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  • Volta a Portugal é (mais) uma ‘roda dos milhões’ com dinheiros públicos

    Volta a Portugal é (mais) uma ‘roda dos milhões’ com dinheiros públicos

    Chamar Volta a Portugal à principal prova de ciclismo do país é já só uma força de expressão. Os ciclistas nem percorrem agora todas as regiões de Portugal e até andam cada vez mais de autocarro, porque a localidade de partida, no dia seguinte, é quase sempre diferente da do sítio da chegada. Este ano, por exemplo, os ciclistas pedalarão, a partir de hoje, 1.540 quilómetros, mas serão transportados em viaturas por mais 748. A ‘culpa’ é da organização que define os percursos em função das autarquias que abrem os ‘cordões à bolsa’ com dinheiros públicos. O PÁGINA UM contabilizou, só no ano passado, 16 contratos entre autarquias e a empresa organizadora (Podium Events) no valor total de quase 860 mil euros, ultrapassando um milhão se se incluir IVA. Este ano o valor deverá ultrapassar a fasquia de um milhão, uma vez que a Santa Casa da Misericórdia vai, com 310 mil euros por edição, passar a patrocinar a ‘camisola branca’. À conta dos pagamentos com dinheiros públicos – num evento que conta com dezenas de patrocinadores privados –, Lisboa só vai ser a meta da etapa desta quinta-feira porque a Junta de Freguesia de Marvila ‘despachou’ 90 mil euros.


    Uma roda de bicicleta é redonda, embora nem todas as voltas sejam circulares – mas, convenhamos que, mesmo podendo haver curvas e rectas, existia um princípio no desporto, em especial no ciclismo, sobre o conceito de Volta: pressupunha chegar de onde se partira ou, no limite, sendo por etapas, como no ciclismo, a chegada num dia sempre seria, em condições normais, a partida noutro.

    Esqueçamos isso. Se, sobretudo a partir dos anos 90, a Volta a Portugal em bicicleta nunca mais acertou em dar mesmo uma volta ao país – e o Alentejo e o Algarve chegaram mesmo a nem ser pedalados em alguns anos –, nos últimos anos tem sofrido uma espécie de esquizofrenia: o pelotão acaba uma etapa num sítio e vai de bicicletas e bagagens para sair noutra localidade pela manhã seguinte. Em alguns casos, a caravana vai literalmente em mais do que duas rodas durante largos quilómetros.

    Ciclistas vão andar a pedalar e a andar de carro (ou autocarro). Foto:  Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua

    Exemplo paradigmático é a edição 85 que hoje se inicia a partir das 14h30, com um prólogo, em Águeda. São apenas 5,7 quilómetros, mas a primeira etapa já sairá, amanhã, em terras do vizinho concelho da Anadia, uma vila de Sangalhos. Em todo o caso, são apenas 12 quilómetros entre Águeda e Sangalhos. Terminada esta etapa em Miranda do Corvo, a caravana percorrerá em veículos 111 quilómetros, porque a segunda etapa sairá de Santarém. Essa etapa termina em Lisboa, e nova ‘peregrinação’ de popós, que será mais longa do que muitas etapas a dar ao pedal: são 180 quilómetros a partir da capital para se chegar ao Crato, no norte do Alentejo, onde se iniciará a terceira etapa.  

    Na verdade, não considerando o prólogo (Águeda) e o contra-relógio da última etapa (Viseu) – que, pela curta distância, podem ser considerados ‘circuitos’ –, apenas haverá uma etapa que se inicia na mesma localidade onde termina a anterior: Bragança. De resto, a caravana automóvel, com os ciclistas à boleia, vai andar como ‘barata tonta’ pelo norte e centro do país para levar tudo do sítio onde se termina para o outro onde se continuará, a saber: Covilhã-Sabugal (42 km), Guarda-Penedono (63 km), Boticas-Felgueiras (79 km), Paredes-Viana do Castelo (83 km), Fafe-Maia (55 km) e Mondim de Basto-Viseu (123 km). Contas feitas, os ciclistas que terminarem a Volta pedalarão cerca de 1.540 quilómetros, mas entre etapas, de carro, andarão mais 748 quilómetros.

    A razão para este ziguezaguear tem uma explicação sobretudo pragmática, ou, melhor dizendo, económica no sentido não de tempo mas de valor monetário: a organização da Volta a Portugal, entregue pela Federação Portuguesa de Ciclismo à empresa Podium Events, escolheu o traçado das etapas em função dos municípios que ‘abrem os cordões à bolsa’, ou seja, que fazem ‘circular’ o dinheiro dos contribuintes. Por exemplo, no ano passado, de entre os 20 municípios que integraram as etapas (como partida ou chegada), 15 pagaram pelo ‘serviço’: no Portal Base só não se encontraram contratos entre a Podium Events e os municípios de Viseu (onde se fez o prólogo), Vila Franca de Xira, Sines e Estremoz.

    Foto: DR

    O município da Guarda pagou 140 mil euros, havendo mais seis autarquias que pagaram, para ver os ciclistas a terminarem ou a começarem etapas, valores acima dos 75 mil euros, a saber: Loulé (85.000 euros), Viana do Castelo (83.500 euros), Castelo Branco, Fafe e Montalegre (80.000 euros, cada um), Mondim de Basto (79.950 euros) e Covilhã (52.500 euros). Com verbas mais modestas para patrocinar a Volta a Portugal adiantaram-se ainda as autarquias de Paredes (40.000 euros), Abrantes (25.000 euros), Anadia (20.325 euros), Penamacor (20.000 euros), Ourique (12.500 euros, embora a etapa tenha partido de Sines). A Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo deu um patrocínio de 15.000 euros. No total, a Podium Events – que organiza este evento desde 2001, embora com outra denominação antes de 2013 – recebeu, via municípios, quase 860 mil euros de dinheiros públicos

    Este ano deverá vir a receber muito mais, porque, além dos patrocínios dos municípios, a Santa Casa da Misericórdia continua uma ‘mãos largas’ e já assumiu contratualmente que vai pagar 620 mil euros à Podium Events para ser patrocinador, durante duas edições, da camisola branca (para o melhor jovem ciclista na classificação geral)) e do Prémio Melhor Português. Ou seja, 310 mil euros em cada ano. Este contrato tem, além de tudo, partes expurgadas: cerca de seis páginas do texto inserido no Portal Base, respeitantes à cláusula segunda, estão irregularmente em branco, uma vez que o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) permite estes abusos.

    Tendo em conta a proximidade, para a edição da Volta a Portugal que hoje se inicia ainda estarão em falta diversos contratos entre a Podium Events e autarquias que se predispuseram a pagar largas dezenas de milhar ou mesmo mais de 100 mil euros para serem ‘escolhidas’. Por exemplo, certamente o prólogo de hoje não se realizaria em Águeda sem uma transacção de 110 mil euros. Sem contrato escrito, alegando que se trata de uma excepção no Código dos Contratos Públicos – mas de legalidade duvidosa, até por classificar o patrocínio como “serviços sociais e outros serviços específicos” –, a autarquia social democrata assumiu apenas ontem esse pagamento para ver rodar as bicicletas durante 5,6 quilómetros.

    Autarquia de Águeda pagou 110 mil euros (mais IVA) para receber prólogo da edição deste ano. Foto: DR

    Muito menos pagou o município de Anadia que, para ter a partida da etapa de amanhã no seu concelho – mais propriamente em Sangalhos, uma vila histórica do ciclismo, em cuja equipa pedalou Alves Barbosa, o primeiro vencedor de três Voltas, nos anos 50 –, despendeu ‘apenas’ 24.390,24 euros. O contrato assinado anteontem foi até aos cêntimos. Mesmo assim foi cerca de quatro mil euros acima do valor pago no ano passado pelo mesmo ‘serviço’.

    Por agora, o montante mais chorudo (140 mil euros) é o da autarquia da Guarda, estando inserido no contrato de 400 mil euros celebrado em Julho de 2022 para garantir a passagem na cidade das edições de 2022 a 2025. No caso da edição deste ano, o contrato estipula um preço de 140 mil euros, para que seja o destino final da 4ª etapa.

    Também como patrocinador nesta edição está a autarquia de Mondim de Basto, que celebrou em 2022 um contrato por três anos no valor de 195 mil euros. Para este ano, a Podium Events vai amealhar 79.950 euros deste município do distrito de Vila Real, conhecido por ter o ponto mais complicado da Volta, a Senhora da Graça.

    Também a Covilhã optou por um contrato plurianual: assinou anteontem um  para garantir a passagem na cidade serrana de duas edições da Volta de Portugal no valor de 120 euros. Assume-se que, para este ano, entregará à empresa organizadora 60 mil euros para receber o final da terceira etapa.  

    Lisboa vai estar, ao contrário do ano passado, também no mapa da Volta, mas o pelotão só se vai abeirar da freguesia de Marvila na próxima sexta-feira, como final da etapa que parte de Santarém. A razão é simples de explicar: foi a Junta de Freguesia de Marvila – e não a Câmara Municipal de Lisboa – a adiantar-se com o dinheiro. E não é pouco para esta freguesia socialista: 90 mil euros.   

    Contas feitas, e contabilizando o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia e apenas seis autarquias – as partidas e chegadas das etapas envolvem 17 municípios –, a organização da Volta a Portugal já amealhou para a edição deste ano quase 815 mil euros de dinheiros públicos, mas será quase certo que ultrapassará a fasquia de um milhão.

    A estes montantes públicos, acrescem os financiamentos privados para a organização do evento. A Volta a Portugal tem o Continente como patrocinador principal, além de ter a Galp e a Carclasse como patrocinadores oficiais das camisolas. Entre patrocinadores e fornecedores oficiais, a Podium Events conta com mais de duas dezenas e meia de empresas privadas.

    Saliente-se que, para contornar o impedimento de patrocínios directos a empresas privadas, a generalidade dos contratos celebrados pelas autarquias, sob a forma de ajuste directo, indicam estar-se perante uma aquisição de serviços – como se fossem os municípios os organizadores do evento –, o que constitui uma forma pouco ortodoxa de cumprir o Códigos dos Contratos Públicos. Até agora, o Tribunal de Contas tem ‘fechado os olhos’, mesmo sendo evidente que se está perante patrocínios, tanto assim que a lista das autarquias surge na página dedicada aos patrocinadores.

