esteve como administradora da Gilead nos últimos meses, até ser indigitada para administrar o centro hospitalar da região norte de Lisboa, onde se integra o Hospital de Santa Maria – manteve-se como co-titular desta conta.

    Dossiers da campanha “Todos por Quem Cuida”, contendo documentos administrativos e operacionais, que o PÁGINA UM consultou em finais de 2022 após uma outra sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para obter acesso à alegada auditoria da BDO às contas, o PÁGINA UM teve de recorrer novamente ao tribunal

    Através do processo de intimação esta semana concluído com (mais) uma sentença favorável ao PÁGINA UM, sabe-se que a campanha “Todos Por Quem Cuida” – com entradas e saídas de dinheiro através da conta aberta e gerida por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins – ainda se mantém activa, porque um remanescente de dinheiro serviu em Dezembro de 2023 para co-financiar prémios de investigação. Contudo, o actual bastonário não esclareceu ainda o PÁGINA UM se os titulares da dita conta continuam a ser os dois futuros deputados do PSD e Eurico Castro Alves, que foi secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho em 2015 e é agora presidente da secção regional do Norte da Ordem dos Médicos.

    Em qualquer caso, sendo evidente que a conta bancária solidária – que recebeu e geriu os cerca de 1,4 milhões de euros – surgiu uma questão nunca esclarecida até agora. Desde 6 de Março de 2020 – dia do primeiro depósito na conta titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves – foram contabilizados 41 donativos superiores a 500 euros, totalizando 1.394.017 euros. Sendo legais esses donativos a particulares [na sua génese, o PÁGINA UM, antes de passar a ter gestão empresarial, funcionou com base em donativos de leitores endereçados ao seu director], para valores acima de 500 euros não se aplica a Lei do Mecenato, pelo que deveriam ser declarados à Autoridade Tributária os montantes desses 41 donativos, sendo exigível o pagamento de imposto de selo de 10% do montante total. Ou seja, Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente à Autoridade Tributária cerca de 139 mil euros.

    Nos documentos então consultados pelo PÁGINA UM não consta qualquer menção a esse pagamento, sempre exigível a particulares independentemente do bom propósito da campanha. E também nos extractos bancários consultados e fotografados pelo PÁGINA UM, não há qualquer transferência para a Autoridade Tributária.

    Conta bancária da campanha, para onde seguiram os donativos das farmacêuticas, de outras empresas e de particulares, foi aberta no dia 2 de Abril de 2020, em nome de Miguel Guimarães (como titular principal), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Todos os pagamentos da campanha foram efectuados através desta conta.

    Nenhum dos três visados prestou então esclarecimentos ao PÁGINA UM sobre esta matéria. Note-se que os restantes 48.945 euros amealhados pela conta solidária não têm aquela obrigação, porque se referem a transferências de valor igual ou inferior a 500 euros. Nestes casos, são considerados “donativos conforme os usos sociais”.

    Mas houve mais declarações em falta, que ainda se mantêm hoje – e aqui com repercussões mais de índole ética. Como Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves são médicos e Ana Paula Martins é farmacêutica, as empresas farmacêuticas beneméritas tinham a obrigação de declarar os montantes doados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando os beneficiários, que os deveriam validar. Esta obrigação manter-se-ia mesmo se tivessem sido as Ordens a receber os donativos.

    A gestão financeira do fundo esteve também pejada de irregularidades e mesmo de facturação falsa, para se encaixar num esquema que beneficiaria fiscalmente as farmacêuticas doadoras e criando condições para um ‘saco azul’ na Ordem dos Médicos de quase 980 mil euros, porque houve facturas da campanha a entrar na contabilidade desta entidade sem correspondente saída de dinheiro, uma vez que as despesas eram pagas através da conta pessoal titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, então consultada no final de 2022, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram assim na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Ou seja, sem saída de dinheiro de qualquer conta pertencente à Ordem dos Médicos.

    As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    O actual bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes (segundo a contar da direita), garantiu no processo de intimação no tribunal que ainda há dinheiro do fundo “Todos por Quem Cuidar” a ser gasto, mas não diz se os titulares originais se mantêm (Foto: D.R./ Ordem dos Médicos)

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Guimarães, Martins e Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, não foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul, ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Miguel Guimarães e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.

    Pagamentos das compras da campanha “Todos por Quem Cuida” não foram feitos por contas bancárias da Ordem dos Médicos, mas as facturas entraram como despesas “passíveis de saque” à margem da lei, e sem deixar rasto.

    Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    Miguel Guimarães foi bastonário da Ordem dos Médicos entre 2017 e Março de 2023. Saltou agora para a política, encabeçando a lista do PSD no círculo do Porto nas próximas eleições legislativas.

    Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares da conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Ora, a emissão de centenas de declarações falsas pelas entidades beneficiadas – que assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que estas não conseguirão comprovar através de facturas porque não foram elas que compraram os géneros – configura uma gigantesca fraude fiscal envolvendo centenas de entidades. De facto, considerando que, com este estratagema, os donativos à campanha “Todos por Quem Cuida” passaram a ser enquadráveis no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado –, as farmacêuticas puderam levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue.

    Assim, sabendo que, globalmente, as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, acabaram por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, algo que não seria possível se assumissem, como efectivamente sucedeu, que os donativos seguiram para uma conta solidária de três pessoas. Este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros.

    Este esquema, profundamente à margem da lei, envolveria mesmo hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.

    A investigação do PÁGINA UM também revelou então um estranho esquema de doação de máscaras pela Merck, intermediado por Miguel Guimarães, ao qual foi atribuído um preço de 380 mil euros, bastante inflacionado, que permitiu à farmacêutica alemã transformar fiscalmente um donativo em lucro.

    A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades, que Miguel Guimarães “brilhasse”. Quem pagou foi a conta titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, mas depois surgem recibos de donativos (para efeitos de benefícios fiscais) de quatro farmacêuticas à Ordem dos Médicos, apesar desse dinheiro nunca ter por aí entrado.

    E também foi então revelado pelo PÁGINA UM o acordo ad hoc entre Miguel Guimarães e o então líder da task force Gouveia e Melo para ‘furar’ as normas da Direcção-Geral da Saúde e vacinarem-se médicos não-prioritários contra a covid-19, que ainda está, há mais de um ano, a ser investigado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, estando já em risco de prescrição.

    Este esquema incluiu mesmo um pagamento de 27.365 euros ao Hospital das Forças Armadas, cuja prestação de serviços nunca foi publicada no Portal Base, e também a emissão de recibos falsos por parte da Ordem dos Médicos a quatro farmacêuticas (não declarados no Portal da Transparência do Infarmed) relativos a supostos donativos. Na verdade, os donativos entraram sim na conta titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, bastando duas assinaturas para a movimentar.


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  • Hospital de Braga escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros por mais de dois anos. Em muitos nem se sabe o que se comprou

    Hospital de Braga escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros por mais de dois anos. Em muitos nem se sabe o que se comprou

    Não se encontra nenhuma entidade pública com similar comportamento, nem de longe: a administração do Hospital de Braga ‘borrifou-se’ nos prazos para registo no Portal Base de quase dois mil contratos, dos quais cerca de 1.400 estiveram mais de dois anos (e por vezes mais de três anos) a aguardar a sua publicação. Praticamente todos os contratos em atraso são ajustes directos (a empresa escolhidas a dedo), numa parte substancial nem sequer há um contrato escrito, e noutros nem sequer se sabe aquilo que foi adquirido e se foi efectivamente recepcionado. Para ‘recuperar o atraso’, os serviços administrativos fizeram trabalho extraordinários em 2023: por exemplo, em apenas um mês (Maio) foram inseridos no Portal Base cerca de um milhar de registos respeitantes a ajustes directos celebrados em 2020 e 2021. Uma enxurrada atrasada para dificultar a detecção de compras suspeitas. A administração do hospital, integrada na nova Unidade Local de Saúde do Alto Minho, e que é presidido por João Porfírio de Oliveira, diz estar tudo bem, alegando que “nenhuma entidade veio colocar em causa a legalidade dos atos de autorização e pagamento da despesa pública dos procedimentos contratuais em causa”. Pudera: na altura em que o Tribunal de Contas elaborou relatórios sobre compras em unidades de saúde em 2020 e 2021, o Hospital de Braga não tinha ainda quase nada metido no Portal Base.


    A administração do Hospital de Braga, presidida por João Porfírio de Oliveira – que entretanto passou a liderar a nova Unidade Local de Saúde do Alto Minho – escondeu durante mais de dois anos para cima de um milhar de contratos por ajuste directo celebrados durante os anos de 2020 e 2021. Estes contratos por ajuste directo envolvem, no total, mais de 47 milhões de euros, não incluindo IVA, e violam todas as regras de transparência impostas pelo Código dos Contratos Público, que, por princípio, impõem a divulgação no prazo de 20 dias úteis a partir da decisão da compra de bens ou aquisição de serviços.

