“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”- assim escreveu Fernando Pessoa. Cerca de nove décadas depois, Inácio Esperança, presidente da Câmara Municipal de Vila Viçosa, diz que viu “a estátua de Florbela Espanca no Parque dos Poetas”, em Oeiras, e decidiu falar com Isaltino Morais para “ter uma igual” na vila alentejana onde a poetisa nasceu em 1894.
E deste sonho, “nasceu uma permuta” e um acordo que, segundo declarações à imprensa de Inácio Esperança, “passou pela cedência de blocos de mármore alentejano à Câmara de Oeiras”, e a entrega na vila alentejana de uma réplica da estátua do Parque dos Poetas.
Inácio Esperança ‘sonhou’ e o escultor Francisco Simões ganhou mais 100 mil euros pagos pela autarquia de Oeiras, i.e., pelos contribuintes..
Mas a história não termina aqui. Apesar da inauguração dessa réplica ter ocorrido no final de Março deste ano, na passada quinta-feira, 17 de Julho, a autarquia de Oeiras celebrou um contrato de 100 mil euros para pagar ao escultor Francisco Simões, autor da escultura original inaugurada em 2003.
Apesar de a escultura estar ainda abrangida por direitos de autor, por norma o escultor deveria receber entre 5% e 10% do preço de venda, ou seja, do contrato inicial com a autarquia de Oeiras. Em casos de artistas consagrados, ou quando o escultor tem forte controlo sobre a produção, esse valor pode ir até aos 15% ou 20%.
Original da estátua de Florbela Espanca, no Parque dos Poetas, em Oeiras. / Foto: Vítor Oliveira/ D.R.
Ora, os 100 mil euros pagos, ainda mais tendo a autarquia de Vila Viçosa cedido os materiais (ou seja, o mármore) será bastante exagerado.
No contrato assinado na semana passado não é referido sequer o destino da réplica nem que a obra já estava executada há mais de três meses e meio, o que aliás inviabilizaria a adjudicação. No ajuste directo celebrado entre o vice-presidente de Oeiras, Francisco Rocha Gonçalves, e Francisco Simões apenas é referido ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”..
Assim, ficando protegidos os direitos do autor da estátua original, ficam dúvidas se foram protegidos os direitos dos contribuintes à boa gestão dos dinheiros públicos.
O escultor Francisco Simões tem tido na Câmara de Oeiras um ‘patrono’ de luxo. Pelo menos desde 2009, o escultor ganhou cinco contratos por ajuste directo com aquele município, mas isso nem sequer incluiu ainda as 20 esculturas que fez para o Parque dos Poetas. Certo é que só com a autarquia de Oeiras, facturou 1,3 milhões de euros nos últimos 16 anos.
Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras. / Foto: D.R.
Aliás, foi precisamente com Oeiras que o escultor ganhou o seu maior ajuste directo público. Foi em 2012, no montante de 850 mil euros relativo à “Aquisição de um conjunto escultórico em homenagem ao poeta Luis Vaz de Camões e a sua obra Os Lusíadas”.
No global, em 16 anos – período em que estão disponíveis contratos com o escultor no Portugal Base – Francisco Simões ganhou mais 450 mil euros em ajustes directos com outros seis municípios: Vila Franca de Xira (três contratos), Covilhã (dois), Lisboa, Grândola, Fundão e Boticas. Ou seja, Oeiras representou 75% da facturação do escultor com contratos públicos.
O final do mandato de Mário Centeno à frente do Banco de Portugal está a ser marcado por polémicas que incluem duas nomeações de última hora e uma despesa na construção de um ‘elefante branco’. Mas Centeno não se ficou por aqui. Na hora de saída, ainda deu uma prenda milionária.
A ‘bafejada’ pela sorte foi a sociedade de advogados Cuatrecasas, que ganhou mais um ajuste directo do Banco de Portugal, no montante de 861 mil euros, com IVA incluído. O contrato foi assinado no passado dia 17 de Julho e tem como objecto a “aquisição de serviços de assessoria jurídica e de patrocínio judiciário”, com um prazo de execução de três anos.
Mário Centeno. / Foto: D.R.
O Banco de Portugal justifica o ajuste directo com o argumento de que não existe “concorrência por motivos técnicos”. Ou seja, a entidade liderada por Centeno diz assim que mais nenhuma outra sociedade de advogados a operar em Portugal tem capacidade para ser contratada pelo Banco de Portugal para prestar aqueles serviços de assessoria jurídica e patrocínio judiciário.
E que serviços são esses? Não se sabe porque, como já é habitual, o caderno de encargos deste ajuste directo – onde estão os detalhes do procedimento – não está disponível na plataforma de registo dos contratos públicos, como teria de estar.
Acresce que este contrato foi celebrado quando ainda está a meio o anterior ajuste directo celebrado com a Cuatrecasas. Isto porque a 30 de Outubro de 2023, o Banco de Portugal assinou um contrato no montante de 2,8 milhões de euros com a mesma sociedade de advogados, com um período de execução de três anos, que só termina no final de Outubro de 2026.
Sede da Cuatrecasas, em Lisboa. / Foto: D.R.
Também neste caso, o objecto do contrato foi a “aquisição de serviços de assessoria jurídica e de patrocínio judiciário”. A justificação usada pelo Banco de Portugal para não fazer um concurso público foi o mesmo argumento, de que mais nenhuma outra sociedade de advogados em todo o país tem capacidade para prestar aqueles serviços.
De resto, são habituais os contratos por ajuste directo entre o Banco de Portugal e sociedades de advogados. No caso da Cuatrecasas, todos os contratos que ganhou junto do Banco de Portugal foi por ajuste directo.
Ao todo, a sociedade de advogados assinou 10 contratos na última década com aquela entidade, facturando 12,7 milhões de euros. Uma espécie de ‘avença’ milionária que já tornou tradição e que se mantém agora por mais três anos. Isto se não surgir novo ajuste directo entretanto.
Foto: D.R.
Mas a Cuatrecasas não é a única sociedade de advogados que tem beneficiado deste tipo de ajustes directos junto do Banco de Portugal. Tal como o PÁGINA UM noticiou, em 27 de Outubro de 2023, o Banco de Portugal fez um ajuste directo com a Vieira de Almeida, considerando, sem se preocupar em fundamentar, que era a única capaz de a assessorar no dossier Novo Banco. Contudo, três dias depois, passou-lhe um atestado de incompetência ao entregar um outro ajuste directo à Cuatrecasas, para assessoria ao dossier BANIF.
Esta não é a única situação a marcar os últimos dias de Centeno nos comandos do Banco de Portugal. O antigo ministro das Finanças fez duas nomeações controversas. Assim, Centeno nomeou para um cargo de direcção no departamento de estatística do Banco de Portugal a mulher de um seu ex-secretário de Estado, Ricardo Mourinho Félix, segundo noticiou o Eco. Também reconduziu o “amigo economista” Álvaro Novo no cargo de director do gabinete de apoio ao governador, apesar de estar a terminar o seu mandato como governador (que terminou a 20 de Julho).
Além destas nomeações controversas, continua a polémica em torno do gigantesco custo do edifício que vai albergar a nova sede do Banco de Portugal. O ‘elefante branco’ deixado por Centeno representa uma despesa de centenas de milhões de euros para deslocar a sede do Banco de Portugal para os antigos terrenos da Feira Popular, em Entrecampos, Lisboa, os quais pertencem agora à chinesa Fidelidade.
Foto: D.R.
O Banco assinou um contrato-promessa de compra de edifícios para nova sede dando um sinal de 57,5 milhões de euros, sendo que o custo total pode ascender a 280 milhões de euros, segundo o Observador. Além disso, o contrato tem contingências de “alto risco”, que Centeno desvalorizou.
A somar, há ainda custos de milhões que ficam a cargo dos contribuintes com o aluguer de escritórios no antigo edifício Marconi, junto à futura sede do Banco de Portugal. Foi para estes escritórios que foram transferidos os funcionários do Banco que trabalhavam no Edifício Portugal, na Almirante Reis, que necessita de obras de conservação da fachada. (Sobre este tema, e gastos extravagantes do Banco de Portugal, o PÁGINA UM tem escrito várias notícias que pode ler AQUI, AQUI, AQUI, AQUI, E AQUI.)
