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  • CMVM lança alerta sobre empresa polémica promovida pela TVI

    CMVM lança alerta sobre empresa polémica promovida pela TVI

    O “polícia” do mercado de capitais português alertou hoje, em respostas ao PÁGINA UM, que a suposta empresa dbl.pt, publicitada numa reportagem polémica emitida pela TVI, não está autorizada a operar em Portugal. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários deixa ainda um aviso aos investidores e recomenda cautela em relação a promessas de lucros até 40% em investimentos, como os que são feitos pela dbl.pt, apresentada na reportagem como uma empresa de investimentos em criptoactivos liderada por um “jovem milionário português”, Renato Duarte Júnior. O Banco de Portugal já tinha confirmado ao PÁGINA UM que a dbl.pt não consta da lista de intermediários de activos digitais autorizados a operar no país, mas ainda se aguarda uma reacção do supervisor liderado por Mário Centeno ao caso que tem gerado queixas e polémica e já levou o regulador dos media e analisar a reportagem.


    O “polícia” do mercado de capitais português alertou, em respostas enviadas ao PÁGINA UM, que uma suposta empresa publicitada numa polémica reportagem da TVI sobre um “jovem milionário português” não está autorizada para operar em Portugal.

    A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários sublinha que a dbl.pt não pode operar no país e recomenda ainda cautela aos investidores em relação a promessas de lucros de até 40% em investimentos.

    A reacção da CMVM surge depois de o PÁGINA UM ter questionado os supervisores financeiros sobre a polémica gerada em torno da reportagem “Repórter TVI: Júnior, o milionário improvável”, protagonizada pela jornalista Conceição Queiroz, emitida na passada quarta-feira no Jornal Nacional, em horário nobre.

    “A entidade [dbl.pt] não está registada ou autorizada a operar em Portugal e, consequentemente, não pode prestar serviços de investimento”, refere o regulador nas respostas enviadas ao PÁGINA UM.

    A CMVM informa “ainda que os investidores devem ser especialmente cuidadosos com promessas de rendimento de 40% numa data futura porque não são conhecidos da CMVM instrumentos financeiros com essas caraterísticas ou entidades financeiras sujeitas à sua supervisão que garantam o capital e o rendimento nesses termos”.

    O regulador da bolsa “considera que, perante decisões de investimento, os potenciais investidores devem ser especialmente cautelosos ou procurar aconselhamento profissional”.

    Reportagem da TVI apresenta o negócio de Renato Duarte Júnior como um caso de sucesso, sem verificar sequer a existência legal da sua empresa e se opera de acordo com o mercado já bastante regulado da cripto-economia.

    O programa da TVI gerou várias queixas que chegaram ao regulador dos media, levando a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a confirmar ao PÁGINA UM que está a analisar a reportagem.

    Nas suas respostas, a CMVM recorda que “os mercados de criptoativos não se encontram ainda sujeitos a regulação/supervisão”, os prestadores de serviços relacionados com ativos virtuais “já se encontram sujeitos a registo junto do Banco de Portugal, mas apenas na vertente relacionada com a prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo”. Ou seja, mesmo sabendo-se que a CMVM é o supervisor dos intermediários financeiros, este regulador considera que a responsabilidade de controlo cabe, por agora, em exclusivo ao Banco de Portugal.

    Apesar das insistências do PÁGINA UM, ainda se aguardava, à hora da escrita desta notícia (18h30) uma reacção formal do Banco de Portugal, a entidade responsável pelo registo dos intermediários de activos digitais. Ao PÁGINA UM, o supervisor liderado por Mário Centeno já tinha confirmado que a dbl.pt não se encontra na lista das 10 empresas de criptoactivos autorizadas a operar em Portugal.

    Mário Centeno, governador do Banco de Portugal.

    A reportagem da TVI causou indignação e tem sido alvo de fortes críticas na comunidade portuguesa de profissionais de criptomoedas e criptoactivos, enquanto nas redes sociais e fóruns de debate online chovem palavras de condenação e insultos ao canal de TV, junto com apelos a uma intervenção da ERC.

    Na reportagem, o canal de TV entrevista o português Renato Duarte Júnior, de 29 anos, que aparenta viver uma vida de luxo no Dubai, sendo apresentado como presidente-executivo (CEO) da empresa dbl.pt. Ao longo da reportagem, são feitas diversas entrevistas em iates e mostrados cenários compatíveis com uma vida de luxo.

    A reportagem, que está disponível na plataforma na TVI, dá o “jovem milionário” como “um exemplo de quem conseguiu singrar no mercado da moeda virtual”.

    Mas existem muitas dúvidas sobre a alegada empresa dbl.pt, que é apontada como tendo sede no Dubai e muitas das afirmações de Renato Júnior são lidas pela comunidade de cripto-economia como duvidosas, como a sua afirmação de que faz 18.000 dólares por segundo, por exemplo.

    Como noticiou anteontem o PÁGINA UM em exclusivo, a Federação das Associações de Cripto-Economia (FACE) alertou que o conteúdo da reportagem e a “imagem errada” transmitida de enriquecimento fácil e rápido, através de um suposto investimento em activos digitais, pode levar investidores ao engano.

    Num comunicado divulgado ontem, aquela Federação denuncia que “as associações da FACE receberam
    dezenas de mensagens que indicam uma procura elevada pelos serviços da DBL por parte dos
    espectadores – algo também evidenciado nas redes sociais – comprovando que, direta ou
    indiretamente, esta peça acabou por promover um negócio que exige uma investigação profunda”.

    Um e-email enviado pelo PÁGINA UM para o endereço info@dbl.com, que se encontra no site da suposta empresa, veio devolvido. A TVI ainda não respondeu e não foi possível até, ao momento, pedir um comentário a Renato Júnior, sobre o qual não se encontram contactos disponíveis, nomeadamente na Internet.


    Nota: Notícia actualizada aqui.

    ão aqui.

  • Federação das Associações da Cripto-Economia lança alerta sobre reportagem da TVI

    Federação das Associações da Cripto-Economia lança alerta sobre reportagem da TVI

    Profissionais do sector da economia baseada na tecnologia blockchain criticam e demarcam-se da reportagem emitida pela TVI na quarta-feira passada sobre um alegado jovem português milionário, Renato Duarte Júnior, apresentado como CEO de uma empresa de investimentos. A Federação das Associações de Cripto-Economia critica a reportagem, bem como a “imagem errada” de enriquecimento fácil e rápido dada, e teme que leve investidores ao engano. O “jovem milionário” é um desconhecido na comunidade de criptomoedas portuguesa e a sua empresa nem consta da lista de entidades de criptoactivos autorizadas pelo Banco de Portugal a operar no país.


    Uma reportagem da TVI sobre um “jovem milionário português” está a gerar uma forte onda de críticas sobre a estação de televisão por parte da comunidade de profissionais do sector das criptomoedas e criptoactivos em Portugal.

    A Federação das Associações de Cripto-Economia (FACE) alerta que o conteúdo da reportagem e a “imagem errada” transmitida de enriquecimento fácil e rápido, através de um suposto investimento em activos digitais, pode levar investidores ao engano.

    Para Nuno Lima Luz, presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas (APBC) – que integra a FACE –, a ideia passada pela reportagem “é perniciosa”. “Ficámos surpreendidos com a reportagem que passou em horário nobre. Na comunidade, todos nos manifestamos contra as ideias transmitidas pela reportagem, as quais não representam o sector”, disse ao PÁGINA UM. “Estranhamos este tipo de reportagem que promove este tipo de actividades em horário nobre”, afirmou. Acrescentou que a FACE está a preparar um comunicado à imprensa com críticas e alertas sobre a reportagem.

    Na reportagem “Repórter TVI: Júnior, o milionário improvável”, o canal de TV entrevista o português Renato Júnior, de 29 anos, que aparenta viver uma vida de luxo no Dubai, sendo apresentado como presidente-executivo (CEO) da empresa dbl.pt. Ao longo da reportagem, são feitas diversas entrevistas em iates e mostrados cenários compatíveis com uma vida de luxo.

    A reportagem, que está disponível na plataforma na TVI, é acompanhada de um pequeno texto de resumo onde se pode ler: “Tem 29 anos e é um exemplo de quem conseguiu singrar no mercado da moeda virtual. Deixou a escola para trás e aos 17 anos emigrou para o Canadá, onde foi trabalhar nas obras”.

    O texto da promoção da reportagem prossegue: “Com o dinheiro que amealhou investiu num computador e num telemóvel e esta foi a porta de entrada para o mundo do dinheiro digital.”

    Segundo a reportagem, Renato Júnior “começou com um investimento de 100 euros” e “atualmente, vive no Dubai e é de lá que gere um negócio de milhões”.

    O empresário e investidor apresenta-se assim: “Eu sou o Júnior. Venho de uma família humilde e aos 17 anos emigrei para o Canadá. Trabalhei na construção, mas sempre assumi que um dia ia fazer muito dinheiro.”

    A comunidade portuguesa de cripto-economia desconhece quem é Renato Júnior. Na reportagem, o único rosto familiar no sector em Portugal é o de Fred Antunes, CEO da RealFevr e ex-presidente da APBC, o qual foi entrevistado pela TVI para a reportagem, e que prestou comentários gerais sobre o sector.

    Consultado o site do Banco de Portugal, verifica-se que a empresa dbl.pt não consta da lista de 10 entidades que estão actualmente autorizadas pelo regulador para intermediar investimentos em criptomoedas e activos digitais no país.

    Pesquisando na Internet, encontra-se um site de uma empresa com o endereço dbl.pt, o qual não dispõe de contactos nem de informação sobre a sociedade, os seus proprietários ou gestores. Ao entrar na página, é mostrado um aviso relativo a phishing e é pedido ao utilizador que verifique sempre se está a usar o endereço dbl.pt.

    Na área de respostas a perguntas frequentes, a dbl.pt refere que tem dois tipos de produtos: um promovido como sendo “seguro”, estando o investimento alegadamente garantido e com promessa de lucros até 40%; e no segundo produto o capital investido já não é garantido, embora sejam prometidos lucros que, diz-se no site, podem ir até os 1.894%. Neste caso, no reverso da medalha, há a possibilidade de o investimento se perder na totalidade.

    O PÁGINA UM encontrou um outro site digitando www.dbl.pt, mas aqui surge uma mensagem de erro “503 – serviço temporariamente indisponível”.

    Ainda não foi possível obter um comentário de Renato Júnior ou da dbl.pt, nem da TVI.