    De acordo com um exaustivo levantamento do PÁGINA UM à plataforma de contratação pública, o Portal Base, o Hospital de Braga somente no ano passado divulgou informação sobre 425 ajustes directos para a compra de bens e aquisição de serviços concretizadas em 2020, num total de 20.064.978 euros, e sobre 929 ajustes directos feitos em 2021, envolvendo um total de 27,1 milhões de euros. Também se encontram mais 600 ajustes directos celebrados em 2022 cujos prazos de divulgação no Portal Base foram largamente ultrapassados, e que totalizam 12,1 milhões de euros.

     Não se encontra nenhuma outra entidade pública em Portugal com este tipo de comportamento, ou seja, com violações sistemáticas nos prazos de divulgação, sobretudo tendo em conta serem ajustes directos. Em muitos casos, mesmo em contratos muito significativos, nem sequer existe contrato escrito, aproveitando um regime de excepção no decurso da pandemia. Deste modo, nem sequer se sabe ao certo, em variadíssimos casos, que tipo de bens ou produtos e quantidades foram efectivamente adquridas e entregues.

    O caso paradigmático é o ajuste directo de quase 2,6 milhões de euros celebrado em 16 de Julho de 2020 com a Merck Sharp & Dohme, cuja divulgação no Portal Base apenas ocorreu 4 de Maio de 2023, ou seja, mais de 33 meses depois. Apesar do montante elevado, a única informação é ter-se tratado de “aquisição de medicamentos exclusivos”, que nem sequer são identificados e muito menos as quantidades. A administração justificou a ausência de contrato escrito com o facto de o fornecimento se fazer de imediato – em prazo inferior a 20 dias –, de a relação contratual se extinguir com o fornecimento e o contrato não estar sujeito a fiscalização prévia do Tribunal de Contas.

    Mas não se diga que esta prática – que constitui uma excepção ao princípio da transparência – seja uma prática comum. Pelo contrário, os ajustes directos para a compra de medicamentos em montantes acima de um milhão de euros são raros, sendo mais habitual que se enquadrem em acordos-quadro envolvendo várias unidades hospitalares (e até, por vezes, diversos medicamentos fornecidos por distintas farmacêuticas), em que, mesmo podendo não haver contrato, existem peças de procedimentos que mostram informação sobre os fármacos adquiridos.

    Número de contratos por procedimento inseridos no Portal Base em 2023 por ano da sua celebração. Fonte: Portal Base. Análise: PÁGINA UM.

    Também muito estranho é o ajuste directo celebrado com a Pfizer em 29 de Julho de 2020 para a aquisição de infliximab, para tratamento de doença de Crohn e colite ulcerosa. Note-se que, neste caso, este fármaco nem sequer é exclusivo da Pfizer, sendo também comercializado, por exemplo, pela Janssen e pela Merck Sharpe & Dohme. Este ajuste directo foi apenas divulgado no Portal Base em 9 de Maio de 2023, ou seja, quase três anos depois, sem qualquer contrato escrito, mesmo estando em causa uma aquisição de quase 1,3 milhões de euros deste medicamento.

    Mais uma vez, para além do enorme atraso na divulgação da informação na plataforma da contratação, aquilo que ressalta é a justificação para a ausência de contrato escrito onde fique claro a quantidade adquirida e o preço unitário. A administração presidida por João Porfírio de Oliveira usa, também neste caso, o curto prazo de entrega (apenas três), mas essa rapidez é estranha face a contratos similares para este mesmo medicamento.

    De acordo com a análise do PÁGINA UM aos 21 contratos deste medicamento acima de meio milhão de euros feitos pelas diferentes unidades de saúde do SNS, todos tiveram prazos de execução (entrega final) superior a 200 dias, pelo que a generalidade teve de possuir contrato com indicação do preço unitário e quantidades adquiridas. Aliás, mesmo um novo contrato do Hospital de Braga de compra do mesmo infliximab realizado em 12 de Abril de 2021 – pouco mais de oito meses depois da anterior compra – teve um prazo de entrega de 365 dias. E, claro, por esse motivo teve contrato escrito, embora a administração do Hospital de Braga omita, na informação disponibilizada, a quantidade e preços unitários.

    Montante total (em euros) dos contratos por procedimento inseridos no Portal Base em 2023 por ano da sua celebração. Fonte: Portal Base. Análise: PÁGINA UM.

