Etiqueta: Dossier P1 – Transparência

  • Manuel Pizarro fez “desaparecer” quase 50 mil euros em dois anos para poupar nos impostos

    Manuel Pizarro fez “desaparecer” quase 50 mil euros em dois anos para poupar nos impostos

    Não se sabe sequer quais foram os clientes que pagaram 148 mil euros (entre os anos de 2018 e 2020) à empresa que Manuel Pizarro teve de dissolver no final do ano passado, após assumir o cargo de ministro da Saúde. Mas sabe-se agora que, em 2021 e 2022, a sua empresa de consultadoria não teve qualquer rendimento e serviu apenas para “fazer” mais de 24 mil euros de despesa. Somando a isto uma estranha operação de alienação de um escritório em Ramalde – que não se sabe como chegou à empresa do ministro, que tinha um capital social de apenas 500 euros –, Manuel Pizarro reúne assim as condições ideiais para ser alvo de uma fiscalização pela Autoridade Tributária e Aduaneira.


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, utilizou diversos expedientes contabilísticos para descapitalizar a sua empresa de consultadoria, que dissolveu no final do ano passado para cumprir a lei das incompatibilidades, por aquela ter um objecto social em área por si tutelada. Nessas operações existem fortes indícios de se ter furtado ao pagamento dos impostos devidos ao longo dos últimos dois anos.

    De entre as operações para liquidar a empresa Manuel Pizarro Consultadoria – criada em 15 de Fevereiro de 2018, detida em 70% por si e tendo como sócio Artur Rocha Viana – encontra-se o estranho processo de alienação de um escritório na freguesia portuense de Ramalde, na mesma rua onde o actual ministro possui um apartamento.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde e gerente da dissolvida Manuel Pizarro Consultadoria, Lda., da qual detinha 70% do capital social.

    Saliente-se que não são conhecidos nem clientes nem trabalhos desta empresa de consultadoria na área da saúde que registou apenas três anos com rendimentos: em 2018 – ano da fundação – foram exactos 58.000 euros; no ano seguinte – em que Manuel Pizarro foi para Bruxelas como eurodeputado – contabilizou um rendimento de exactos 64.000 euros e em 2021 mais exactos 26.000 euros.

    Manuel Pizarro – que assumira em Outubro passado ao PÁGINA UM que seria o comprador daquele escritório – não fez afinal uma compra directa à própria empresa, que veio a ser dissolvida em 26 de Novembro do ano passado. As demonstrações financeiras, com vista à dissolução da empresa, foram apresentadas em 12 de Janeiro deste ano, tendo sido analisadas entretanto pelo PÁGINA UM.

    Numa situação normal, a alienação resultaria numa entrada de dinheiro, por troca do activo fixo (escritório), pelo que, aquando da dissolução da empresa, haveria lugar à aplicação de uma taxa liberatória sobre a verba recebida nessa venda por parte dos dois sócios (Manuel Pizarro e Artur Rocha Viana) na ordem dos 28%. Isto mesmo se o comprador fosse – como era o caso – um dos sócios.  Contudo, não foi essa a solução seguida.

    Prédio onde se localiza o escritório comprado pela Manuel Pizarro Consultadoria em 2020, e passou agora para as mãos do ministro muito abaixo do preço de mercado.

    Pela análise do relatório e contas de 2022 da Manuel Pizarro Consultadoria, o escritório de Ramalde – comprado em 2020 por montante nunca esclarecido – tinha o valor escriturado final de 33.950 euros, após deduzidas depreciações acumuladas de 1.050 euros. Mas em vez de uma alienação directa, o ministro da Saúde e o seu sócio optaram antes por usar as reservas livres – ou seja, os lucros não distribuídos dos anos anteriores –, abatendo esse valor nos capitais próprios e, consequentemente, o escritório alienado na parte do activo.

    Embora tal não seja irregular, esse expediente carece de autorização escrita expressa de ambos os sócios – algo que Manuel Pizarro não quis informar o PÁGINA UM –, porque, em termos práticos, Artur Rocha Viana teria de ser compensado, uma vez que formalmente, como sócio, detinha 30% do escritório.

    Mas esse está longe de ser o único eventual problema. Além de outros aspectos que necessitariam de esclarecimentos adicionais, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem condições para colocar em causa os valores envolvidos no negócio. Com efeito, os preços de mercado dos escritórios naquela freguesia no Porto situam-se bem acima dos 1.200 euros por metro quadrado, pelo que, assumindo que o escritório agora integralmente nas mãos do ministro tem 38 metros quadrados – algo que não se consegue confirmar pela declaração no Tribunal Constitucional, pois esses elementos foram rasurados completamente (a “bem” da transparência) –, o valor escriturado contabilisticamente estaria assim já bastante baixo. Ou seja, o escritório alienado valeria pelo menos 45.600 euros.

    Declaração no Tribunal Constitucional de Manuel Pizarro já contém indicação de ser proprietário do escritório de Ramalde, anteriormente detido pela empresa, mas com rasuras nas suas características, incluindo valor patrimonial e/ou preço de aquisição.

    Contudo, segundo os dados do relatório e contas de 2022, a alienação terá sido feita pelo valor escriturado líquido (33.950 euros) – ou seja, pelo menos 11 mil euros mais baixo do que o mercado –, mas foi ainda colocado na demonstração de resultados um gasto de mais de 6.611 euros, que estará próximo do valor dos impostos sobre a transacção deste imóvel, que acabaram assumidos pela empresa através de endividamento.

    Além de tudo isto, Manuel Pizarro terá activamente descapitalizado a empresa ao longo dos últimos dois anos, através da sucessiva introdução de despesas sem que estas tivessem respaldo na obtenção de rendimentos.

    Com efeito, o ano de 2020 foi o último em que a Manuel Pizarro Consultadoria teve rendimentos (26.000 euros), tendo apresentado um lucro de 5.710 euros, conforme se confirma nas demonstrações financeiras. Note-se que o actual ministro – que como sócio-gerente não era remunerado – nunca revelou quais foram os clientes da sua empresa de consultadoria criada em 2018, nem sequer é conhecido qualquer relatório ou actividade. As únicas despesas reportadas foram sempre de fornecimentos e serviços externos.

    Em 2021 e 2022, a Manuel Pizarro Consultadoria serviu assim para o actual ministro meter despesas que podem muito bem vir a ser consideradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira como exclusivamente pessoais. No primeiro destes dois anos, a empresa apresentou um prejuízo de 11.860 euros, e em 2022 – ano da dissolução – mais um prejuízo de 12.422 euros, como o PÁGINA UM constatou nas demonstrações financeiras. Ou seja, em dois anos, houve zero euros de rendimento e mais de 24 mil euros em despesas. Manuel Pizarro serviu-se, aparentemente, da empresa para escoar despesa pessoal.

    Deste modo, e com a operação de alienação do escritório, e conjugando com despesas de duvidosa justificação empresarial, a Manuel Pizarro Consultadoria passou de uma situação de capitais próprios de 54.391 euros no final de 2020 para apenas 1.382 euros no final de 2022, tendo pagado ao Estado, em impostos, menos de sete mil euros pelas estimativas do PÁGINA UM, analisando as demonstrações financeiras do último triénio.

    Caso a empresa tivesse sido liquidada logo em 2021 – e sem considerar sequer mais-valias do escritório de Ramalde –, Manuel Pizarro e o seu sócio teriam de desembolsar para o Estado mais de 15 mil euros em impostos.

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    Não são conhecidos clientes nem trabalho desenvolvido pela Manuel Pizarro Consultadoria entre 2018 e 2020, que facturou 148.000 euros. Nos dois últimos anos de actividade, a empresa registou zero euros de rendimentos e mais de 24 mil euros de despesas.

    Na passada segunda-feira, o PÁGINA UM enviou as seguintes oito questões ao ministro da Saúde, não tendo tido a mínima reacção:

    a) na alienação do escritório pela empresa à sua pessoa, qual foi o critério de valorização, atendendo que foi inferior ao valor contabilístico deduzido de amortizações? Qual a razão para um valor tão baixo num escritório com as dimensões por si anteriormente indicadas, gerando até uma situação de mesmo menos-valias de 6 mil euros aproximadamente? Sofreu alguma rectificação deste valor pela Autoridade Tributária?

    b) Qual foi o valor da aquisição desse escritório em 2019? Onde foi feita a escritura e quem era o anterior proprietário?

    c) Na sua declaração no Tribunal Constitucional surge a posse de dois escritórios na freguesia de Ramalde, mas sem qualquer identificação da matriz, o que contraria a legislação. Quer-nos indicar a matriz dos referidos escritórios?

    d) Atendendo que, aparentemente, foi remunerado em espécie pela empresa de que era sócio (70%), através do débito de reservas livres e crédito do activo em questão, por que motivo o valor contabilístico líquido e o valor abatido às reservas livres não coincidem?

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    e) como o escritório ficou, atendendo a declarações transmitidas pelo seu gabinete, a ser sua propriedade exclusiva, compensou o seu sócio, uma vez que este tinha direito a 30% do valor alienado? Se sim, qual o valor desta compensação? Pode disponibilizar algum documento que comprove essa situação?

    f) A sua empresa realizou a retenção na fonte do IRS relativo ao rendimento em espécie que ambos sócios receberam (alienação do escritório pela empresa)? Se sim, qual o valor destes pagamentos ao Estado?

    g) Para esta operação, foi a empresa que liquidou o IMT ao Estado ou foi o Sr. Ministro?

    h) Além da colaboração a título pessoal que teve com a Gilead em 2019 e 2021, quer esclarecer se a Manuel Pizarro Consultadoria teve farmacêuticas como clientes, e se sim, quais?

  • “Inquéritos secretos” aos novos governantes são mesmo secretos? Tribunal Administrativo decidirá

    “Inquéritos secretos” aos novos governantes são mesmo secretos? Tribunal Administrativo decidirá

    Em Janeiro, depois de vários escândalos políticos, o primeiro-ministro António Costa quis mostrar publicamente que não aceitaria nenhum governante com problemas na Justiça, mas a Resolução do Conselho de Ministros que instituiu um inquérito prévio aos candidatos a membros do Governo coloca uma “cortina de obscurantismo” sobre todo o processo, porque coloca um selo de “secreto”. Mas há um problema: a classificação de “Secreto Nacional”, escolhido pelo primeiro-ministro, para impedir o acesso público não se encaixa nos pressupostos exigidos por lei. E introduz, além disso, a possibilidade futura de o Governo começar a classificar a eito, como secretos, assuntos politicamente sensíveis por simples reuniões de ministros. O PÁGINA UM tomou a decisão de apresentar uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, após a recusa tácita da Presidência do Conselho de Ministros em ceder o inquérito preenchido no mês passado pelo novo secretário de Estado da Agricultura Caleia Rodrigues. Este é o 16º processo de intimação – uma ferramenta fundamental à liberdade de informação e à defesa da democracia – que o PÁGINA UM apresenta, desde Abril do ano passado, no Tribunal Administrativo de Lisboa, através do seu FUNDO JURÍDICO, com o apoio exclusivo dos seus leitores.