  • Rabo de Peixe: à espera da “mudança de maré” para mais turistas e investidores  

    Rabo de Peixe: à espera da “mudança de maré” para mais turistas e investidores  

    Ainda é tudo muito recente, mas Rabo de Peixe (ou Turn of the tide, em inglês) fez disparar a notoriedade da vila situada na ilha de São Miguel, nos Açores. O sucesso da série da Netflix colocou a vila piscatória, mais conhecida pela sua pobreza, debaixo dos holofotes mediáticos tanto na imprensa nacional como internacional. A onda de publicidade em torno da região fez nascer perspectivas de atracção de mais turistas e investidores, nomeadamente para o mercado imobiliário. Por agora, os efeitos não são ainda visíveis. Mas as expectativas, agora que se anunciou a segunda temporada, são grandes, aproveitando o estrelato mediático da região. Talvez Rabo de Peixe se venha a tornar tão icónico como qualquer um dos 12 antigos cenários de filmes que o PÁGINA UM recorda.  


    Ainda não deu à costa, mas o mercado imobiliário na vila de Rabo de Peixe, nos Açores, agora famosa internacionalmente devido à série portuguesa que faz sensação na plataforma Netflix, espera uma mudança de maré, e que seja alta.

    Para já, à tona há muitas expectativas e a esperança de um aumento na procura turística e também na venda de imóveis nesta vila piscatória de São Miguel, uma das mais pobres do país. Em 2015 era a freguesia portuguesa com mais pessoas a receber Rendimento Social de Inserção (RSI).

    O sucesso da série “Rabo de Peixe” (Turn of the tide, em inglês) não é apenas nacional. A cobertura mediática também tem sido internacional, por via das boas classificações em sites da especialidade.

    Com os holofotes colocados na freguesia onde residem cerca de 8.800 habitantes, é natural que as expectativas de que a série possa atrair turistas e investidores para a ilha seja vista como natural.

    Para já, na procura turística por alojamento local, mantém-se a situação prévia à estreia da série. O Verão está lotado em praticamente todos os alojamentos contactados pelo PÁGINA UM na plataforma Airbnb, mas não é nada surpreendente: a esmagadora maioria das reservas já estavam asseguradas antes mesmo do lançamento da série. Para o Outono, ainda há muitos alojamentos disponíveis, mas os preços rondam os valores praticados em Lisboa.

    Em termos do mercado imobiliário, a situação é ainda de normalidade. “A procura [por casas] tem sido relativamente a mesma, não houve um pico acentuado”, diz João Lima, agente imobiliário da Remax naquela vila piscatória, que alberga o maior porto de pesca da ilha de São Miguel.

    Também uma porta-voz na imobiliária ERA apontou ao PÁGINA UM no mesmo sentido: “não temos dados, de momento, que sustentem uma maior procura de casas nos Açores que possamos atribuir à série da Netflix”.

    Mas há muitas expectativas.

    white concrete building on green mountain beside sea during daytime

    “De momento, está tudo dentro da normalidade, mas ainda é muito recente, e acredito que nos próximos meses a série irá contribuir para uma maior procura, não só em Rabo de Peixe, mas na Ilha de São Miguel”, lançou João Lima.

    De facto, a procissão ainda vai no adro. A série estreou há cerca de um mês, 26 de Maio, tem sido a mais vista na Netflix em Portugal. A nível mundial, chegou ao Top 10 do ranking de visualizações da plataforma de streaming, atingindo a sétima posição das séries mais vistas em língua não-inglesa. Além disso, atingiu o Top 10 em 15 países de quatro continentes.

    A promoção internacional do nome da pequena vila enfrenta, porém, uma corrente que tem levado a um arrefecimento do mercado imobiliário a nível nacional.

    O mercado ainda continua “quente”, com os preços em níveis historicamente elevados, mas tem-se observado um abrandamento, tanto na subida dos preços, como no número de casas vendidas e créditos à habitação concedidos.

    Na avaliação que os bancos fazem das casas no âmbito da concessão de crédito à habitação, registou-se em Abril uma queda de 34,3% no número de avaliações efectuadas, comparando com o mesmo mês do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).

    O valor mediano de avaliação bancária na habitação subiu oito euros face a Março, para o valor mais alto desde pelo menos 2011: nos 1.491 euros por metro quadrado. O aumento em média mensal foi de 0,5% enquanto a subida homóloga foi de 10%, a mais baixa do último ano. Foi na região autónoma dos Açores que se registou a menor subida homóloga: 1,9%.  

    De facto, ainda segundo o INE, os preços das casas desaceleraram nos primeiros três meses deste ano, com o índice de preços na habitação a aumentar 8,7% em termos homólogos, 2,6 pontos percentuais abaixo do registado no trimestre anterior.

    A venda de casas sofreu uma queda trimestral de 16% e, em termos homólogos, a descida chegou aos 20,8%. Nos Açores, a queda na venda de casas foi de 23% no primeiro trimestre de 17% em comparação com igual período de 2022. Em todo o arquipélago, no primeiro trimestre, foram vendidas 599 casas num montante de 87 milhões de euros. Estes valores representam, respectivamente, 1,7% e 1,3% das vendas efectuadas em todo o país.

    Actualmente, na plataforma de promoção de imóveis Idealista, surgem à venda 44 casas em Rabo de Peixe. O preço médio em todo o concelho da Ribeira Grande ascende aos 1.031 euros por metro quadrado, o que representa um aumento de 13% face ao valor registado há um ano na mesma plataforma. Em Lisboa, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) o valor médio das casas era de 3.872 euros por metro quadrado, no final de 2022.


    Série no topo   

    Criada pelo açoreano Augusto Fraga, Rabo de Peixe foi rodada em diversos locais, incluindo na freguesia que dá o nome à série.

    O enredo baseia-se num caso real que remonta a 2001, quando deram à costa daquela vila piscatória fardos de cocaína, na sequência de um naufrágio de uma embarcação que se dirigia para Espanha transportando meia tonelada daquele estupefaciente.  

    Produzida pela Ukbar Filmes, a série, além de ser líder em visualizações na Netflix em Portugal, Rabo de Peixe chegou a série mais vista em muitos outros países. A plataforma anunciou, entretanto, que vai haver segunda temporada.

    Também tem recebido excelentes classificações, nomeadamente no site IMDb, onde tem um rating de 7,7 em 10. No Rotten Tomatoes, a série portuguesa cativou uma classificação de 4.5 em 5. A crítica do PÁGINA UM pode ser lida aqui.

    Com tão boa recepção e impacto mediático, e com segunda temporada à vista, antecipam-se possíveis mudanças na região, tanto em termos turísticos como ao nível da atracção de investidores. E a bela vila, outrora conhecida como uma das zonas mais pobres da Europa, ganhou agora uma fama mais glamorosa. Como num conto de fadas, a “abóbora” transformou-se numa linda carruagem. A expectativa é que a maré traga mais visitantes (e dinheiro) à (naturalmente) bela região.

  • TAP: Neeleman e Humberto Pedrosa saíram com 60 milhões de euros no bolso

    TAP: Neeleman e Humberto Pedrosa saíram com 60 milhões de euros no bolso

    Foram catalogados como investidores beneméritos em 2015, quando entraram na TAP, uma companhia aérea já então em crise. Em plena pandemia, que ainda mais afundou a companhia aérea portuguesa, David Neeleman e Humberto Pedrosa saíram da TAP numa rocambolesca negociação com o ex-ministro Pedro Nuno Santos, mas com todos os dedos e mais uns quantos anéis. Cálculos do PÁGINA UM apontam que, no conjunto, pela passagem pela TAP amealharam quase 60 milhões de euros. A parte de “leão” coube ao empresário norte-americano, que terá “levado para casa” 52 milhões de euros. Já o empresário português, dono do Grupo Barraqueiro, terá lucrado os restantes oito milhões de euros. Este é o segundo artigo de um dossier que o PÁGINA UM está a publicar sobre a TAP. Muitas perguntas estão por responder em torno das operações e contas da companhia aérea. A comissão parlamentar de inquérito à gestão política da tutela da TAP deverá trazer mais luz sobre as dúvidas que subsistem. A tomada de posse foi ontem.


    Era uma época de taxas de juro negativas. E ninguém diria mas foi com um investimento numa empresa em dificuldades que David Neeleman e Humberto Pedrosa terão conseguido encaixar milhões em lucro. No total, a entrada – e posterior saída – da TAP, rendeu quase 60 milhões de euros em lucros.

    O empresário norte-americano, fundador da Breeze Airways, terá levado a maior fatia: cerca de 52 milhões de euros. Quanto ao empresário português, dono do Grupo Barraqueiro, terá lucrado uma verba a rondar os oito milhões de euros.

    O PÁGINA UM passou a pente fino os relatórios e contas da TAP dos últimos exercícios e também escrutinou as operações executadas em torno da privatização da companhia em 2015, reversão da venda e posterior saída dos investidores privados do capital da empresa. No primeiro artigo deste dossier, o PÁGINA UM noticiou que a companhia aérea custou 3.200 milhões de euros ao erário público desde a privatização, em 2015.

    Isto numa empresa que, nos dois últimos exercícios registou prejuízos de 2.800 milhões de euros e, desde a privatização, em 2015, só registou lucros em 2017, de 23 milhões de euros.

    O jornal Correio da Manhã já havia noticiado, no dia 11 de Fevereiro, que Neeleman encaixou um lucro de 52 milhões de euros com o seu investimento na TAP. Aliás, o financiamento da entrada do norte-americano na TAP está envolto em polémica, com notícias a apontar que terá pago tudo com “o pelo do próprio cão”, através de uma operação que envolveu a Airbus e a negociação da troca da frota da companhia. Segundo o Eco, o norte-americano assumiu o controlo da TAP com dinheiro da própria empresa.

    David Neeleman

    A venda de 61% do capital da TAP, em 2015, ao consórcio detido em partes iguais pelos dois empresários – Atlantic Gateway – foi executada pelo Governo PSD/CDS liderado por Pedro Passos Coelho. Mas, apenas três meses após a privatização, a venda foi revertida, por decisão do Governo do PS, liderado por António Costa.  

    As contas são fáceis de fazer. David Neeleman pagou cinco milhões de euros por metade de 61% do capital da TAP, aquando da privatização em 2015.

    O investidor recebeu depois 45 milhões de Humberto Pedrosa pela participação de 50% na Atlantic Gateway e mais 55 milhões pela venda de 22,5% da TAP ao Estado português.