A ‘queimar os últimos cartuchos’, Centeno termina assim o seu mandato ‘à grande e à francesa’, deixando para o novo governador um ‘elefante branco’ a construir, nomeações já feitas e, pelo menos, mais um ajuste directo entregue de mão beijada a uma poderosa sociedade de advogados.
Entregues, ficaram também três milhões de euros, a que acresce IVA, à consultora Ernst & Young, que foram adjudicados através de dois contratos assinados a 25 de Junho e a 2 de Julho, ao abrigo de um “acordo-quadro”.
O Banco de Portugal arrendou escritórios no antigo Edifício Marconi, situado junto aos terrenos onde se vai situar a futura sede do Banco de Portugal. Foi para este edifício que transferiu funcionários que se encontravam no Edifício Portugal, na Almirante Reis. Os custos com esta mudança temporária são da ordem dos milhões de euros, entre obras, rendas e compra de mobiliário e assessoria. / Foto: PÁGINA UM
Nada de surpreendente numa entidade cujo responsável máximo é pago a peso de ouro, literalmente, com uma remuneração anual que supera em cerca de 50 mil euros a do presidente do banco central mais poderoso do mundo, a Reserva Federal dos Estados Unidos.
Na quinta-feira, após a reunião do Conselho de Ministros, o Governo vai anunciar o nome escolhido para liderar o Banco de Portugal no próximo mandato. Seja Centeno ou outro, pelo sim pelo não, o ainda governador já garantiu que há pelouros entregues. E um ajuste directo de milhares de euros já distribuído.
Passou despercebido nas primeiras leituras apressadas, mas uma das normas constantes do Programa do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, poderá vir a ser julgada inconstitucional se for concretizada em letra de lei — ou pelo menos suscitar fortes reservas jurídicas quanto à sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República Portuguesa.
Trata-se da proposta de criação de um “modelo de número único de identificação para as pessoas e empresas”, justificada no documento governamental como forma de evitar “que a mesma pessoa tenha de ter número de utente, de cartão de cidadão, de contribuinte, de Segurança Social, de eleitor, etc.” Mas a desburocratização significa também maior devassa da vida privada dos cidadãos por parte do Estado.
sta formulação — que consta na página 109 no capítulo “Reforma da Governação, Organização e da Prestação do Sector Público Administrativo” — não é absolutamente nada original: trata-se de uma cópia literal da proposta n.º 333 do programa eleitoral do Chega. O partido de André Ventura colocou a promessa na ‘secção’ intitulada “Desburocratizar para avançar”.
Em concreto, tanto o Chega como o Governo de Luís Montenegro pretendem que os vários números de identificação atribuídos aos cidadãos — desde o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, ao número de contribuinte, à Segurança Social, ao cartão de eleitor, entre outros — sejam concentrados num único número nacional de identificação, a usar transversalmente por todos os serviços e plataformas do Estado. Do berço ao caixão.
O objectivo aparenta ser benévolo: simplificar a relação dos cidadãos com a Administração Pública, evitando múltiplos registos e agilizando os processos digitais. Mas este desiderato, aparentemente inocente — ou mesmo tecnocrático —, esbarra frontalmente com a Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, o n.º 5 do artigo 35.º da CRP estabelece com clareza: “É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” Esta norma constitucional, que remonta à revisão de 1989, foi adoptada num contexto em que começavam a emergir as primeiras bases de dados digitais centralizadas, e visava proteger os cidadãos contra práticas de controlo e vigilância abusivos por parte do Estado.
A intenção era inequívoca: impedir a criação de um sistema unificado de identificação que permitisse cruzar, com facilidade e sem consentimento expresso, informação sobre saúde, dados fiscais, mas também outros aspectos sensíveis que estivessem associados a cada pessoa.
É certo que, nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a digitalização da Administração Pública levaram, na prática, a uma crescente interoperabilidade entre sistemas estatais. Por exemplo, o número de contribuinte tem sido usado como identificador transversal em várias plataformas.
Proposta do programa eleitoral do Chega foi copiada ipsis verbis pelo Governo de Luís Montenegro.
No entanto, como sublinha o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em declarações ao PÁGINA UM, a consagração formal de um número único nacional seria inconstitucional, tal como está actualmente prevista na Constituição. Para o jurista, embora já exista uma “centralização de facto” em muitos aspectos, a criação formal de um número único, com base legal, seria “um salto qualitativamente diferente”, colocando “riscos de devassa da privacidade”.
De resto, o mesmo artigo 35.º da actual Constituição reforça a sua preocupação com a protecção de dados pessoais ao estabelecer que “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular (…)”.
A ligação entre essa norma e a proibição do número único é evidente: o legislador constituinte quis, na altura, prevenir a possibilidade de concentração num só registo digital da identidade integral do cidadão.
Atribuição de um número único de identificação permite, mesmo acenando-se com a desburocratização e a segurança, a transição para um modelo de controlo social à moda chinesa
Em termos práticos, a adopção de um número único teria como consequência imediata que todos os serviços do Estado — e eventualmente entidades privadas com acesso autorizado — pudessem aceder, de forma mais expedita, ao histórico completo de interacções e dados do cidadão: processos de saúde, registos fiscais, segurança social, histórico eleitoral, licenças de condução, propriedade automóvel e imobiliária, registo criminal, percurso académico, entre outros. O risco não é meramente teórico: a centralização de dados aumenta a vulnerabilidade a abusos, violações de privacidade e mesmo ciberataques com efeitos devastadores.
Mas há também um risco simbólico e filosófico: o de uma progressiva despersonalização e desumanização da identidade do cidadão. Reduzido a um número único — que substituiria o nome próprio na relação com os serviços públicos —, o cidadão deixará de ser reconhecido na sua individualidade para passar a ser um código funcional.
Do nascimento à morte, um recém-nascido deixaria de ser, simbolicamente, João, Maria ou Miguel para passar a ser 1023984501, numa lógica de etiquetagem estatal que rompe com qualquer ideia de dignidade pessoal. Ou seja, o número deixa de ser apenas um instrumento administrativo para se tornar, na prática, uma identidade totalitária, pronta a ser vigiada, cruzada e interpretada por algoritmos.
André Ventura conseguiu introduzir proposta inconstitucional no Programa do Governo.
A proposta agora inscrita no Programa do Governo surge, assim, num cenário político sensível, em que tanto o PSD como o Chega demonstraram disponibilidade para uma revisão constitucional — eventualmente para acomodar medidas que hoje são inconstitucionais.
Aliás, no caso concreto do número único, o próprio “etc.” da formulação governamental levanta mais dúvidas do que esclarecimentos. O que mais se incluirá neste identificador? Dados bancários? Localização em tempo real através de aplicações públicas? Um registo de vacinação ou de deslocações? Uma possibilidade de bloquear o acesso a qualquer outro acto administrativo se, por exemplo, houver uma multa de trânsito ou se um cidadão for socialmente incómodo?
Embora ainda se esteja perante uma promessa governamental sem legislação concreta, a simples transcrição ipsis verbis da proposta do Chega — sem qualquer discussão pública ou alerta mediático — revela um padrão preocupante de alinhamento programático, sobretudo quando se trata de matérias sensíveis à liberdade individual.
No futuro, o cidadão número 35678876 será o líder de um Governo da República Portuguesa…
E se é certo que a proposta poderá, no futuro, ser enquadrada numa revisão constitucional — algo que requer maioria qualificada —, o facto de ser integrada no actual Programa de Governo levanta legítimas interrogações sobre o rumo do Executivo de Luís Montenegro em matéria de garantias fundamentais.
Seja por afinidade política, seja por mera distração legislativa, esta proposta do Governo configura uma flagrante inconstitucionalidade num documento programático fundamental, com implicações não apenas jurídicas mas sobretudo democráticas e humanas.
Num mundo cada vez mais digital, os cibercriminosos têm também cada vez mais alvos disponíveis para os seus ataques informáticos. E no grande oceano digital, os organismos públicos não estão imunes a caírem nas ‘redes’ de piratas informáticos em busca de roubar dados para revenda, a exigir dinheiro para não apagar informações vitais ou para ‘devolver’ um servidor tornado ‘refém’.