    Para adensar as fortes suspeitas da primeira compra (de Julho de 2020), acrescente-se que, em apenas dois anos (2020 e 2021), o Hospital de Braga terá gastado cerca de 2,3 milhões de euros, mas no período similar posterior, em 2022 e 2023, as diversas compras do mesmo fármaco não ultrapassaram, no conjunto, meio milhão de euros. Neste último período, o maior contrato ocorreu em 11 de Maio, ao abrigo de um acordo-quadro, por um valor de cerca de 211 mil euros e um prazo de execução de 245 dias. Por ser um contrato público de aprovisionamento, não foi reduzido a escrito, mas existem peças procedimentais com a lista de medicamentos e os preços unitários. E mais: se no contrato de Julho de 2020, no valor de 1,3 milhões de euros, o Hospital de Braga demorou quase três anos a registar a informação no Portal Base, neste contrato de Maio de 2023 só necessitou de 14 dias.

    Mas se uma grande parte dos ajustes directos dos anos de 2020 e 2021 estranhamente ‘esquecidos’ nos serviços administrativos do Hospital de Braga são relativos a medicamento, existem muitos que abrangem outra tipologia de bens ou serviços. No entanto, mesmo em contratos avultados, mantém o crónico problema: nem sempre se sabe do que se trata nem sequer imaginar questões relevantes como a formação do preço. Um exemplo escandaloso passa-se com o ajuste directo no valor de 735 mil euros com a PH Energia, uma empresa de comercialização de energia.

    Celebrado em 8 de Abril de 2021, com um prazo de execução de apenas cinco dias – o que dá um custo médio de 147 mil euros por dia – não foi alvo de contrato escrito, por alegados (e não justificados) “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” pelo Hospital de Braga. Na descrição do contrato no Portal Base surge a seguinte uma obtusa descrição: “Aquisição de PH Energia, Lda”. Resta acrescentar que, embora este contrato tenha tido data de 8 de Abril de 2021 somente foi inscrito no Portal Base em 16 de Maio de 2023, ou seja, 25 meses depois.

    João Porfírio Oliveira, foi presidente do Conselho de Administração do Hospital de Braga desde a sua passagem para a esfera pública em 2019, e pelos seus (bons) serviços foi alcandorado a presidente da recém-criada Unidade Local de Saúde do Alto Minho.

    Um grupo de contratos sem sequer serem reduzidos a escrito, e também com atrasos completamente anormais e à margem da lei – porque basta saber ler o Código dos Contratos Públicos para aferir a ilegalidade em prazos legais –, diz respeito a compras de bens e equipamentos relacionados com a pandemia. Neste lote destacam-se 12 ajustes directos com valores acima de 250 mil euros, a saber:

    1 – Aquisição de 300.000 testes no valor de 573.900 euros à empresa Alfagene, entregue com um prazo de cinco dias, que foi celebrado em 6 de Agosto de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 23 de Janeiro de 2023. Ou seja, mais de 29 meses depois.

    2 – Aquisição de um número indeterminado de máscaras no valor de 477.500 euros à empresa Colunex (que comercializa colchões ortopédicos), com um prazo de execução de três dias, que foi celebrado em 26 de Março de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 10 de Maio de 2023. Ou seja, mais de 37 meses depois. Este contrato não foi, obviamente, ‘apanhado’ pelo PÁGINA UM quando em 6 de Novembro de 2022 abordou os estranhos contratos da Colunex para fornecimento de equipamentos de protecção individual a preços especulativos, não sendo esse o seu core business. Na altura dessa notícia, o Hospital de Braga ainda tinha o contrato com a Colunex de 477.500 euros ‘sequestrado’, no segredo dos deuses.

    3 – Aquisição de um número indeterminado de kits de testes no valor de 426.762 euros à empresa Alfagene, com um prazo de execução de cinco dias, que foi celebrado em 15 de Janeiro de 2021 e conhecido no Portal Base apenas em 5 de Maio de 2023. Ou seja, mais de 27 meses depois.

    4 – Aquisição de um número indeterminado de kits de testes no valor de 426.762 euros também à empresa Alfagene, com um prazo de execução de 365 dias, que foi celebrado em 12 de Maio de 2021 e conhecido no Portal Base apenas em 26 de Maio de 2023. Ou seja, 24 meses depois.

    5 – Aquisição de um número indeterminado de kits de testes no valor de 426.762 euros ainda à empresa Alfagene, com um prazo de execução de 365 dias, que foi celebrado em 22 de Julho de 2021 e conhecido no Portal Base apenas em 2 de Junho de 2023. Ou seja, mais de 22 meses depois.

    person in blue jacket holding white textile

    6 – Aquisição de 200.000 máscaras no valor de 414.000 euros também à empresa Colunex (que comercializa colchões ortopédicos), com um prazo de execução de oito dias, que foi celebrado em 4 de Junho de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 18 de Janeiro de 2023. Ou seja, mais de 31 meses depois. Também este contrato não podia ter sido detectado pela notícia do PÁGINA UM de 6 de Novembro de 2022 sobre os negócios da Colunex durante a pandemia.