    Além destas verbas, pelo meio, encaixou 389 mil euros pela venda de 37,5 milhares de acções aos trabalhadores da TAP, a 10,38 euros cada e 950 mil euros pela venda de 82,5 mil acções ao Estado, a 11,52 euros cada, quando este desejou recuperar o controlo da empresa.

    Fonte: Relatórios e contas da TAP. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Neeleman pagou 112 milhões de euros – metade dos 224 milhões de euros – pelas Prestações Suplementares pelo acordo que tinha com o Estado português. Recebeu ainda 67,5 milhões de euros pelos juros a 7,5% durante 10 anos sobre o empréstimo obrigacionista da Azul de 90 milhões de euros.

    No caso de Humberto Pedrosa, os cálculos do PÁGINA UM com base em documentos oficiais públicos disponíveis apontam que terá obtido um lucro de oito milhões de euros.

    Para esta fatia milionária do “bolo” de lucros que caíram no colo dos accionistas privados da TAP, contabilizam-se a verba de 169 milhões de euros pela venda, por parte de Pedrosa, das Prestações Suplementares à Parpública. Por outro lado, o empresário português pagou cinco milhões de euros por metade de 61% do capital da TAP aquando da privatização em 2015.

    Humberto Pedrosa

    Pagou, depois, 45 milhões de euros a David Neeleman pela participação de 50% deste na Atlantic Gateway, quando o norte-americano saiu da companhia.

    Pedrosa recebeu 389 mil euros pela venda de 37,5 milhares de acções aos trabalhadores da TAP, a 10,38 euros cada e ainda 950 mil euros pela venda de 82,5 mil acções ao Estado, a 11,52 euros cada, quando este desejou recuperar o controlo da empresa. O empresário pagou 112 milhões de euros – metade dos 224 milhões de euros – pelas Prestações Suplementares pelo acordo que tinha com o Estado português.

    Em suma, contas feitas, estas complexas operações financeiras deram um lucro a Humberto Pedrosa de oito milhões de euros, que chegou a ser catalogado pelo ex-ministro Pedro Nuno Santos como “um empresário patriota“.

    Fonte: Relatórios e contas da TAP. Cálculos e análise: PÁGINA UM

    Não foi ainda possível obter comentário sobre estes dados por parte dos dois empresários.

    Todas as dúvidas e contornos dúbios em torno dos acontecimentos dos últimos anos na TAP vão ser alvo de investigação na comissão parlamentar de inquérito à companhia.

    A tomada de posse da comissão ocorreu ontem. Vão ser ouvidos os principais protagonistas dos eventos que levaram à actual situação da TAP.

    Entretanto, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu um inquérito à indemnização de 500 mil euros paga pela TAP a Alexandra Reis, que saiu da administração da companhia para a seguir ir liderar a NAV e acabar por ser nomeada para a pasta de secretária de Estado do Tesouro, no Ministério conduzido por Medina Ferreira. Mas Alexandra Reis acabou por sair do cargo com o estalar da polémica da indemnização.

    O DCIAP também abriu uma investigação ao negócio envolvendo a troca de frota por aviões da Airbus, um negócio que teve a “mão” de Neeleman, noticiou o Observador. Neste último caso, a participação foi feita pelos Ministérios das Finanças e Infraestruturas.

    O anterior ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, já tinha denunciado, em Outubro de 2022, no Parlamento, que existiam suspeitas em torno do negócio da frota e que o seu Ministério tinha enviado o caso para o Ministério Público, o que deu origem à abertura de um inquérito.

    Certo é que, na nova comissão parlamentar de inquérito, presidida pelo socialista Jorge Seguro Sanches – que foi secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional até Fevereiro do ano passado –, matéria para investigar não vai faltar.

  • Afinal, passa-se alguma coisa extraordinária com as acções da Tesla? E com Elon Musk?

    Afinal, passa-se alguma coisa extraordinária com as acções da Tesla? E com Elon Musk?

    Hoje, a sessão em Wall Street fechou com as acções da Tesla a subirem 8%, mas têm sido as desvalorizações ao longo do ano de 2022 que têm marcado a “vida” da mediática empresa do sector automóvel de Elon Musk, que apresenta uma queda de mais de 60% desde Janeiro. Os media mainstream têm freneticamente noticiado, em êxtase, o suposto colapso da Tesla, e culpam a postura de Elon Musk e a sua compra e gestão do Twitter. Mas será uma grande surpresa esta descida das acções da Tesla, após uma vertiginosa subida de mais de 1.000% em menos de dois anos? O PÁGINA UM apresenta uma análise.


    The smart money is selling; the dumb money is buying“. A frase aplica-se hoje como ontem aos mercados de capitais. Quem percebe de mercados financeiros, vende na altura certa; quem não percebe, compra na altura em que não deve.

    Foi Luís Gomes, economista e co-fundador da Criptoloja, que recordou ao PÁGINA UM aquela frase, a propósito da queda recente das acções da Tesla.

    Elon Musk

    Quando falamos da Tesla, falamos do maior fabricante automóvel do mundo em valor em bolsa, com uma capitalização (actual) de quase 350 mil milhões de dólares. O segundo lugar é ocupado pela nipónica Toyota, a uma grande distância do líder: tem pouco mais de metade da capitalização bolsista. Empresas como a Volkswagen, onde está integrada a Autoeuropa, tem uma capitalização bolsista de 20% da Tesla.

    A Tesla chegou a valorizar cerca de 1.300% em menos de dois anos: em Janeiro de 2020 estava nos 28 dólares e atingiu um pico nos 414 em Novembro de 2021. O seu valor em bolsa chegou a ultrapassar um bilião de dólares, ou seja, 1.000.000.000.000 dólares.

    Já no final de 2020, quando a acção chegou então aos 240 dólares, houve grandes investidores que apostaram na sua queda (short sellers), mas erraram e viram a vida a andar para trás. Num só mês, no final daquele ano, a Tesla valorizou 44%.

    Foi o caso de Michael Burry, que ficou conhecido por ter antecipado a crise financeira de 2008 e de ter lucrado com ela. Mas, este ano, este tipo de investidores acertou em cheio.

    Capitalização bolsista em 29 de Dezembro de 2020 das 10 principais empresas do sector automóvel, em mil milhões de dólares. Fonte: companiesmarketcap.com

    Agora, em 2022, as acções da companhia estão a registar uma descida de 68%, mas isso também compara com uma descida de 45% de rivais como a Ford Motor e a Volkswagen.

    Era natural que, após uma valorização tão forte, as acções da Tesla recuassem? Sim. Mas há outros factores que têm contribuído para esta descida, incluindo indicadores suportados na análise técnica, e, em particular, a expectativa sobre a evolução das vendas de veículos eléctricos e da economia em 2023, entre outros.

    Mas então, e a compra do Twitter por Elon Musk está a provocar a queda da Tesla em bolsa, como transparece nas notícias de alguma imprensa mainstream?

    O investimento de Elon Musk no Twitter – uma empresa que vinha a perder receitas e não estará nas melhores condições financeiras – contribui, certamente, para um sentimento de incerteza, mas não é um factor crucial para a evolução da cotação da Tesla, ao contrário da redução de produção na sua fábrica em Xangai, na China, como noticiou  recentemente a Reuters.

    Variação (%) da cotação de empresas do sector automóvel em 2022 (até dia 22 de Dezembro). Fonte: Yahoo Finance.

    É verdade que alguns analistas no mercado temem que Musk esteja distraído com a gestão do Twitter, que tem mais de 400 milhões de utilizadores, mas a precisar de mais receitas. Por outro lado, com a compra do Twitter por 44 mil milhões de dólares, operação que concluiu em Outubro, Musk vendeu, em 2022, quase 40 mil milhões de dólares em ações da Tesla. E o mercado não fica indiferente.

    “A Tesla tem muito ruído à sua volta. Mas, se olharmos para a Meta (Facebook) ou para a Amazon, estão também em valores mínimos de ciclo. Não é só a Tesla”, diz Filipe Garcia, economista da IMF-Informação de Mercados Financeiros. Acresce que, “na Tesla, há a notícia de que a pausa na produção na China vai continuar. Ou seja, há factores intrínsecos e outros que são de mercado”.

    Note-se, por exemplo, que as acções da Meta desvalorizaram 65% desde o início deste ano. As da Amazon caem 50%.

    E, em termos de análise técnica, Luís Gomes apontou que, desde Maio deste ano, a Tesla iniciou uma tendência descendente, com a ocorrência de máximos e mínimos decrescentes. Além disso, rompeu todos os denominador suportes Fibonacci, em particular o de 61,8%. Ou seja, desde o máximo de Novembro de 2021, em que se encontrava em torno de 414 dólares norte-americanos, já corrigiu mais de 70%, faltando agora o último suporte Fibonacci, o de 78,6%. E estamos perto.

    Variação (%) da cotação de empresas do sector automóvel desde 31 de Dezembro de 2019 e 22 de Dezembro de 2022. Fonte: Yahoo Finance

    Ontem, a Tesla já subira 3,31%, fechando nos 112,72 dólares na abertura. Hoje fechou nos 121,82 dólares, recuperando assim 11,7% em apenas duas sessões. Mas, em mercados bolsistas, estas variações têm pouco significado. A acção pode ainda não ter tocado “no fundo” desta descida, e, caso rompa o já mencionado nível 78,6% Fibonacci, que estará situado em redor dos 90 dólares, poderá deixar de “ter fundo”.

    Mesmo assim, perante a constante desvalorização ao longo de 2022, nos últimos três anos as acções da Tesla somam um ganho de “apenas” 300%”. Ou seja, quadruplicaram!

    Saliente-se que nas últimas semanas, à medida que muitos investidores institucionais fecham posições nas suas carteiras com a chegada do final do ano, alguns movimentos nos mercados tornam-se mais expressivos. Estes movimentos são usuais em Dezembro.

    Filipe Garcia lembrou que “empresas como a Tesla são muito grandes” e “têm um peso muito grande em índices ETF, por exemplo”. Ora, nesta altura do ano, basta que grandes investidores estejam a “desfazer” o seu investimento num desses índices para abanar a cotação de ações como as da Tesla.

    blue coupe parked beside white wall

    A menor liquidez nestes dias que se aproximam do final de ano, devido ao facto de haver menos investidores no mercado, também contribuem para grandes oscilações das cotações.

    O facto é que, apesar da descida que as acções da Tesla registam em 2022, a maioria dos analistas continua a recomendar a sua compra. O preço médio estimado atribuído às acções da Tesla no final de 2023 situa-se nos 248 dólares por acção.