    Embora a Podium Events realize outros eventos, sobretudo de ciclismo, as entidades públicas, sobretudo autarquias, são relevantes clientes. Desde 2009 contabilizam-se cerca de 180 contratos, envolvendo quase 12,4 milhões de euros, ultrapassando assim os 15 milhões, caso se inclua IVA. Mais de 3,1 milhões de euros apenas desde 2022.

    Grande parte destes contratos envolvem autarquias (62) e comunidades intermunicipais, destacando-se como melhores clientes da Podium Events, para além da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (620 mil euros), os municípios de Lisboa (1,8 milhões de euros), de Castelo Branco (1,04 milhões de euros), de Viana do Castelo (895 mil euros), da Guarda (790 mil euros), Mondim de Basto (533 mil euros), Montalegre (430 mil euros), Covilhã (375 mil euros) e Braga (355 mil euros).

    N.D. Houve um pequeno lapso em um dos percursos entre etapas, pelo que a distância a percorrer pela caravana de viaturas será de 748 quilómetros, e não de 762, como indicado na notícia original. Esta correcção foi introduzida às 1h30 de 26/07/2024.


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  • ‘Máfia dos testes’: o crime compensou, e muito

    ‘Máfia dos testes’: o crime compensou, e muito

    Em Dezembro de 2021, o PÁGINA UM já escrevia sobre os lucros pornográficos dos laboratórios de análises clínicas só por causa dos ‘testes covid’, mas tudo andava a ser ‘turbinado’ por esquemas de cartelização típicas das famílias mafiosas como se vêem nos filmes, mas estas de ‘bata branca’ com uma associação a servir de charneira. Agora que a Autoridade da Concorrência aplicou coimas históricas a grupos laboratoriais a operar em Portugal, o PÁGINA UM foi ver a ‘mossa’ que vai causar às contas de uma das mais importantes empresas deste sector, e concluiu que o ‘crime’ compensou: o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa foi condenado a uma coima de 9,3 milhões de euros, mas no triénio da pandemia (2020-2022) registou acréscimos de lucros da ordem dos 62 milhões de euros. Os capitais próprios da empresa fundada pelo antigo bastonário da Ordem dos Médicos mais que quadruplicaram entre 2019 e 2022, situando-se em quase 36 milhões de euros.


    Haverá, por certo, nos próximos dias, ‘vestes rasgadas’ dos laboratórios, a clamar inocência e choque, por hoje terem sido condenadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) a pagar coimas no valor total de 48,61 milhões de euros devido a esquemas de cartel que operam no mercado português entre, pelo menos, 2016 e 2022, e que atingiu o seu auge durante a pandemia com os testes PCR e antigénio de detecção do SARS-CoV-2. Mas a verdade é cristalina: mesmo parecendo haver mão pesada, o crime mais do que compensou: os milhões eventualmente perdidos em coimas não beliscam lucros fabulosos daquilo que pode vir a ficar conhecido por ‘Máfia dos Testes’.

    Um dos casos mais evidentes passa-se com o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, fundado pelo antigo bastonário da Ordem dos Médicos, que viu na covid-19 uma espantosa oportunidade de negócio, ainda mais potenciada pelos esquemas agora denunciados e penalizados pela Autoridade da Concorrência. Mesmo sendo certo que existia já cartelização antes da pandemia, nomeadamente em análise de vitamina D, foi nos testes à covid-19 que os laboratórios de Germano de Sousa, e todos os outros singraram.

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    De acordo com as demonstrações financeiras da empresa do antigo bastonário, antes da covid-19 a situação não era nada má: as vendas e prestações de serviços no triénio pré-pandemia (2017-2019) tinham sido de 29,1 milhões, 30,5 milhões e 35,7 milhões de euros, respectivamente, que resultaram em lucros líquidos de 3,7 milhões, quase 3,9 milhões e 8,1 milhões de euros, respectivamente. A margem de lucro líquida andava próxima dos 13% em 2017 e 2018, e subira para 17% em 2019.

    Com a covid-19, a história foi outra: para melhor, na perspectiva da empresa; para pior, na perspectiva dos dinheiros públicos. Com efeitos, as receitas do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa dispararam literalmente, e ainda mais os lucros. Em 2020, a empresa mais que duplicou a facturação face ao ano anterior, com 74,4 milhões de euros, obtendo um lucro de 23,3 milhões de euros e uma margem de lucro líquida de 31%. Ou seja, os testes vendiam-se com elevadíssima margem. Em 2021, as receitas chegaram a uns impressionantes 115,4 milhões de euros e lucros de 35,1 milhões de euros, ou seja, de quase seis vezes o valor de 2019. Em 2022, os resultados decaíram um pouco, para os 17,1 milhões de euros, em virtude da retracção das vendas de testes (as receitas baixaram para os 78 milhões de euros) mas mesmo assim bem superior aos lucros do triénio de 2017-2018.

    Na verdade, mostra-se impressionante comparar os lucros da empresa de Germano de Sousa no período pré-pandemia (2017-2019) com o período da pandemia (2020-2022): lucros acrescidos de 61.927.101 euros, ou seja, foi o ‘lucro da pandemia’ só para esta empresa, que agora viu ser-lhe aplicada uma coima de 9,3 milhões de euros. Contas feitas, fica um ‘saldo’ confortável de quase 52 milhões de euros a acrescer aos lucros expectáveis. Quem ganhou foram os capitais dos accionistas, que passaram de 7,9 milhões em 2019 para os quase 35,6 milhões em 2022. Ou seja, mais do que quadruplicaram.

    (Foto: D.R./Germano de Sousa)

    Com as devidas proporções, associadas aos volumes de negócios, os outros laboratórios terão tido um comportamento e sucessos similares, até por haver uma estreita relação quer na definição de preços quer na quota de mercado. Segundo o processo da AdC, “as visadas Affidea [Hormofuncional e Alves & Duarte], Germano de Sousa, Joaquim Chaves, Redelab, Beatriz Godinho e ANL [Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos] agiram deliberadamente, de forma ilícita e culposa, com manifesto dolo, implementando um acordo suscetível de consubstanciar uma infração por objeto ao direito da concorrência”.

    De acordo com a decisão tornada hoje pública, a Hormofuncional/Alves & Duarte (grupo Affidea) foram condenadas a pagar uma coima de 26,1 milhões de euros, a coima aplicada à Joaquim Chaves foi de 11,5 milhões de euros, a Germano de Sousa terá de pagar 9,3 milhões de euros, a Labeto 1,4 milhões de euros, a Redelab (e Jorge Leitão Santos) 300 mil euros e a ANL 10 mil euros.

    A AdC adiantou que a presente decisão anunciada hoje “foi precedida por duas decisões condenatórias no mesmo processo, adotadas em 21 e 26 de dezembro de 2023, que resultaram do recurso ao procedimento de transação por parte de dois grupos laboratoriais multinacionais”. Através da adesão ao procedimento de transação, estas empresas “abdicaram de contestar a imputação da AdC e procederam ao pagamento voluntário das coimas aplicadas no valor global de €8.900.000, tendo optado por colaborar com a investigação e fornecer à AdC prova relevante da existência das práticas anticoncorrenciais em causa”.

    Existem dois acordos individuais que identificam a Synlab e a Unilabs como as duas empresas que pagaram voluntariamente as coimas, respectivamente de 5 milhões e 3,9 milhões de euros. No caso da Unilabs, a coima diz respeito à actuação da sua subsidiária Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres.  

    Uma vez que o processo teve origem em pedido de dispensa ou redução da coima ao abrigo do Programa de Clemência, foi concedida dispensa da coima à Affidea BV, que denunciara o esquema e que cumpria todos os requisitos aplicáveis. Segundo o regulador, a empresa Medicina Laboratorial Dr. Carlos da Silva Torres, uma das empresas que recorreu ao procedimento de transação, “beneficiou ainda de uma redução adicional da coima ao abrigo do Programa de Clemência”.

    Ou seja, no conjunto, “este processo envolveu um total de sete grupos laboratoriais e uma associação empresarial, com um total de coimas aplicadas de €57.510.000, dos quais €8.900.000 foram voluntariamente pagos”.

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    Graças ao esquema, salienta a AdC, “a taxa de crescimento anual do volume de negócios agregado na prestação de análises clínicas em território nacional em 2020 e 2021, correspondente ao período da pandemia, por parte dos grupos laboratoriais visados foi entre 50 e 60% em cada um dos anos”. Não admira, só o Serviço Nacional de Saúde comparticipou 40 milhões de testes até finais de Março de 2022.

    A combinação entre os laboratórios teve impacto significativo no preço unitário dos testes em Portugal. O regulador recorda que “em Setembro de 2020, o valor os testes covid (PCR) estavam, em Portugal, ao nível dos preços na Europa”, mas “em Junho de 2021, Portugal era o país da Europa com o preço por teste covid mais alto da Europa”. 

    Apesar da decisão de hoje, este caso remonta a Fevereiro de 2022, quando a Concorrência procedeu à abertura de inquérito na sequência de a decisão de “um pedido de dispensa ou redução da coima referente à existência de um conjunto de práticas” irregulares, mas sem haver então muitos elementos.  Posteriormente, outro laboratório pediu clemência. Em Março de 2022, a AdC chegou a realizar diversas diligências de busca e apreensão na sede das empresas visadas, em Lisboa e no Porto. No entanto, o PÁGINA UM já escrevera em Dezembro de 2021 sobre os pornográficos lucros da laboratório de Germano de Sousa e também de Joaquim Chaves.

    Segundo a AdC, o cartel forjado entre os laboratórios e com a participação da Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos procedeu à “fixação dos preços aplicáveis e a repartição geográfica do mercado de prestação de análises clínicas e de fornecimento de testes covid-19”. A Concorrência concluiu ainda que a “a concertação entre os cinco laboratórios ter-lhes-á permitido aumentar o seu poder negocial face às entidades públicas e privadas com as quais negociaram o fornecimento de análises clínicas e de testes COVID-19, levando à fixação de preços e de condições comerciais potencialmente mais favoráveis do que as que resultariam de negociações individuais no âmbito do funcionamento normal do mercado, impedindo ou adiando a revisão e a redução dos preços”.

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    “A partir de Março de 2020, os laboratórios visados concertaram entre si os preços para o fornecimento de testes covid aos utentes do SNS e da ADSE e impuseram-nos nas negociações com a tutela”, refere a AdC no comunicado. Adianta que “os laboratórios visados ameaçaram, aliás, a tutela com um boicote ao fornecimento de testes covid em represália contra as atualizações (reduções) dos preços convencionados”.