    7 – Aquisição de um número indeterminado de kits de testes no valor de 344.485 euros ainda à empresa Alfagene, com um prazo de execução de cinco dias, que foi celebrado em 25 de Novembro de 2021 e conhecido no Portal Base apenas em 21 de Julho de 2023. Ou seja, quase 20 meses depois.

    8 – Aquisição de 3.000.000 de luvas de nitrilo no valor de 330.000 euros à empresa Interhigiene, com um prazo de execução de 30 dias, que foi celebrado em 15 de Outubro de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 24 de Janeiro de 2023. Ou seja, 27 meses depois.

    9 – Aquisição de 300.000 batas impermeáveis no valor de 297.000 euros à empresa Medline, com um prazo de execução de 10 dias, que foi celebrado em 1 de Outubro de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 24 de Janeiro de 2023. Ou seja, mais de 27 meses depois.

    10 – Aquisição de batas impermeáveis em número indeterminado no valor de 286.000 euros à empresa PTTEX, com um prazo de execução de 10 dias, que foi celebrado em 15 de Outubro de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 24 de Janeiro de 2023. Ou seja, também 27 meses depois.

    11 – Aquisição de equipamento não determinado no valor de 279.308 euros à empresa Clinifar, com um prazo de execução de 31 dias, que foi celebrado em 2 de Abril de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 10 de Maio de 2023. Ou seja, 37 meses depois.

    12 – Aquisição de 10 ventiladores no valor de 277.182 euros à empresa Teprel, com um prazo de execução de um dia, que foi celebrado em 2 de Abril de 2020 e conhecido no Portal Base apenas em 10 de Maio de 2023. Ou seja, também 37 meses depois.

    person wearing lavatory gown with green stethoscope on neck using phone while standing

    Mas esta é apenas o lote dos maiores ajustes directos associados a equipamentos associados à covid-19, porque as compras de urgência durante a pandemia serviram de pretexto excelente para ajustes directos a torto e a direitos, sem controlo de quantidades e de preços unitários. E por vezes sem sequer se perceber ao certo aquilo que foi adquirido.

    Se se considerar a totalidade dos ajustes directos, de qualquer tipologia, celebrados em 2020 e 2021, mas apenas disponibilizados no Portal Base em 2023, contabilizam-se um com valor superior a 2,5 milhões de euros (beneficiando a Merck Sharpe & Dohme), um outro acima de um milhão de euros (beneficiando a Pfizer), quatro entre 500 mil e um milhão de euros (beneficiando a PH Energia, a Janssen, a Roche e a Alfagene), mais 23 entre 250 mil e 500 mil euros (sendo que quatro beneficiaram a Alfagene), e mais 71 com valor entre 100 mil e 250 mil euros.

    No total são 100 os contratos do Hospital de Braga acima de 100 mil euros celebrados em 2020 e 2021, mas com divulgação a ver a ‘luz do dia’ apenas ao longo do ano de 2023. Para se aquilatar da dimensão e gravidade deste comportamento da administração do Hospital de Braga, o PÁGINA UM analisou todos os contratos nas mesmas condições, tendo contabilizado um total de 327 contratos, envolvendo 79 entidades públicas. A centena de contratos do Hospital de Braga representam 31% do total, ou seja, praticamente um em cada três contratos acima de 100 mil euros com atrasos de divulgação da ordem dos dois ou mais anos são desta unidade hospitalar do Norte.

    Embora existam outros hospitais com contratos estranhamente esquecidos, o Hospital de Braga destaca-se a grande distância dos outros. A segunda unidade de saúde com mais contratos de 2020 e 2021 acima de 100 mil euros apenas divulgados em 2023 é o Centro Hospitalar do Algarve, que conta 33. Segue-se o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, com 27, e o IPO de Lisboa com 21. Mesmo centros hospitalares de maior dimensão similar ou superior ao de Braga estiveram longe daquele nível de comprometedor atraso. Por exemplo, o de Lisboa Central, que agrega o Hospital de São José, tem cinco contratos nas condições descritas, mas aí o grau de gravidade é reduzido, porque foram todos celebrados no decurso de concursos públicos. Ora, no caso do Hospital de Braga, dos 100 contratos em causa, 99 foram por ajuste directo.

    Exemplo de um contrato ‘obscuro’ do Hospital de Braga: um ajuste directo de 735 mil euros sem contrato escrito por alegada “urgência imperiosa”, executado em apenas cinco dias, e que tem a singela descrição de “Aquisição de PH Energia, Lda.”. O contrato tem data de 8 de Abril de 2021 mas o registo no Portal Base somente foi inserido em 16 de Maio de 2023.