    George Gianarikas, analista que acompanha há muitos anos as ações da Tesla, é dos que está positivo em relação à evolução da companhia. Analista na Canaccord Genuity, Gianarikas disse, em entrevista à Yahoo Finance, que “actualmente, o mercado não parece estar muito positivo em relação às Tesla, e é compreensível”.

    E explica: “Ouvimos Elon Musk numa conversa no Twitter Spaces e soa decididamente negativo no curto prazo. Há muita incerteza sobre as vendas (de viaturas novas) no quarto trimestre. Há muita incerteza sobre as vendas em 2023. Há muito incerteza sobre a trajectória da margem da empresa”.

    Variação da cotação diária (em dólares) da Tesla entre finais de 2019 e 22 de Dezembro de 2022. Fonte: Yahoo.

    Nessa entrevista, Gianarikas está, porém, optimista quanto ao futuro da empresa de Elon Musk, porque a Tesla “tem um balanço incrivelmente forte para resistir às adversidades de uma recessão” e, por outro lado, “estão destinados a aumentar a sua liderança em veículos eléctricos”, um segmento que pensa “estar prestes a penetrar realmente no mercado automóvel global”.

    Por sua vez, Elon Musk também tem justificado a queda da cotação da Tesla, que é generalizada a outros títulos, às decisões da Reserva Federal norte-americana (FED), devido ao aumento das taxas de juro, que tornaram o mercado de acções menos atraentes para os investidores.

    Quanto à imprensa mainstream, parece previsível que os ataques a Musk vão continuar. Até porque o multimilionário, ao comprar o Twitter, acabou com aquele que era o receio dos seguidores da religião ‘woke’ e dos que têm apoiado a censura e a desinformação em torno da pandemia nas redes sociais.

    Os media tradicionais têm passado a ideia ao público de que Musk permitiu que surgisse desinformação no Twitter e até discurso de ódio, o que é falso. Pelo contrário: desinformação era o que existia antes de Musk assumir a liderança da rede social Twitter, como comprovam os documentos internos que Musk tem tornado públicos, nos chamados Twitter Files.

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    Com a divulgação dos Twitter Files, Musk tirou todos os esqueletos do armário da empresa que agora lidera, mostrando o nível de censura elevado que existia naquela plataforma e que se estende a todas as outras redes sociais e grandes tecnológicas. Ou seja, ganhou muitos inimigos entre os defensores da censura e desinformação.

    E agora que Musk apontou novas baterias à imprensa mainstream, classificando-a de “obsoleta”, abriram-se feridas insanáveis. O novo dono do Twitter assumiu já que deseja criar uma alternativa aos media tradicionais, que acusa de parcialidade e de se limitarem a propagar propaganda. E entretanto disse mesmo que está aberto à ideia de comprar a plataforma de conteúdos Substack, muito usada por escritores e jornalistas independentes, para rivalizar com os media mainstream. Por isso, a guerra entre Musk e os media mainstream parece estar para durar.


    N.D. Luís Gomes é sócio minoritário (5%) da Página Um Lda., a empresa gestora do PÁGINA UM.

  • Colunex: a empresa de colchões foi dar uma “ajudinha” aos hospitais e facturou 1,3 milhões de euros numa semana

    Colunex: a empresa de colchões foi dar uma “ajudinha” aos hospitais e facturou 1,3 milhões de euros numa semana

    No início da pandemia, um mastodôntico Estado com quase nove séculos de História não conseguiu reunir logística suficiente para garantir o suprimento de equipamentos e produtos para contrariar os fenómenos de especulação e disrupção do mercado. Preferiu receber de braços abertos quem se predispusesse a dar uma “ajudinha” para encontrar materiais e produtos, mesmo que custassem os “olhos da cara” aos contribuintes. Até a Colunex, uma empresa de colchões, decidiu “auxiliar” o Estado nesse desígnio. Acabou a facturar 1,3 milhões de euros em máscaras. Em apenas uma semana. Tudo por ajuste directo e sem se conhecer sequer o preço unitário.


    Apesar de ser uma das mais icónicas marcas de colchões, a Colunex nunca vendeu uma só unidade deste produto a qualquer entidade pública, incluindo hospitais. Nem um sobre-colchão, nem uma almofada, nem um jogo de lençóis, nem uma cama articulada, nem um sommier ou um estrado, nem um banco ou uma poltrona, nem sequer uma mesinha de cabeceira. Nada.

    Tudo mudou com a pandemia. Mas não porque o fluxo de doentes nos hospitais justiçasse a compra de mais camas e colchões – na verdade, os internamentos totais reduziram-se, como o PÁGINA UM já revelou – ou que os produtos da Colunex tivessem tido alguma recomendação especial numa das muitas normas relacionadas com a covid-19 da Direcção-Geral da Saúde, por indicação dos seus consultores. Nada disso. Desde Março de 2020, mês oficial da chegada do SARS-CoV-2 a Portugal, a Colunex vendeu zero colchões ao Estado, tanto quanto os que vendera desde que o Portal Base elenca todos os contratos públicos, há mais de uma década.

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    Porém, vendeu algo que passou a ser corriqueiro ao longo da pandemia para qualquer empresa, desde as multinacionais até às de vão-de-escada: máscaras.

    Não se sabe quantas foram; terão sido muitas. Mas sabe-se quanto o Estado gastou com a compra de máscaras à Colunex. E não se sabe as quantidades, porque tudo foi por ajuste directo com competente direito a nada ficar escrito, sempre invocando a famigerada alínea c do número 2 do artigo 95º do Código dos Contratos Públicos: ”por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade, é necessário dar imediata execução ao contrato”. Portanto, nada se sabe sobre as quantidades nem sobre o preço unitário se sabe. Somente se sabe aquilo que saiu dos cofres dos hospitais, ou seja, do Estado; isto é, dos contribuintes.

    Foi tudo muito repentino, diga-se. Em apenas uma semana, com sábado e domingo de permeio, entre 25 de Março e 1 de Abril de 2020, a Colunex teve artes e virtudes de garantir seis contratos com hospitais, quatro dos quais de três unidades da região do Porto, pelo valor total de 1,3 milhões de euros. Ou, para se ser mais preciso, 1.304.025 euros.

    A Colunex, fundada em 1986, tem sede numa freguesia de Paredes, tendo oito lojas espalhadas sobretudo por centros comerciais de grande dimensão.

    Depois dessa data, pelo menos que conste do Portal Base, nada mais a Colunex vendeu deste ou de qualquer outro produto. Foi um negócio repentino. E assim veio, e assim foi. Um negócio que se assemelhou ao tempo de vida de uma borboleta adulta. Mas um negócio tão “belo” como alguns destes insectos.

    O primeiro contrato da Colunex foi estabelecido com o Centro Hospitalar Universitário do Porto, no dia 25 de Março, por 78.000 euros. Com a mesma data surge um segundo contrato com a mesma unidade de saúde – que integra Hospital Santo António, o Centro Materno Infantil do Norte, o Centro de Genética Médica e o Centro Integrado de Cirurgia de Ambulatório – por 124.200 euros.

    Este contrato foi para aquecer. No dia seguinte terá sido um dia de festa na Colunex. O Centro Hospitalar Universitário de São João – cujo presidente do conselho de administração era o agora director executivo do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Araújo – comprou à empresa de colchões 587.325 euros em máscaras. Ao preço unitário agora praticado, apenas 2 cêntimos por unidade, teria dado para adquirir 29.366.250 máscaras – ou seja, para mascarar quase três vezes a população portuguesa inteira, mas naquela altura vendia-se ao preço que se queria e nem se regateava.  

    Fernando Araújo, então presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, autorizou a compra de quase 600 mil euros em máscaras, sem contrato escrito, e sem se saber o preço unitário. Eis o resultado da oferta de ajuda feita pela Colunex.

    No mesmo dia, a Colunex obteve mais um contrato nas redondezas: vendeu 222.500 euros de mais umas quantas máscaras à Unidade Local de Saúde de Matosinhos, que gere o Hospital Pedro Hispano. Este contrato demorou bastante a aparecer no Portal Base: somente surgiu a partir de 8 de Fevereiro do ano passado.

    A 27 de Março surge o único contrato de máscaras fora da região nortenha: o Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira decidiu comprar à Colunex 76.000 euros deste equipamento facial.

    Por fim, com um fim-de-semana pelo meio, esta incursão da Colunex com o mundo das máscaras terminou num contrato a 1 de Abril de 2020 com o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. O preço total: 216.000 euros.

    A administração da Colunex não quis esclarecer o PÁGINA UM sobre os meandros destes fugazes contratos nem dos lucros. Tão-pouco houve comentários dos responsáveis da Unidade de Saúde Local de Matosinhos, a segunda entidade pública com valores mais elevados de compras de máscaras à empresa de colchões.

    Quanto ao Centro Hospitalar Universitário de São João, a assessoria de imprensa justifica o recurso a esta e outras empresas que não costumavam vender produtos de uso hospitalar por causa de “quebras nas cadeias logísticas de material de consumo clínico, tendo estado em risco iminente, e por diversas vezes, incapacidade de proteção dos profissionais de saúde para a prestação de cuidados a doentes com covid-19”.

    E explica que “a comunidade civil (pessoas e empresas), ao ter conhecimento desta tremenda dificuldade, manifestaram junto dos hospitais diversas formas de ajuda, sem as quais não teria sido possível cumprir a nossa missão.”, acrescentando que “foi o caso da empresa Colunex Portuguesa S.A., que entrou em contacto com quatro hospitais da região Norte, tendo disponibilizado a sua logística para o transporte para Portugal de máscaras de proteção à covid-19, de forma a evitar rotura destes bens essenciais, pois na altura não existia oferta no mercado”.

    Este centro hospitalar do Porto diz ainda que “as quantidades de máscaras cirúrgicas e FFP2 entregues às quatro unidades hospitalares terão sido similares, bem como iguais os preços unitários”. Contudo, não adiantou qual foi o preço unitário. Está no “segredo dos deuses”, como estranhamente se tornou norma durante a pandemia.

  • Caves da Montanha: dos zero euros de espumante até aos 340 mil euros em testes e máscaras

    Caves da Montanha: dos zero euros de espumante até aos 340 mil euros em testes e máscaras

    Nem só de uvas se faz vinho, já diz o dichote. E durante a pandemia, nem só de bebidas viveu uma conhecida empresa vinícola da Bairrada. Localizada na Anadia, a Caves da Montanha nunca conseguira vender uma garrafa a qualquer entidade pública, mas soube aproveitar a “onda” e fartou-se de vender máscaras e autotestes, incluindo ao Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, que gere o hospital de Santa Maria. No total foram seis contratos públicos, cinco dos quais por ajuste directo, num total de 340 mil euros. Ninguém explica como empresas sem experiência no sector conseguiram, de repente, convites directos para contratos. Esta é a terceira parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE (que não inclui apenas luvas de nitrilo).