    De acordo com a AdC, a ANL teve um “papel determinante” na formação do cartel, visto que “o acordo em que estiveram envolvidos os laboratórios Affidea, Joaquim Chaves, Germano de Sousa, Beatriz Godinho e Redelab, foi facilitado por esta associação a pretexto da respetiva atividade, alavancando-se os laboratórios visados no exercício de cargos de Direção na associação”.

    Segundo o processo, a ANL – que só apanhou uma coima de 10 mil euros – foi crucial para a viabilização dos contactos entre os laboratórios visados, com a associação a actuar como um “elemento facilitador” da “formação de consensos que se concretizaram designadamente, na fixação de preços e na repartição do mercado entre as demais visadas, bem como na transmissão das posições acordadas às entidades com as quais, nas várias circunstâncias descritas nesta Decisão, foi negociada a prestação de análises clínicas/patologia clínica”.

    Dos laboratórios, “as visadas Affidea, Joaquim Chaves e Germano de Sousa desempenharam um papel de destaque, estando diretamente envolvidas na quase totalidade dos comportamentos identificados, ao contrário das visadas Redelab e Beatriz Godinho”.

    Os “os elementos probatórios juntos aos autos indiciam que as visadas Affidea, Joaquim Chaves e Germano de Sousa, que integram o grupo de laboratórios privados com maior capacidade de produção e rede de colheitas, integram um grupo de laboratórios privados representados na Direção ANL mais restrito que manteve um grau de proximidade maior entre si e uma cooperação mais estreita, levando a que, muitas vezes, estes laboratórios beneficiassem dos resultados da colusão em detrimento dos demais laboratórios visados”.

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    Mas a AdC destaca, na sua decisão, que “cumpre fazer uma distinção entre o grau de participação da Germano de Sousa e o grau de participação das visadas Affidea e Joaquim Chaves”. Assim, “embora a Germano de Sousa tenha estado diretamente envolvida” na formação do cartel, “cumpre constatar que o seu grau de envolvimento é menor face ao envolvimento das visadas Affidea e Joaquim Chaves, na medida em que, embora fosse consultada pela Direção ANL e convidada para as respetivas reuniões em data anterior a 18.07.2018, manifestando o seu alinhamento com os consensos alcançados”, a AdC observou que “a Germano de Sousa tem intervenção em menos conversações, só tendo sido nomeada vogal da Direção ANL nessa data”.

    A decisão final da AdC é ainda susceptível de recurso de impugnação judicial e não se encontra ainda transitada em julgado. A ANL anunciou, através de um comunicado citado pelo Eco, que vai recorrer da decisão da Concorrência, manifestando “o seu total desacordo e indignação” face à decisão da AdC e defendendo que esta é “caracterizada por erros factuais e de direito” e “representa um grave atentado à justiça e à integridade do setor convencionado da saúde em Portugal”.

    N.D.: Notícia actualizada às 21H20 do dia 25 de Julho com mais informação sobre as duas empresas que pagaram voluntariamente as coimas e as duas empresas que pediram dispensa ou redução de coima.


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  • ERC ‘puxa orelhas’ à TVI por promover ‘jovem milionário’ das cripto

    ERC ‘puxa orelhas’ à TVI por promover ‘jovem milionário’ das cripto

    Mais de um ano depois da polémica que gerou uma onda de contestação, sobretudo no mercado regulado das criptomoedas, o regulador dos media tornou público um ‘puxão de orelhas’ à TVI por ter transmitido uma reportagem da jornalista Conceição Queiroz sobre um suposto ‘jovem milionário’ português a residir no Dubai. Em causa está uma longa peça televisiva transmitida no dia 21 de Junho de 2023, em horário nobre, a promover os negócios de Renato Duarte Junior, apresentado como “o milionário improvável’ por via da sua ‘empresa de investimentos’, dbl.pt. Na sequência de várias queixas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deixa agora fortes críticas à TVI por não ter sequer confirmado o perfil e legalidade das actividades do ‘jovem milionário’ e por ter apenas promovido um (alegado) estilo de vida luxuoso, susceptível de ludibriar os telespectadores mais ingénuos e sem literacia financeira. A ERC instou ainda a TVI a acrescentar um aviso na reportagem, no seu site, algo que ainda não sucedeu. Aliás, a estação de televisão de Queluz nem se dignou a responder a um ofício da ERC em Julho de 2023 para justificar este trabalho jornalístico. Subsistem ainda dúvidas sobre se a TVI recebeu contrapartidas financeiras para emitir a reportagem e se a jornalista e outros colaboradores da estação beneficiaram de viagens e estadia pagas pelo ‘jovem milionário’ ou pela sua suposta empresa. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista nunca se pronunciou sobre este assunto.


    Em sete pontos, o regulador dos media repreendeu a TVI por uma polémica reportagem que promoveu um ‘jovem milionário’ das criptomoedas a viver uma suposta vida de luxo no Dubai e que, através da empresa dbl.pt (Digital Bank Labs), prometia lucros enormes, mas sem que fossem apresentadas quaisquer provas sobre a veracidade e legalidade dos seus negócios. Numa deliberação aprovada a 29 de Maio, mas só ontem tornada pública, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deixa fortes críticas à estação de televisão de Queluz por não ter confirmado as afirmações do ‘jovem milionário’ e pela “falta de rigor informativo”.

    Em causa está a reportagem da jornalista Conceição Queiroz (CP 7851) que, em cenários luxuosos e idílicos gravados no Dubai, apresentava Renato Duarte Júnior (Silvério Renato Carneiro Duarte), o milionário improvável’, rodeado de fausto. A reportagem foi transmitida em 21 de Junho de 2023 em horário nobre e gerou uma onda de contestação na Internet pelo carácter duvidoso das informações veiculadas pela reportagem, incluindo do próprio sector regulado do sector das criptoactivos.

    (Foto: Captura a partir de imagem da reportagem da TVI)

    Como noticiou o PÁGINA UM, em primeira mão em Junho do ano passado, vários reguladores emitiram, na altura, alertas na sequência da reportagem. O caso ficou rapidamente na mira da ERC dada a polémica que gerou. O Banco de Portugal emitiu um aviso aos investidores de que a empresa mencionada na reportagem e o suposto milionário não estavam autorizados a exercer qualquer actividade financeira em Portugal. A FACE – Federação Portuguesa das Associações da Cripto Economia revelou ao PÁGINA UM que considerava a reportagem ‘perniciosa’ e deixou um alerta. Também a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários avisou que a suposta empresa dbl.pt não estava autorizada a operar em Portugal (na sua deliberação, a ERC cita o Jornal Económico como fonte deste aviso da CMVM, apesar de ter sido divulgado primeiro no PÁGINA UM).

    Na sua deliberação, a ERC sintetiza as participações de cerca de uma dezena de queixosos, e decidiu “instar a TVI a associar ao conteúdo disponível online uma advertência para os aspetos problemáticos identificados pelos vários reguladores”, o que a estação ainda não fez, apesar de terem passado dois meses desde a aprovação da deliberação do regulador.

    Para a ERC, “a peça não cumpre o dever de identificação de fontes relativamente a diversas informações” e considerou que “não foi cumprido o dever de rigor informativo inerente à prática jornalística e exigível aos órgãos de comunicação social”.

    (Foto: Captura a partir de imagem da reportagem da TVI)

    Também criticou o facto de na reportagem ser apresentado “um estilo de vida, um modo de enriquecer e o discurso do seu protagonista, sem a problematização, o sentido crítico, a contextualização e o esclarecimento através de fontes fidedignas que sempre devem acompanhar a difusão destes temas pela comunicação social, mas especialmente devidos em conteúdos apresentados como informativos”.

    O regulador lamentou ainda que, com a reportagem, se prescindiu “de contribuir para a literacia
    financeira dos públicos, num contexto em que a desproteção dos mesmos e o tom promocional e apelativo do conteúdo o tornava adequado e especialmente necessário”.

    A ERC deliberou ainda instar “a TVI ao cumprimento, no futuro, da obrigação de assegurar o rigor e
    isenção da informação que difunde e da obrigação de observar uma adequada ética de antena” e de sensibilizar a estação para a “necessidade de limitar a proeminência da reportagem nas suas plataformas digitais, tendo em conta as críticas dos vários reguladores e o impacto que a reportagem pode ter nos cidadãos”.

    (Foto: Captura a partir de imagem da reportagem da TVI)

    A ERC não divulga o número exacto de queixas que recebeu na sequência da emissão da reportagem da TVI, mas cita vários argumentos de telespectadores desagradados com o trabalho jornalístico. Entre as queixas, contam-se acusações de “incongruência” em afirmações de Renato Júnior e a ausência de confirmação da veracidade de muitos dos dados apresentados como ‘factos’.

    Uma das participações que chegou à ERC afirmava que a reportagem da TVI “tem como objetivo principal promover e publicitar um esquema em pirâmide de criptomoedas, com o claro intuito de atrair mais vítimas”. Segundo a participação, a peça “apresenta diversas informações falsas, com o propósito de enganar os telespectadores e incentivá-los a investir neste esquema fraudulento”, tais como “as garantias de retorno de 40% ao ano” e os “ganhos de 18 mil euros por segundo, que (…) representariam cerca de 567 mil milhões de euros por ano, mais do que os lucros combinados da Apple, Google, Microsoft, Amazon, Tesla, Nvidia, Intel, Netflix e Disney, e aproximadamente o dobro do PIB de Portugal”.

    “Tudo o que é mostrado pelo suposto investidor é a ostentação que vive, não mostra a empresa, não mostra qualquer infraestrutura da empresa que supostamente também faz mineração (de criptomoedas)”, apontou um dos telespectadores na sua queixa ao regulador. Outro queixoso considerou ser “escandaloso a TVI promover a empresa dum indivíduo que, sem sombra de dúvidas, exerce uma atividade criminosa”.

    A reportagem foi conduzida pela jornalista Conceição Queiroz (CP 7851) que chega a aparecer nas imagens num aparente cenário de luxo, a fazer uma entrevista num iate. Ao longo da reportagem, a jornalista mostra-se deslumbrada e aparenta desconhecer o modo de funcionamento do sector das criptomoedas. (Foto: Captura a partir de imagem da reportagem da TVI).

    Outra participação mencionava tratar-se de “uma reportagem sobre uma pessoa, alegadamente milionária” que “alega ter lucros de 18.000 por segundo, e vangloriou-se da quantidade de dinheiro que fazia, e da vida que levava, no Dubai”. Alertava ainda que a “reportagem não mostra nada da vida profissional desta pessoa, focando-se na publicidade ao lucro e à vida de luxo, com a reportagem cheia de imagens de iates, joias e roupas de marca”, sem apresentar “nada que corroborasse a empresa ou a pessoa entrevistada”.