    O modus operandi do Hospital de Braga para ‘resolver’ os atrasos colossais – e ‘esconder’ literalmente ajustes directos muito suspeitos – foi semelhante à táctica de fazer passar um elefante cor-de-rosa desapercebido pelo meio de uma cidade: entre uma manada de elefantes castanho.

    Com efeito, salvaguardando a analogia literária, o Hospital de Braga introduziu a informação dos contratos por ajuste directo de 2020 e 2021, com atrasos impressionantes, ao longo de 2023 por fluxos. Assim, dos 138 contratos introduzidos no Portal Base (e divulgados publicamente) em Janeiro de 2023,  apenas dois eram desse ano, sendo que 129 tinham sido celebrados em 2020, um em 2021 e seis em 2022.

    Nos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2023, o Hospital de Braga somente deu a conhecer, no Portal Base, um total de 22 contratos. Todos tinham sido celebrados nos primeiros meses desse ano.

    E a seguir, houve certamente horas extraordinárias nos serviços administrativos. No mês de Maio de 2023, o Hospital de Braga introduziu no Portal Base um impressionante número de contratos: 1.134, dos quais 296 referentes ao ano de 2020 e mais 664 referentes ao ano de 2021.

    Foi, aliás, no seguimento desta ‘leva’ que o PÁGINA UM detectou aquilo que, na verdade, era apenas a ponta do icebergue, quando se noticiou, em 12 de Junho de 2023, que o “Hospital de Braga demorou mais de dois anos, e por vezes até mais de três anos, a disponibilizar pelo menos 32 contratos no Portal Base relacionadas com aquisições de equipamentos de protecção individual e materiais relacionados com a pandemia”. Visto está, a realidade mostrou que a situação era muito pior.

    Não chegou, contudo, o mês de Maio de 2023 – com a introdução de 1.134 contratos no Portal Base – para rectificar tudo. Em Junho desse ano ainda foram metido na plataforma da contratação pública mais 205 atrasados contratos celebrados em 2021 e ainda mais 143 contratos de 2022, que também estavam em violação do Código dos Contratos Públicos.

    Divulgação dos contratos no Portal Base pelo Hospital de Braga ao longo dos meses de 2023 em função dos anos em que foram celebrados (2020, 2021, 2022 e 2023). Fonte: Portal Base. Análise: PÁGINA UM.

    Mesmo em Julho e Agosto, em pleno período de férias, a ordem foi para repor os atrasos. No primeiro destes meses foram ainda metidos no Portal Base 74 contratos de 2021 e mais 153 contratos celebrados em 2022, também todos com atraso. No segundo destes meses inseriram-se então o último contrato de 2021 em falta e mais 238 contratos do ano de 2022, também em violação das normas do Código dos Contratos Públicos. Somente em Setembro de 2023 o Hospital acabou a empreitada de ‘enfiar elefantes cor-de-rosa’ no Portal Base, incluindo os restantes 55 contratos de 2022 que ainda estavam em atraso.

    O PÁGINA UM contactou a administração do Hospital de Braga sobre estas matérias em meados do mês passado, começando por receber, como resposta, que deveria ser considerada uma resposta alegadamente enviada ao PÁGINA UM no Verão passado. Reiterando que existiam novos elementos a necessitar de esclarecimentos e comentários, a administração do Hospital de Braga acabou por responder.

    Oficialmente, o Hospital de Braga salienta que a sua passagem para a esfera pública, em Maio de 2019, com o fim da parceria público-privada, “não o sujeitou às limitações constantes do Código dos Contratos Públicos por um ano”, acrescentando que um diploma (Decreto-Lei nº 10-A/2020) – logo no início da pandemia, que permitiu uma simplificação das compras – “tornou viável a discussão quanto à suspensão daquele prazo inicialmente concedido”.

    Saliente-se, contudo, que aquilo que está sobretudo em causa nem sequer o tipo de procedimento escolhido, mesmo se o Hospital de Braga mostre ser adepto incondicional dos ajustes directos, mas sim a determinação daquilo que foi verdadeiramente adquirido (quase impossível de saber sem contrato escrito) e sobretudo a divulgação da informação pública no Portal Base, que não é uma questão de somenos.