    “Mais do que bebidas, produzimos momentos de prazer. Esperemos que gostem!” – esta é a divisa da Caves da Montanha, empresa familiar da Anadia fundada em 1943, que já vai na quarta geração. No site da empresa diz-se que está “focada na produção, comercialização e distribuição de bebidas”, sendo “líder da produção de espumantes Bairrada”.

    E assim, a acreditar nas palavras da empresa, pela “dedicação e paixão” que metem naquilo que fazem, mostra-se “fácil de entender o motivo pelos qual as pessoas se deixam seduzir tão facilmente pelos nossos espumantes”. Imaginar-se-ia, por isso, que o próprio Estado e entidades públicas tivessem andado a comprar paletes de bebidas comercializadas pela Caves da Montanha, nem que fosse pela Passagem do Ano ou para acompanhar um repasto de leitão à Bairrada.

    Mas não. Nada disso.

    Depois dos tempos da actriz Soraia Chaves a promover os seus espumantes…

    Nunca a Caves da Montanha vendeu ao Estado, ou às autarquias, à Administração Pública, ou outro qualquer ente público uma garrafa que fosse das 14 marcas que comercializa de espumante; nem uma só garrafa das sete marcas de champagne; nem uma só garrafa das 24 marcas de vinho tinto, branco e rosé; nem uma só garrafa das 10 marcas de licores (incluindo groselha); nem uma só garrafa das quatro marcas de aguardente (incluindo bagaceira); nem uma só garrafa de 11 marcas de spirit (incluindo absinto e rum); nem uma só garrafa de água da marca Voss (originária da Noruega a 3,5 euros meio litro). Nem uma para amostra.

    Porém, a pandemia teve o condão de fazer com que até os empresários do ramo vinícola pudessem experimentar voos nunca conseguidos antes, e sobretudo em negócios que nunca se imaginariam possíveis.

    Por isso, só por uma rebuscada associação, sabendo-se que muitos crimes são cometidos sob efeito do álcool, se poderia imaginar ver em 26 de Novembro de 2020 a Caves da Montanha a vender à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais “material de protecção individual no âmbito do plano de contingência para o novo coronavírus-covid 19 do hospital prisional”. Valor do contrato: 25.500 euros, por ajuste directo.

    … a Caves da Montanha passou a usar narinas e zaragatoas para promover a sua nova linha de negócio.

    Como o contrato não foi reduzido a escrito, ignora-se as quantidades e produtos, sabendo-se apenas que o valor em causa daria para comprar cerca de 1.400 garrafas de Espumante Montanha Real Grande Reserva 2010 Branco Bruto, que no mercado se encontra a 17,9 euros.

    A este primeiro contrato, de material não especificado, seguiu-se outro em Fevereiro do ano passado, desta vez uma venda de 43.500 euros de máscaras FFP2 para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

    Foi também um contrato sem redução a escrito, pelo que se ignora igualmente a quantidade e o preço unitário, assim tendo sido realizado por “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”. Isto apesar da pandemia já então durar há quase um ano.

    Quem vende máscaras – ficou a saber-se durante esta pandemia –, também consegue comercializar todo o “pacote” associado. E assim o terceiro contrato público da Caves da Montanha foi de “testes profissionais nasofaríngeos”, comprados pelo município de Leiria. Valor do contrato: 25.000 euros, que se concretizou em Maio. Não se sabe a quantidade de testes, embora o Portal Base indique que o contrato foi cumprido integralmente um dia após ser assumido pelas partes.

    No quarto contrato, a Caves da Montanha chegou finalmente a um hospital – e dos grandes. O Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – lançou um raro concurso público, tendo a empresa vinícola da Bairrada apresentado o melhor valor face às outras 15 propostas, grande parte das quais apresentada por empresas do sector de produtos hospitalares e de saúde. Por cada um dos 80.000 testes, a Caves da Montanha cobrou 1,885 euros, mesmo assim um valor cerca de 60% acima do actual preço de mercado.

    Se teve ou não pouco lucro neste negócio, ignora-se, mas, em todo o caso, a Caves da Montanha conseguiu que as portas em Lisboa se reabrissem pouco mais tarde. O mesmo centro hospitalar adquiriu à empresa vínicola da Bairrada mais autotestes, por duas vezes já este ano: em 20 de Janeiro, por 57.681 euros, e em 28 de Junho, por 37.700 euros. Em ambos os contratos a compra por ajuste directo foi justificada, mais uma vez, “por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade”.

    Sobre estes contratos, com o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, o PÁGINA UM solicitou esclarecimentos à sua administração, presidida por Daniel Ferro, mas não obteve qualquer resposta.

    Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte não explica as razões da selecção de uma empresa vinícola para a compra de testes de detecção do SARS-CoV-2.

    Não explicando como estabeleceu parcerias com estas entidades públicas para vendas por ajuste directo, a Caves da Montanha diz apenas que a empresa, “fruto da sua experiência e contactos comerciais, garantiu a representação para Portugal de uma das principais marcas internacionais neste sector [materiais como autotestes e máscaras], conseguindo apresentar ao mercado preços mais competitivos, face aos valores apresentados por outras entidades e prazos de entrega mais reduzidos.”

    E também não esclarece se o negócio deste tipo de produtos veio para ficar, sendo certo que o PÁGINA UM teve conhecimento de várias vendas feitas a supermercados ainda ao longo deste ano, quer de máscaras cirúrgicas quer de autotestes.

    A empresa mantém ainda operacional uma loja virtual, disponibilizando álcool gel, autotestes e máscaras. Neste último caso, já bem baratinhas: passe a publicidade, uma caixa de 50 unidades fica agora a 1,99 euros, ou seja, quatro cêntimos cada… Nas farmácias ainda estão ainda a 7,5 euros a caixa de meia centena.


    Leia a primeira parte desta investigação PÁGINA UM – Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

    Leia a segunda parte desta investigação PÁGINA UM – Escape Forte: a extraordinária história dos milionários ajustes directos de uma oficina automóvel

  • Escape Forte: a extraordinária história dos milionários ajustes directos de uma oficina automóvel

    Escape Forte: a extraordinária história dos milionários ajustes directos de uma oficina automóvel

    Uma empresa da freguesia de Milheirós, no concelho da Maia, com uma experiência de 40 anos a reparar automóveis, passou em três tempos a entregar muitos milhões de luvas de nitrilo a hospitais, facturando, em ajustes directos, mais de 1,5 milhões de euros. Tudo parece legal, e sempre justificável com a urgência da pandemia, mas já se mostra anormal a facilidade com que as administrações hospitalares fizeram ajustes directos sem contrato escrito de produtos que, sem justificação económica plausível, quadruplicaram de preço. Esta é a segunda parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE.


    Saberá bem a uma empresa com quatro décadas de existência ver as portas do Estado abrirem-se. Em 2 de Março de 2020, a Escape Forte Lda. – com oficinas numa freguesia da Maia e outra de Vila do Conde – teve o seu primeiro contrato público: a reparação do motor de uma ambulância do Instituto Nacional de Emergência Médica. Custo do serviço: 7.261 euros, acrescidos de 76 cêntimos. Ajuste directo, como se compreenderá numa urgência.

    A partir dessa “encomenda”, a vida começou a correr melhor à gerência da Escape Forte. Não que passassem a vender a instituições públicas mais serviços de reparação, descarbonização e reconstrução de filtros de partículas ou de substituição de catalisadores – o seu forte, ou, se se quiser, o seu core business. Nada disso. A visita por razões mecânicas do INEM foi pontual. Isolada.

    Sede da Escape Forte é uma oficina em Milheirós, no concelho da Maia.

    Mas há mistérios na vida das empresas, que não são fáceis de prever, mesmo em Março de 2020, quando já se estava a anunciar a pandemia por terras portuguesas. Não se sabendo se houve qualquer associação, porque ninguém a admite, certo é que quatro meses após este conserto da ambulância do INEM, a Escape Forte estava a ter a sua segunda experiência com entidades da área da saúde: entrava portões dentro no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, para cumprir um contrato de venda de luvas de nitrilo.

    Era o dia 2 de Julho e o contrato com o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga (CHEDV) – que gere os hospitais de Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis e São João da Madeira – não era pequeno: quase 850 mil luvas de nitrilo no valor de 80.820 euros. Preço por luva: 9,58 cêntimos, mais de quatro vezes o valor unitário no início da pandemia. Ajuste directo sem necessidade de redução a escrito, por alegados “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.

    Esse contrato foi, curiosamente, aprovado pela administração do CHEDV no mesmo dia em que a Escape Forte fez a alteração do seu objecto social, passando a partir daí a ser também uma empresa de “comércio por grosso de produtos farmacêuticos, comércio por grosso de produtos de proteção individual e material hospitalar”, e ainda de “produção e fabrico de produtos de proteção individual e material hospitalar (EPI)”.

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    Nada mau, portanto: no primeiro dia em que passou a poder vender luvas de nitrilo, conseguiu mesmo vender luvas de nitrilo.

    E não parou por aí.

    Pouco mais de um mês depois, em 6 de Agosto, novo contrato. Ajuste directo, claro. Para a mesma entidade pública. Mais substancial: 108.658 euros. O preço reduziu um pouquinho: 8,98 cêntimos por unidade, pelo que, nos meses seguintes, a Escape Forte foi ao Hospital de São Sebastião fazer entregas de 1.210.000 luvas de nitrilo.

    Ganhou-lhe o gosto, o hospital de Santa Maria da Feira, porque ainda nesse ano, em 3 de Novembro, saiu um terceiro contrato com a Escape Forte, que se comprometeu, a troco de 142.400 euros, a entregar esterilizadas mais cerca de 1,5 milhões luvas de nitrilo, a um preço unitário de 9,58 cêntimos. Também novamente por ajuste directo e sem contrato escrito.

    Como não há três sem quatro, em Janeiro de 2021, lá veio a administração do CHEDV concordar com mais um contrato por ajuste directo com a Escape Forte. E bem forte, porque foi por um montante superior a metade da facturação que esta empresa tinha tido em 2019 a prestar serviços com filtros de partículas e catalisadores.

    Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, comprou nove milhões de luvas de nitrilo à Escape Forte.