    Para o mesmo queixoso, a reportagem “pareceu um spot publicitário”, salientando que “[p]essoas na internet fazem peças com melhor fundamentação que isto”. O mesmo autor da participação à ERC, afirmou que “o discurso e as promessas são características de entidade relacionadas a burlas com criptocurrency” e que a “reportagem deu a conhecer promessas alucinantes e não justificadas a milhares de pessoas com pouca ou nenhuma literacia financeira”.

    Na sua análise, o regulador dos media sugere ter havido amadorismo na elaboração da reportagem. “O caso em análise é eloquente quanto à necessidade de evidenciar a diferença de paradigma que deve existir entre, por um lado, os conteúdos oferecidos pelos órgãos de comunicação social, em especial os de natureza informativa, necessariamente marcados pela insubstituível intermediação crítica especializada do profissional jornalista e, por outro, os demais conteúdos audiovisuais criados por entusiastas, autodidatas ou quaisquer pessoas que não jornalistas, incluindo para fins promocionais, que a cada vez maior acessibilidade das tecnologias de informação e comunicação tem permitido banalizar”, afirmou na deliberação.

    Diz ainda que “ao tratar o tema com tal ligeireza, de forma superficial e incompleta, a peça não
    contribui para a literacia financeira dos públicos, ao contrário do que o tema recomendaria e a responsabilidade social dos órgãos de comunicação social impõe”.

    A TVI não respondeu ao ofício enviado pela ERC em 18 de Julho de 2023. A estação de televisão também não adicionou ainda nenhum aviso na reportagem que ainda pode ser visualizada no seu site.

    Mas, o que é certo, é que o risco de haver ‘vítimas’ desta reportagem “continua a produzir-se de forma continuada, dado que a peça em causa continua disponível, sem qualquer indicação adicional, em páginas electrónicas da TVI” e sem qualquer aviso, como pediu a ERC na sua deliberação.

    Resta saber se o regulador vai ter uma mão mais pesada e se vai actuar para levar a TVI a acrescentar uma advertência ao público na reportagem disponível no seu site na Internet.

    Entre as dúvidas que persistem está a questão se a TVI recebeu alguma contrapartida para fazer e emitir a reportagem e se a jornalista Conceição Queiroz e outros colaboradores da TVI beneficiaram de viagens e estadia pagas pelo ‘jovem milionário’ ou a dbl.pt. O PÁGINA UM colocou estas questões à TVI aquando da polémica, em meados do ano passado, mas até hoje nunca recebeu qualquer resposta.


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  • Afinal, moratória sobre mineração em mar profundo nos Açores está no ‘fundo da gaveta’

    Afinal, moratória sobre mineração em mar profundo nos Açores está no ‘fundo da gaveta’

    Apesar de afirmar que concorda com a proibição de mineração em mar profundo açoriano até 2050, o Governo Regional dos Açores não adoptou nenhuma moratória para essa actividade, como recomendou uma decisão aprovada na Assembleia Regional em 2023. Pelo contrário. Apesar de colocar algumas salvaguardas, uma Resolução do Governo Regional, publicada este mês, deixa a porta aberta para a eventual possibilidade do uso do mar profundo açoriano para mineração. Agora, só uma moratória aprovada a nível nacional poderá garantir que fica blindada, a prazo, a violação do fundo marinho açoriano para mineração. Na anterior legislatura, chegou a ser aprovada na generalidade, na Assembleia da República, uma moratória da actividade até 2050, mas o diploma caducou devido à queda do Governo do PS. Agora, o Governo de Luís Montenegro é evasivo quanto à possibilidade de vir a defender uma moratória a nível nacional para aquela actividade. A ‘prova dos nove’ será dada quando for debatida e votada uma nova iniciativa legislativa do partido PAN para fixar uma nova moratória, mas não há ainda uma data marcada para a discussão da proposta.


    Foi anunciada como certa pela comunicação social, mas, afinal, a fixação de uma moratória até 2050 para a actividade de mineração em mar profundo açoriano não passou de uma miragem. O Governo Regional dos Açores (GRA) não acolheu a recomendação aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa da Região Autónoma no ano passado. Numa Resolução do Governo Regional publicada este mês não consta qualquer moratória, ficando potencialmente, na prática, a porta aberta para a actividade de mineração em mar profundo dos Açores.

    O Governo Regional garantiu ao PÁGINA UM que existe “um alinhamento Governamental e político-partidário generalizado na RAA [Região Autónoma dos Açores] no sentido de não permitir a mineração do mar profundo dos Açores”. Mas, reconhece que não acolheu, na prática, a recomendação.

    Em respostas enviadas ao PÁGINA UM, a Secretaria Regional do Mar e das Pescas admite que “não há diligências” para passar para a lei nenhuma moratória. Pelo contrário: “foi colocado no PSOEM-A [Plano de Situação de Ordenamento do Espaço Marítimo – Açores] essa utilização”.

    A mineração em mar profundo tem gerado a oposição de organizações ambientalistas e cientistas devido aos danos que a actividade potencialmente provocará, nomeadamente a espécies ainda não estudadas ou mesmo desconhecidas. (Foto: D.R.)

    Segundo a mesma Secretaria Regional, a inclusão daquela actividade no PSOEM-A não significa que “se pretenda dar início a qualquer procedimento de mineração, mas porque está listado como um uso possível”. “Por outro lado, todo o procedimento de pedido de utilização e emissão de TUPEM [Título de Utilização Privativa de Espaço Marítimo] salvaguarda sempre a participação pública bem como a decisão do Governo”, garantiu.

    A Secretaria Regional adiantou que “não há, no momento, nenhuma manifestação de interesse junto do GRA de sequer fazer qualquer tipo de prospecção, muito menos de minerar”.

    A Secretaria garantiu ainda que, em todo o caso, “o GRA [Governo Regional dos Açores], na pessoa do seu presidente, José Manuel Bolieiro, vincou também o seu compromisso com esse objectivo [moratória] e a concordância com a iniciativa levada a discussão e votação” na Assembleia Legislativa dos Açores.

    Mas, apesar de tantas garantias, o facto é que, não existe nenhuma proibição ou impedimento àquela actividade no rico mar profundo dos Açores e que é muito apetecível. O social-democrata José Manuel Bolieiro teve a oportunidade para materializar na Lei a moratória que diz defender, contudo não o fez.

    José Manuel Bolieiro. O social-democrata lidera o Governo Regional dos Açores e está a favor de uma moratória. Contudo, não materializou uma moratória na lei como esperava a Associação Natureza Portugal, que no nosso país trabalha em consórcio com a World Wide Fund for Nature (WWF).
    (Foto: D.R./GRA)

    Se agora não existem propostas para estudo e prospecção, é possível que surjam no futuro. “O espaço marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores apresenta grandes extensões de mar profundo com profundidades superiores a 800 m, e com profundidades que atingem os 3000 m de profundidade, contendo um conjunto diverso de habitats associados”, pode ler-se na Resolução do Governo Regional agora publicada. “Este espaço é considerado de especial importância ao nível da ocorrência de recursos minerais metálicos, sendo exemplo os sulfuretos polimetálicos [contêm elevadas concentrações de cobre, zinco, chumbo, arsénio, cobalto, prata, ouro e outros elementos metálicos] associados aos campos hidrotermais de elevada profundidade e as crostas de ferro-manganês ricas em cobalto nos montes submarinos”, adianta.

    O diploma do GRA salvaguarda que, “face ao desconhecimento atual sobre os impactes ambientais e socioeconómicos implicados à mineração do mar profundo, e numa abordagem precaucionária, considerou-se não se encontrarem reunidas condições para a delimitação de áreas potenciais para o seu desenvolvimento, obrigando assim a que qualquer pretensão seja sujeita a procedimento de Plano de Afetação”. Adianta que “não está prevista a médio-longo prazo a realização de atividades de prospeção, pesquisa e exploração de recursos minerais metálicos no espaço marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores”. Para já. Mas, sem uma moratória, nada proíbe que não passe a estar prevista. Até porque, como o diploma recorda, alguns Estados-Membros da União Europeia “deram permissão a processos de licenciamento de exploração para algumas áreas dos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, conquanto não existam ainda projetos comerciais em áreas para além da jurisdição nacional”.

    Recentemente, a Noruega deu ‘luz verde’ ao avanço da actividade no ártico norueguês o que gerou apelos e críticas de diversos países e cientistas e mensagens de protesto e preocupação de organizações ambientalistas . [Pode ler AQUI a reportagem do jornalista Boštjan Videmšek na Noruega, que publicámos hoje, em exclusivo em português, no PÁGINA UM.]

    Octópode de mar profundo (Sauroteuthis syrtensis) que se pode encontrar a 800 metros de profundidade no Oceano Atlântico.
    (Foto: WWF).

    No caso dos Açores, comparando a possibilidade de mineração com a actividade de exploração de petróleo, encontra-se uma diferença fundamental: a Lei de Bases do Clima, aprovada pela Lei n.º 98/2021, estabelece no artigo 45.º a proibição do licenciamento de novas concessões de prospecção ou exploração de hidrocarbonetos no território nacional. Além disso, como reconhece a Resolução do GRA, não é expectável o desenvolvimento de tal indústria em águas açorianas, “atendendo à provável indisponibilidade do recurso”, visto que “não se considera provável a existência de reservatórios de hidrocarbonetos no espaço marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores”.

    Agora, com o GRA a não garantir uma proibição expressa até 2050 da mineração em mar profundo, só a iniciativa legislativa do partido Pessoas Animais Natureza (PAN) pode criar uma proibição legal. O partido já tinha sido o autor de um diploma que propunha uma moratória até 2050 e que foi aprovado na generalidade na Assembleia da Republica. Mas, com a queda do Governo de António Costa, a proposta caducou. O PAN avançou com uma nova iniciativa, mas ainda não tem data para ser debatida e votada no parlamento.

    A Secretaria Regional do Mar e das Pescas dos Açores considera que “é natural que uma nova proposta idêntica [à anterior do PAN], também o seja [aprovada]”. Mas a aprovação do projecto-Lei não são ‘favas contadas’.