    O Tribunal Administrativo de Lisboa vai decidir, nas próximas semanas, um processo de intimação interposto pelo PÁGINA UM para se saber se os questionários prévios à integração de novos membros no Governo são ou não susceptíveis de consulta pública. A Presidência do Conselho de Ministros foi já hoje notificada para apresentar defesa no prazo de 10 dias.

    Em concreto, está em causa o pedido de consulta requerido pelo PÁGINA UM ao inquérito já preenchido pelo único governante que entrou em funções desde a Resolução do Conselho de Ministros de 13 de Janeiro: o novo secretário de Estado da Agricultura, Gonçalo Caleia Rodrigues, que tomou posse há menos de um mês, em 15 de Fevereiro.

    António Costa cumprimentando Gonçalo Caleia Rodrigues na tomada de posse. O secretário de Estado da Agricultura foi o primeiro, e até agora único, governante a preencher um inquérito que o primeiro-ministro quer secreto, apesar da Resolução do Conselho de Ministros invocar a transparência.

    Logo no dia seguinte, em 16 de Fevereiro, o PÁGINA UM requereu ao primeiro-ministro António Costa um pedido de acesso a esse inquérito prévio, expurgado de eventuais dados nominativos, e não tendo havido resposta em 10 dias úteis, entrou ontem com um processo de intimação.

    Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros elenca um conjunto de 36 perguntas, incluindo algumas que já são alvo de escrutínio pelo Tribunal Constitucional, mas especificando outras com aspectos politicamente sensíveis, designadamente a ocorrência de processos judiciais ou contraordenacionais, ou de insolvência, e também o passado empresarial ou de ligações familiares com áreas a tutelar.

    Em todo o caso, saliente-se que, apesar do melindre das questões, exceptuando endereços, as respostas ao inquérito não configuram matérias secretas ou pessoais. Por exemplo, se uma empresa detida por um candidato a governante tiver ficado insolvente, ou se a mulher de um secretário de Estado for sócio de uma empresa, essa informação consta em documentos públicos, embora necessitando de pesquisas nem sempre fáceis. O passado criminal (ou mesmo de simples arguido) acaba também por não ser matéria propriamente secreta.

    Governo já foi notificado para responder à intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Apesar da Resolução do Conselho de Ministros – que surgiu depois de várias demissões no seio do Governo – ter instituído um inquérito prévio como “ferramenta de avaliação política”, de modo a “realça[r] a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, António Costa tratou, porém, de tornar todo o processo secreto e obscuro.

    Com efeito, o diploma em causa – uma simples Resolução de Conselho de Ministros – estipula que “uma vez preenchido, o questionário [preenchido pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.”

    A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.

    Ora, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”

    Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.

    Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

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    O preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros diz, logo na primeira frase que ” O Programa do XXIII Governo Constitucional realça a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, acrescentando depois que “tal aconselha que o escrutínio a que aqueles titulares devem ser sujeitos para integrarem o Governo, no âmbito do processo de avaliação política que precede a respetiva nomeação, seja reforçado.” Mas classifica o inquérito como “Nacional Secreto” sem enquadramento legal.

    Em suma, a menos que o Governo consiga convencer as instâncias judiciais de que o conhecimento público do inquérito preenchido pelo secretário de Estado Gonçalo Caleia Rodrigues faça perigar “interesses fundamentais do Estado”, designadamente a própria independência de Portugal ou de outros Estados, não parece que o conhecimento do conteúdo das respostas ao inquérito preenchido por Gonçalo Caleia Rodrigues – que era professor do Instituto Superior de Agronomia antes de entrar em funções governativas – possa vir a ter tamanhas consequências, atendível o teor das questões e informações aí expostas.

    Além disto, a Resolução do Conselho de Ministros – que, repita-se, invoca o reforço da transparência e o controlo da integridade do sistema democrático – introduz um risco no regime: a possibilidade de uma classificação de documentos administrativos, incluindo a sua destruição, poder ser feita de forma completamente arbitrária e casuística por um Governo.

    Ou seja, se diplomas desta natureza vingarem, como forma expedita de governar, um qualquer Governo pode passar a classificar qualquer decisão, plano, projecto ou até mesmo empreitada como “Nacional Secreto”. E, a partir daí, o público, em geral, e os jornalistas, em particular, ficam impedidos de aceder a informação relevante ou politicamente sensível. No limite, podem “decretar” a destruição de todos os documentos quando saírem de funções.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 16 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Manuel Pizarro já está na fase de se “borrifar” para ordens do Tribunal Administrativo

    Manuel Pizarro já está na fase de se “borrifar” para ordens do Tribunal Administrativo

    Depois de apagar literalmente contratos públicos no Portal Base, o Ministério da Saúde ignora agora um despacho da juíza do processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos contratos de compra das vacinas contra a covid-19 e às comunicações com as farmacêuticas. Em causa estão compras públicas que ascendem a quase 700 milhões de euros, mas que Manuel Pizarro tudo anda a fazer para esconder os contratos. O PÁGINA UM pediu, na sexta-feira, a condenação do Ministério da Saúde por litigância de má-fé. O gabinete jurídico do ministro foi logo a “correr” requerer à juíza a retirada da queixa, mas continua sem responder ao despacho da magistrada para mais esclarecimentos sobre a (evidente) existência dos contratos.


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, elevou este mês ao absurdo os padrões de obscurantismo deste Governo no acesso à informação de documentos administrativos públicos: depois de ter “apagado” contratos da Direcção-Geral da Saúde (DGS) no Portal Base, agora já nem sequer cumpre determinações dos tribunais, chegando até a exigir que sejam retiradas acusações de litigância de má-fé por falta de cooperação para o apuramento da verdade.

    Num processo de intimação do PÁGINA UM – que deu entrada no último dia do ano passado – face à recusa de disponibilizar os contratos assinados entre a DGS e as farmacêuticas para a compra de vacinas contra a covid-19, o Ministério de Manuel Pizarro começou por alegar a existência de uma auditoria em curso à gestão das vacinas, algo que nunca comprovou nem justificou, e que nem conflitua com uma consulta. E também tentou convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que não existiam contratos entre entidades públicas portuguesas e as farmacêuticas.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde, já nem ordens do Tribunal Administrativo de Lisboa respeita.

    Tanto num ofício da DGS, assinado por Graça Freitas, enviado ao PÁGINA UM em Dezembro, como num requerimento de defesa do Ministério da Saúde, argumenta-se que, no âmbito da aquisição de vacinas contra a covid-19 se “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, acrescentando que isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”.

    Mas isso não é verdade, como comprovou o PÁGINA UM. Durante cerca de dois anos, constaram quatro contratos no Portal Base assinados pela DGS: dois com a Pfizer e outros dois com a Moderna. Os quatro contratos originais encontram-se no servidor do PÁGINA UM.

    Porém, estes quatro contratos abrangiam uma percentagem minoritária das cerca de 45 milhões de doses supostamente adquiridas pelo Governo, razão pela qual o PÁGINA UM requereu o acesso aos outros contratos, bem como às guias de transporte e às comunicações entre farmacêuticas e Ministério da Saúde. O objectivo também é de saber se existem indicações sobre compras obrigatórias futuras e cláusulas sobre responsabilidades futuras em caso de reacções adversas graves.

    Ministério da Saúde já nem responde às solicitações da juíza do processo, mas foi a “correr” pedir que retirasse a queixa por litigância de má-fé. Mas continua sem responder ao pedido inicial da juíza.

    Recorde-se que Portugal terá já gastado mais de 675 milhões de euros com vacinas contra a covid-19, mas está em risco de deitar para o lixo mais de oito milhões de doses, no valor estimado de 120 milhões de euros, face ao desinteresse manifestado nos últimos meses pelos portugueses na toma dos denominados boosters. Além disso, os acordos assumidos pela Comissão von der Leyen – e que tanto polémica já suscitam – poderão obrigar o Estado a assumir compras obrigatórias de mais 500 milhões de euros de vacinas mesmo que não as administre.

    Face às manifestas mentiras do Ministério da Saúde, o PÁGINA UM remeteu ao Tribunal Administrativo de Lisboa um conjunto de provas documentais sobre a existência dos quatro contratos do início de 2021, bem como do “apagão” desses documentos no Portal Base ordenado pelo Ministério da Saúde. Em consequência, a juíza do processo, Telma Nogueira, exarou um despacho no passado dia 20 de Fevereiro com o seguinte conteúdo: “Notifique a Entidade demandada [Ministério da Saúde] para, em cinco dias se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”

    Mas o Ministério da Saúde decidiu agora simplesmente ignorar uma ordem do Tribunal, nem sequer respondendo à juíza Telma Nogueira, consubstanciando assim a prática de litigância de má-fé. De facto, de acordo com o Código do Processo Civil, um litigante de má-fé é a parte que, “com dolo ou negligência grave”, por exemplo, tenha “alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” ou “tiver praticado omissão grave do dever de cooperação”.

    Ora, considerando o PÁGINA UM que o Ministério da Saúde pretendeu, com intencionalidade, alterar a verdade dos factos – “apagando” quatro contratos (de entre um número desconhecido) do Portal Base – e não está a cooperar para se fazer justiça – nem sequer cumprindo um despacho da juíza do processo de intimação –, o recurso a este procedimento tem como objectivo uma penalização deste tipo de actos.

    Certo é que, tendo o PÁGINA UM apresentado este requerimento à juíza Telma Nogueira na sexta-feira passada – solicitando a condenação do Ministério de Manuel Pizarro por litigância de má-fé e o correspondente pagamento de uma indemnização –, a defesa do Ministério da Saúde reagiu já ontem. Mas não para cumprir a ordem da juíza emanada no dia 20 de Fevereiro, mas sim somente para pedir que não seja admitido, “nos presentes autos”, o requerimento do PÁGINA UM pedindo a condenação do Ministério da Saúde por litigância de má-fé.