    Neste quarto contrato, o Hospital de São Sebastião comprou à empresa da Maia, desta vez, luvas num montante total de 557.600 euros, o que significa que foram entregues 5,44 milhões de unidades. O preço de cada luva subiu para os 10,25 cêntimos, mais de cinco vezes superior ao valor imediatamente anterior à pandemia.

    No total, a Escape Forte conseguiu em sete meses, sempre por ajuste directo com a administração do Hospital de São Sebastião, contratos no valor de quase 890 mil euros para a entrega de nove milhões de luvas de nitrilo. Esta unidade hospitalar tem cerca de mil funcionários, incluindo serviços técnicos e administrativos. Em Setembro passado, os três hospitais do CHEDV contava com 2.415 funcionários, dos quais 505 médicos (incluindo internos) e 779 enfermeiros.

    Mas não foi apenas o CHEDV que se abriu ao Escape Forte. O Hospital Distrital da Figueira da Foz pagou 95.950 euros por um número indeterminado de luvas, em contrato por ajuste directo sem redução a escrito feito em Outubro de 2020.

    Em 20 de Janeiro do ano passado, o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) decidiu que a empresa da Maia seria a mais ajustada para ser a receptora de 522.650 euros de dinheiro público em troca de um número indeterminado de luvas, cujo número se desconhecer por também não haver contrato reduzido a escrito nem a administração daquela unidade do SNS os ter desejado revelar.

    Rui Lopes, gerente da Escape Forte.

    Certo é que, apesar da concorrência num mercado com empresas detentora de larga experiência no sector, o sucesso repentino da Escape Forte na venda de luvas de nitrilo levou o seu gerente, Rui Lopes a criar ainda em 2020 outras empresa, a Be Epic Pharma, com um capital social de 5.000 euros, alargando a actividade para outros materiais e produtos descartáveis na área da saúde.

    Esta nova empresa, sem loja física e sem sequer indicar preço no respectivo site, foi constituída em 19 de Agosto daquele ano, e até final de Dezembro encaixou seis contratos com entidades públicas: um com a Administração Regional de Saúde do Algarve (50.600 euros), outro com o município de Albergaria-a-Velha (12.140 euros) e quatro com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (no valor global de 149.900 euros).

    No ano seguinte, em 2021, a Be Epic Pharma apenas fez três contratos públicos. Um com o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (157.000 euros), outro com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (33.800 euros) e um terceiro com o Hospital da Horta (21.726 euros).

    Este ano, a empresa associada à Escape Forte conta já com cinco contratos, sendo dois com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (55.000 euros, no total), um com o Serviço Regional de Protecção Civil da Madeira (46.165 euros), um com o Hospital de Ponta Delgada (13.200 euros) e um com o Centro Hospitalar Barreiro-Montijo (1.350 euros). Apenas estes dois últimos contratos foram firmados por concurso público; todos os outros foram por ajuste directo ou mera consulta prévia.

    Para explicar como conseguiu estabelecer-se tão rapidamente neste mercado, a Escape Forte mostrou-se parca em explicações, através de Rui Pinto, que se assumiu como representante de Rui Lopes, apresentado como “Administrador do Grupo Escape Forte”. A empresa Escape Forte, diga-se, é uma simples sociedade por quota unipessoal, com um capital social de 5.000 euros. Tem assim gerentes, pois só há administradores em sociedades anónimas. Além disso, não existe uma holding nem grupo económico.

    Aspecto de uma das oficinas da Escape Forte.

    Independentemente desta frivolidade, sobre as questões colocadas pelo PÁGINA UM sobre como se iniciaram e frutificaram os negócios das luvas de nitrilo, que contactos tinham ou estabeleceram com os hospitais (sobretudo o CHEDV), como adquiriam os produtos que vendiam e os preços praticados, o representante da empresa diz que, além dos dados constantes no Portal Base, “toda e qualquer informação está protegida pelo sigilo contratual previsto no Código dos Contratos Públicos, entre a entidade adjudicante e o adjudicatário, estando a Escape Forte e os seus profissionais, vinculados ao mesmo.”

    Em todo o caso, Rui Pinto adianta que as mercadorias vendidas pela Escape Forte provieram de “algumas operações de importação e fornecimento de material de combate à pandemia, quer a entidades públicas, quer privadas”. E diz ainda que a empresa cumpriu a legislação em vigor, designadamente o “Despacho 4699/2020 de 18 de abril, que limitava as margens de lucro nos produtos necessários ao combate à pandemia”, além de ter pautado a sua conduta pelo “bom senso comercial e pessoal.”

    Sendo certo que a Escape Forte não teve um desempenho que se aproxime da Raclac – também alvo da investigação do PÁGINA UM –, uma vez que não é produtora de luvas de nitrilo (as margens operacionais são assim mais baixas), não se pode dizer que a empresa de filtros de partículas da Maia se tenha saído mal nos últimos dois anos. Face a 2019 – antes da pandemia –, os nove empregados (com um salário de mil euros) conseguiram uma facturação de 901 mil euros e um lucro de 31 mil euros.

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    Com a pandemia a “desviar” a actividade da empresa para a venda de luvas de nitrilo, a facturação da Escape Forte em 2020 ultrapassou os 1,7 milhões de euros e o lucro subiu para os 82 mil euros. E isto com apenas dois empregados, deduzindo-se assim que a empresa tenha suspendido grande parte da sua actividade normal nas oficinas por via dos lockdowns.

    No ano passado, o volume de negócios ainda aumentou mais, para cima dos 2,25 milhões de euros, com os lucros a aproximarem-se dos 147 mil euros. O número de empregados aumentou para os 13, significando assim que a Escape Forte retomou também a sua actividade original, mantendo forte a venda de luvas de nitrilo.

    A estes resultados da Escape Forte em 2021 devem acrescentar-se os da Be Epic Pharma. Nesse ano, a novel empresa registou uma facturação de cerca de 1,76 milhões de euros e um lucro de 82 mil euros, fruto do trabalho de apenas duas pessoas.

    Mas, enfim, porque motivo foi a Escape Forte, que nunca tivera qualquer experiência com luvas de nitrilo ou equipamentos de protecção individual, escolhida por hospitais e outros entes públicos?

    O PÁGINA UM perguntou a três dos hospitais que lhes fizeram compras: Hospital da Figueira da Foz, Centro Hospitalar do Algarve e o CHEDV, que foi o melhor cliente da Escape Forte.

    Anúncio da Escape Forte no Facebook: “vai ficar tudo bem!” Para a empresa de reparação automóvel, ficou…

    Ilda Geraldo, do gabinete de relações públicas do CHEDV, diz que “tivemos conhecimento da disponibilidade de oferta destes produtos por parte da empresa [Escape Forte] através de comunicações que chegaram ao conhecimento do Serviço de Compras da instituição.

    Aquela responsável alega que, “quando se iniciou a relação” com a Escape Forte, “o mercado era altamente deficitário em termos de resposta face às necessidades de aquisição, acrescentando que “a credibilidade da empresa foi aferida através da validação das luvas a fornecer pela Comissão Técnica da instituição, constituída por profissionais de saúde habilitados para o efeito.”

    E não se diga que o CHEDV esteja arrependido. “Numa altura em que era frequente o não cumprimento dos prazos de entrega de material, esta foi uma das empresas mais cumpridoras, deslocando-se ao hospital sempre que necessário”, refere Ilda Geraldo, informando que “não foi registada qualquer queixa da qualidade das luvas por parte dos serviços utilizadores.” Caso a Escape Forte “decida concorrer e cumprir o estabelecido no Código dos Contratos Públicos para o tipo de procedimentos a desenvolver, nomeadamente, concursos públicos”, o CHEDV “poderá vir a adquirir[-lhe] mais luvas ou outros materiais”, adianta.

    Escape Forte: das feiras de reparação automóvel até à venda de luvas de nitrilo., bastou uma pandemia temperada por ajustes directos.

    Mais a sul, o gabinete de comunicação do CHUA disse apenas ao PÁGINA UM que as aquisições de louvas de nitrilo à Escape Forte foram feitas “como último recurso, porquanto, devido à pandemia”, uma outra empresa que tinha ganhado uma adjudicação “no âmbito de um concurso realizado ao abrigo do acordo quadro, não conseguiu garantir o fornecimento”.

    E acrescenta ainda que “na falta de fornecimento por parte dessa empresa, não se encontrou mais nenhuma outra no mercado [a não ser a Escape Forte] que comercializasse este material e que garantisse as entregas atempadamente.”

    Tudo, portanto, perfeito… E normal, cada vez mais normal, em Portugal.


    Leia a primeira parte desta investigação PÁGINA UM: Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

  • Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

    Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos

    Uma empresa de Vila Nova de Famalicão prometeu, patrioticamente, no início da pandemia, não exportar luvas de nitrilo, para assim satisfazer as necessidades do mercado nacional. Poucos meses depois, tanto esta como outras empresas deixavam concursos públicos vazios, mas estavam sempre dispostas a vender por ajuste directo, inflacionando os preços em mais de 400%, mesmo com a procura a subir apenas pouco mais de 10%. O Estado nada interferiu nesta negociata que fez com que a Raclac lucrasse 14 milhões de euros em 2020, um montante 42 vezes superior ao alcançado no ano anterior. Esta é a primeira parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE.


    “Nesta altura temos obrigação de proteger os nossos. O negócio é secundário e há um mês e meio que parámos a exportação”. Estas foram, curiosamente, no dia 1 de Abril de 2020, as palavras empenhadas em prol de um desígnio nacional do CEO da Raclac, Pedro Miguel Costa.

    No início da pandemia, a empresa de Vila Nova de Famalicão, produtora de descartáveis hospitalares, tinha acabado de concluir uma unidade de produção de luvas de nitrilo, com um apoio comunitário do FEDER da ordem dos 5,5 milhões de euros, contando também com a participação dos investimentos de uma private equity, a Vallis Capital Partners, que em 2017 comprou metade da Raclac. Esta empresa de gestão de activos é presidida por Eduardo Rocha, ex-administrador financeiro da Mota-Engil.

    Para suprir as necessidades nacionais em luvas de nitrilo – de uso único em actos médicos e de enfermagem –, a empresa famalicense ter-se-á se comprometido, através de um contrato com a central de compras do Sistema Nacional de Saúde, a fornecer exclusivamente para o mercado nacional. Não exportaria, prometeu o CEO da empresa. E Portugal não teria necessidade de importar tantas luvas de nitrilo da China.

    Foi um acto patriótico? Não tanto assim.