    Maria da Graça Carvalho, ministra do Ambiente e Energia. (Foto: D.R./PSD)

    O Governo de Luís Montenegro é evasivo quando se toca no tema de uma moratória para a mineração em mar profundo. O PÁGINA UM questionou os Ministérios do Ambiente e da Economia sobre o tema. Só o Ministério do Ambiente e Energia respondeu, mas sem mostrar todas as ‘cartas’, escusando ser claro sobre se é ou não a favor de uma moratória.

    Para o Ministério liderado por Maria da Graça Carvalho, “a mineração em mar profundo é um tema que tem vindo a ganhar mediatismo, mas esta atividade encontra-se numa fase de prospecção e desenvolvimento, pelo que ainda estamos longe da sua operação efetiva de forma global”.

    Assim, “Portugal, tal como outros países, está a acompanhar o assunto, inclusivamente ao nível da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, importando acautelar quer as preocupações ambientais, quer as implicações jurídicas na gestão do espaço marítimo”.

    Sem dizer se é a favor ou contra uma moratória, o Ministério limitou-se a referir que considera ser “fundamental assegurar que todas as decisões são tomadas com base em dados e conhecimento científico”. Esta posição parece também sinalizar uma abertura deste Governo para não fechar completamente a porta à possibilidade de ser autorizada a mineração no fundo marinho português.

    Do Ministério da Economia, o PÁGINA UM ainda não obteve respostas mas sabe-se que está a par das preocupações ambientalistas. A organização ambientalista ANP/WWF disse anteriormente ao PÁGINA UM que reuniu recentemente com Lídia Bulcão, secretária de Estado do Mar, para “discutir a importância de manter uma abordagem precaucionária em relação à mineração em mar profundo e estabelecer o quanto antes uma moratória”. Resta saber se o silêncio do Ministério da Economia em relação a este tema não traz ‘água no bico’.


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  • Chapa 3: Parques de Sintra faz três ajustes directos de mais de meio milhão a fotógrafo

    Chapa 3: Parques de Sintra faz três ajustes directos de mais de meio milhão a fotógrafo

    Por norma, e também pelo Código dos Direitos de Autor, uma empresa que encomende os serviços fotográficos a alguém, fica com os direitos de reprodução. Mas a empresa gestora do património cultural de Sintra, a Parques de Sinta – Monte da Lua, decidiu manter os direitos de autor do fotógrafo Nuno Antunes, sócio da Revelamos, sobre as imagens usadas em merchandising cultural, e isso está a permitir-lhe o exclusivo da produção de postais, ímanes, marcadores e cadernos, sem qualquer concorrência e sem se conhecer se os preços praticados são os mais adequados. Esta semana foi assinado o terceiro ajuste directo, para os próximos dois anos (ou até se esgotar o ‘plafond’), num negócio que, contabilizando os outros dois contratos de 2019 e 2022, já totaliza mais de 516 mil euros. Sem espinhas.


    À boleia de direitos de autor por fotografias do seu património, a Parques de Sintra Monte da Lua – a empresa pública que gere, entre outros, o Palácio da Pena e a Quinta da Regaleira – está a entregar por ajuste directo a produção de diversos materiais de merchandising a uma empresa de um fotógrafo local. Anteontem foi assinado o terceiro contrato, no valor de 153.750 euros (IVA incluído),  foi assinado o terceiro ajuste directo à empresa Revelamos, ao qual se somam contratos similares em Março de 2022 (166.050, com IVA) e em Janeiro de 2019 (196.800 euros, com IVA). Assim, no total, e sem qualquer concurso público, a Parques de Sintra vai permitir à empresa do fotógrafo local Nuno Antunes uma facturação superior a meio milhão de euros (516.600 euros).

    A peculiaridade destes três contratos é que, seleccionando as fotografias de Nuno Antunes – sem que se conheça qualquer critério prévio –, a Parques da Lua tomou a decisão lhe entrega também a produção dos materiais, designadamente postais, pósteres, marcadores de livros, ímanes e até cadernos.

    gray and yellow castle at the top of a hill

    Essa opção da empresa pública – retribuição contínua de direitos de autor por fotografia para merchandising – foge completamente áquilo que é norma neste tipo de serviços, tanto mais que o próprio Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos estipula que “se a fotografia for efectuada em execução de um contrato de trabalho ou por encomenda, presume-se que o direito previsto neste artigo pertence à entidade patronal ou à pessoa que fez a encomenda”. Ou seja, se assim desejasse, a Parques de Sintra encomendava de uma só vez as fotografias a Nuno Antunes, ou a outro qualquer fotógrafo, com um preço pré-determinado, reproduzindo-as depois nos materiais que assim desejasse e quando desejasse.

    Mas mesmo não tendo optado por essa via, mostra-se abusivo que seja invocado nos três contratos uma excepção do Código dos Contratos Públicos que possibilita um ajuste directo quando “seja necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. Essa norma aplica-se sobretudo a espectáculos ou a obras de arquitectura, de execução única e exclusiva, e não para a reprodução de materiais como postais, ímanes ou cadernos com fotografias. Ou seja, qualquer gráfica ou loja de brindes poderia produzir esses produtos para a Parques de Sintra sem violar qualquer tipo de direitos de autor. Se existisse esse direito de autor, então haveria um contrato separado.

    Deste modo, sem abrir concurso público, a Parques da Lua permite assim não apenas uma retribuição de direitos de autor desnecessária à luz do Código dos Direitos de Autor, como lhe associou direitos exclusivo da sua produção dos produtos de merchandising, aumentando assim os lucros da Revelamos. Estabelecendo uma analogia, seria a mesma situação de se entregar a um arquitecto, que concebeu um edifício, também o direito exclusivo, sob a forma de ajuste directo, para a execução da empreitada de construção da obra.

    Especificações técnicas dos contratos (ver aqui em melhor resolução) entre a Parques de Sintra e a Revelamos indicam as características dos produtos. Independentemente de eventuais direitos de autor, a produção dos materiais poderia ser realizada por qualquer outra empresa de brindes.

    Fonte oficial da Parques de Sintra confirma que o terceiro contrato “envolve fotografias, linha gráfica, impressão, produção e a entrega em loja dos produtos finais ao longo de dois anos”, tal como os dois anteriores, acrescentando que a empresa pública “tem optado pela aquisição destes produtos já impressos e produzidos em formato ‘chave na mão’, para que o encargo associado às grandes tiragens e impressões não fique do lado da empresa, evitando, assim, a manutenção, em stock, de grandes quantidades de produto que, naturalmente, se vai danificando e degradando ao longo do tempo”.

    Mas podendo ser isto uma legítima opção de gestão, a Parques de Sintra não explica a necessidade de contratar especificamente a Revelamos (e o fotógrafo Nuno Antunes) tanto para a execução das fotografias quer para a produção dos materiais de merchandising que, em situações normais, pelos valores em causa, exigiam sempre a abertura de concurso público.

    Omitindo qualquer explicação em concreto para a abusiva interpretação de protecção de direitos de autor para justificar três volumosos ajustes directos à Revelamos, a Parques de Sintra diz que “o modelo optado pela empresa [em regime de ‘plafond’] permite igualmente, em qualquer momento, interromper a aquisição destes produtos, sem qualquer encargo adicional para a Parques de Sintra”, algo que, diga-se, também seria possível pré-determinar num concurso público aberto a outras empresas.

    a spiral staircase in a stone building with moss growing on the sides

    A Parques de Sintra conclui, em todo o caso – e sem prejuízo de se salientar que aquilo que está em causa é a legalidade de procedimentos e o eventual benefício indevido da Revelamos – que esta opção pelo merchandising cultural tem sido um sucesso económico, sendo que para uma despesa (sem IVA) de 295 mil euros, relativa aos dois primeiros contratos, registou-se um lucro de 420 mil euros.

    A empresa pública garantiu, por fim, ao PÁGINA UM que não existe qualquer relação entre os administradores da Parques de Sinta e qualquer sócio da Revelamos, mas também não foi explicada a razão para se ter escolhido especificamente Nuno Antunes, que em 2020 publicou um livro de fotografias de paisagens e património de Lisboa, Cascais e Sintra.


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  • Start Campus com contas atrasadas e em falência técnica

    Start Campus com contas atrasadas e em falência técnica

    Foi anunciado em 2021 com pompa e circunstância como o maior investimento estrangeiro desde a Autoeuropa, mas o ‘data center’ de Sines será sobretudo lembrado como o epicentro de um terramoto político de Novembro do ano passado que levou à queda do Governo Costa, com as réplicas ainda a sentirem-se. No terreno, as obras mantêm o seu curso, mas o primeiro edifício está já com atraso assinalável, tal como as contas da própria empresa. Somente no final do mês passado, a empresa detida por dois fundos divulgou as contas de 2022, com um ano de atraso, revelando um estilo de investimento muito peculiar: os accionistas não estão a investir o seu dinheiro – e os capitais próprios até já estão negativos, o que significa falência técnica – e optam por atrair empréstimos obrigacionistas. Até agora, tem tido sucesso, tanto assim que conseguiram duas ‘injecções’ de 45 milhões de euros nos últimos seis meses- Os bónus fiscais desta opção para accionistas e obrigacionistas são evidentes, mas torna também opaca a origem dos verdadeiros financiadores.


    Em Abril de 2021, o então secretário de Estado da Internacionalização, o socialista Eurico Brilhante Dias, anunciava que um megacentro de dados global (data centre), com capitais anglo-americanos, tinha “potencial de ser o maior investimento estrangeiro captados pelo país desde a Autoeuropa”, num volume de até 3,5 mil milhões de euros.

    Na assinatura do contrato entre a empresa responsável – a Start-Sines Transatlantic Renewable & Technology Campus e a AICEP – esteve então a ‘fina nata’ do Governo: o primeiro-ministro António Costa, os ministros da Economia, Pedro Siza Vieira, e das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, e ainda o secretário das Comunicações, Hugo Santos Mendes. Com início da construção em 2022, o chamado Sines 4.0, o primeiro dos cinco edifícios projectados deveria estar inaugurado no final de 2023.

    Maquete da Start Campus.

    Mas três anos depois, além de já ter causado indirectamente a queda do Governo socialista, no âmbito da Operação Influencer, além da Start Campus ter falhado as previsões iniciais para a conclusão da primeira fase da obra, mostra uma gestão financeira e contabilista profundamente amadora pouco condizente com pergaminhos de quem se anunciava como um dos grandes investimentos estrangeiros em Portugal nas últimas décadas. Paradigmático disso é o facto de somente no final de Junho, com um atraso de 12 meses, terem sido depositadas as contas de 2022 – e as referentes a 2023 deverão ter similar atraso.