    No processo de intimação constam já, enviados pelo PÁGINA UM, tantos os primeiros contratos integrais assinados em Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021 entre a DGS e as farmacêuticas Pfizer e Moderna, como também os mesmos documentos entretanto rasurados (“apagados”) por ordem política. O PÁGINA UM exige acesso a estes contratos e aos seguintes, que já terão totalizado quase 700 milhões de euros, bem como guias de transportes e comunicações entre as partes.

    A defesa de Manuel Pizarro diz que o requerimento do PÁGINA UM deve simplesmente “ser desentranhado e devolvido ao apresentante”, considerando que o Tribunal Administrativo de Lisboa tem já todos os elementos para decidir em favor do Governo. No breve requerimento, o Ministério da Saúde reitera que o argumento de “impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”, um jargão jurídico que significa que o pedido é impossível de cumprir ou já foi cumprido.

    Em suma, o Ministério da Saúde quer simplesmente que a juíza Telma Nogueira, e o Tribunal Administrativo de Lisboa, encerrem o assunto, colocando uma “cortina negra” sobre contratos públicos assinados por entidades públicas no valor de várias centenas de milhões de euros.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de cerca de uma dezena e meia de processos em curso (amanhã serão revelados mais dois intentados recentemente), o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Tribunal Administrativo de Lisboa: Manuel Pizarro tem cinco dias para decidir se mente segunda vez

    Tribunal Administrativo de Lisboa: Manuel Pizarro tem cinco dias para decidir se mente segunda vez

    Em Portugal, o crime de perjúrio não é levado muito a sério, mas o certo é que no processo de intimação do PÁGINA UM contra o Ministério da Saúde para a obtenção de todos os contratos das vacinas contra a covid-19, assinados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) e as farmacêuticas, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa insistiu em saber se o gabinete de Manuel Pizarro mantém a afirmação de que não existem contratos. O PÁGINA UM já enviou provas da existência de quatro, assinados na primeira fase do programa de vacinação, e tem mais documentação que comprova que há muitos mais. Se o ministro Manuel Pizarro mentir pela segunda vez, esses documentos serão enviados ao tribunal para os devidos efeitos. Portugal já terá gastado cerca de 700 milhões de euros nestes fármacos, mas a factura pode subir mais 500 milhões de euros se o Governo for chamado a pagar solidariamente os negócios acordados pela Comissão von der Leyen.


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, tem cinco dias úteis para decidir se vai continuar a prestar falsas declarações – acção punida por lei – ou se corrige as primeiras declarações ao Tribunal Administrativo de Lisboa sobre a alegada inexistência de contratos entre as farmacêuticas e a Direcção-Geral da Saúde DGS) para a compra de vacinas contra a covid-19.

    Em despacho feito anteontem, a juíza Telma Nogueira “convidou” o Ministério da Saúde a “se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado” pelo PÁGINA UM em 6 de Fevereiro passada, onde provava documentalmente que quatro dos primeiros contratos para a compra de vacinas até tinham estado no Portal Base, mas que foram entretanto apagados.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    O PÁGINA UM apresentou ao Tribunal Administrativo os documentos que comprovavam o “apagão” dos contratos, insistindo que todas as compras daqueles medicamentos, mesmo se negociados entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, tiveram depois que ser alvo de contratos específicos.

    Recorde-se que, neste momento, se desconhece a quantidade de vacinas efectivamente compradas pelo Estado português, quantas foram entregues pelas farmacêuticas, quantas foram administradas, doadas, revendidas ou inutilizadas. O Ministério da Saúde tem afirmado que terão sido adquiridas 45 milhões de doses, mas o gabinete de Manuel Pizarro mantém a recusa em mostrar documentos contabilísticos e operacionais que confirmem a recepção dos lotes, os montantes gastos e os compromissos futuros.

    Numa altura em que o ritmo de vacinação está extremamente baixo, desconhece-se se existem contratos de garantam vendas futuras às farmacêuticas, mesmo se o destino das vacinas for o lixo. Saliente-se que a Comissão Europeia terá negociado apenas com a Pfizer a compra pelos Estados-membros de 1.600 milhões de doses, mas até Dezembro do ano passado tinham sido administradas 685 milhões de doses da vacina desta farmacêutica norte-americana.

    No processo de intimação constam já, enviados pelo PÁGINA UM, tantos os primeiros contratos integrais assinados em Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021 entre a DGS e as farmacêuticas Pfizer e Moderna, como também os mesmos documentos entretanto rasurados (“apagados”) por ordem política. O PÁGINA UM exige acesso a estes contratos e aos seguintes, que já terão totalizado quase 700 milhões de euros, bem como guias de transportes e comunicações entre as partes.

    Sabe-se também que entre Agosto de 2020 e Novembro de 2021, a Comissão Europeia celebrou 11 contratos com oito fabricantes de vacinas – algumas ainda nem sequer conseguiram aprovação e outras (como a Novavax, a Valneva e a Sanofi/GKS) só a alcançaram recentemente – para a compra de 4,6 mil milhões de doses, assumindo-se um custo global estimado de 71 mil milhões de euros, ou seja, uma média de 15,4 euros por dose.

    No entanto, de acordo com um relatório da Agência Europeia do Medicamento (EMA) de Dezembro passado somente tinham sido administradas, em dois anos, cerca de 934 milhões de doses, ou seja, apenas 58% daquilo que foi contratualizado, o que significa que os diversos países comunitários incluindo Portugal, possam ser obrigado a pagamentos desnecessários. Ou seja, se é previsível que, até agora, Portugal tenha gastado pelo menos 693 milhões de euros (45 milhões a um custo unitário de 15,4 euros), ainda poderá ter de desembolsar perto de 500 milhões de euros mesmo que haja poucas pessoas a quererem vacinar-se no futuro. Estes contratos negociados pela Comissão von der Leyen contêm cláusulas secretas.

    Além da evidência comprovada – e que já está na posse do Tribunal Administrativo de Lisboa – dos quatro primeiros contratos de compras do Estado português em Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021 com a Pfizer e a Moderna – que chegaram a estar integralmente no Portal Base, antes de serem “apagados” por ordem política –, o PÁGINA UM tem documentos que mostram a existência de outros contratos entre a DGS e quatro farmacêuticas.

    Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna agora inseridos no Portal Base, depois do expurgo ordenado pelo Governo, segundo consulta realizada hoje.

    Com efeito, no âmbito de um programa de apoio comunitário para a compra de vacinas, gerido pelo COMPETE 2020, ao qual a DGS recorreu (Candidatura nº 181412 e Contrato nº 2022/181412), encontram-se diversos comprovativos de pagamento de vacinas contra a covid-19 no valor total de 220.723.680,75 euros, sendo que 64 dizem respeito à empresa Laboratório Pfizer Lda. e 64 à Pfizer Biofarmacêutica Sociedade Unipessoal – ambas sucursais da Pfizer –, e ainda 12 à Moderna Biotech Spain, sete à AstaZeneca AB e nove à Janssen Pharmaceutica NY.

    Estes pagamentos são, porém, apenas uma parte dos gastos abrangidos na compra destas vacinas, e referem-se ao período anterior a Junho de 2022.

    Estes documentos serão entregues ao Tribunal Administrativo de Lisboa caso o Ministério da Saúde insista, mentindo, que “não possui os documentos solicitados”. Saliente-se que o PÁGINA UM também requereu – e deverão ser também analisados pela juíza Telma Nogueira – as guias de transporte dos diversos (que confirmem o seu envio e a recepção) e o acesso às comunicações escritas entre o Estado português e as diversas farmacêuticas no âmbito da vacinação contra a covid-19.

    Extracto de um documento que comprova pagamentos da DGS à Pfizer, somente possível depois de comprovada o cumprimento das normas de contratação pública, que inclui, obviamente, a existência de um contrato.

    Recorde-se também que os procedimentos de contratação e de gestão das vacinas da covid-19 estarão também a ser alvo de uma auditoria, de acordo com um ofício de Graça Freitas, directora-geral da Saúde ao PÁGINA UM, em resposta a este processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. Contudo, o Ministério da Saúde não apresentou provas dessa acção, podendo assim ser mais uma artimanha para evitar a divulgação de documentos públicos.

    Manuel Pizarro tem, aliás, como responsável máximo do Ministério da Saúde, seguido a linha da sua antecessora, Marta Temido: é também um acérrimo defensor do obscurantismo, obrigando sistematicamente o PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa sempre que solicita documentação e acesso a base de dados.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO.

  • PÁGINA UM esmiúça o infame “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    PÁGINA UM esmiúça o infame “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    O PÁGINA UM pediu e não foi dado. Recorreu ao tribunais, e mesmo assim teve de apresentar recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul, porque o Instituto Superior Técnico (IST) não foi (ainda) obrigado a dar os ficheiros de dados nem todos os relatórios. Mas já temos, por imposição de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, o famigerado Relatório Rápido nº 52, aquele que o IST chegou a classificar como “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Nesta análise do PÁGINA UM, os leitores compreenderão os motivos para o IST não querer mostrar o dito relatório de Julho do ano passado. É mau de mais. Ainda por cima feito por professores universitários. E explicamos em detalhe, com muito detalhe, o porquê.


    Ponto prévio

    No dia 8 de Junho do ano passado, órgãos de comunicações como RTP, Expresso, SIC, Público, Observador, CNN Portugal, Diário de Notícias, Jornal de Negócios, Jornal Económico, NiT, O Novo e Jornal de Notícias deram eco de um take da agência noticiosa Lusa de uma previsão feita por uma equipa de investigadores do Instituto Superior Técnico (IST) de que as festas populares nas semanas seguintes poderiam originar 350 mil casos positivos.

    Na base dessa notícia estava o Relatório Rápido nº 51, intitulado “Actualização do Indicador de Avaliação da Pandemia”, sob autoria de Pedro Amaral, José Rui Figueira, Henrique Oliveira e Ana Serro, sob coordenação de Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusou divulgar os estudos e os dados.