    Vejamos…

    Antes da pandemia, a Raclac, tal como outras empresas, já vendia luvas de nitrilo aos hospitais portugueses. Engalfinhavam-se em concursos públicos para apresentar a melhor oferta. Por exemplo, em Maio de 2017, a empresa de Famalicão venceu oito concorrentes para um contrato de quase 10 milhões de luvas de nitrilo com o Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Aqui a Raclac ganhou um contrato de 206.468 euros, pedindo 2,094 cêntimos por luva.

    Mesmo nas primeiras semanas da pandemia, a Raclac (tal como outras empresas do género) continuou a praticar preços em linha com o habitual, mesmo quando havia urgência. Por exemplo, num contrato já por ajuste directo com a Direcção-Geral da Saúde em 18 de Março de 2020, no valor global de 1.957.896 euros, a Raclac não especulou. Entre máscaras, fatos de protecção integral e toucas, vendeu um milhão de luvas de vinilo por apenas 1,9 cêntimos cada. Recebeu assim, pelas luvas, apenas 19.000 euros.

    Raclac, criada em 2007, operacionalizou uma fábrica automatizada de luvas de nitrilo em Julho de 2020, obtendo financiamento comunitário de 5,5 milhões de euros.

    Mas tudo viria a mudar com o decurso dos meses do primeiro ano da pandemia. Por um lado, a Raclac começou a “coleccionar” contratos por ajuste directo, justificados pela emergência da covid-19.

    Não havendo na maior parte dos casos a redução a escrito, conforme consulta no Portal Base, o preço unitário e a quantidade ficou “à discrição”. Houve contratos de mais de 850 mil euros em luvas de nitrilo que nem sequer foram reduzidos a escrito, como sucedeu num ajuste directo em Maio de 2021 feito pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

    Porém, em alguns casos – vá-se lá saber o motivo –, o preço unitário surge em contratos por ajuste directo. E aí fica-se com a verdadeira noção da brutal dimensão da especulação e, eventualmente, de outros fenómenos menos transparentes.

    Por exemplo, em 3 de Julho de 2020, a Raclac conseguiu vender 185.350 euros de luvas de nitrilo por ajuste directo ao Centro Hospitalar de Lisboa Norte (que integra o Hospital de Santa Maria). No início da pandemia, esse montante daria para adquirir quase 9,8 milhões de luvas, considerando o preço unitário anterior de 1,9 cêntimos.

    Porém, os “tempos” já eram outros: o da ganância. E a Raclac, que em Abril desse ano garantia que “o negócio era secundário”, quase sextuplicou o preço, aplicando um preço unitário de 11 cêntimos. Deste modo, a empresa famalicense entregou apenas um pouco menos de 1,7 milhões de luvas.

    Nos restantes contratos detectados pelo PÁGINA UM nos anos de 2020 e 2021, e não apenas os referentes à Raclac, os preços estiveram quase sempre entre os 11 e os 12 cêntimos por luva.

    Pedro Miguel Costa, CEO da Raclac, prometeu “proteger os nossos”. E depois aumentou em mais de 400% o preço das luvas de nitrilo.

    Poder-se-ia pensar que a procura, decorrente da pandemia, justificasse esta escalada de preços nas luvas, mas analisando as compras e consumos do Centro Hospitalar de São João, tal não se verifica. Com efeito, empregando mais de 6.500 funcionários, dos quais cerca de mil médicos e 2.500 enfermeiros, este centro hospitalar do Porto – que foi um dos principais clientes da Raclac – tinha consumido 18.073.322 luvas de nitrilo em 2019, aumentando para 19.110.645 de unidades em 2020 e para 19.448.235 de unidades em 2021.

    Se considerarmos o biénio 2018-2019, o crescimento de consumo de luvas foi de 11% nos dois primeiros anos da pandemia, mas o preço unitário aumentou mais de 400%! Não há lei da Economia que explique tamanho desfasamento. Excepto se se acrescentar que não houve qualquer controlo de custos, nem regulação de preços nem transparência nos contratos. Pediu-se muita coisa aos portugueses, muitas empresas foram obrigadas a encerrar actividade para o bem comum, mas enquanto isso houve quem lucrasse, e muito, sem controlo.

    Fonte oficial do CHSJ disse ao PÁGINA UM que foi a “instabilidade sistemática no fornecimento de bens” que justificou a opção pelos ajustes directos na compra de luvas de nitrilo, embora garanta que, “de forma permanente e sistemática”, houve sempre “consulta ao mercado tendo sempre procedido à adjudicação com base no menor preço e/ou na capacidade de entrega imediata, dada a urgência imperiosa deste bem para proteção dos profissionais de saúde e dos doentes com covid 19.” Uma situação incompreensível, tendo em consideração que a unidade fabril da Raclac garantia uma produção de 765 milhões de luvas por ano, segundo dados da própria empresa, divulgados em 2018.

    Hospital de São João aumentou consumo de luvas de nitrilo em 11%, mas preços mais que quintuplicaram.

    No entanto, apesar de assegurar que “este trabalho” de consulta prévia se encontra “profundamente documentado no Serviço de Aprovisionamento, de forma transparente – quem foi contactado, que preços apresentava, qual a quantidade que possuía para entrega” –, o CHSJ não satisfez ainda um pedido do PÁGINA UM para facultar essa documentação. De igual modo, o CHSJ não indicou os montantes globais gastos em luvas de nitrilo entre 2017 e 2022, conforme pedido pelo PÁGINA UM, para se calcular os preços unitários em cada ano.

    O CHSJ referiu ainda que a aquisição de luvas de nitrilo ficou bastante condicionada ao longo da pandemia, porque sempre que se tentou lançar concursos públicos, estes acabavam vazios, como sucedeu em Dezembro de 2020. Actualmente, os preços baixaram com o fim, mais ou menos oficial, da pandemia, para valores próximos dos 2 cêntimos por unidade.

    Não sendo o único caso de enriquecimento repentino e absurdo à conta da pandemia, os benefícios da Raclac com os negócios de descartáveis hospitalares é um paradigma do descontrolo na gestão dos dinheiros públicos na área da Saúde desde 2020.

    Antes da pandemia, a empresa nortenha tinha uma situação razoável para pequena e média empresa (PME) em fase de crescimento sustentado. Em 2017 facturou, segundo a imprensa local, cerca de 10,5 milhões de euros. Dois anos mais tarde, em vésperas da pandemia, a empresa terminou o ano (2019) com receitas da ordem dos 12,5 milhões de euros e um lucro de 330.668 euros. Não era mau, embora sem deslumbrar em demasia.

    Pandemia, mais ajustes directos, mais muitas luvas entregues a torto e a direito, e a preços exorbitantes, e 2020 transformou-se num jackpot para a Raclac. A facturação subiu para os 51,8 milhões de euros e os lucros… bem, os lucros tornaram-se elásticos e foram catapultados para os 14.047.527 euros.

    Contas feitas, os lucros do ano de 2020 da Raclac valeram mais de 42 vezes os lucros do ano anterior, muito por conta das luvas de nitrilo e dos preços especulativos do material descartável de uso hospitalar.

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    Perante tão lucrativa avalanche destes resultados, parecerá quase irrelevante referir que, por força do desempenho industrial e comercial, os quatro administradores da Raclac fizeram subir os seus salários: em 2019 tinha recebido um total de 178 mil euros, passando para os 268 mil euros em 2020. No ano passado aumentaram os seus salários para 351 mil euros.

    Em todo o caso, e como o mercado se foi tornando ainda mais concorrencial – apesar dos ajustes directos terem feito “escola” ao longo da pandemia –, com a entrada de mais empresas a comercializarem estes produtos, a Raclac não repetiu em 2021 o “euromilhões” de 2020. O relatório e contas do ano passado desta empresa, consultado pelo PÁGINA UM, revela uma facturação já só de 17 milhões de euros.

    E 2021 até poderia ter ficado no vermelho para a Raclac, porque os custos operacionais, as depreciações e os juros “sugaram” todas as receitas e muito mais. Mas uma (criativa mas legal) operação contabilística e fiscal permitiu transformar um prejuízo de quase 140 mil euros num resultado positivo de 692 mil euros, por força do recebimento de impostos diferidos no valor de 830 mil euros.

    A Raclac refuta qualquer acusação de ter praticado preços especulativos, relembrando que, em Abril de 2020, após acusações no programa Sexta à 9 (RTP), solicitaram uma auditoria à ASAE, “não resultando desse processo a identificação de qualquer política especulativa ou não conformidade com o ordenamento em vigor durante a pandemia em termos de pricing e margens”, segundo a empresa. E informam ainda que, por causa desta reportagem, apresentaram “queixa contra terceiros junto do Ministério Público”.

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    A empresa justifica o aumento do preço das luvas por não ter sido possível automatizar a produção pela urgência em dar resposta à procura, e daí ter sido necessário contratar “mais de 200 trabalhadores temporários”, além da “escalada dos preços das matérias-primas e dos produtos” para o fabrico. Pedro Brandão, administrador financeiro desta empresa, diz que “vimos crescer [os preços] em alguns casos” das matérias-primas e produtos “quatro ou cinco vezes o seu valor habitual”.

    Convém, no entanto, referir que essas justificações não encontram sustentação nas contas da empresa ao nível das receitas e dos custos. Com efeito, sendo certo que entre 2019 e 2020, a Raclac quase duplicou os custos com pessoal (passando de 797 mil para 1,5 milhões de euros) e os custos de matérias-primas e produtos subiram de 10,5 milhões para 24,4 milhões de euros, a variação das receitas mais do que encaixaram tudo isto. Em vendas, o ano de 2019 tinha facturado 12,5 milhões de euros; e um ano depois atingiu 51,8 milhões de euros, ou seja, uma variação de 39,3 milhões de euros. A margem operacional da empresa melhorou extraordinariamente, de cerca de 6% em 2019 para 37% em 2020. Isto é, sextuplicou. E por uma razão simples: vendeu mais mas vendeu muitíssimo mais caro.

    Entretanto, o Ministério da Saúde não manifestou disponibilidade para comentar o modus operandi da aquisição de material descartável pelas unidades do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia.

  • Contratos da Pfizer: um nó (cada vez mais) górdio para a Comissão Europeia

    Contratos da Pfizer: um nó (cada vez mais) górdio para a Comissão Europeia

    Depois da Provedora de Justiça Europeia e do Tribunal de Contas Europeu, foi a vez da Procuradoria Europeia se pôr em campo para investigar a compra das vacinas contra a covid-19 pela Comissão Europeia. Mensagens e telefonemas feitos por telemóvel com o presidente-executivo da Pfizer colocaram Ursula von der Leyen no centro da polémica, que recusa divulgar as SMS trocadas com Albert Bourla. Não é a primeira vez que a alemã se vê no centro de uma polémica envolvendo um contrato milionário. Quando era ministra da Defesa da Alemanha também surgiram suspeitas, mas von der Leyen seria ilibada de responsabilidades em Junho de 2020.