    Mas o atraso não é o pior: para uma empresa detida pelos fundos Foxford Capital (76,5%) e Pioneer Sines (23,5%) – onde se esperaria uma solidez inquebrantável na fase inicial dos investimentos, sem ainda haver receitas –, a descapitalização é a palavra de ordem, estando os investimentos a decorrer exclusivamente através do recurso à emissão de obrigações. Com efeito, de acordo com as demonstrações de resultados de 2022, acabou com um prejuízo 6,5 milhões de euros que, a juntar aos resultados transitadas (dos anos anteriores), ‘empurrou’ os capitais próprios para terreno negativo (-4,7 milhões de euros). Isto é, a empresa está em falência técnica.

    A falência técnica da Start Campus – que ter-se-á mantido em 2023, porque não se registaram quaisquer aumentos de capital – será, porém, sobretudo uma estratégia financeiras, mesmo que pouco ortodoxa, de maximizar os investimentos que têm vindo da emissão de obrigações particulares, sob gestão da empresa irlandesa Adare Finance.  Isto porque, apesar da aparente fragilidade do capital investido pelos dois accionistas (cerca de 4 milhões de euros, já ‘esgotado’ há muito pelos prejuízos anuais), tem havido injecção de dinheiro através de emissões obrigacionistas. Desde o ‘terramoto político’ de Novembro do ano passado, a Start Campus emitiu no antepenúltimo dia de 2023, uma emissão de 25 milhões de euros, e já este ano, no início de Abril, houve outra de 20 milhões de euros. No total, as 16 séries de obrigações emitidas, e que já totalizam cerca de 253 milhões de euros, o que revela que existem investidores (anónimos) pouco interessados em ver o polémico projecto.

    Estaleiro das obras em Maio de 2023. A empresa não tem fotos nas redes sociais da actual fase.

    Com o acumular de prejuízos – e até à eventualidade das receitas futuras começarem a dar lucros aos accionsitas da Start Campus -, o investimento por via de obrigacionistas (que, na verdade, podem até ser os accionistas, por estes serem fundos), mostra ser estratégia não desprovida de lógica, sendo em teoria até mais apetecível do ponto de vista financeiro a curto e longo prazo, embora com risco. Com efeito, os juros – que, no caso das obrigações da Start Campus eram, até 2022, de 10% – são sempre um rendimento anual para os obrigacionistas, enquanto os accionistas só recebem quando há lucros. Não havendo ‘falhas’ (default), os obrigacionistas recebem, passado o período, o investimento inicial de volta sem pagar impostos, ao contrário do que sucede com a saída de capitais próprios. Em teoria, os obrigacionistas não mandam numa empresa, mas se esta está com capitais próprios negativos, como sucede com a Start Campus, a realidade pode ser outra.

    Sendo certo que os juros também pagam impostos, o facto de o serviço de dívida ir “empurrar” bastante os resultados para os prejuízos nos próximos anos, faz com que a Start Campus acabe por receber infindáveis bónus fiscais por via dos chamados activos por impostos diferidos. Por exemplo, sem essa regra contabilística, a Start Campus teria apresentado um prejuízo de 8,2 milhões de euros em 2022, em vez dos 6,5 milhões de euros declarados. E tudo isto encurta e muito o retorno do investimento – isto, claro, se o negócio não implodir entretanto. Por parte do Estado, investimento estrangeiro através de fundos é sempre algo arriscado, porque se mostra mais complexo conhecer quem está por detrás do investimento.

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos e informações à Start Campus, mas ninguém se manifestou disponível para falar oficialmente. Na rede social Facebook, a empresa deixou de actualizar a informação desde o final do ano passado, embora no LinkedIn continue activa, tendo mesmo anunciado hoje a nomeação de dois administradores.


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  • Número de pensões ultrapassa pela primeira vez a fasquia dos 3 milhões

    Número de pensões ultrapassa pela primeira vez a fasquia dos 3 milhões

    Apesar do aumento da idade da reforma a partir do ano de 2014 e da maior dificuldade na atribuição de apoios por incapacidade, o somatório das pensões de reforma, de sobrevivência e de invalidez registadas no ano passado ultrapassou em Portugal, pela primeira vez, a fasquia dos três milhões. O aumento é de 39% face ao ano de 1990 e, actualmente, sete em cada 10 pensões são por velhice, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos últimos dados do Instituto Nacional de Estatística. A pandemia não teve, segundo a linha de tendência do quinquénio anterior, qualquer impacte relevante.


    O número de pensionistas em Portugal ultrapassou, pela primeira vez, a fasquia dos 3 milhões. Segundo os mais recentes dados, divulgados no final desta semana pelo Instituto Nacional de Estatística, no final do ano passado foram contabilizadas 3.020.960 pensões, um aumento de 30.950 face ao ano de 2022. Este foi, aliás, o maior aumento interanual desde 2012.

    De entre a tipologia das pensões, 70% (2.117.487) são por velhice, sendo este o valor mais elevado de sempre, por via do aumento da expectativa de vida dos mais idosos nas últimas décadas, mesmo com a pandemia. O número de pensões de velhice diminui em 318 entre 2020 e 2021, mas no ano de 2022 já subira 11.726. Em 2023, o aumento ainda foi mais substancial: mais 35.692 pensionistas, o maior crescimento desde o momento em que a idade da reforma passou a estar indexada à expectativa de vida.

    two women and man walking in the street during daytime

    Segundo a análise do PÁGINA UM, desde 1990 o número de beneficiários de pensões de velhice cresceu mais de 807 mil, uma taxa de crescimento médio anual de 1,46%, apesar de esse aumento ter sido atenuado a partir de 2014, quando a idade de reforma passou de uma idade fixa de 65 para os 66 anos, passando a partir daí a variar de acordo com a evolução da expectativa de vida aos 65 anos. Essa medida implicou mesmo que em 2014 houvesse um decréscimo de 11.685 pensões desta tipologia, quando a média anual do quinquénio anterior fora de 38.355. Este ano, a idade de reforma está estabelecida nos 66 anos e quatro meses, sabendo-se já que subirá mais três meses em 2024.

    Desde a tomada dessa medida, o aumento médio anual de pensionistas – que depende das mortes e da entrada de novos reformados – cifrou-se em apenas 12.260, o que em certa medida retira pressão á Segurança Social.

    Também as pensões de sobrevivência registaram o seu maior número de sempre no final do ano passado, com 741.001 pensionistas. Convém referir que a contabilidade do INE acumula as pensões, ou seja, pensionistas com pensão de sobrevivência e de velhice contam como dois. O valor do ano de 2023 é, em todo o caso, pouco maior do que aquele referente a 2022: apenas mais 2.921, mas a taxa de crescimento médio anual desde 1990 é de 1,96%. Naquele ano havia apenas 390.704 pensões de sobrevivência.

    Evolução do número de pensões de invalidez, de velhice e de sobrevivência entre 1990 e 2023. Fonte: INE.

    Ao invés, as pensões de invalidez estão a diminuir fortemente e o valor do ano passado é mesmo o mais baixo desde sempre. Os registos do INE para 1990 apontavam para as 472.449 pensões por invalidez, enquanto no ano passado se cifrou em apenas 163.472 pensões desta tipologia. A razão desta descida é sobretudo administrativa e política tanto ao nível da maior dificuldade na confirmação do grau de incapacidade e demais burocracias quer nos critérios de acumulação de pensões. Por exemplo, a partir de 2014 os funcionários públicos deixaram de poder acumular pensões de invalidez com a reforma.


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  • 29 milhões de euros em cinco anos: INEM banalizou ajustes directos

    29 milhões de euros em cinco anos: INEM banalizou ajustes directos

    Desde Julho de 2019, quase 29 milhões de euros foram gastos através de ajustes directos, apenas contabilizando os 76 contratos acima de 100 mil euros – assim foi a gestão do INEM, que vive sobretudo de taxas relativas aos seguros pagos pelos portugueses. Apesar de o mais recente ajuste directo – para a contratação de quatro helicópteros de emergência médica no valor de 12 milhões de euros – ter também como responsável o Governo anterior, certo é que o INEM, através do demitido presidente, Luís Meira, foi banalizando o recurso aos contratos de ‘mão-beijada’, beneficiando sistematicamente as mesmas empresas, sobretudo na gestão da frota, seguros, compra de viaturas e segurança. Neste último caso, a relação do INEM com a Prestibel já vem de muito longe, e tem contornos de escândalo: na última década, as duas entidades celebraram meia centena de contratos, sendo apenas dois por concurso público. Por sistema, nas ‘barbas’ do venerando Tribunal de Contas, os ajustes directos invocam a “urgência imperiosa”, que, em alguns períodos, durou anos.


    Nos últimos cinco anos, o uso de ajustes directos pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) banalizou-se. A concretização de mais um destes contratos, assinado na sexta-feira passada pelo demitido presidente Luís Meira, desta vez para não deixar o pais sem helicópteros de assistência médica, constitui apenas mais um dos 76 ajustes directos de montante relevante (acima dos 100 mil euros) celebrados nos últimos cinco anos. No total, desde Julho de 2019 até hoje, para esta tipologia, os ajustes directos atingiram quase 39 milhões de euros, superando largamente os contatos após concurso público (20 milhões de euros) e aqueles celebrados no âmbito de acordos-quadro (13 milhões de euros).  

    De acordo com o levantamento do PÁGINA UM, uma parte muito significativa dos ajustes directos foi realizada no último ano e meio, por causa do aluguer dos helicópteros de emergência. Com efeito, em Agosto de 2018, o INEM tinha feito com contrato por concurso público com a Babcock por 38,75 milhões de euros, que veio a terminar em Dezembro do ano passado, representando um custo a rondar os 650 mil euros por mês. Mas por vicissitudes várias, o INEM mostrou-se incapaz de concluir novo concurso público ao longo do ano passado. Resultado: no antepenúltimo dia de 2023, o INEM fez um ajuste directo com a Babcock por 6 milhões de euros, mas apenas por seis meses, com um custo substancialmente superior ao contratos anterior, ou seja, um milhão de euros por mês.

    Com as propostas dos dois concorrentes abaixo de preço-base (54 milhões de euros), o concurso público lançado acabou anulado, e, deste modo, na iminência de ficar sem helicópteros de emergência, Luís Meira celebrou na sexta-feira passada um novo ajuste directo, desta vez com a empresa Avincis Aviation por 12 milhões de euros durante um ano, mantendo assim o valor mensal de um milhão de euros.