    Atentemos, textualmente, ao que é referido nesse relatório sobre aquela previsão:

    Estimamos que número de contágios produzidos sem máscara com os níveis actuais de susceptíveis [a serem infectados], em eventos como ‘Rock in Rio’ seja de 40.000 no total, sendo maior no caso dos santos populares em Lisboa e Porto, onde poderemos ter um mínimo de 60.000 contágios nos dias mais movimentados em Lisboa e 45.000 no Porto. Todas as festas populares no país poderão traduzir-se num total de contágios directos de, num mínimo, de 350.000 no país, podendo atingir valores mais elevados se novas variantes entrarem em Portugal.

    Mais adiante, acrescentava-se ainda o seguinte:

    A tendência ainda é de subida, prevendo-se o pico para depois do dia 15 de Junho e até final do mesmo mês. Esta previsão pode falhar, por defeito, se os contágios devido às festas populares forem descontrolados ou se surgirem novas variantes.

    Ora, para as três semanas que mediavam até ao final daquele mês de Junho, a equipa do IST assumia assim que, além das infecções que decorreriam (como habitualmente) na população em geral (sendo que o Rt era então de 0,97), haveria ainda um acréscimo de 350.000 casos apenas por causa das festas populares no país e dos festivais de música.

    Capas do Relatório Rápido nº 51 e do Relatório Rápido nº 52, apenas obtido após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa. Corre um recurso para obrigar o Instituto Superior Técnico a fornecer também os ficheiros com dados e todos os outros 50 relatórios.

    Tendo em consideração que a média diária de casos positivos nos primeiros seis dias de Junho de 2022 foi de cerca de 20 mil, segundo dados da DGS, e que as estimativas do IST apontavam para um acréscimo médio entre 14 mil e 15 mil novas infecções diárias até ao fim desse mês por via das festas populares e festivais (350 mil a dividir por 24 dias), seria assim expectável um aumento muito significativo do total de casos positivos.

    Contudo, ao invés de se observar qualquer aumento do número de casos positivos ao longo de Junho – e em especial a partir da segunda semana desse mês –, verificou-se sim um forte decréscimo em plena época festiva sem qualquer uso de medidas não-farmacológicas, como seja as máscaras. Com efeito, entre 6 e 30 de Junho foram contabilizados 303.364 novos casos em todo o país e para todas as circunstâncias, ou seja, uma média diária de 12,6 mil casos.

    No entanto, nos últimos 10 dias de Junho, a média diária foi de 8,7 mil casos positivos. O decréscimo de casos positivos apresentou uma consistente tendência desde 19 de Maio, quando se registraram 27.481 casos, em média móvel de sete dias. Ao longo de Julho, a tendência decrescente manteve-se. No dia 10 desse mês, a média móvel de sete dias já estava abaixo dos 7.000 casos e no dia 31 estava em cerca de 3.000 casos.

    Evolução dos casos positivos em Portugal ao longo da pandemia. Fonte: Worldometers.

    Esta evolução confirmou que o SARS-CoV-2 teve um “comportamento” independente das medidas não-farmacológicas, uma vez que se observou uma redução da transmissão mesmo com o aumento de contactos sociais.

    A saga do Relatório Rápido nº 52 e o tribunal

    No dia 21 de Julho do ano passado, o jornal digital Blind Spot destacou que a previsão do IST fora um completo falhanço, mas que não merecera qualquer referência nos media mainstream.

    Uma semana depois, em 28 de Julho, a generalidade da imprensa veio sim divulgar, através da agência noticiosa Lusa, que afinal os peritos do IST até concluíram que as suas previsões não tinham, supostamente, falhado por muito. No take da Lusa destacava-se o seguinte:

    No último relatório, os peritos antecipavam que a realização destes eventos, sem máscaras nem testagem, resultasse em 350 mil contágios diretos no país. A realidade ficou ligeiramente abaixo, mas não muito distante.

    De acordo com as estimativas mais recentes, houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio. ‘Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil’, refere o relatório, produzido por Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, que compõem o grupo de trabalho coordenado pelo presidente do Técnico, Rogério Colaço.

    Evolução dos óbitos atribuídos à covid-19 em Portugal ao longo da pandemia. Fonte: Worldometers.

    Comparando com um cenário em que se manteria a testagem e a obrigatoriedade do uso de máscara em grandes eventos, a incidência estimada durante o mês de junho seria inferior, referem os peritos, que sublinham que as medidas ‘não teriam impacto económico’”.

    E, segundo a Lusa, os peritos do IST até quantificavam mortes devido às festividades:

    Em relação aos óbitos, os peritos apontam a morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados às festas populares de junho”.

    Como se sabe, o PÁGINA UM requereu em finais de Julho do ano passado o acesso ao relatório que esteve na base da notícia da Lusa – disseminada pela generalidade da imprensa –, bem como a todos os restantes relatórios e os ficheiros com os dados numéricos, o que foi recusado pelo presidente do IST, Rogério Colaço.

    A intimação interposta pelo PÁGINA UM em Setembro do ano passado, resultou numa sentença no sentido de o IST fornecer o Relatório Rápido nº 52. Não foram expressamente dadas indicações pela juíza para a entrega, como solicitado, dos 51 anteriores relatórios nem dos ficheiros de dados. Como o IST se recusa a fornecer esses elementos, a análise seguinte considerará que quaisquer elementos e conclusões obtidas não apresentam prova científica.

    person in white and pink striped long sleeve shirt

    Análise detalhada do Relatório

    Análise ao sumário

    O Relatório Rápido nº 52 começa por referir que “fazemos neste relatório a análise da sexta vaga de COVID-19 em Portugal”.

    Ora, embora a comunicação social e as autoridades sanitárias tenham, de forma unânime, definido a ocorrência de seis vagas da pandemia em Portugal, nunca existiu um critério científico que determinasse de forma inequívoca o que é uma vaga. Por outro lado, não existiu coincidência entre “vaga de casos” e “vaga de mortes”. Com efeito, o pico de mortalidade ocorreu em finais de Janeiro de 2021 (286 mortes, no dia 30, em média móvel de sete dias), enquanto o pico de casos positivos ocorreu quase um ano depois – já dominando então a muito menos letal variante Ómicron –, no dia 28 de Janeiro de 2022 com 58.660 (média móvel de sete dias).

    Por exemplo, se consideramos aquela que é definida pelos media e autoridades de saúde como a “primeira vaga”, entre Março e Maio de 2020, o máximo de casos positivos esteve sempre abaixo dos 800 e o pico de mortes foi de 34 (média móvel de sete dias). Ou seja, a denominada “primeira vaga” teve um pico nos casos positivos de menos de 2% do pico máximo da pandemia (28 de Janeiro de 2022) e um pico nas mortes de 12% do pico de mortalidade da pandemia (30 de Janeiro de 2021).

    Evolução do Indicador da Avaliação da Pandemia do Instituto Superior Técnico. A linha a vermelho indica a evolução se não houvesse vacinas. Os relatórios não permitem aferir como foi definido o modelo e quem o calibrou. Fonte: IST.

    Observando agora, à distância de quase três anos de pandemia, dir-se-á que, para os casos positivos, o surgimento da Ómicron marcou um período de grande transmissibilidade, mas baixa mortalidade, sendo que, neste contexto – e até tendo em conta as mudanças na estratégia de testagem – se mostra difícil classificar como ondas (ou vagas) as variações anteriores a 2022.

    No caso das mortes, verifica-se que em apenas quatro meses (Novembro de 2020 a Fevereiro de 2021) ocorreram quase 13.900 óbitos (cerca de 52% do total nos três anos da pandemia), o que dá uma média diária de quase 116 óbitos.

    Ora, retirando este período, observam-se outras três “flutuações” ao longo da pandemia: Primavera de 2020, Inverno de 2021-2022 e Maio-primeira metade de Junho de 2022. No primeiro período, a mortalidade máxima foi de 34 óbitos (média móvel de sete dias), no segundo de 51 óbitos e no terceiro de 42 óbitos. Falar-se de ondas nestes casos parece assim perfeitamente exagerado e sem base científica sustentável.

    Nessa linha, foi uma mera opção, completamente subjectiva dos investigadores, a escolha do dia 25 de Abril de 2022 como “data de arranque da sexta vaga em Portugal”. Existirem cientistas que usem a expressão “data de arranque” neste contexto, já deixa muito a desejar.

    man in white thobe walking on grey and yellow concrete pavement

    Na verdade, após se registar um pico máximo no dia 28 de Janeiro (58.660 casos positivos, em média móvel de sete dias), registou-se uma redução bastante rápida até início de Março, mas os valores estiveram sempre estáveis até finais de Abril. Note-se que o Governo determinou o fim da situação de calamidade em 17 de Fevereiro de 2022.

    Se considerarmos os casos activos, existe efectivamente uma inversão por volta do dia 25 de Abril de 2022 (então com cerca de 250 mil casos activos, ou seja, com pessoas “infectadas”), mas a “onda” que depois se formou, com pico na terceira semana de Maio, apenas confirma que as flutuações antes de 2022 não são, pela sua dimensão e amplitude, ondas.  

    Atente-se agora a esta frase do sumário do Relatório Rápido nº 52:

    A análise dos dados oficiais da pandemia de COVID-19 em Portugal indica o declínio da sexta vaga confirmando-se a redução dos números da incidência, previstos por nós em Junho, estamos neste momento em cauda alongada com sentido descendente.

    Portanto, a mais falsa das falsidades.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. Um relatório científico foi apenas divulgado por imposição de um tribunal.

    Retomemos também, sem mais comentários, a seguinte frase do Relatório Rápido nº 51, o tal de Junho de 2022, antes das festas populares:

    A tendência ainda é de subida, prevendo-se o pico para depois do dia 15 de Junho e até final do mesmo mês. Esta previsão pode falhar, por defeito, se os contágios devido às festas populares forem descontrolados ou se surgirem novas variantes.

    A imensa falta de pudor e de ética em todo o esplendor. Errar é humano; ludibriar também é humano, mas acresce a isso a falta de ética, o que, em meio científico, é um pecado capital.

    Adiante.

    Passando, por agora, sobre o indicador da pandemia propriamente dito, referido no sumário, foquemo-nos na seguinte frase deste Relatório Rápido nº 52:

    O número de casos até este momento atribuíveis ao levantamento das medidas de mitigação (libertação do uso da máscara e testagem deixar de ser gratuita) somado às festas de Junho é de 646.000, com erro de 10% e confiança a 99%.”