    Here I go again! Aqui vou eu outra vez!. Deve ter sido isto, ou coisa parecida, que a presidente da Comissão Europeia pensou quando, na semana passada, a Procuradoria Europeia anunciou que está a investigar os contratos secretos celebrados com a farmacêutica Pfizer.

    A investigação em curso anunciada por aquela instituição europeia não nomeia as pessoas cujas ações serão escrutinadas. Contudo, o nome de Ursula von Der Leyen não deve escapar; tem sido ela a aparecer no centro da polémica, por dúvidas sobre se esteve directamente envolvida nas negociações de um contrato multimilionário com a Pfizer. Ao todo, sabe-se, a Comissão Europeia comprou 4,6 mil milhões de doses de vacinas contras a covid-19, gastando já 71 mil milhões de euros.

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    O cerco em torno da Comissão Europeia começa agora a apertar para apurar como foram negociados os contratos, e porque são os países-membro da Europa obrigados a comprar vacinas que cobrem várias vezes as necessidades.

    Mas a polémica em torno da compra das vacinas à Pfizer já vem de longe, com vários desenvolvimentos de relevo.

    Em Abril de 2021, a presidente da Comissão Europeia afirmou, numa entrevista ao New York Times, que trocou mensagens de texto (SMS) e telefonemas com o presidente-executivo da Pfizer, Albert Bourla, durante um mês, numa altura em que estava a ser negociado um grande contrato com a farmacêutica.

    O contrato efetuado naquela altura tornou a União Europeia o maior cliente da Pfizer até então. Em causa estava a compra de 1,8 mil milhões de doses da nova vacina desenvolvida pela Pfizer em conjunto com a alemã BioNTech.

    O jornalista Alexander Fanta, do jornal digital alemão Netzpolitik.org, pediu o acesso às SMS ao abrigo da lei de acesso a informação. Mas a Comissão Europeia indicou que já não tinha as mensagens.

    Emily O’Reilly, provedora da Justiça Europeia

    Contudo, em Janeiro deste ano, a provedora de Justiça da União Europeia (UE), Emily O’Reilly, acusou a Comissão Europeia de má administração por falhar em entregar as mensagens de texto trocadas entre Ursula Von der Leyen e o CEO da Pfizer. E exigiu à Comissão que procurasse melhor as SMS. Em todo o caso, o inquérito foi encerrado em Julho passado, sem a Comissão ter entregado as mensagens, não apagando assim as suspeitas, pelo contrário.

    Num duro comunicado, a Provedora de Justiça Europeia considerou que o inquérito “sobre a forma como a Comissão (Europeia) tratou um pedido de mensagens de texto entre a sua presidente e o CEO de uma empresa farmacêutica é um alerta para todas as instituições da União Europeia no sentido de garantir a responsabilização numa era de mensagens instantâneas”.

    Salientou que “um ano após o pedido inicial de um jornalista, a Comissão (Europeia) ainda não esclareceu se existem mensagens relatadas que dizem respeito a grandes acordos de aquisição de vacinas e se o público tem direito a vê-las”.

    O’Reilly foi bastante assertiva sobre a actuação da Comissão Europeia, censurando o mau exemplo que foi dado ao longo do processo. “A resposta da Comissão às minhas perguntas não esclareceu a questão básica de saber se as mensagens de texto existem, nem clarificou como a Comissão responderia a um pedido específico de outras mensagens de texto”, disse a provedora, citada no mesmo comunicado.

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    E aproveitou para dar mais raspanetes: “O tratamento deste pedido de acesso a documentos deixa a lamentável impressão de uma instituição da União Europeia que não está disponível em assuntos de interesse público significativo”.

    Outro desenvolvimento importante no caso da compra das vacinas à Pfizer ocorreu no mês passado. O Tribunal de Contas Europeu publicou um relatório onde afirmou que a Comissão Europeia também recusou divulgar detalhes do papel de Ursula von der Leyen nas negociações com a Pfizer.

    O Tribunal de Contas descobriu que o contrato gigantesco com a Pfizer, assinado em Maio de 2021, foi feito à revelia dos procedimentos habituais. Para os restantes contratos de compras de vacinas com as outras farmacêuticas, o procedimento foi seguido.

    Segundo informação oficial, é a Comissão que, “a par de uma equipa de negociação conjunta, conduz as negociações com os fornecedores de vacinas”, acrescentando que “os membros da equipa de negociação conjunta — em representação de sete Estados-Membros — são nomeados por um Comité Diretor”. É este Comité que “discute e analisa todos os aspetos dos contratos ao abrigo do acordo prévio de aquisição (APA) antes da assinatura”. E todos os Estados-Membros da União Europeia “estão representados neste comité, que se reúne semanalmente”. 

    Tony Murphy, presidente do Tribunal de Contas Europeu

    Estranhamente, no caso do grande contrato feito com a Pfizer, foi a própria Ursula von der Leyen que levou a cabo as negociações iniciais, em Março de 2021. No mês seguinte, ela levou os resultados das negociações ao Conselho Director. Uma reunião planeada para 2022, que iria reunir assessores científicos para debater a estratégia de vacinas da União Europeia, nunca aconteceu, segundo o relatório do Tribunal de Contas.

    Também contrariando os procedimentos habituais, a Comissão Europeia recusou fornecer documentos e informações sobre as negociações com a Pfizer, como actas de reuniões e condições negociadas. Um auditor que ajudou a liderar a investigação admitiu ao jornal Politico que a recusa da Comissão em divulgar informações era altamente incomum. “Isso quase nunca acontece. Não é uma situação que normalmente enfrentamos no tribunal”, disse o auditor, que pediu anonimato.

    Há mais de um ano que eurodeputados, instituições europeias e membros da sociedade civil pedem o acesso aos contratos secretos negociados com a Pfizer.

    Na semana passada, as suspeitas em torno dos contratos com esta farmacêutica alemã – que tem ultrapassado a Moderna, a Janssen e a AstraZeneca no chorudo negócio das vacinas contra a covid-19 – aumentaram com a entrada em cena da Procuradoria Europeia. Na sequência deste anúncio, a presidente da Comissão Especial sobre a pandemia de covid-19 no Parlamento Europeu, Kathleen van Brempt, surpreendeu os seus colegas com declarações no Twitter, questionando, pela primeira vez, os contratos feitos com a Pfizer e o volume de vacinas compradas, bem como o montante pago pela União Europeia.

    Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia

    Apesar disso, a farmacêutica norte-americana nega qualquer irregularidade nas negociações. No passado dia 10, a presidente da International Development Markets da Pfizer, Janine Small, afirmou que o contrato para a venda de 1,8 mil milhões de doses não foi acordado através de SMS. “Posso dizer categoricamente que não foi o caso”, afirmou este alto quadro da farmacêutica norte-americana numa inquirição no Parlamento Europeu da Comissão Especial sobre a pandemia de covid-19, citada pela Reuters. Recorde-se que Janine Small admitiu também, nesse dia, que não tinham sido testados, nos ensaios clínicos antes da aprovação das vacinas, qualquer alegado efeito de redução da transmissibilidade nos vacinados, algo que esteve na base da introdução do certificado digital.

    Certo é que, mais do que a Comissão Europeia, a própria presidente da instituição tem sido o rosto das políticas drásticas que a União Europeia adoptou na gestão da pandemia, incluindo a maior operação de segregação registada desde a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, o certificado digital serviu como “arma” para pressionar os europeus a tomarem várias doses de vacinas contra a covid-19.

    Ursula von der Leyen foi uma das muitas responsáveis da Comissão Europeia, sendo acompanhada pelos líderes dos diferentes países europeus, a falar em “pandemia de não-vacinados”, instigando as pessoas a vacinarem-se. Como se foi confirmando ao longo de 2021, e sobretudo depois do surgimento da variante Ómicron, a transmissão da infecção ocorre tanto entre vacinados como não-vacinados. Mesmo assim, a Comissão Europeia prolongou a validade do certificado digital até Junho de 2023, embora actualmente o seu uso esteja virtualmente suspenso.

    Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer

    Não é a primeira vez que Ursula von de Leyen surge numa polémica de contratos milionários opacos envolvendo mensagens e chamadas por telemóvel. A actual presidente da Comissão Europeia foi investigada quando era ministra da Defesa da Alemanha, entre 2013 e 2019. Ursula von der Leyen acabou por ser ilibada no chamado “Caso do Consultor”, em Junho de 2020, mas também aqui houve telefones à mistura.

    Os partidos então no Governo na Alemanha acabaram por absolver a agora presidente da Comissão Europeia no escândalo sobre a contratação milionária de consultores externos, sem a devida fiscalização e escrutínio. A absolvição surgiu num relatório que resultou de uma Comissão Especial parlamentar que investigou o caso. Em todo o caso, Ursula von der Leyen admitiu, naquela Comissão, que “erros foram cometidos” na contratação de consultores, segundo o Politico.

    As principais críticas não se dirigiram à contratação de consultadoria externa, mas ao método. Durante a investigação, Ursula von der Leyen foi criticada porque os dados de dois telemóveis oficiais, que utilizou durante o tempo em que foi ministra da Defesa, foram apagados. Esses dados poderiam ser prova na investigação.

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    Sobre o assunto, von der Leyen disse, numa entrevista ao Spiegel que terá entregado os dois telemóveis e acrescentou que não foi responsável por qualquer acto de eliminação de dados. “Terá de perguntar o que lhes aconteceu. Os equipamentos pertencem ao Ministério e tinham de ser devolvidos”, afirmou.

    Mas a procissão para esclarecer as dúvidas em torno dos contratos assinados com a Pfizer ainda estará agora no adro, somando-se ainda a gestão política da Comissão von der Leyen na guerra da Ucrânia e o método para suprir a crise energética e a subida vertiginosa da inflação no espaço comunitário. Do sucesso desta estratégia depende o seu futuro político, até porque tem colocado “todas as fichas” na derrota da Rússia.

    No seu recente discurso anual, no dia 14 de setembro, Ursula von der Leyen frisou que a Europa tem estado do lado da Ucrânia desde o primeiro dia “com armas”, “com fundos” e com “as sanções mais duras [aplicadas à Rússia] que o Mundo já viu”. Disse que a Europa ficará do lado da Ucrânia “o tempo que for preciso”, sinalizando um Inverno duro para os europeus.