No caso das autarquias, em cinco anos, duplicou o número de munícipios que detectou problemas de cibersegurança. Em concreto, no ano passado, uma em cada quatro das 308 câmaras municipais do país identificou a existência de falhas de segurança ou mesmo ataques cibernéticos, segundo dados disponibilizados hoje pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), usando dados de um inquérito da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).
Foto: D.R.
Em 2020, de acordo com os dados oficiais, apenas 39 municípios tinham identificado identificaram falhas na segurança informática. No ano passado, foram já 77 as autarquias a encontrar problemas. Este é o valor mais elevado desde que existem registos, iniciados em 2005.
Aliás, nos últimos três anos este número tem vindo a escalar de forma evidente em termos absolutos e relativos. Em 2020 foram detectados problemas de segurança informática em 39 municípios, diminuindo no ano seguinte para 35, mas depois contabilizam-se crescimentos assinaláveis: 48 em 2022 e 60 em 2023.
Dependendo da vulnerabilidade, se uma autarquia for alvo de ataque informático podem ficar expostos dados sensíveis dos munícipes, funcionários da autarquia e até dos fornecedores. No limite, o município pode ficar incapaz de fornecer serviços aos cidadãos.
Foto: D.R.
Apesar de todos os 308 municípios do país terem software anti-vírus instalado, três ainda não dispõem de firewal. Por razões de segurança, o INE não divulga quais os municípios alvo de ataques ou mais susceptíveis a ciberataques por deficiências do sistema de defesa. Do total, há ainda 15 autarquias que não estão equipadas com servidores seguros e 51 não dispõem sequer de um sistema de backup externo, para poder ter uma cópia dos seus dados em lugar seguro. Em termos de filtros anti-spam, há oito autarquias que não têm qualquer sofware instalado.
Ainda assim, estes dados de 2024 mostram uma melhoria face ao ano anterior. Mais uma autarquia passou a ter um firewall instalado e mais três instalaram servidores seguros. De 2023 para 2024, foram onze os municípios que passaram a guardar uma cópia dos seus dados num local externo e três instalaram filtros anti-spam.
Contudo, apesar destas melhorias, e apesar dos riscos crescentes em matéria de crime informático, menos de metade das câmaras municipais do país tem implementada uma estratégia para garantir a segurança dos seus dados e sistemas.
Foto: D.R.
Segundo os dados do INE, apesar de serem 241 autarquias as autarquias com uma estratégia definida nesse âmbito, apenas 142 estão em conformidade, apresentando efectivamente um plano em funcionamento. Do total, 78 municípios até têm uma estratégia, mas o processo para sua implementação está ainda sob revisão. Em 21 municípios nem sequer existe um plano de cibersegurança definido.
A situação mais grave é nos Açores, onde apenas um quarto dos municípios está em conformidade em matéria de ter uma estratégia de cibersegurança implementada. Das 19 câmaras municipais existentes naquela Região Autónoma, apenas cinco tem um plano em vigor.
Na região Autónoma da Madeira, quase dois terços dos municípios não tem em vigor nenhum plano de segurança informática.
Foto: Captura de ecrã de comunicado emitido no site do Município de Murça a 13 de Março de 2025.
No Continente, a situação melhora mas ainda é assim é alarmante: mais de metade das autarquias não está em conformidade em termos de ter em vigor uma estratégia. Assim, dos 278 municípios do território continental, apenas 133 tem uma estratégia a vigorar na prática. Um sinal de que a vulnerabilidade das autarquias face a ataques informáticos é real.
Por exemplo, em Novembro do ano passado foram públicos os casos de ataques informáticos maliciosos às câmaras municipais de Chaves, Nelas e Alcobaça. Este ano, a 13 de Março, a Câmara de Murça sofreu também um ciberataque.
Assim, a tendência crescente de municípios afectados por problemas de segurança informática que se verificou nos últimos três anos deverá continuar. Até porque, os 77 municípios que detectaram problemas de cibersegurança no ano passado, são apenas a ‘ponta’ visível de um icebergue de falhas que pode estar por debaixo deste oceano digital que tem piratas cada vez mais sofisticados.
A pressão inflacionista sobre o mercado habitacional das duas principais cidades portuguesas — Lisboa e Porto — continua a agravar-se, sobretudo por efeito da procura estrangeira. A análise aos dados do primeiro trimestre de 2025, hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), mostra que, considerando os valores medianos de transacção, os compradores estrangeiros pagaram, em média, 5.682 euros por metro quadrado em Lisboa e 3.680 euros no Porto, quando as medianas gerais de preço nessas cidades foram de 4.321 euros e 2.968 euros, respectivamente.
Traduzido em termos absolutos, significa que, por um apartamento de 100 metros quadrados, um comprador estrangeiro pagou, num contrato ao preço de referência (mediana), mais 136.100 euros em Lisboa e mais 71.200 euros no Porto face ao preço mediano suportado pelos residentes nacionais. Noutra perspectiva, significa que 50% dos estrangeiros estiverem dispostos a pagar mais de 5.682 euros por metro quadrado em Lisboa e mais de 3.680 euros no Porto.
A desagregação dos dados do INE permite perceber que essa discrepância é particularmente acentuada entre os compradores oriundos de países extracomunitários. Em Lisboa, os cidadãos de fora da União Europeia pagaram um valor mediano de 5.836 euros por metro quadrado — mais 1.515 euros do que os compradores portugueses e mais 510 euros que os próprios cidadãos da União Europeia (que pagaram, em média, 5.326 euros). No Porto, o mesmo fenómeno repete-se, com os extracomunitários a pagarem 3.834 euros por metro quadrado, superando em 341 euros os compradores comunitários e em 866 euros os compradores nacionais.
Convém sublinhar que os valores medianos representam o ponto de corte entre as duas metades de um conjunto ordenado: ou seja, 50% dos contratos celebrados registaram preços inferiores e 50% preços superiores. Ao contrário da média aritmética, a mediana não é distorcida por valores extremos — sendo, por isso, um melhor indicador do “coração” do mercado. Neste caso, a mediana elevada das transacções com compradores estrangeiros demonstra que não se trata de excepções pontuais, mas de uma tendência consistente e estatisticamente significativa.
Ora, esta concentração de poder de compra — exterior e consideravelmente superior — nos centros urbanos mais dinâmicos está a ter efeitos estruturais. Embora o fenómeno se manifeste de forma mais visível nos segmentos de topo, onde se localizam os imóveis mais caros, os seus efeitos propagam-se em cascata: ao pagarem quase 6.000 euros por metro quadrado em Lisboa, os investidores estrangeiros não apenas absorvem a oferta de luxo, como induzem expectativas de valorização generalizada. Esta pressão tende a empurrar os preços dos imóveis de gamas intermédia e baixa, gerando um efeito inflacionista sistémico que acentua a exclusão da classe média dos centros urbanos.
Valor mediano (em euros por metro quadrado) para o primeiro trimestre de 2025 das vendas de alojamentos familiares nos últimos 12 meses. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Contudo, o fenómeno não é novo. Segundo os dados do INE, o valor mediano das transacções em Lisboa passou de 3.375 euros por metro quadrado no primeiro trimestre de 2020 para 4.412 euros no primeiro trimestre de 2025 — uma subida de 1.037 euros, equivalente a +30,7%. No Porto, a evolução foi ainda mais expressiva: uma subida de 1.127 euros, com o valor mediano a passar de 1.808 para 2.935 euros por metro quadrado — ou seja, um acréscimo de 62,4%.
Curiosamente, no agregado nacional, os dados mostram que os estrangeiros até pagaram menos em 2025 do que em 2020 — menos 146 euros por metro quadrado —, o que reforça a ideia de que a procura está concentrada em zonas urbanas específicas, com Lisboa e Porto no epicentro dessa pressão. É aí que o capital externo funciona como factor de desregulação silenciosa, criando desequilíbrios que o mercado interno, mais limitado e com menor capacidade de alavancagem financeira, não consegue contrariar.
Noutros países — como o Canadá e a Nova Zelândia —, foram já aplicadas restrições à compra de imóveis por não residentes em certas zonas críticas. Na União Europeia, a aplicação de tais restrições a cidadãos comunitários esbarra com os princípios da livre circulação de capitais e pessoas inscritos nos tratados.