    Sem dados numéricos disponíveis e sem conhecer os pressupostos que determinam a eficácia do uso de máscaras e da influência da gratuitidade da testagem, mostra-se impossível contestar o valor de 646.000 casos, mesmo se, para impressionar, os peritos do IST acrescentam uma pitada de suposto rigor estatístico: “erro de 10% e confiança a 99%”. Com Ciência deste calibre, até poderiam dizer que o erro era de 99% e confiança a 10%. Na verdade, a confiança, assim como são apresentados estes números, é nula. Zero.

    white and red train in train station

    Em todo o caso, sempre se pode dizer que causa espanto que as medidas não-farmacológicas pudessem a partir de finais de Abril reduzir em cerca de metade os casos positivos (houve cerca de 1,2 milhões de casos entre 25 de Abril e finais de Junho de 2022, ou seja, cerca de 18 mil casos por dia), quando não mostraram aparentemente qualquer eficácia para evitar as elevadas transmissões em Janeiro de 2022. De facto, nesse mês, apesar das fortes restrições, que chegaram a segregar os não-vacinados, registaram-se cerca de 1,4 milhões de casos, isto é, quase 45 mil casos por dia.

    Sempre se pode argumentar que teria sido pior sem nada se fazer, mas eis aqui o grande problema das previsões e da alegada eficácia de muitas das medidas não-farmacológicas: sustentaram-se sempre em cenários alternativos não verificáveis, ou seja, na contrafactualidade.

    Sigamos agora para a parte mais atabalhoada do sumário do Relatório Rápido nº 52:

    No último relatório previmos que o número de contágios produzidos sem máscara em eventos como “Rock in Rio”, festivais e todas as festas populares no país poderiam traduzir-se num total de contágios directos de 350.000. Os números registados (oficiais) de casos a mais, produzidos por esses contágios estimados por nós são de cerca de 242.000. Se juntarmos os casos não reportados oficialmente (assintomáticos, pauci-sintomáticos e ligeiros não testados oficialmente) atinge-se o número de 340.000, ficando ligeiramente abaixo dos valores previstos por nós. O erro é de 10% com confiança a 99%.

    Um relatório anterior do IST concluía que as festas populares e os festivais de música em Junho de 2022 tinham sido responsáveis por 330 mortes. Análise do relatório mostra que número foi atirado sem nexo.

    Ora, repita-se: os 350 mil casos previstos no Relatório Rápido de Junho eram apenas relativos às festividades e festivais de música, pelo que se deveriam acrescentar os casos expectáveis em situação normal. Não se entende, por isso, onde os “peritos” do IST desencantaram os 242 mil casos supostamente a mais – registaram-se cerca de 423 mil casos positivos em Junho, que contrasta com os 721 mil em Maio –, porque aquilo que houve, sim, foi uma clara descida.

    Porém, note-se no truque: os peritos do IST aconselham que se juntem “os casos não reportados oficialmente” para assim se perfazer os 340 mil casos, de sorte a ficar-se “ligeiramente abaixo dos valores previstos por nós”. Voilà!

    Assim se fez um acréscimo de 40%, qual coelho tirado da cartola, para “acertar” quase na mouche na previsão de Junho.

    Mas, pergunta-se, no meio deste emaranhado de números atirados ao ar: e então quando em Junho previram os tais 340 mil casos positivos, estes peritos do IST não consideraram os assintomáticos, pauci-sintomáticos e ligeiros não testados oficialmente porquê? Se assim fosse, então teriam de dizer, logo no Relatório Rápido nº 51, que os tais 340 mil casos das festividades e festivais seriam apenas os números reportados; e que se se quisesse saber os números reais se teria de acrescentar mais 40%. Ou seja, em vez de 340 mil seriam 475 mil.

    Evolução das variáveis usadas pelo IST na elaboração do Indicador de Avaliação da Pandemia. Além de não se conhecer o modelo em detalhe, as incongruências são inúmeras. O indicador serviu apenas para fomentar alarmismo.

    Enfim, não podem é os peritos do IST assumir uma subnotificação posterior para validar uma previsão feita sem assumir a existência dessa subnotificação.

    E mesmo que, depois, e mais uma vez, os peritos do IST temperem tudo com a costumeira ladainha de suposta credibilização estatística: “o erro é de 10% com confiança de 99%”. Chavões!

    As duas frases seguintes do Relatório Rápido nº 52 são de uma atroz irresponsabilidade:

    O número de óbitos, até este momento, atribuíveis ao levantamento das medidas de mitigação (libertação do uso da máscara e testagem deixar de ser gratuita) e, ainda, festas de Junho sem essas medidas é de 790, com erro de 10% e confiança a 99%. O número de óbitos atribuíveis até hoje aos contágios das festas populares de Junho é de 330, com erro de 10% e confiança a 99%.

    Descontando também já o blá blá do “erro de 10% e confiança a 99%”, não se vislumbra qualquer base científica na atribuição de um qualquer valor de mortalidade por um suposto impacte negativo da “libertação do uso da máscara e [da] testagem deixar de ser gratuita”. Até porque se se discute a questão das medidas não-farmacológicas, então deve entrar na equação a eficácia das medidas farmacológicas – isto é, as vacinas. Ora, seria sensato atribuir vacinas as responsabilidades por mortes atribuídas ao SARS-CoV-2 por aquelas não serem 100% eficazes? Fica a pergunta, mas tudo me parece absurdo.

    Relatório do IST está inundado de especulações e de “certezas” com base em contrafactualidade, ou seja, de eventos que teriam ocorrido se não ocorresse antes outro. Neste caso, a evolução da incidência entre finais de Abril de 2022 e Julho de 2022 observada e com as medidas não-farmacológicas (que deixaram de ser impostas). Fonte: IST.

    Por outro lado, quanto às mortes atribuídas às festas populares e aos festivais de música, mostra-se evidente que os peritos do IST não podem comprovar nenhum dos números que apontam. Aliás, o relatório não explicita como chegaram àquele valor.

    Deduz-se apenas que terão aplicado uma taxa de letalidade a rondar os 0,1%, mas nem isso dizem. Mas mesmo aplicando uma taxa de letalidade de 0,1% – que é aquela que a Ómicron apresenta –, essa é uma percentagem global, que não tem em conta a juventude da assistência aos festivais e festas populares. Por exemplo, a letalidade da covid-19, antes da vacina, para os menores de 18 anos é de 0,0003%.

    Ora, para estimar com o mínimo de rigor algo tão sensível – a atribuição de mortes a festas populares e a festivais – seria mais sensato pelo menos aplicar um inquérito a uma amostra correctamente estratificada para a partir daí se estimar a percentagem de casos positivos – e subsequente cadeia de transmissão – com suspeita de infecção nas festividades e festivas, e daí estimar-se a letalidade e a mortalidade.

    Convenhamos que fazer um estudo desta natureza representaria um investimento de recursos significativo, mas se isso não era opção exequível, então os peritos do IST deviam, por prudência, descartar estapafúrdias e irresponsáveis especulações. Bem sabemos que atirar números para o ar é bem mais fácil, mas um cientista não pode nem deve escolher o facilitismo; de contrário, deixa de ser cientista.

    Instituto Superior Técnico: uma instituição universitária que (agora) produz Ciência que não quer revelar.

    Em todo o caso, uma alternativa, bem mais barata, passaria por uma análise detalhada (regional e etária) dos casos e mortes ao longo de Junho e Julho do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) – uma das bases de dados, cuja recusa de acesso ao PÁGINA UM por parte da DGS se encontra ainda em análise pelos tribunais administrativos –, para se perceber se existiram, durante Junho de 2022, alterações quantitativas no padrões regionais e etários. Contudo, não se denota, nem explícita nem implicitamente, que os peritos do IST tenham sequer olhado com detalhe para o SINAVE. Atiraram números, seguidos do jargão “erro de 10% e confiança a 99%”. E está feito.

    Sobre o famigerado Rt, usado até às décimas no sumário (era de 0,97 em Junho, no Relatório Rápido nº 51, e passou para 0,90 no seguinte), recordemos sempre um artigo da Nature de 3 de Julho de 2020, sugestivamente intitulado “A guide to R – the pandemic’s misunderstood metric”, onde surgia um especialista em doenças infecciosas da Universidade de Edimburgo, Mark Woolhouse, a salientar que “os epidemiologistas esta(vam) bastante empenhados em minimizar o R [por estar a ser usado para os fins para os quais nunca foi planeado], mas que os políticos parec[iam] tê-lo abraçado com entusiamo”. E concluía: “Estamos preocupados por termos criado um monstro. O R não nos diz o que precisamos de saber para gerir a pandemia”.

    Mark Woolhouse não imaginaria que, afinal, o Rt seria tão apadrinhado por peritos do quilate dos do IST.

    De facto, a obsessão pelo índice de transmissibilidade nos últimos anos, mesmo em fases avançadas da pandemia, pareceu sempre pouco compreensível. As flutuações neste indicador terão dependido mais de factores sazonais – e outros ignorados – do que pela implementação de medidas não-farmacológicas. O R nunca foi a variável dependente da equação; ou seja, mudava muito pouco em função dos comportamentos humanos.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Por fim, o sumário do Relatório Rápido nº 52 do IST termina com a seguinte frase:

    Nesta sexta vaga o custo devido a baixas e isolamentos já pode ser confirmado e atinge, neste momento, entre de 29.900.000 e 32.000.000 de horas de trabalho (confiança a 95%), devendo ficar ligeiramente acima do valor de 30 milhões previsto anteriormente.

    Mais uma frase caída do céu, não sustentada quer no sumário quer no corpo do relatório. Ignora-se, para esta estimativa, quais as variáveis consideradas, se se abrangeu apenas a população activa, quantos dias em média de baixa, etc. Em todo o caso, 30 milhões de horas de trabalho perdidas por baixas e isolamento representam 3,75 milhões de dias de trabalho (de oito horas). Se considerássemos um período de isolamento médio de 7 dias – então em vigor para os assintomáticos e doentes com sintomas leves – estaríamos a falar de quase 536 mil pessoas em idade activa, o que dá cerca de 10% da força de trabalho em Portugal.

    Seria necessário também validar este número, nem que fosse por simples consulta do SINAVE por uma questão de credibilidade. Os peritos do IST não o fizeram, ou não indicaram que fizeram. Acrescente-se que as cerca de 536 mil pessoas representariam quase 45% do total dos infectados pelo SARS-CoV-2 entre finais de Abril e final de Junho.

    Por outro lado, convém referir ser abusivo considerar que todas as pessoas que estiveram em isolamento representaram horas de trabalho perdidas.