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    Por outro lado, ressalve-se que diploma de simplificação das compras durante a pandemia, se permitiram contratos por ajustes directo sem limite, não eliminaram a obrigatoriedade de divulgação no Portal Base. Com efeito, no artigo 2º desse diploma salienta-se expressamente que “as adjudicações feitas ao abrigo do presente regime excecional são comunicadas pelas entidades adjudicantes aos membros do Governo responsáveis pela área das finanças e pela respetiva área setorial e publicitadas no portal dos contratos públicos [Portal Base], garantindo o cumprimento dos princípios da publicidade e transparência da contratação”.

    Ou seja, claramente o Hospital de Braga estava e sabia estar em falta, até porque não se encontra, nem de longe, nenhuma outra entidade pública com este grau de violação de prazos.

    Em todo o caso, a administração do Hospital de Braga menospreza a gravidade da situação, dizendo que “a não publicitação dos contratos no Portal Base […], não afeta a validade do procedimento de concurso público, pelo que, caso fosse vontade […] em ocultar, omitir ou deturpar informação, não teria encetado as diligências necessárias à publicitação dos contratos”.

    Esta, diga-se, é uma afirmação capciosa, porque, com os escandalosos atrasos em mais de um milhar de contratos, abrangendo mais de 47 milhões de euros, o Hospital de Braga passou pelo crivo da generalidade dos relatórios do Tribunal de Contas, designadamente daqueles que incidiram nos anos da pandemia, uma vez que esta entidade se socorre, em grande parte, aos contratos que se encontram no Portal Base.

    Um exemplo flagrante disso observa-se no quarto relatório de acompanhamento dos contratos isentos de fiscalização prévia por causa da pandemia, publicado em Julho de 2022: enquanto o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (que integra o Hospital de Santa Maria) surge referido por 49 vezes e está em primeiro lugar do top 25 dos adjudicantes, o Hospital de Braga (que é uma unidade de grandes dimensões) é apenas referido uma singela vez quando surge numa tabela que o coloca apenas no lugar 46 do top 100 dos adjudicantes. E isto sucede por uma razão simples: à data, ao contrário das outras unidades de saúde, o Hospital de Braga escondia os contratos.

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    A administração do Hospital de Braga ainda acrescentou ao PÁGINA UM que “os contratos ora publicitados contém toda a informação necessária a permitir concluir pelo cumprimento dos princípios da transparência e da publicidade, conquanto foram assegurados os princípios gerais inerentes à contratação pública, não tendo sido afetada a concorrência e a prossecução do interesse público, nem violado o dever de imparcialidade”. Uma afirmação que não encontra sustento nos exemplos acima apontados pelo PÁGINA UM, e que somente por economia de tempo não se acrescentaram mais.

    E, por fim, a administração do Hospital de Braga acrescenta também que, até agora, “nenhuma entidade [com atribuições legais, depreende-se] veio colocar em causa a legalidade dos atos de autorização e pagamento da despesa pública dos procedimentos contratuais em causa”. Essa afirmação, convenhamos, é verdadeira, razão pela qual o PÁGINA UM vai endereçar todos os elementos recolhidos nesta investigação ao Tribunal de Contas, ficando depois a aguardar a sua reacção.

    N.D. 03h00 de 21/02/2024 – Feitos diversos acrescentos, sobretudo a inclusão das ligações ao Portal Bases dos 12 contratos numerados, bem como a inclusão de um ficheiro com todos os contratos ‘atrasados’ (de 2020 e 2021 mas divulgados apenas em 2023) com valor superior a 100 mil euros.


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  • Câmara de Cascais vai a tribunal justificar razões para esconder ‘estranhos gastos’ no apoio aos refugiados

    Câmara de Cascais vai a tribunal justificar razões para esconder ‘estranhos gastos’ no apoio aos refugiados

    Desde 2022, o município de Cascais destaca-se por ser a entidade pública que mais gastou em apoiar os refugiados ucranianos após a invasão da Rússia. Mas gastar mais – e foram 1,6 milhões de euros, 73% do total de todos os gastos por entidades públicas –, não significa gastar bem. Depois do terceiro contrato de aquisição de refeições e ainda de um ajuste directo com preços hiper-inflacionados ao Modelo Continente, o PÁGINA UM insistiu nos últimos meses, junto da autarquia liderada por Carlos Carreiras, para aceder a documentos operacionais e contabilísticos. Recebeu o silêncio como resposta. Uma intimação apresentada esta semana no Tribunal Administrativo de Sintra vai, para já, obrigar a câmara social-democrata a justificar-se. E espera-se, no fim, que seja mesmo obrigada a ceder os documentos que deverão esclarecer, por exemplo, como produtos no valor de 14 mil euros resultaram num ajuste directo de cerca de 180 mil euros.