Contudo, importa compreender que a actual dinâmica inflacionista no mercado imobiliário nas zonas mais urbanas não resulta apenas de factores migratórios ou do crescimento turístico. A verdadeira raiz está na política dos bancos centrais dos últimos anos. Entre 2020 e 2022, só o Banco Central Europeu contribuiu para a expansão em mais 20 biliões de euros (milhões de milhões) o agregado monetário M2 — ou seja, a soma de moeda em circulação e depósitos de curto prazo.
Essa expansão colossal de liquidez, sem estar associada a qualquer evolução económica, porque é accionada pelos burocratas da Zona Euro, teve origem sobretudo nas operações de compra de dívida pública por parte do BCE junto dos bancos comerciais, que passaram a trocar obrigações estatais por moeda nova, sem criação de riqueza real.
Com taxas de juro em níveis historicamente baixos — que chegaram a ser negativas em 2021 —, os investidores institucionais viram-se compelidos a procurar alternativas de rentabilidade. O imobiliário urbano, pela sua natureza física, aparente segurança e capacidade de valorização sustentada pela procura, tornou-se um dos principais destinos desses fluxos financeiros. Este movimento criou uma espécie de “refúgio de valor inflacionado”, onde os imóveis deixaram de ser apenas activos de uso para se tornarem activos de reserva, especulativos e de arbitragem monetária. Quem precisa mesmo de casa para viver, não tem – ou vai ter de se endividar até ao tutano.
Evolução (em biliões de euros) do agregado M2 na Zona Euro entre 1999 e 2024. Fonte: Banco de Portugal.
Assim, o mercado habitacional português, sobretudo nas suas zonas de maior pressão na procura, deixou de funcionar como expressão das necessidades de alojamento da população para se tornar campo privilegiado da engrenagem monetária internacional.
Neste cenário, a habitação passou a ser cotada não ao ritmo dos salários nacionais, mas à cadência das injecções de liquidez e dos circuitos de investimento financeiro — com consequências devastadoras na acessibilidade habitacional dos portugueses.
“Vamos limpar a Amadora” – este é o mote do deputado Rui Paulo Sousa, que se candidata à autarquia local pelo Chega e tem colocado a alegada criminalidade deste subúrbio de Lisboa na agenda política. Ainda na semana passada, um dos braços direitos de André Ventura perguntava em tom retórico: “Até quando queres viver no Gueto de Lisboa?… Vamos limpar a Amadora da Bandidagem, vamos devolver a Cidade aos Amadorenses de bem.”
Para sustentar esta tese, Rui Paulo Sousa apresentou um ranking surpreendente, da plataforma Numbeo, que colocava a cidade da Amadora no “17.º lugar no ranking das cidades mais perigosas da Europa… à frente de Odessa na Ucrânia!!!”, escreveu o candidato. Aliás, descontando o facto de a Amadora surgir ex-aequo com a cidade ucraniana, confirma-se o lugar no ranking do primeiro semestre de 2025 desta plataforma colaborativa.
Contudo, aquilo que mais surpreende é que a Amadora, cidade com cerca de 180 mil habitantes, nem sequer aparece na lista de 132 cidades europeias analisadas em 2024, onde apenas surgiam Lisboa (na posição 95) e Porto (na posição 87), ambas classificadas como cidades com baixo índice de criminalidade. No ranking de 2025, Lisboa ocupa a posição 76 e o Porto o lugar 110, embora ambas com percepção de risco baixo. A entrada de rompante no ranking causa estranheza, desde logo.
Porém, mais surpreendente ainda é constatar que a Amadora, mesmo figurando no 17.º lugar deste ranking europeu, ocupa apenas a posição 104 a nível mundial, numa lista liderada por duas cidades da África do Sul (Pietermaritzburg e Pretória), país que conta com cinco cidades no top 10.
Entre as 25 cidades consideradas menos seguras do mundo, segundo o ranking do Numbeo, seis são brasileiras (Salvador, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo) e quatro são norte-americanas (Memphis, Detroit, Baltimore e Albuquerque). A cidade europeia considerada menos segura, Bradford (Reino Unido), surge na 33.ª posição.
Embora a Amadora surja com frequência na narrativa mediática como cidade com problemas de segurança, os dados estatísticos não confirmam essa percepção. Pelo contrário.
De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho da Amadora ocupa apenas a 131.ª posição entre os 308 municípios portugueses em termos de criminalidade total em 2024, com 28,9 crimes por mil habitantes — ligeiramente abaixo da média nacional, fixada em 30,0. O topo da lista é ocupado por Albufeira (78,2), Avis (74,5), Mourão (64,6), Loulé (61,4) e Porto (60,6). Já Lisboa regista 53,6 crimes por mil habitantes — quase o dobro da Amadora em termos relativos.
No caso dos roubos por esticão e na via pública — tipologias particularmente traumáticas —, a taxa de criminalidade em Lisboa é quase cinco vezes superior à da Amadora (3,2 contra 0,7 por mil habitantes). E nos crimes contra o património, os mais numerosos, a Amadora também está longe do topo nacional — quanto mais do europeu. Com 13,9 crimes por mil habitantes em 2024 nesta categoria, está abaixo da média nacional (17,3), enquanto Lisboa e Porto apresentam rácios quase três vezes superiores: 34,6 e 39,9, respectivamente.
Intrigado com os dados, o PÁGINA UM questionou o CEO do Numbeo, Mladen Adamovic, sobre a posição concreta da Amadora, que confirmou a que, em 2025, esta cidade portuguesa registou um número anormalmente elevado de avaliações por usuários em comparação com anos anteriores. Mas mesmo assim, o total é absurdamente pequeno: apenas 27 entradas válidas relativas à Amadora em 2025, contra apenas 9 em 2024 e 11 em 2023. O aumento das submissões começou, segundo Adamovic, “em Julho”, admitindo que “se deveu a uma maior atenção mediática”.
Embora o Numbeo admita ser frequentemente alvo de spam, Adamovic assegura que existem algoritmos de detecção de padrões suspeitos, incluindo cruzamento de endereços IP e outros dados de utilizador, que permitem eliminar participações manipuladas. No caso da Amadora, garante que “não foi detectado um número elevado de actividades suspeitas que pudessem ser manualmente classificadas como spam”, embora fique agora patente que bastam 27 contribuidores para colocar qualquer cidade europeia numa posição relativamente negativa.
Apesar destas garantias, saliente-se que o modelo do Numbeo assenta exclusivamente em percepções subjectivas — como medo de ser assaltado, presença de vandalismo ou consumo de drogas — recolhidas por meio de questionários voluntários, não havendo validação por dados criminais oficiais. Isso torna o índice vulnerável a flutuações motivadas por fenómenos mediáticos ou campanhas organizadas. A própria ascensão abrupta da Amadora, sem justificação demográfica ou criminal, poderá ter sido amplificada pelo uso político em vésperas de eleições autárquicas.
Mladen Adamovic, CEO da Numbeo revelou ao PÁGINA UM que em 2025 houve apenas 27 avaliações sobre a cidade da Amadora.
O Numbeo não divulga os perfis dos utilizadores, nem os critérios detalhados do seu sistema de ponderação, o que dificulta a verificação externa da robustez estatística dos seus rankings. Ainda assim, os dados são amplamente divulgados e frequentemente tomados como factualidade. Percepções, ainda que subjectivas, tornam-se instrumentos de disputa eleitoral.
O Numbeo é uma base de dados colaborativa, disponível online desde 2009, que recolhe e divulga indicadores sobre qualidade de vida em cidades e países de todo o mundo. A plataforma tornou-se particularmente conhecida pelos seus rankings de custo de vida, segurança, poluição, sistema de saúde e criminalidade.
Ao contrário de organismos oficiais — como o Eurostat ou os institutos nacionais de estatística —, o Numbeo não trabalha com dados administrativos ou criminais oficiais, baseando-se unicamente em inquéritos voluntários anónimos, preenchidos por utilizadores registados de forma contínua. A recolha dos dados depende, portanto, das percepções subjectivas dos respondentes, sem qualquer validação externa ou auditoria metodológica independente.