    Análise ao capítulo da situação actual

    Nos dois relatórios do IST conhecidos (51 e 52) refere-se que o indicador de avaliação da pandemia (IAP) – para o qual apresentam valores – combina a incidência, transmissibilidade, letalidade, hospitalização em enfermaria e em unidades de cuidados intensivo, apresentando-se os ponderadores. Não sendo claro, aparentemente trata-se de um modelo de regressão, mas não se diz quem o estimou, quem o calibrou e se os seus resultados se mostraram fiáveis à medida que a pandemia evoluiu e surgiram novas variáveis. Em especial com a Ómicron, houve uma maior transmissibilidade, logo uma maior incidência, mas com uma menor letalidade, logo uma menor hospitalização em enfermaria e em cuidados intensivos.

    man in brown coat wearing white face mask

    Se for esse o modelo, então apresenta variáveis aparentemente redundantes: a incidência estará, em princípio, fortemente correlacionada com a transmissibilidade; a letalidade com as hospitalizações, sendo que as hospitalizações em cuidados intensivos estão fortemente correlacionadas com as hospitalizações em enfermaria. Isto costuma dar porcaria num modelo desta natureza.

    A análise do gráfico dos contributos individualizados das variáveis para o IAP – para os quais se desconhecem os dados, pelo que pode estar-se aqui perante um mero exercício de design gráfico, e não de Ciência – mostra bem que a incidência só cria ruído no modelo. Com efeito, ao longo da pandemia, a incidência contribuiu exageradamente para elevar o IPA em diversos períodos de baixa letalidade, como se observa sobretudo a partir de Junho de 2021. O mesmo se verifica com a transmissibilidade.

    Aliás, o modelo parece também não funcionar bem com variáveis como a letalidade, até porque nem sequer é claro como esta variável foi calculada pelos peritos do IST. Em todo o caso, como aparentemente existe um desfasamento temporal entre a letalidade e a incidência, a letalidade não terá sido calculada considerando o desfasamento entre a infecção e a morte. Nessa linha, os valores da letalidade pecam por excesso quando a incidência já está em decréscimo. A confirmar-se esse facto o modelo fica, desde logo, “inquinado”.

    brown and white long coated small dog wearing eyeglasses on black laptop computer

    Também se nota, pela observação do mesmo gráfico, a própria inutilidade do IAP – que, recorde-se, apenas começou a ser aplicado como modelo a partir de Junho de 2021 e nunca foi sequer considerado pela DGS. Com efeito, a subida repentina deste indicador em Junho de 2021 – quando o IST começou a elaborar os seus relatórios em parceria com a Ordem dos Médicos – não teve qualquer contributo relevante das variáveis mais importantes em termos de Saúde Pública: letalidade e hospitalizações.

    Outro exemplo: em Fevereiro de 2022 – que por ser mês de Inverno está associado a maior incidência e hospitalizações de doenças do foro respiratório – o IAP deu valores mais baixos do que os registados no Verão de 2021. Mistério ou evidência de que este indicador apenas “vomitava” um número sem qualquer relevância epidemiológica, e até enganador, para não dizer alarmista.  

    E serviu, ademais, especialmente, para sustentar, como argumento de autoridade, frases sem uma mínima validade científica.

    Por exemplo, o Relatório Rápido nº 52 refere o seguinte:

    O alívio de medidas [não-farmacológicas] provocou um pico maior e uma descida mais lenta após este ter sido atingido, como veremos mais à frente”.

    group of people attending concert

    Não existe qualquer facto, suportado no modelo nem em outra informação científica, para esta afirmação. E até se mostra um contrassenso: se as medidas não-farmacológicas são eficazes e foram sendo levantadas a partir de Fevereiro de 2022 e se aliviaram ainda mais a partir de Abril, então por que razão os casos positivos em Janeiro foram tão elevados, quando então estavam em vigor fortes restrições? Dir-se-á que foram as vacinas: mas se assim é, porque não entraram como variável no modelo? E se são as vacinas assim tão relevantes para controlar a pandemia, por que motivo se insistiu tanto em medidas não-farmacológicas ao longo de 2021 e até meados de 2022?

    Aliás, não tendo a vacinação entrado como variável mostra-se extraordinário como o Relatório Rápido nº 52 apresenta gráficos, completamente caídos do céu, com linhas contrafactuais (a vermelho) para vários parâmetros. Os peritos do IST continuam, aliás, a negar que a diminuição da letalidade se deveu, em grande medida, ao surgimento da Ómicron e também à imunidade natural, sobretudo a partir dos surtos de Janeiro e Fevereiro de 2022 que implicaram a infecção e a obtenção de imunidade natural em mais de metade da população portuguesa.

    Relatório do IST apresenta a variação da mortalidade por covid-19 entre finais de Abril e Julho de 2022, com os dados oficiais (a preto) e com valores que ocorreriam se as medidas não-farmacológicas se tivessem mantido (a vermelho). Não são fornecidas explicações sobre estas estimativas. Fonte: IST.

    O Relatório Rápido nº 52 tem também frases completamente falsas, porque manipuladas. Peguemos neste exemplo:

    Os óbitos diários em média móvel a sete dias passaram de 30,3 para 41,4 desde dia 22 de Maio. Como dito no último relatório, haveria uma “subida deste indicador nos próximos 30 dias”, confirmou-se. Estamos em cerca de 56 casos por milhão de habitantes acumulados em 14 dias, muito acima, 2,75 vezes acima, do número considerado aceitável pelo ECDC para redução de medidas de mitigação. Note-se que, neste momento, não existem medidas de mitigação de contágios em caso de contactos directos, como o uso de máscaras de elevada qualidade.

    Note-se como é escrito: “Os óbitos diários em média móvel a sete dias passaram de 30,3 para 41,4 desde dia 22 de Maio.” Desde 22 de Maio até quando? Se for até 22 de Junho – considerando que os peritos do IST dizem que previam e alegadamente acertaram “a subida deste indicador nos próximos 30 dias –, então estamos perante uma rotunda mentira. Efectivamente, a mortalidade diária subiu, por força do desfasamento entre os valores da incidência e a mortalidade, mas apenas até 7 de Junho (43 óbitos, em média móvel de sete dias), mas depois desceu fortemente. No dia 22 de Junho – portanto, um mês depois da previsão de subida –, o número de óbitos estava em 31, ou seja, estava igual ao do mês anterior, mas com forte tendência decrescente. No final de Junho estava nos 19 óbitos. Como o relatório do IST refere que foram recolhidos dados em 26 de Julho, nesse dia o número de óbitos estava nos 10 (média móvel de sete dias).

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    Curiosa também, no mínimo, é a seguinte afirmação no Relatório Rápido nº 52:

    A letalidade teve uma subida em meados de Maio, altura em que as doses de reforço ainda não faziam efeito nas camadas mais vulneráveis, tendo depois estabilizado em valores ligeiramente abaixo de 0.2%, estando agora em 0.17%. Varia muito de acordo com o escalão etário afectado, nota-se também uma possível correlação com vagas de calor, facto que deve ser aprofundado em estudos mais longos.

    No início de Maio de 2022, de acordo com o Relatório da Situação nº 745 da DGS, relativo a 18 de Abril de 2022, a vacinação de reforço já atingia os 95% nos maiores de 80 anos, os 97% no grupo dos 65 aos 78 anos e de 83% no grupo dos 50 aos 64 anos.

    Pasme-se, portanto: como se pode afirmar num suposto relatório científico que a “letalidade teve uma subida em meados de Maio, altura em que as doses de reforço ainda não faziam efeito nas camadas mais vulneráveis”? No limite, os peritos do IST deveriam, sim, suspeitar da eficácia das vacinas; e não de as doses de reforço não terem tido ainda tempo fazer efeito nas camadas mais vulneráveis …

    E depois, o que dizer sobre a referência às vagas de calor em Maio? Qual o pretexto? É uma mera opinião? Foi um bitaite? Diga-se que um aumento da temperatura em Maio até diminuiria a mortalidade, porque uma onda de calor na Primavera (superior a 5 graus face à média em cinco ou mais dias consecutivos) está longe de ser mortífera (ao contrário do que sucede no Verão), uma vez que temperaturas anormalmente altas em Maio será previsivelmente mais baixas do que um mês normal de Verão.

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    Mais absurdas ainda são as declarações de fé do Relatório Rápido nº 52, algo triste num documento supostamente científico. Como, por exemplo, nesta parte:

    A tendência [de mortalidade] será, ainda de descida. Desde 13 de Junho de 2021 que não há nenhum dia sem óbitos COVID-19 em Portugal. Sem novas variantes poderemos aspirar a esse desígnio durante o mês de Agosto.

    Enfim, por um lado, ao longo da pandemia sempre foram surgindo variantes – é uma falácia julgar-se que só tivemos a Alfa, a Delta, a Ómicron e poucas mais – e sempre se mostrou um erro o objectivo mortes-zero. Uma situação endémica nunca significa ausência de mortes. Termos como “poderemos aspirar” não são próprios da Ciência. Aliás, quase nem valeria a pena referir que a mortalidade diária por covid-19 (média de sete dias) em Agosto de 2022 variou entre os 5 e os 11 óbitos, valores que estão dentro de uma situação considerada endémica. Por exemplo, as pneumonias na fase anterior à covid-19 representavam cerca de 10 óbitos por dia no Verão.

    Análise às conclusões

    As conclusões do Relatório Rápido nº 52 merecem destaque, parágrafo a parágrafo, frase a frase.

    Vejamos:

    1 – “A sexta vaga confirmou-se de forma clara e está agora em franco declínio.

    Como já referido, é abusivo considerar-se que houve sexta vaga, porque nem sequer existe critério científico para definir “vaga”, nem se determinou se essa denominação se aplica ao número de casos ou ao número de óbitos ou a uma variação da letalidade e/ ou internamentos. O “franco declínio” não se estava a verificar no “agora” (finais de Julho de 2022, quando foi escrito o relatório), mas desde Maio de 2022.

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    2 – “A situação é de grande redução do perigo pandémico face ao anterior relatório.

    Desde Março de 2021 deixou de haver risco pandémico. O surgimento da Ómicron, a partir de Novembro de 2021, apesar de ter causado um aumento da transmissibilidade, foi acompanhada por uma redução muito significativa da letalidade, que está longe de ser explicada apenas pela vacina.