    A Câmara Municipal de Cascais, liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras, vai ter de justificar ao Tribunal Administrativo de Sintra, e bem, os motivos legais para não disponibilizar ao PÁGINA UM os documentos operacionais e contabilísticos de dois contratos por ajuste directo para alimentação a refugiados ucranianos. A intimação foi apresentada esta semana depois de meses de recusas por parte do município em esclarecer compras absurdas de bens alimentais e de higiene ao Modelo Continente e a aquisição de serviços de catering à empresa ICA.

    No primeiro caso, como noticiado pelo PÁGINA UM em Outubro passado, trata-se de um ajuste directo no valor de 166.124,88 (sem IVA) para a entrega em períodos mensais, durante um ano – a acabar em Junho próximo –, de cerca de uma centena de produtos. O ‘problema’ deste contrato estava sobretudo no facto de as quantidades constantes no caderno de encargos, aos preços unitários então praticados pelos supermercados do Grupo Sonae, deverem totalizar pouco mais de 14 mil euros. Ou seja, o valor dos bens previstos no contrato era mais de 10 vezes superior ao valor de mercado desses produtos, havendo uma diferença de mais de 160 mil euros, se se considerar o IVA.

    Quanto ao segundo caso, também noticiado pelo PÁGINA UM, mas em Setembro passado, tratou-se de mais uma aquisição de serviços à empresa ICA para fornecimento de refeições aos centros de refugiados em Cascais. Esse contrato, por ajuste directo, era o terceiro assinado em menos de dois anos, cada um com um custo de 250 mil euros. A autarquia sempre se recusou a permitir uma visita aos centros nem sequer indicou quantas pessoas estariam a ser alimentadas, de modo a conferir se a aquisição de serviços, que já totalizavam os 750 mil euros entregues à ICA.

    O interesse do PÁGINA UM sobre estes contratos deveu-se às indicações de haver excesso de compras para as necessidades reais. Saliente-se que o município de Cascais foi, de muito longe, a entidade pública com maiores gastos para suposto apoio à Ucrânia e sobretudo aos refugiados provenientes daquele país invadido pela Rússia.

    Com efeito, num levantamento realizado ao Portal Base em finais de Setembro do ano passado, o município de Cascais já gastara 1,6 milhões de euros para diversos fins relacionados com a Ucrânia, incluindo transporte, alimentação e mesmo obras públicas, dos quais quase 1,2 milhões de euros em 2022. Neste lote constavam duas empreitadas de obras públicas por ajuste directo com vista à remodelação de edifícios camarários. A autarquia também sempre recusou acesso aos locais e aos cadernos de encargos das obras entregues à Ediperfil (157.275 euros) e à Valente & Carreira (321.053 euros).

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais. Receber os louros pelos apoios, sempre quis; mostrar contas, nunca quis.

    Os montantes gastos pela autarquia de Cascais eram então, e continuam a ser, incomensuravelmente superiores aos das demais entidades públicas. Por exemplo, o segundo município que mais gastara, até Setembro, em apoio aos refugiados ucranianos era o de Ourém, com apenas 166 mil euros. A terceira entidade pública com maiores apoios era a Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional, com um pouco menos de 80 mil euros. O município liderado por Carlos Carreiras, segundo as contas do PÁGINA UM com base em contratos no Portal Base, totalizava 73% dos gastos públicos em apoio aos refugiados da Ucrânia, mas sempre sem haver possibilidades de ser, até agora, conferida a adequada aplicação das verbas.

    Algo que poderá agora mudar com o pedido de intimação agora feito no Tribunal Administrativo de Sintra do PÁGINA UM – o 20º processo que visa o acesso a documentos, através do FUNDO JURÍDICO, financiado pelos leitores. Nessa intimação, com carácter de urgência, solicita-se que a Câmara Municipal de Cascais seja obrigada a disponibilizar os contratos integrais (sem rasuras de nomes, como sucede no Portal Base), as requisições de produtos, as guias de remessa, facturas e outros elementos operacionais e contabilísticos relativos aos ajustes directos com a Modelo Continente e a ICA.


    N. D. O FUNDO JURÍDICO tem sido, através de donativos específicos dos leitores, a única forma que o PÁGINA UM tem de suportar os encargos com honorários e taxas de justiça, que, por regra, numa primeira fase, atingem sempre valores acima de 500 euros, acrescidos de mais gastos se houver recursos. Aliás, convém recordar que o PÁGINA UM tem mais de uma dezena de processos ainda em cursos, alguns deles com estranha morosidade, dois dos quais em fase de execução de sentença, ou seja, mesmo depois de sentenças favoráveis no tribunal administrativos as entidades mantiveram a recusa em ceder os documentos.


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