O índice mais citado — e também o mais polémico — é o chamado Crime Index, que pretende expressar a percepção do nível de criminalidade numa cidade, numa escala de 0 a 100. Um valor mais elevado traduz maior sensação de insegurança. O índice resulta de perguntas como: “Tem medo de ser assaltado?”, “Acha que há muitos casos de vandalismo?”, “É seguro andar sozinho à noite?”, “Há consumo e tráfico de drogas?” ou “Considera a sua cidade corrupta?”.
As respostas, todas subjectivas, são agregadas com maior peso para as mais recentes, embora não se saiba quantos inquéritos são considerados por cidade nem qual a sua representatividade. Complementarmente, o Safety Index representa o inverso: é calculado como 100 menos o Crime Index.
Com o plano de insolvência da Trust in News ‘por um fio’, e a falência em vias de se concretizar, a Autoridade Tributária (AT), um dos principais credores deste grupo de media com mais de uma dezena de títulos, apertou o cerco a Luís Delgado, fundador e único dono da empresa que detém títulos como a Visão, Jornal de Letras e Exame.
Nas últimas três semanas, o empresário e comentador televisivo foi forçado a avançar com acções em Tribunal para travar duas acções de execução da AT no valor global de 4.379.296,32 euros, que serão respeitantes a uma parte das dívidas contraídas a partir de 2019.
Ontem, segundo apurou o PÁGINA UM, Delgado avançou uma acção de oposição junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra para tentar travar uma nova acção de execução referente a uma dívida fiscal de 2.285.093 euros da TIN.
Luís Delgado encontra-se a cumprir uma pena suspensa de 5 anos pelo crime de abuso de confiança fiscal na forma agravada por uma dívida fiscal de cerca de 800 mil euros contraída pela sua empresa unipessoal, Trust in News, nos primeiros anos de operação. Mas as dívidas continuaram a acumular-se além daquele valor. / Foto: Captura de ecrã de imagens do Canal Parlamento
A esta acção judicial de Delgado soma-se a um processo de impugnação que o dono da TIN intentou junto do Tribunal Tributário contra a AT devido a uma dívida fiscal de 2.094.203,32 euros.
Tal como o PÁGINA UM já noticiou, o plano de insolvência apresentado por Delgado era a sua última ’tábua de salvação’ perante diversas acções de execução em curso por parte de credores de TIN, designadamente a AT e a Segurança Social. Apesar de ter um capital social de apenas 10 mil euros, esta unipessoal acumulou, estranhamente, dívidas superiores a 30 milhões de euros sobretudo junto do Estado, mas também do Novo Banco e da Impresa.
Depois de ter incumprido com as condições do Processo Especial de revitalização (PER) no ano passado, agora Delgado também incumpriu com o plano de insolvência, como era previsível. Entretanto, com salários e subsídios em atraso, os trabalhadores do grupo decretaram uma greve por tempo indeterminado, que teve início no dia 20 de Junho, e alguns quadros têm vindo a sair.
Delgado está a tentar travar novas acções de execução da AT por dívidas fiscais da TIN. / Foto: Captura de imagem da plataforma Citius
No caso de Luís Delgado, além de estar a ser alvo de acções de execução, está a cumprir uma pena suspensa de 5 anos pelo crime de abuso de confiança fiscal na forma agravada, mediante o compromisso de, nesse período, liquidar a dívida que levou à sua condenação. Também a outra gerente da TIN, Claudia Serra Campos e o ex-gerente, Luís Passadouro, foram alvos de acções de execução e encontram-se também a cumprir uma pena suspensa de 5 anos.
O plano de insolvência foi aprovado no início deste ano, com Delgado a prometer injecções de fundos no grupo e comprometendo-se a cumprir com as responsabilidades fiscais, pagamento de contribuições à Segurança Social e ficando impedido de contrair nova dívida.
Contudo, Delgado, que entretanto voltou a assumir a gerência da TIN após a aprovação do plano de insolvência, falhou com o cumprimento daquelas condições e o administrador de insolvência informou os credores sobre o incumprimento do plano, o qual não foi ainda homologado pela juíza do processo.
Delgado e Francisco Pedro Balsemão, presidente-executivo da Impresa, na assinatura do acordo de venda do portefolio tóxico de publicações da Impresa Publishing, que foi celebrado em Janeiro de 2018, aliviando a crise financeira em que se encontrava o grupo dono do Expresso e da SIC. O Novo Banco financiou a operação e também comprou no mesmo ano o edifício-sede à Impresa. / Foto: D.R.
Com o plano de insolvência prestes a cair por terra, estás nas mãos dos credores da TIN e da juíza do processo de insolvência o desfecho da crise na dona da revista Visão. E, tal como o PÁGINA UM noticiou, a juíza do processo de insolvência concedeu, no passado dia 14 de Maio, mais seis meses para serem apresentadas provas que indiciem culpa dos gerentes no descalabro financeiro do grupo que detém mais de uma dezena e meia de títulos de media.
Uma das várias dúvidas sobre a contabilidade da TIN prende-se com a existência de cerca de 14 milhões de euros em activos que Delgado atribui a receitas futuras. Esse montante está registado na rubrica “Outras contas a receber”, subsistindo dúvidas quanto à sua correspondência a um activo real, ou seja, que possa efectivamente ser convertido em receitas — e, em última instância, em dinheiro. Caso não tenha existência real, esta rubrica terá apenas servido para ‘embelezar’, nos últimos anos, a calamitosa situação financeira do grupo, uma vez que evitava o reconhecimento de resultados líquidos negativos da ordem dos milhões de euros.
Por outro lado, Delgado atribuiu a si e aos outros dois gerentes salários de luxo nos primeiros anos de existência da TIN, numa altura em que a sua empresa unipessoal já acumulava dívidas.
Parte de uma das capas recentes do Jornal de Letras, onde o desnorte já estava patente: na evocação a Camilo Castelo Branco foi usada uma gravura de Eça de Queirós / Foto: D.R.
Contudo, apesar das acções de execução em curso contra Delgado, além de eventuais quotas detidas em sociedades, o dono da TIN não aparenta ter património imobiliário disponível para ser penhorado.
Assim, o Novo Banco penhorou o que pôde, designadamente as marcas da TIN que ainda não tinham sido alvo de penhora por parte da AT e da Segurança Social. O banco ficou com penhora em primeiro grau de marcas como Jornal de Letras, que pode ter esta semana a sua última ida para as bancas.
Foto: D.R.
Curiosamente, ao contrário do que sucede com as marcas penhoradas pela AT e a Segurança Social, os títulos da TIN que estão agora ‘em nome’ do Novo Banco no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) surgem como estando livres de ónus. Só consultando o registo completo da marca é que se detecta o averbamento de penhora efectuado em nome do Novo Banco.
O banco constituiu também penhora em segundo grau dos principais títulos da TIN, designadamente a Visão. No entanto, como o PÁGINA UM noticiou, Delgado registou marcas paralelas, que não estão sob penhora, incluindo os títulos Visão Digital e Jornal de Letras Digital. Outra marca que surge sem qualquer penhora é a Visão Verde.
Muita água passou por debaixo da ponte desde que a antiga Portugal Telecom foi desmembrada, acabando por ver o seu principal negócio de comunicações em Portugal passar para mãos estrangeiras. O icónico Edifício Picoas, em Lisboa, sede histórica da maior operadora de telecomunicações em Portugal, já assistiu a muitas mudanças ao longo dos anos. E nos últimos dias sofreu mais uma: o nome Altice foi retirado da sua fachada. E agora só consta a denominação Meo, que passou a ser a principal marca portuguesa do grupo do empresário Patrick Drahi.
A mudança acontece precisamente quando faz 10 anos que a Altice concluiu a compra da PT Portugal à operadora brasileira Oi. O negócio foi concluído no dia 2 de junho de 2015, por um valor de cerca de 5,7 mil milhões de euros.
O edifício da antiga Portugal Telecom nas Picoas, em Lisboa, já só tem agora a marca Meo na sua fachada. As bandeiras com o nome Altice também não se encontram no passeio situado mesmo junto à frente do edifício. / Foto: D.R.
Mas a marca Altice não desapareceu apenas do conhecido edifício nas Picoas. Várias empresas e entidades detidas pelo grupo já adoptaram a marca Meo. Por exemplo, a Fundação Altice – antiga Fundação Portugal Telecom – passou, desde Maio deste ano, a ser formalmente Fundação Meo. Mesmo a Altice -Associação de Cuidados de Saúde passou a Meo -Associação de Cuidados de Saúde.