    3 – “A nova linhagem BA.5 da variante Ómicron teve um impacto significativo em Portugal que se atenua agora por saturação dos contágios e redução de susceptíveis. Continuamos a afirmar que uma monitorização de qualidade é adequada.

    O impacto significativo da Ómicron acabou por ser paradoxalmente benéfico para o controlo da pandemia, além de se ter comprovado (se tal fosse necessário), com os surtos no início de 2022, a fraca capacidade das vacinas em evitar transmissão e infecção, mesmo com o auxílio de medidas não-farmacológicas. Saliente-se que entre Novembro de 2021 e Junho de 2022 (oito meses) houve cerca de 4 milhões de casos positivos, atingindo uma população activa quase integralmente vacinada. A taxa de letalidade a partir de Dezembro de 2021 baixou bastante em comparação com o período anterior já com vacina contra a covid-19, o que parece demonstrar que a letalidade do SARS-CoV-2 intrinsecamente reduziu-se com a nova variante.

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    4 – “O termómetro da pandemia, i.e., o IAP, está em 63.7 pontos com dados oficiais, o que segundo a Ordem dos Médicos (Gabinete de crise) e o Técnico (grupo de trabalho autor deste texto) está abaixo do nível de alerta (80 pontos) mas obriga a monitorização e alguma mitigação.

    O valor de 63,7 é apenas um número que sai de um modelo que o IST não permite ser validado de forma independente. Não se conhece os pressupostos para que a partir de um valor acima de 80 no IAP se esteja num nível de alerta.

    5 – “Para o mês de Setembro aconselhamos o reforço da monitorização e passar a mensagem de que o perigo pandémico ainda não terminou, sobretudo com o regresso às aulas e a provável disseminação de novas variantes, sempre mais rápidas a contagiar.

    Futurologia sem base científica. Não se compreende o receio de as novas variantes puderem apresentar maior disseminação; por regra, vírus com maior rapidez (facilidade) de disseminação apresentam menor letalidade. Aliás, a evolução dos outros coronavírus apontam para essa forte hipótese para o SARS-CoV-2.

    6 – “Recomendamos a utilização de máscara sempre que o risco de contágio possa existir.

    Afirmação que não encontra respaldo no modelo, pelo que constitui uma mera opinião sem referência científica. Convinha lerem as evidências encontradas pela Cochrane.

    7 – “A monitorização dos números da pandemia deve ser feita de forma rigorosa e transparente até a declaração de “Fim De Pandemia” da OMS. Dados rigorosos e muito actualizados devem fundamentar a tomada de decisão. Nesse sentido, reforçamos o já dito antes, nesta fase será recomendável que sejam publicados os números dos internamentos e os dados regionais. Bastará para tal usar um sistema semelhante ao usado na divulgação dos dados dos novos casos e óbitos, sem necessidade de elaborar relatórios diários.

    Não deixa de ser caricato e risível – e também hipócrita – que os peritos do IST apelem para uma monitorização de forma rigorosa e transparente, quando para o PÁGINA UM ter acesso ao Relatório Rápido nº 52 houve necessidade de recorrer a uma intimação ao Tribunal Administrativo de Lisboa. E para ter acesso aos ficheiros informáticos teve de recorrer ao Tribunal Central Administrativo Sul. Será que os peritos do IST, não sendo de Humanidades, entendem o conceito de transparência?

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    8 – “Como escrito muitas vezes nos nossos relatórios: “Há ainda e sempre a possibilidade da introdução de novas mutações do SARS-CoV-2”. Fica a ressalva de que uma nova variante pode sempre colocar em causa previsões baseadas nas variáveis e parâmetros das variantes actuais. O país deve manter-se preparado, nomeadamente quando não existem medidas de mitigação e uma baixa monitorização, para enfrentar uma situação de grande risco em Setembro com agravamento em Outubro.”

    Tudo pode acontecer, de facto; até o fim do Mundo; até um dia termos peritos do IST a realizar relatórios desta natureza com isenção, rigor, sobriedade… e transparência. E já agora, alguém se recorda se houve alguma situação “de grande risco em Setembro com agravamento em Outubro” de 2022 em Portugal? Não, não houve. Mais um falhanço dos peritos.

    9 – “O período entre vagas pandémicas subiu ligeiramente e está agora entre 120 e 130 dias, como demonstra a transformada de Fourier dos dados da incidência, no gráfico abaixo.

    O uso da transformada de Fourier pressupõe que o comportamento do vírus foi, é e será sempre cíclico. Se assim fosse, como os peritos do IST assumem com grande fé, a pandemia nunca deixará de existir, porque haveria novos surtos ad aeternum.

    10 – “Repetimos o escrito no anterior relatório que se mantém actual: “As autoridades de saúde devem adaptar a sua estratégia a esta periodicidade. Há uma indicação que no início de Setembro, com um erro de 15 a 20 dias, teremos o início de uma nova vaga pandémica. Estamos a modelar os nossos sistemas dinâmicos com perda de imunidade, natural e adquirida, o que resulta em soluções periódicas, amplamente documentadas na literatura, v.g., [Martcheva, M. (2015). An introduction to mathematical epidemiology (Vol. 61, pp. 9-31). New York: Springer]. Se a hipótese da perda de imunidade se verifica, estas vagas vão-se suceder de forma periódica ao longo dos anos. A única forma de quebrar estes ciclos será com vacinas de nova geração. A teoria e a história indicam, também, que as ondas pandémicas se irão atenuando ao longo dos ciclos repetidos até o vírus se tornar “endémico”. Isso é possível, mas apenas o próximo Inverno vai ditar se estamos realmente nesse caminho e o país deve continuar preparado e com mecanismos de resposta rápida.

    Eis uma perfeita, conclusiva e comprometedora declaração de fé. A realidade tem estado a desmentir este alarmismo. Em Setembro e Outubro de 2022 houve pouco mais de 10 mil casos positivos – também por se ter desistido de testar de forma massiva – e um registo de 400 óbitos, que representa uma média diária de menos de sete óbitos por dia. Desde Agosto de 2022 até à data – ou seja, quase sete meses – a mortalidade diária atribuída à covid-19 nunca ultrapassou os 12 óbitos, mesmo durante o Inverno deste ano, mostrando assim fortes sinais de estarmos numa fase endémica. A ideia de que a “única forma de quebrar estes [supostos] ciclos será com vacinas de nova geração” não tem suporte científico e soa a completa propaganda.

    11 – “Neste momento ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre, ‘preparar o pior esperando o melhor’ continua a ser o lema mais seguro quando se enfrenta uma situação de risco indeterminado mas com uma probabilidade elevada de ocorrer, os sinais serão dados em Setembro/ Outubro de 2022.

    O tempo mostrou, e os peritos do IST demonstraram, que pior do que o “excesso de confiança” é o “excesso de alarmismo”. E a má Ciência também é má.

  • Já há 3.631 notificações de abortos e mortes fetais na Europa. Ainda não está na hora de falar com as grávidas?

    Já há 3.631 notificações de abortos e mortes fetais na Europa. Ainda não está na hora de falar com as grávidas?

    O PÁGINA UM vasculhou milhares e milhares de registos de reacções adversas das vacinas contra a covid-19 em grávidas. Apesar do obscurantismo generalizado, que dificulta análises estatísticas e nem sequer permite calcular a incidência, a pesquisa do PÁGINA UM apurou a existência de mais de 5.300 casos de reacções consideradas graves, entre as quais 3.385 abortos e 246 mortes fetais. A vacinação em grávidas, feita de forma massiva, não foi precedida de ensaios clínicos e a Agência Europeia do Medicamento escreveu em Dezembro passado que ainda está em processo de monitorização, mas nem uma palavra sobre os milhares de casos já notificados na base de dados da EudraVigilance. Cá em Portugal, o Infarmed não diz nem uma palavra a respeito do assunto, preferindo lutar no Tribunal Administrativo de Lisboa pela manutenção do obscurantismo. Não estará na altura de falar com e sobre as grávidas?


    A farmacovigilância, conforme conceito definido pelo Infarmed, “visa melhorar a segurança dos medicamentos, em defesa do utente e da Saúde Pública, através da deteção, avaliação e prevenção de reações adversas a medicamento(s)”. E para isso, o regulador nacional, presidido por Rui Santos Ivo, tem um Sistema Nacional de Farmacovigilância para “monitoriza[r] a segurança dos medicamentos com autorização de introdução no mercado nacional, avaliando os eventuais problemas relacionados com reações adversas a medicamentos e implementando medidas de segurança sempre que necessário.”

    Assim, em princípio, deveríamos ficar descansados quando, lendo o mais recente Relatório de Farmacovigilância de monitorização da segurança das vacinas contra a covid-19 em Portugal, relativo aos dados recebidos até finais de 2022, ali se garante que “diversos estudos comprovam que as vacinas contra a covid-19 são seguras e efectivas”. É certo que, mais adiante, surgem números sobre reacções adversas, sendo que 8.518 notificações as classificam como graves, indicando-se ainda que 886 levaram a hospitalização, mais 309 causaram risco de vida e houve mesmo 143 mortes. O Infarmed, neste último caso, indica apenas a mediana (72 anos), o que significa que não informa ao certo a idade das pessoas vitimadas.

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    Para uma doença à qual se atribui, só em Portugal, já um pouco mais de 26 mil mortes, termos como “efeito secundário” das vacinas, por “fogo amigo”, 143 mortes, poderia até ser socialmente aceitável. Ainda mais se fosse mesmo verdade aquilo que epidemiologistas como Henrique Barros asseguram: que em 2021 as vacinas “salvaram”2.300 vidas, e que em finais de 2022 já iam em 12.000 vidas. Mas estudos concretos sobre esses milagres, nunca ninguém publicamente os viu.

    Na verdade, subsistem fortes dúvidas sobre o rigor e exactidão do relatório do Infarmed. As lacunas e a forma enviesada como os dados numéricos são apresentados mostram-se mais serpenteantes do que as bulas dos medicamentos escritas pelas farmacêuticas e autorizadas pelo regulador.

    Com efeito, não há nem nos outros nem neste mais recente relatório do Infarmed – em que se anuncia ser o último, numa tentativa de se enterrar polémicas, alegando-se haver já “um conhecimento mais robusto do perfil de segurança destas vacinas”, o que é uma criminosa falsidade – uma só referência a “grávidas”, “aborto” ou “morte fetal”. Poder-se-ia dar o caso de, enfim, ser questão irrelevante. Não é, pelo contrário: tem sido exclusivamente na fase da farmacovigilância que se pode observar os efeitos adversos de medicamentos sobre as grávidas e fetos.