    Se os helicópteros marcam, também pelo montante, o peso dos ajustes directos nos últimos cinco anos de Luís Meira à frente do INEM, também a gestão da frota de ambulância e outros veículos foi um maná de ajustes directos, também sem explicação plausível. Sendo certo que finalmente se celebrou um contrato, com a empresa Kinto, do Grupo Toyota, após um concurso público internacional há cerca de dois meses – e que entrou em vigor em Junho, prolongando-se até Fevereiro de 2026, com um custo de quase 7,2 milhões de euros (sem IVA) –, o INEM só o fez depois de somar 10 ajustes directos consecutivos.

    Todos estes ajustes directos tiveram como beneficiário a empresa que agora ficou com o contrato. Os montantes envolvidos nesses ajustes directos não foram pequenos: entre 2022 e este ano, a Kinko recebeu em ajustes directos mais de 6,3 milhões de euros. No segundo semestre de 2019 e em 2020, esta empresa – então sob a denominação de Finlog – recebeu ajustes directos de 2,5 milhões de euros.

    Também os sucessivos ajustes directos para pagamento de licenças, actualizações e apoio técnico do Sistema Integrado de Atendimento e Despacho de Emergência Médica (SIADEM) – que entrou em funcionamento em 2009 nos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) – tem sido uma ‘renda’ apetecível para a empresa Integraph. Em contratos no sector informático, o mais difícil é ganhar o contrato de softaware, porque depois surgem rendimentos anuais. Nos últimos cinco anos, desde Julho de 2019, contabilizavam-se quase 3,2 milhões de euros. Mas desde 2009, esse montante já se aproxima dos 6 milhões de euros.

    Um outro importante fornecedor – e beneficiário – de serviços ao INEM por ajustes directos é a Fidelidade. Desde Julho de 2019, com Luís Meira a companhia de seguros garantiu 16 contratos de ‘mão-beijada’ no valor total de 3,3 milhões de euros. Na generalidade dos casos, usa-se o ‘esfarrapado’ – que o Tribunal de Contas continua a deixar passar incólume – da “urgência imperiosa”.

    Com efeito, não se compreende como podem existir sucessivos ajustes directos recorrendo sempre à mesma adjudicatária (beneficiada) alegando uma norma do Código dos Contratos Públicos que apenas permite ajustes directos “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Não lançar atempadamente concursos públicos é, por regra, algo que é imputável às entidades públicas, pelo que jamais poderiam usar esta norma para justificar tantos ajustes directos sucessivos.

    Beneficiários e valores (em euros) dos contratos celebrados pelo INEM por ajuste directo superiores a 100 mil euros desde Julho de 2019 até hoje. Fonte: Portal Base.

    Ainda acima de um milhão de euros, a SIVA conseguiu garantir a venda, através de quatro ajustes directos, de 34 Viaturas Médicas de Emergência a Reanimação (VMER) e duas outras viaturas, amealhando 1,6 milhões de euros desde o segundo semestre de 2019. Em todo o caso, o uso de contratos de ‘mão-beijada’ entre o INEM e a SIVA já foram muito mais florescentes: em 2008 e 2009, durante o Governo Sócrates, foram adquiridas por ajuste directo 168 VMER ao preço de 8,6 milhões de euros. E acrescente-se que a um preço unitário (52 mil euros) superior ao das recentes compras.

    A fechar o leque das empresas com mais de um milhão de euros de facturação com ajustes directos está a Prestibel, uma empresa de segurança, um sector onde os contratos de ‘mão-beijada’, mais uma vez sem intervenção do Tribunal de Contas, são recorrentes e frequentes. E usando um estratagema habitual: intercalando ajustes directos surge um contrato celebrados após um concurso público de curta duração.

    A relação comercial do INEM com a Prestibel é, aliás, paradigmática de um abuso evidente na opção pelos ajustes directos, que trespassa grande parte das entidades públicas, afectando não apenas a livre concorrência (prejudicando empresas concorrentes) como sendo uma ‘porta aberta’ à corrupção e à má utilização de dinheiros públicos, uma vez que os ‘acertos’ contratuais se fazem à porta fechada.

    De acordo com o Portal Base, de entre os últimos 50 contratos entre o INEM e a Prestbel, com início em 2014, alguns dos quais com duração de um mês, apenas dois foram por concurso público, mas de curta duração: o primeiro para os nove últimos meses de 2021 e o segundo para os nove últimos meses do ano seguinte. Não se consegue entender os motivos para uma entidade que necessita quotidianamente de serviços de segurança opta por concursos públicos com tão poucos meses de duração, dificultando depois a logística para novos concursos.

    Assim, a Prestibel teve direito a 48 ajustes directos entregues pelo INEM, sem qualquer concorrência – que existe e é muita, tanto assim que no concurso de 2022 houve 12 candidatos. Em todos estes ajustes directos – o último dos quais, por 144 mil euros, foi assinado em Maio por dois meses –, se invoca a urgência imperiosa. Imperiosa e urgente, na verdade, será uma investigação sobre a facilidade com que gestores públicos aplicam as excepções do Códigos dos Contratos Públicos, passando-as como regra.


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  • Novo empréstimo da SIC vai custar-lhe 11,4 milhões só em juros

    Novo empréstimo da SIC vai custar-lhe 11,4 milhões só em juros

    Após ter aumentado a sua recente emissão de dívida obrigacionista, a SIC deverá encaixar perto de 46 milhões de euros com o novo empréstimo feito junto de investidores particulares. Mas a gestora dos canais televisivos do grupo Impresa prepara-se para pagar a taxa anual bruta mais elevada deste ano no mercado de obrigações empresariais, na Euronext Lisbon. No total, neste empréstimo a quatro anos, a SIC propõe-se a pagar um total de 11,4 milhões de euros de juros, tendo em conta o risco de crédito “significativo”, que representa o risco de default (de não pagamento). O prazo para subscrever a emissão terminou hoje e os resultados da operação serão conhecidos formalmente no dia 1 de Julho.


    Quando a fruta é muita, o povo desconfia. Mas na mais recente emissão de dívida da SIC, o povo não desconfiou, e aparentemente aderiu em força, o que levou a empresa do grupo Impresa a aumentar em 18 milhões de euros o valor a pedir emprestado aos investidores particulares dispostos a subscrever as novas obrigações (ou a trocar títulos de dívida da anterior emissão pela actual). Inicialmente, a empresa do canal televisivo estava a pensar emitir até 30 milhões de euros, pelo que este aumento, anunciado anteontem, antecipa que a procura superou a oferta. O prazo de subscrição terminou hoje, às 15 horas, e os resultados oficiais da operação serão conhecidos na sessão especial de apuramento no dia 1 de Julho.

    Mas se pode parecer uma boa notícia empresarial o sucesso de uma emissão de obrigações que representará um encaixe líquido de até 46 milhões de euros, há um ‘reverso’: este novo endividamente da SIC vai-lhe custar 11,4 milhões de euros só em juros até ao fim do prazo das obrigações em 2028, altura em que terá também de devolver aos subscritores o valor integral do empréstimo de 48 milhões de euros. Tudo junto, são quase 60 milhões de euros para receber, na verdade, cerca de 46 milhões de euros.

    Anúncio relativo ao empréstimo obrigacionista da SIC. O canal televisivo utilizou as suas ‘caras’ para apelar à subscrição.

    De facto, a emissão, sabe-se agora, irá até aos 48 milhões de euros, mas deste valor serão deduzidas as comissões de coordenação global – liderada pelo Caixa BI e Novo Banco –, de colocação e respectivos impostos (cerca de 1.747.200 euros), os custos com consultores, auditores e publicidade, no montante de 285.575 euros, e ainda os custos cobrados pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a Interbolsa e a Euronext, que rondarão os 49.202 euros.

    Esta emissão inclui também a possibilidade de troca das 1.000.000 obrigações, com o valor nominal
    unitário de 30 euros, emitidas pela SIC em 11 de junho de 2021, com data de reembolso em Junho de 2025, cuja taxa de juro fixa bruta é de 3,95%.

    Dado o seu elevado risco de crédito, e para conseguir cativar investidores, a SIC propôs-se a pagar a taxa de juro mais elevada no conjunto das emissões de dívida empresariais registadas este ano no mercado português, a Euronext. São 5,95% ao ano, o que significa que está acima da taxa paga pela Sporting SAD (5,75%) e da Benfica SAD (5,1%), sociedades desportivas que apresentam um alto nível de risco para os obrigacionistas. Além disso, as obrigações da SIC estão indexadas a metas de sustentabilidade, incluindo conteúdo com língua gestual portuguesa e redução de emissões de gases de efeito de estufa. Se a empresa não as cumprir terá de pagar uma remuneração extra aos subscritores na data de reembolso dos títulos.

    Para a empresa, os 11,4 milhões de euros que terá de ‘produzir’ ao longo de quatro anos só para pagar juros de um empréstimo de 46 milhões de euros constitui um esforço muito significativo, apesar da emissão ser um ‘balão de oxigénio’ necessário. E para os investidores, a quem foi oferecida uma taxa de juro elevada, a operação, apesar de apetecível, também acarreta riscos relevantes.

    “O investidor deve sempre ter cautela ao considerar a subscrição de obrigações, e nestas recordamos o potencial de risco de crédito em que a situação financeira do grupo Impresa, incluindo a SIC, sugere um risco de crédito significativo”, afirmou ao PÁGINA UM João Queiroz, director de negociação do Banco Carregosa. Recordou que “a empresa apresentou resultados financeiros desafiadores em 2023, com redução nas receitas, aumento da dívida líquida e resultados líquidos negativos”. No ano passado, a Impresa registou um prejuízo de dois milhões de euros, depois de ter tido um lucro de 1,1 milhões de euros no ano anterior.

    Além disso, “o diferencial entre passivo corrente e ativo corrente aponta para potenciais problemas de liquidez que poderiam afetar a capacidade da empresa honrar suas obrigações financeiras no curto prazo e a volatilidade do setor em que a dependência de receitas publicitárias e os riscos operacionais associados ao setor de media acrescentam um nível de incerteza ao investimento”. Ou seja, “o quadro está longe de ser severo ou agudo mas o investidor avisado e consciente deverá monitorizar e acompanhara esta exposição”, recomendou João Queiroz.