A mudança de marca já tinha sido anunciada em Janeiro deste ano, no seguimento da estratégia do grupo de telecomunicações, sedeado na Holanda, em concentrar esforços numa só marca: Meo.
Ma esta mudança ocorre também num contexto em que Drahi está a reorganizar o seu Grupo e se coloca a hipótese da venda do negócio em Portugal. Um dos potenciais interessados é o antigo banqueiro António Horta Osório que, no ano passado, fez uma oferta para ficar com a então Altice Portugal, em consórcio com a Warburg Pincus.
O edifício Picoas antes do grupo de telecomunicações de Patrick Drahi ter adoptado como marca única a Meo. / Foto: D.R.
A eliminação do nome Altice acontece também enquanto ainda correm investigações na ‘Operação Picoas’, que expôs um esquema fraudulento envolvendo quadros de topo da Altice Portugal que lucraram com negócios imobiliários visando imóveis do próprio grupo. O esquema financeiro terá lesado o grupo e o Estado em largas centenas de milhões de euros.
Em Maio deste ano, Alexandre Fonseca, ex-presidente-executivo da Altice Portugal, foi constituído arguido no âmbito daquela operação por se suspeitar que terá recebido dinheiro e uma casa no âmbito do esquema.
Mas os principais arguidos no caso são Armando Pereira, co-fundador da Altice, e Hernâni Vaz Antunes, conhecido empresário de Braga, amigo de Armando Pereira e sócio de empresas que são fornecedoras do Grupo Altice.
O Edifício Picoas quando existia ainda a marca Portugal Telecom. / Foto: D.R.
Recorde-se que após a compra da PT Portugal, em 2015, a Altice nomeou Armando Pereira para o cargo de presidente do conselho de administração da nova Altice Portugal, mantendo a marca Meo ativa, mas adoptando o nome Altice para o grupo.
Se em Portugal este escândalo fez mossa na reputação da empresa, os problemas financeiros da Altice a nível internacional também, não ajudam.
Por outro lado, nos Estados Unidos, a Altice avançou com um pedido de insolvência no passado mês de Junho numa altura que acumula uma dívida de mais de 19 mil milhões de euros. A acção visa a protecção contra credores no âmbito de um processo de reestruturação em curso, já que a maior parte da dívida do grupo está nas mãos de entidades norte-americanas. Em Fevereiro, a Altice France — dona da SFR, segunda maior operadora de telecomunicações depois da Orange — chegou a um acordo com credores para cortar a dívida da empresa em mais de oito mil milhões de euros.
O empresário franco-israelita Patrick Drahi, fundador da Altice. / Foto: D.R.
Drahi tem vindo a vender várias empresas e activos e está aberto a abrir mão de alguns negócios. Em Portugal, o centro de dados da Covilhã tem estado à venda.
A operação em Portugal representa mais de 60% das receitas da Altice Internacional que agrega ainda operações em Israel e na República Dominicana. No primeiro trimestre, Portugal contribuiu com 697 milhões de euros para as receitas do grupo que totalizaram os 1.095 milhões de euros. Drahi detém ainda a Altice France e a Altice USA.
Em Portugal, além do nome Altice ter sido apagado do grupo, com algumas excepções, como a Altice Labs, também o filho de Patrick Drahi, David, renunciou, em Maio, a vários cargos na administração de empresas do grupo Altice em Portugal, que é liderado por Ana Figueiredo.
Edifício Picoas durante a sua construção. / Foto: FPC
Agora, uma década depois de comprar o negócio português da antiga Portugal Telecom, a Altice de Drahi vai desaparecendo de cena. Para já, pelo menos na marca.
Quanto ao Edifício Picoas, que foi inaugurado a 14 de Dezembro de 1983 pelo então primeiro-ministro Mário Soares, já foi casa de várias empresas, a começar pela empresa que o mandou construir, os CTT – Correios e Telecomunicações de Portugal. Na altura, foi um dos maiores empreendimentos a surgirem na capital.
Pelo meio, passou pelo período de auge da Portugal Telecom e pelo desmembramento deste grupo em consequência de decisões de gestão que não resistiram à ‘queda’ do Banco Espírito Santo, em 2014.
Resta saber agora se a empresa portuguesa do grupo Altice continuará a ocupar o edifício por muito mais tempo ou se as dificuldades financeiras vão ditar que um novo ‘inquilino’ se instale nas Picoas.
Depois dos encontros peninsulares de Lisboa (2023) e Madrid (2024), o Grupo Bilderberg escolheu o norte da Europa para a reunião de 2025, tendo rumado até Estocolmo, capital do mais recente país da NATO – a Suécia tornou-se no 32º membro da Aliança Atlântica a 7 de Março de 2024. Os participantes estiveram reunidos entre os dias 12 e 15, no Grand Hotel, propriedade do banqueiro Marcus Wallenberg, representante sueco no Comité Director, para aquele que foi o 71ª encontro deste grupo internacional, criado em 1954, e que toma o nome do primeiro hotel, na Holanda, onde decorreu a cimeira inaugural.
Os tópicos da agenda deste ano foram “Relações Transatlânticas”; “Ucrânia”; “Economia dos Estados Unidos”; “Europa”; “Médio Oriente”; “Eixo Autoritário”; “Inovação e Resiliência na Defesa”; “Inteligência Artificial”; “Dissuasão e Segurança Nacional”; “Proliferação”; “Geopolítica da Energia e dos Minerais Críticos” e, finalmente, “Despovoamento e Migração”.
Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, à porta do Grand Hotel, em Estocolmo, na manhã de 15 de Junho. / Foto Frederico Duarte Carvalho
Este último item da lista, “despovoamento e migração”, é uma novidade em relação a agendas anteriores, sendo que o tópico do despovoamento e migração tem sido um tema de discussões políticas em vários países pelos partidos de extrema-direita para recolha de proveitos eleitorais. Questionado à saída do encontro sobre a discussão deste assunto em particular, o jornalista do Financial Times e participante habitual dos encontros do Grupo Bilderberg, o britânico Gideon Rachman, explicou aos jornalistas presentes à frente do Grand Hotel que os convidados se limitaram “a ver quais são os países que têm mais nascimentos e os que têm menos”.
O jornalista britânico do Finantial Times, Gideon Rachman, falou com os jornalistas à porta do hotel. / Fotos: Frederico Duarte Carvalho
Entre os participantes do 71º encontro do Grupo Bilderberg estavam dois portugueses, convidados pelo representante de Portugal na direção da organização, Durão Barroso, ex-primeiro-ministro de Portugal e ex-presidente da Comissão Europeia, actualmente dirigente da Goldman Sachs Internacional e ainda presidente da Gavi, a aliança mundial para as vacinas. Uma das convidadas de Barroso foi a vice-presidente do PSD e presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza, que assim marcou a sua segunda presença nestes encontros. A primeira vez de Leonor – que também é a presidente da comissão de honra da candidatura de Luís Marques Mendes à presidência da República – foi na Turquia, em 2007, então a convite de Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD, ex-primeiro-ministro e dono da SIC e Expresso. Balsemão cedeu a Barroso o seu lugar na direcção de Bilderberg, que ocupava desde o início dos anos 80, em 2015, após o encontro que teve lugar na Áustria.
Albert Bourla, presidente-executivo da farmacêutica Pfizer (primeiro à esquerda), ao lado de José Manuel Durão Barroso, presidente da Gavi, Aliança Global das Vacinas e presidente da Goldman Sachs International LLC. / Foto Frederico Duarte Carvalho
O outro convidado português de Barroso para o encontro de Estocolmo foi Diogo Salvi, dono da empresa de tecnologia de telecomunicação, TIMWE. Um rosto pouco conhecido em Portugal, mas dono daquela que é tida como uma das empresas portuguesas com maior representação internacional, e que permite ao empresário, por exemplo, poder pagar do seu próprio bolso para competir no Rali de Portugal. Salvi é igualmente um repetente nestes encontros, tendo estado presente, pela primeira vez, na reunião de 2022, em Washington, também a convite de Durão Barroso.
Michael O’Leary, dono da Ryanair em conversa animada com o convidado português, Diogo Salvi, fundador e presidente-executivo da TIMWE. /Foto: Frederico Duarte Carvalho
Tido pelos amigos como um indivíduo “jovial”, isso confirmou-se quando, na noite de sábado, 14, no passeio de barco a caminho do jantar na residência privada da família Wallenberg, o português conversava animadamente com o irlandês Michael O’Leary, dono da Ryanair e membro permanente da organização, que se ria com as palavras do português. Do que falavam exactamente? Só eles saberão. Por perto, estavam Wes Streeting, secretário de Estado da Saúde do Reino Unido e Gabriel Attal, ex-primeiro-ministro da França.
Fareed Zakaria, jornalista da CNN (ao centro), na companhia do presidente do World Economic Forum (WEF), Borge Brende (primeiro a contar da direita). / Foto: Frederico Duarte Carvalho
Uma terceira convidada portuguesa presente em Estocolmo, mas a convite da organização devido ao cargo público que ocupa, foi Maria Luís Albuquerque, antiga ministra das Finanças de Portugal e actual Comissária Europeia dos Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos. Esta foi a segunda vez que a portuguesa participou nestes encontros, tendo a sua estreia sido em 2016, na Alemanha, então a convite pessoal de Durão Barroso. De Bruxelas, veio também Sophie Wilmés, ex-primeira-ministra da Bélgica e actual vice-presidente do Parlamento Europeu.
Este fórum internacional, de debate à porta fechada, com políticos, jornalistas e empresários de países membros da NATO, rege-se pelas regras de Chatham House, onde os participantes são livres, posteriormente, de prestarem as declarações que quiserem, mas não devem identificar os autores de ideias ou citações, permitindo assim manter um ambiente descontraído que promova uma maior e franca troca de ideias entre todos participantes onde, parte deles são pessoas com cargos públicos – e eleitos segundo regras ditas democráticas nos seus países de origem do espaço NATO –, enquanto outros são os principais donos de empresas privadas, que movimentam milhões de euros e dólares e que provocam impacto directo na vida dos cidadãos que não estão presentes nestes encontros.
Maria Luís Albuquerque, comissária europeia com a pasta de Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos, a caminho do jantar privado organizado pelo banqueiro sueco, Marcus Wallenberg. / Foto: Frederico Duarte Carvalho
Durante os três dias da conferência, os participantes assistem a palestras e sentam-se por ordem alfabética, como se fosse um banco da escola. Isso proporciona combinações interessantes onde, este ano, por exemplo, ao olhar para a lista dos convidados divulgada pela organização no início dos trabalhos, vemos que Leonor Beleza, sentou-se entre a francesa Valérie Baudson, CEO da empresa de gestão de activos, Amundi, e, do outro lado, Fatih Birol, directora executiva da International Energy Agency. Uma outra combinação de mais três nomes permitiu colocar Albert Bourla, CEO da farmacêutica Pfizer – uma pessoa que, recorde-se, está envolvido num processo judicial sobre as mensagens privadas que trocou com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – fica sentado entre a dona do Banco Santander, a espanhola Ana Botín, e o norueguês Brende Borge, actual presidente do World Economic Forum – organizador da Conferência de Davos – que substituiu Klaus Schwab.
Entre os jornalistas presentes no encontro, confirmou-se a presença do membro da direção do Grupo Bilderberg e colaborador regular da CNN norte-americana, o jornalista indiano, residente nos EUA, Fareed Zakaria, que chegou ao hotel de Estocolmo no mesmo momento em que Alex Karp e Peter Thiel – responsáveis da empresa de tecnologia e Inteligência Artificial Palantir, que tem, entre outros, a CIA e os ministérios da Defesa de Israel e Ucrânia entre os seus clientes – saíam para destino desconhecido. Alex Karp não seria mais visto ao longo da reunião, mas Peter Thiel manteve-se em Estocolmo até ao último dia, altura em que o Irão e Israel estavam envolvidos em ataques e contra-ataques de mísseis.
Alex Karp e Peter Thiel, da Palantir Technologies, empresa de software fundada com financiamento da CIA. / Foto: Frederico Duarte Carvalho
Igualmente presente, e vista a caminhar fora do hotel, longe das medidas de segurança, foi a jornalista norte-americana, Anne Applebaum, acompanhado pelo marido, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, Radoslaw Sikorski que, tal como a mulher, é já um participante habitual nestes encontros. Na lista dos membros permanentes da direção do grupo constam ainda o nome da jornalista britânica Zanny Minton Beddoes, editora-chefe da revista The Economist e do norte-americano John Micklethwait, editor-chefe da Bloomberg. O editor-chefe do jornal belga De Standaard, Karel Verhoeven, e o jornalista italiano Stefano Feltri também estavam entre os convidados.
Radoslaw Sikorski, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, na companhia da sua mulher, a jornalista norte-americana, Anne Applebaum, da revista The Atlantic. / Foto: Frederico Duarte Carvalho
O secretário-geral da NATO e ex-primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, compareceu novamente nesta cimeira transatlântica, assim como seu antecessor, o dinamarquês Jens Stoltenberg, agora ministro da Finanças do seu país.
O secretário-geral da NATO, Mark Rutte (ao centro), marcou presença. / Foto: Frederico Duarte Carvalho
O encontro de 2026, segundo os normais e conhecidos procedimentos logísticas da organização, está já escolhido, mas ainda não foi tornado público, impedindo assim que os jornalistas possam planear, com tempo, a próxima cobertura. Sem o devido registo jornalístico, é como se nada tivesse acontecido em Estocolmo, entre os dias 12 e 15 de Junho de 2025. Mas, estivemos lá e vimos que aconteceu mesmo.
Tudo começou há uma década e meia, e não tem fim à vista. Por causa de um conflito com a arrecadação de IVA, a Infraestruturas de Portugal – a empresa estatal responsável pelas redes rodoviárias e ferroviárias – e a Autoridade Tributária ‘renovam’, ano após ano, diferendos semelhantes que acabam no tribunal administrativo. Junte-se à morosidade judicial – que em 15 anos de quezílias ainda não conseguiu tomar uma decisão final em qualquer um dos 11 processos – uma incompreensível inacção política para encontrar uma solução por via legislativa. Numa luta entre duas entidades da Administração Pública, cujos resultados serão indiferentes para os contribuintes, quem está a ganhar, e bem, nesta absurda ‘guerra de alecrim e manjerona’ tem sido a sociedade de advogados sistematicamente contratada por ajuste directo pela Infraestruturas de Portugal. Liderada por Eduardo Paz Ferreira, o marido da ex-ministra socialista da Justiça, Francisca Van Dunem, esta sociedade já amealhou 1,3 milhões de euros a tratar destes diferendos.
O Fisco, já se sabe, não aceita de bom grado que não o deixem amealhar o máximo de imposto e de taxas. Nem as entidades públicas se livram desta sanha. E a antiga Estradas de Portugal, hoje Infraestruturas de Portugal (IP), foi uma dessas ‘vítimas’: no exercício financeiro do ano de 2008 e no primeiro semestre de 2009, esta empresa pública argumentou, perante a Autoridade Tributária, que tinha direito a deduzir o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativo à denominada Consignação de Serviço Rodoviário. Essa receita, apesar de legalmente pertencer à IP, era cobrada aos consumidores pelos distribuidores de combustível, que a encaminhava para o Fisco. Somente depois, de acordo com os mecanismos legais para cobrança e liquidação do imposto, esses montantes chegavam (e chegam) à IP.
O diferendo de 2008 e primeiro semestre de 2009, que poderia ter sido pontual, e mediado, no limite, pelos Ministérios das Finanças e das Infraestruturas, não ficou resolvido nos gabinetes, como seria de esperar em entidades da Administração Pública, e acabou por parar no tribunal. Ou seja, o Tribunal Administrativo é que decidiria em que parte do Estado ficaria esse dinheiro: se no Fisco ou se na IP. Se o diferendo de 2008 foi parar ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, o mesmo destino teve um diferendo similar de 2009, e assim sucessivamente, em praticamente todos os anos até, por agora, 2020. À conta disto, estão ainda sem resolução 11 processos nas diferentes fases. Ou melhor dizendo, estão todos os processos, incluindo o de 2008, por resolver, porque nos tribunais administrativos anda tudo a passo de caracol.