    Emissões de obrigações na Euronext Lisbon em 2024, excluindo Obrigações do Tesouro. (Fonte: Euronext)

    A própria SIC refere, numa área no documento formal que acompanha a emissão (prospecto) referente aos riscos, que terminou 2023 com um activo corrente de 46.425.582 euros, enquanto o passivo corrente ascendeu a 95.400.652 euros. Ou seja, o seu passivo foi superior ao ativo corrente em 48.975.070 euros dada a “particularidade do ciclo financeiro de exploração das empresas do setor de media, em virtude de o prazo médio dos recebimentos ser substancialmente inferior ao prazo médio dos pagamentos”. Certo é que “a existência de um passivo corrente superior ao ativo corrente tem consequências adversas no que respeita à liquidez financeira” da empresa, na medida em que “poderá não dispor da liquidez necessária para fazer face aos seus compromissos de curto prazo”.

    Mas, apesar do risco, a taxa de juro fixa bruta de 5,95% interessa aos investidores que procurem rendimentos fixos num contexto em que o Banco Central Europeu iniciou um novo ciclo de descidas de juros. Por outro lado, as obrigações têm objetivos de sustentabilidade, um chamariz para certo tipo de investidor. “Porém, se é um investidor com elevada aversão ao risco e prefere cotadas com balanços mais robustos e menos incerteza operacional, poderá ter que ponderar alguns eventuais cenários adversos da economia”, alertou o responsável de negociação do Banco Carregosa.

    Para os investidores, se a inflação se mantiver estável e próxima dos 2.5%, terão um rendimento real esperado de 3.45%, tendo em conta despesas bancárias e os elevados impostos sobre os rendimentos de particulares. Mas, abaixo 10.000 euros, subscrever este empréstimo já não valia tanto a pena, não só devido aos custos e aos impostos, mas também tendo em conta a incerteza e os riscos associados à SIC e ao grupo Impresa.

    O ‘show’ continua, com novo empréstimo obrigacionista, numa altura em que as contas da Impresa já tiveram melhores dias. (Foto: D.R.)

    Os problemas da dona da SIC não são de agora, mas agravaram-se em 2023, tendo pagado já mais de 10 milhões de euros em juros. Não é caso único no sector dos media, como se tem visto com o desmembramento da Global Media e a crise na dona da revista Visão, a Trust in News (TiN). De resto, como o PÁGINA UM destacou, a Impresa assumiu que não vai receber 2,5 milhões de euros da TiN referentes à venda do portfólio de revistas em 2018, nem se sabe ao certo quanto é que já recebeu dessa alienação. Enquanto isso, crescem os ‘zunzuns’ para que pressionar a que sejam colocadas verbas dos contribuintes para ‘salvar’ o sector.

    Mas, enquanto o dinheiro público e o ‘salvamento’ estatal não chega, vai-se recorrendo à dívida. No caso deste empréstimo da SIC, para quem podia ‘enterrar’ mais de 50.000 euros nesta emissão, o risco pode compensar. Haverá sempre a possibilidade de uma nova emissão de obrigações daqui a três ou quatro anos, com tanta ou mais ‘fruta’ do que esta.


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  • Governo paga salários milionários a consultores da Ernst & Young

    Governo paga salários milionários a consultores da Ernst & Young

    Uma das mais conhecidas consultoras internacionais, a Ernst & Young – ou simplesmente EY – tem muitos motivos para sorrir, e mais ainda para rir: está a facturar como nunca em contratos com entidades públicas. No primeiro semestre de 2024, a ‘máquina registadora’ já superou mais de 4 milhões de euros em contratos públicos, quase tanto quanto todo o ano passado. O trabalho tem estado agora concentrado sobretudo na gestão de projectos associados ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), como é o caso do ajuste directo assinado anteontem com o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN). Através de um ‘estratagema’ que ainda tem de ser validado pelo Tribunal de Contas, a EY vai receber de ‘mão-beijada’, em apenas quatro meses, um total de 350 mil euros por prestação de serviços, o que resulta num ‘salário’ médio por consultor a tempo inteiro de 16 mil euros por mês. As relações políticas com esta consultora vêm de longe, mas consolidaram-se com o actual Governo: o próprio ministro da Economia, Pedro Reis, nem se importou este mês de participar num vídeo institucional da própria EY.


    O Governo contratou por ajuste directo, através do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), a consultora Ernst & Young (EY) para controlar e monitorizar um dos programas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que visa promover a transição digital na componente de justiça económica e ambiente de negócios. O ajuste directo, no montante total (com IVA) de 350.697,60 euros, tem uma vigência de apenas quatro meses, servindo para pagamento a quatro consultores a tempo inteiro e a dois consultores seniores a 75% do tempo – ou seja, dará um pagamento médio mensal por consultor de quase 16 mil euros.

    Para um ajuste directo de montante tão elevado – e que necessita ainda de visto do Tribunal de Contas –, o IRN usou um dos mais estapafúrdios esquemas para contornar um concurso público, que implicaria concorrência indesejável à EY e a formação de um preço justo: a urgência imperiosa. Com efeito, de acordo com o contrato assinado anteontem, fundamentou-se o ajuste directo por “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante”, neste caso pelo INR, e simultaneamente por não ser possível cumprir os prazos inerentes aos demais procedimentos. Mas isso também só pode ser invocado se as circunstâncias “não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

    O ministro Pedro Reis ao lado de Rosália Amorim, directora de marketing da EY, este mês, num evento na sede da consultora. Foto: EY (Facebook)

    Ora, não apenas o PRR já há muito está em fase de implementação, mas longe de estar concluído, como, no caso concreto da principal tarefa agora a desenvolver pelos consultores da EY – “controlo e monitorização, em articulação com o IRN, I.P., do programa da componente C18 [relativo à] Justiça Económica e Ambiente de Negócios no âmbito do PRR e dos projetos associados” –, as actividades estavam já concretamente previstas desde Fevereiro de 2021, ou seja, há mais de três anos. Por outro lado, teria de ser provado que a entidade pública não teria capacidade, com os seus meios humanos, de executar as tarefas.

    Além de apoios à transição digital nos tribunais e nos processos de recuperação de créditos, recuperação de empresas e de insolvência, também desde 2021 estavam previstas intervenções no âmbito do PRR nas área do IRN, designadamente o desenvolvimento do sistema de informação Empresa 2-0, uma nova plataforma englobando a criação, gestão e encerramento de empresas, e o e-Residency, destinada a empresas estrangeira que tenham o propósito de estabelecer sede em Portugal. A plataforma Empresa 2.0 até já teve a sua primeira versão lançada há mais de um ano, em Maio de 2023.

    De acordo com o caderno de encargos deste ajuste directo, a EY vai fazer basicamente trabalho que, em princípio, poderia ser desenvolvido por técnicos próprios da Administração Pública, o que permitiria não apenas poupanças ao erário público mas também evitaria a transferência de informação para uma consultora que trabalha sobretudo para o sector privado. Com efeito, de entre as tarefas dos seis consultores – ou ‘cinco e meio’, uma vez que os seniores estarão a 75% do tempo efectivo – está a conceção ou revisão da metodologia de gestão, acompanhamento e controlo de programas e projetos no IRN, assim como a implementação e utilização de ferramentas ou aplicações informáticas associadas a essa função, bem como a elaboração de diversos relatórios.

    Evolução dos montantes (em euros) dos contratos públicos da EY desde 2009 por data de celebração. Valores de 2024 dizem respeito aos contratos já publicitados até 26 de Junho. Fonte: Portal Base.

    Existem também tarefas bastante ambíguas no caderno de encargos – ou mesmo ‘esotéricas’ por não terem um significado concreto – como seja “promover uma dinâmica de permanente colaboração e interação entre as diversas unidades orgânicas do IRN, I.P., com os restantes organismos do Ministério da Justiça e eventualmente de outras entidades envolvidas no âmbito da execução do PRR”.

    Noutros casos, aparentemente, os consultores da EY serão ‘espiões’, uma vez que ficam responsáveis pelo “desenho dos fluxos de processos, mapeamento das jornadas dos utilizadores (cidadãos e trabalhadores do IRN) e a especificações funcionais e desenho da experiência associados aos processos transversais aos diferentes ciclos de vida, designadamente Gestão de Utilizadores, Reporting, Notificações e Agendamentos, entre outros, essenciais para dotarem as equipas de desenvolvimento de Sistemas”.

    A facilidade com que as empresas de consultadoria ‘entram’ na acção administrativa e governativa causou recentemente uma pequena celeuma política quando o Ministério da Saúde contratou uma consultora para a auxiliar na elaboração do Plano de Emergência da Saúde, tendo o PÁGINA UM revelado que a IQVIA estabelecera 54 contratos durante os Governos Costa.

    No caso da EY, o ano de 2024 tem sido de ouro, com muito euro da Administração Pública à mistura. Até este mês, e apenas para os contratos já publicados até hoje no Portal Base a EY já garantiu de entidades públicas contratos no valor de 4,1 milhões de euros, destacando-se o contrato de quase 2,7 milhões de euros (neste caso ganho em concurso público) celebrado com o Instituto de Informática para aquisição de serviços de implementação e subscrição SAAS para a Plataforma Integrada de Gestão do Risco. Note-se que 14 dos 21 contratos obtidos pela EY foram de ‘mão-beijada’, incluindo mesmo um que teve como objectivo o “apoio à realização da ‘Avaliação do Risco de Fraude e Medidas Antifraude Eficazes e Proporcionais’ no âmbito dos projetos de financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)”, o que se mostra, no mínimo irónico e absurdo.

    O desempenho da EY tem-se reforçado com o actual Governo, contando já com 12 contratos, e ainda recentemente o ministro da Economia, Pedro Reis, participou no evento e disponibilizou-se mesmo para gravar um vídeo institucional para a consultora. O primeiro semestre deste ano perspectiva assim uma facturação com a Administração Pública bem superior ao ano passado. Nos 12 meses de 2023 cifrou-se nos 4,6 milhões de euros. Este valor já suplantava qualquer um dos anos anteriores. Antes de 2018, a facturação da EY em contratos com a Administração Pública não chegava ao patamar anual de um milhão de euros.

    Em simultâneo ao ‘assalto aos contratos públicos’ sem haver sequer questionamento público, a EY tem apostado fortemente em parcerias com os principais grupos de media, como tem sucedido com o Expresso e o Jornal Económico – onde, aliás, a ex-directora do Diário de Notícias e TSF e actual directora de marketing desta consultora, Rosália Amorim, é colunista, apesar de não se identificar como funcionária da EY.


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