Um desentendimento entre a IP e o Fisco em torno do IVA está longe de entrar nos carris. / Foto: D.R.
Com efeito, o primeiro processo, que envolve uma verba de 277 mil euros, teve uma decisão favorável ao Fisco na primeira instância, mas está parado desde 2013 por via do recurso da então Estradas de Portugal. Mas se a Autoridade Tributária começou por marcar o ‘primeiro golo’, sem ganhar em definitivo, os conflitos dos outros anos têm estado a dar ‘vitórias’ à actual Infraestruturas de Portugal. Porém, como há recurso do outro lado, contabilizam-se pelo menos oito processos que ainda estão muito longe do fim, porque aguardam acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul depois de um longo ‘calvário’ na primeira instância.
Só para dar um exemplo, o diferendo relativo ao exercício de 2013 só teve sentença de primeira instância em finais de Março do ano passado – ou seja, assumindo que este conflito entre o Fisco e a IP se terá iniciado em 2014, a primeira decisão judicial demorou 10 anos. Mesmo assim pior está o diferendo de 2008 e primeiro semestre de 2009: depois da primeira sentença, aguarda-se por um acórdão do tribunal de recurso desde 2013. Ou seja, vai fazer, em Março, 12 anos.
Os processos relativamente mais recentes (2017, 2018, 2019 e 2020) ainda estão numa fase mais atrasada. Nos dois primeiros casos, as impugnações no tribunal por parte da IP, depois do indeferimento do recurso hierárquico no Fisco, foram feitas em Abril de 2023, sem ter havido ainda sentença. Nos outros dois casos (2019 e 2020) ainda se está, respectivamente, na fase de recurso hierárquico e no projecto de relatório de inspecção tributária. Ignora-se se existem mais processos posteriores a 2020.
Certo é que, com tudo isto, a empresa estatal que gere as redes rodoviárias e ferroviárias em Portugal está num impasse, que se prevê venha a durar anos, ou mesmo décadas, sobre montantes bastante significativos. De acordo com dados da empresa pública, no final de Junho de 2024, o saldo que reivindica deste conflito com o Fisco correspondia a 2,358 mil milhões de euros, um aumento face aos 2,254 mil milhões de euros no final de 2023.
Com o ‘dinheiro’ empatado, porque contabilisticamente nem o Fisco nem a IP podem considerar aqueles elevados montantes como seus, quem está a pagar é, na verdade, o contribuinte, sendo que lhe será indiferente quem venha a ganhar as causas, uma vez que se tratam de conflitos entre duas entidades da Administração Pública. E o contribuinte está a perder já por uma simples razão: a IP está a contratar a ‘peso de ouro’ uma sociedade de advogados, por ajuste directo, liderada por Eduardo Paz Ferreira, marido da ex-ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que ocupou o cargo entre 2015 e 2022.
A ‘colaboração’ entre Paz Ferreira e a IP nos chamados “processos IVA” começou em 2010, ainda com a Estradas de Portugal, para tratar das primeiras fases dos processos. Os montantes recebidos pela sociedade de advogados rondou os 184.500 euros entre 2010 e 2014. Nesta fase, apenas estariam em curso entre cinco e seis processos judiciais, pelo que cada processo, geralmente requerimentos, terá custado à actual IP mais de 30 mil euros.
Em 2015, com IVA incluído, o montante recebido por Paz Ferreira foi de quase 37 mil, descendo para pouco mais de 21 mil no ano seguinte e em 2017 subiu para 60.270 euros e em 2018 para quase 73 mil euros. Mas depois disparou: em 2019 foi celebrado novo ajuste directo, desta vez pelo valor de quase 347 mil euros, com IVA, que deveria durar para tratar dos “processos IVA” até Fevereiro de 2022. Somente no primeiro semestre de 2023 surgiram dois novos ajustes directos, mas de baixo valor: o primeiro de 12.300 euros, e o segundo de 24.600 euros.
Eduardo Paz Ferreira, advogado e marido de Francisca Van Dunem, ex-ministra da Justiça do governo socialista. / Foto: D.R.
Porém, o ano não terminaria sem mais um chorudo contrato de ‘mão-beijada’: Paz Ferreira arrecadou uma adjudicação de mais de 258 mil euros (com IVA) para tratar dos “processos IVA” por três anos; em teoria, até Julho de 2026. Contudo, na prática o dinheiro esfumou-se, supostamente por prestação de serviços. E assim sendo, 17 meses depois, no passado dia 16 de Dezembro, foi assinado um novo ajuste directo com Paz Ferreira no valor de 253.134 euros, IVA incluído.
Em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM, um porta-voz da IP diz que houve ” necessidade de um novo contrato decorrente do facto de o anterior se ter esgotado, dados os desenvolvimentos processuais entretanto ocorridos, quer decorrentes dos processos de inspecção anuais quer porque, em 2024, foram proferidas seis decisões judiciais favoráveis à IP, mas objeto de recurso” pela Autoridade Tributária.
A IP tem justificado a contratação de Paz Ferreira através de uma norma que prevê o ajuste directo sempre que “a natureza das respetivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam definidos os atributos qualitativos das propostas necessários à fixação de um critério de adjudicação […], e desde que a definição quantitativa dos atributos das propostas, no âmbito de outros tipos de procedimento, seja desadequada a essa fixação tendo em conta os objetivos da aquisição pretendida”. Essa tem sido uma forma enviesada para perpetuação de ajustes directos, afastando a concorrência.
Mesmo que haja complexidade nos processos em tribunal, o certo é que a Paz Ferreira está longe de ser a única sociedade de advogados do país capaz de representar a IP em processos relacionados com IVA. Mas o argumento de que ‘só esta sociedade de advogados sabe da poda’ não é verídico nesta situação. Pode estar-se, mais uma vez, perante um abuso na interpretação das normas do Código dos Contratos Públicos.
Segundo a empresa pública, a mais recente contratação decorre “da necessidade da IP em manter o patrocínio judiciário que tem vindo a ser assegurado, mantendo, deste modo, a estratégia e o sucesso da defesa adoptada, que tem subjacente um elevado grau de conhecimento nas valências de direito e processo tributário e o conhecimento efetivo de toda a tramitação inerente aos complexos processos em curso e aos que eventualmente se venham a iniciar, com a mesma natureza fiscal, valências essas que, pela sua especificidade, a equipa interna da IP não dispõe”.
De entre os contratos públicos celebrados pelo escritório de Eduardo Paz Ferreira, a IP é, de longe, o seu melhor cliente, totalizando 13 contratos, todos por ajuste directo, a que acrescem mais seis pela Estradas de Portugal, até 2015. No total, este advogado celebrou 58 contratos desde 2013, segundo dados do Portal Base, sempre de ‘mão-beijada’, facturando cerca de 2,9 milhões de euros. Com a IP será previsível, se se mantiver, o facilitismo na contratação, que continue assim por muitos anos.
Na plataforma que agrega os registos sobre contratos públicos, o Portal Base, encontram-se contratos adjudicados pela IP à Paz Ferreira desde 2015. No entanto, as verbas envolvidas eram bem mais baixas, situando-se entre os 7.500 euros e os 40 mil euros.
Ainda não é visível a luz ao fundo do túnel nos processos que opõem a IP e o Fisco. / Foto: D.R.
Saliente-se, por fim, que o diferendo com a Autoridade Tributária tem tido fortes reflexos negativos nas contas da empresa pública liderada por Miguel Cruz, que foi secretário de Estado do Tesouro entre Junho de 2020 e Março de 2022. No primeiro semestre de 2024, a IP teve mesmo de reforçar as suas provisões em 20,3 milhões de euros, ficando o valor acumulado nos 547,7 milhões de euros no final do primeiro semestre do ano passado. Esse montante que “corresponde ao IVA que o Grupo IP estima que deixaria de receber caso fosse considerado que a CSR [Consignação do Serviço Rodoviário] não é uma receita sujeita a IVA”.
A empresa também registava, a 30 de Junho último, responsabilidades assumidas com garantias bancárias de 1,5 mil milhões de euros prestadas a favor da Autoridade Tributária decorrentes do processo do IVA, além de assumir ainda garantias no montante de 4,9 milhões de euros prestadas a favor de tribunais no âmbito de processos de contencioso e a outras entidades.
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