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    Como se refere na introdução de um recente artigo de revisão na revista científica Obstetrics, sugestivamente intitulado “Covid-19 vaccination in pregnancy: need for global pharmaco-vigilance”, por “razões éticas, os ensaios clínicos não puderam ser conduzidos para estudar os efeitos da vacina contra a covid-19 durante a gravidez”. Deste modo, apesar de os autores do artigo até se manifestarem favoráveis à vacinação em grávidas, não apresentam qualquer análise custo-benefício e admitem que a vacinação massiva se iniciou com informações de segurança provenientes apenas de algumas mulheres que participaram nos ensaios sem conhecer o seu estado.

    Por tudo isto, só pode, no mínimo, causar estranheza que o Infarmed não esclareça expressamente – será essa, esperar-se-ia, a sua função – se foram ou não relatados casos de abortos e mortes fetais associados às vacinas contra a covid-19 em Portugal. Mas não há uma linha sequer. Um zero. Qualquer coisa.

    E haverá. Só pode haver. Estatisticamente, havendo cerca de 5 milhões de gravidezes por ano no Espaço Económico Europeu – já incluindo as não concluídas –, só um estranho milagre evitaria que não tivessem sido reportadas reacções adversas graves associadas às vacinas contra a covid-19 em grávidas em solo português, porque Portugal tem um peso de 2% em todos os nascimentos (e gravidezes) desta região europeia. Portanto, será sensato admitir que 2% das gravidezes venham a corresponder a 2% das reacções adversas graves, ou valores não muito longe isto; a menos, claro, que haja milagres.

    Número de reacções adversas graves por ano (2023 apenas até à primeira semana de Fevereiro) no Espaço Económico Europeu por tipo de vacina. Fonte: EudraVigilance. Análise: PÁGINA UM.

    E é uma evidência que essas reacções graves existem,porque têm sido reportadas. Com efeito, de acordo com uma análise exaustiva feita pelo PÁGINA UM a todas as notificações recebidas desde 2021 até à primeira semana de Fevereiro deste ano pela Eudravigilance – o sistema que recebe as notificações, e as valida, sobre os efeitos adversos dos diversos fármacos –, contabiliza-se um total de 5.336 casos considerados graves de reacções adversas associadas às diversas vacinas da covid-19 durante as fases de gravidez, puerpério e condições perinatais. Estes números englobam os países da União Europeia e também Noruega, Islândia e Liechtenstein.

    Saliente-se que, por regra, a inserção destas notificações de casos classificados como graves (serious, na terminologia usada pela EMA) é feita por profissionais de saúde e, em grande parte dos casos, pelas próprias farmacêuticas. Ou seja, existem evidências clínicas para uma fortíssima suspeita de reacção adversa causada pelas vacinas contra a covid-19, e não uma mera relação casual, não uma mera coincidência.

    A nível europeu, de acordo com os dados da EMA, o ano de 2021 foi aquele que registou o maior número de casos graves, com o total de 3.020, quase todos a partir de Março, uma vez que os idosos foram prioritários na primeira fase dos programas vacinais da generalidade dos países europeus. Na Eudravigilance apenas se encontram, assim, 27 registos de reacções adversas graves em Janeiro e Fevereiro de 2021. Mas mesmo havendo já reacções adversas graves, decidiu-se partir para uma vacinação massiva de grávidas nunca visto.

    Destaque-se que, em Junho de 2022, um artigo científico de revisão e meta-análise publicado na revista American Journal of Emergency Medicine concluiu que, apesar de existir um aumento do risco de internamento em unidades de cuidados intensivos e de ventilação em caso de infecção por covid-19, a taxa de mortalidade nas grávidas não era estatisticamente maior em comparação com as não-grávidas.

    Em 2022, o número de reacções adversas graves em grávidas desceu para 2.244, ignorando-se se se deveu a um menor número de vacinas administradas neste grupo específico. Este ano contabilizaram-se apenas 72 casos, o que pode indiciar que o número até Dezembro venha a ser muito menor do que em anos anteriores, mas não se sabe ainda se se deve ao muito menor número de grávidas a quererem vacinar-se ou ao melhor perfil de segurança das vacinas bivalentes.

    Como em tudo o que se tem visto neste processo de vacinação, muita informação ainda está em fase de recolha, parecendo que se assiste a um mega-ensaio clínico em tempo real para se saber se corre tudo bem ou não.

    Número de abortos e mortes fetais por ano (2023 apenas até à primeira semana de Fevereiro) no Espaço Económico Europeu por tipo de vacina. Fonte: EudraVigilance. Análise: PÁGINA UM.

    Esta evolução absoluta dos casos graves tem pouco significado sequer para traçar o perfil de segurança nas grávidas das vacinas contra a covid-19, no geral, e das diversas marcas, em particular. Não se encontra qualquer informação na EMA nem em outro qualquer organismo europeu sobre o número de doses administradas às grávidas por ano, e muito menos quais os números por marca. A falta de informação é intencional: deste modo, torna-se impossível calcular a incidência de efeitos graves.

    O relatório de segurança do regulador europeu de 8 de Dezembro passado dedica às grávidas uma breve referência final em uma única frase, por sinal a última de um texto de nove páginas: “Além disso, a EMA está a coordenar estudos observacionais nos Estados-Membros, analisando dados do mundo real de prática clínica para monitorizar a segurança e a eficácia das vacinas contra a covid-19, inclusive em mulheres grávidas” [“In addition, EMA is coordinating observational studies in EU Member States looking at real-world data from clinical practice to monitor the safety and effectiveness of COVID-19 vaccines, including in pregnant women”].

    Esta lapidar frase, cheia de coisa nenhuma, a não ser incerteza, escrita dois anos após o início da vacinação, diz muito, ou demasiado, da forma cega como se administrou as doses em grávidas – ainda mais sem nunca se ter evidenciado serem estas um grupo particularmente de risco, até porque a generalidade é jovem e saudável.

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    Por esse motivo, mostra-se enganador sequer comparar directamente o número de reacções adversas entre as diversas farmacêuticas. Por exemplo, apesar de as vacinas da Pfizer, sobretudo a primeira (Tozinameran), serem suspeitas de causar 3.297 reacções adversas graves (62% do total), o seu perfil de segurança até poderá ser melhor do que as de outras vacinas, uma vez que 73,3% de todas as quase 934 milhões de doses administradas no Espaço Económico Europeu eram desta farmacêutica norte-americana. Além disso, seria necessário saber especificamente a quantidade de grávidas que tomaram cada uma das vacinas, e em que anos, bem como as suas idades e condições de saúde, confrontando com a incidência de reacções adversas.

    Mesmo com esta falta absurda de informação – sendo que as grávidas propriamente ditas ainda estarão mais na ignorância –, causa estupefacção observar que a vacina da AstraZeneca causou 756 reacções adversas graves neste grupo de mulheres. Isto sabendo que foram administradas apenas 68,8 milhões de doses na globalidade das idades (sendo que nunca a menores), valor que contrasta com as 685 milhões de doses da Pfizer (quase 10 vezes mais) e as 161 milhões de doses da Moderna (134% a mais, no global, mas “apenas” mais 50% de reacções adversas graves em grávidas).

    Em suma, não terá sido indiferente para as grávidas, do ponto de vista do risco, a marca de vacina administrada. As grávidas (e as outras pessoas) sabiam? Não. Foi-lhes dada escolha? Não.

    A panóplia de reacções graves detectadas pelo PÁGINA UM na base de dados da EudraVigilance são vastas e nem sempre fáceis de catalogar. Porém, no caso das grávidas, além do risco da sua própria morte, o mais grave dos efeitos adversos graves notificados na EMA parece óbvio: a morte da “criança” em formação, ou tecnicamente, do feto.

    E aí, apesar do regulador português presidido por Rui Santos Ivo – que, desde Dezembro de 2021, luta tenazmente, agora no Tribunal Administrativo, para não ceder ao PÁGINA UM os dados administrativos do Portal RAM com informação anonimizada – nem sequer se dignar a fazer referência às reacções adversas em grávidas e nos fetos (talvez por os considerar sem personalidade jurídica), e a EMA adiar o assunto para as calendas, os registos da Eudravigilance mostram os frios números de vidas perdidas.

    De acordo com a análise individual do PÁGINA UM às 5.336 reacções graves em grávidas desde 2021 – a base de dados da Eudravigilance apenas permite descarregar em formato de folha de cálculo uma síntese das notificações –, aparecem 3.385 abortos (a esmagadora maioria com a indicação de serem espontâneos) e mais 246 mortes fetais desde Janeiro de 2021. Ignora-se a distribuição por países.

    Estimativa do número de reacções adversas graves por ano (2023 apenas até à primeira semana de Fevereiro) em Portugal por tipo de vacina. Fonte: EudraVigilance. Análise: PÁGINA UM.

    Mais de duas em cada três reacções adversas graves (68%) em grávidas resultaram, assim, na perda da criança – chamemos assim por dignidade. Também aqui o ano de 2021 foi o pior, havendo registos de 2.039 abortos e 144 mortes fetais.

    O peso no total das reacções consideradas graves foi, contudo, superior (72%) à média. Em 2022, essa percentagem desceu para 62%, ou seja, notificaram-se 1.305 abortos e 96 mortes fetais para um total de 2.244 casos graves. O presente ano tem ainda poucos casos para se tirar uma tendência, mas a proporção é, por agora, próxima da dos anos anteriores.

    Mais uma vez, como referido para os casos graves totais, não se mostra possível aferir qualquer sinal sobre o perfil de segurança de cada uma das vacinas, mas tudo aparenta que existam diferenças significativas. Por outro lado, aparentemente, a diminuição de mortes de crianças antes do nascimento entre 2021 e 2022 deverá estar mais associado a uma menor procura de reforços neste segundo ano do que a uma melhoria da segurança. Porém, reitera-se: sem disponibilização de dados fiáveis, a especulação manter-se-á sempre.

    Se a especulação não é aconselhável, a falta de dados – por intencional obscurantismo de entidades públicas e do Ministério da Saúde – também não deve causar uma completa ausência de debate. E uma coisa parece assim evidente: com os valores de abortos e mortes fetais nos países do Espaço Económico Europeu, será estatisticamente impossível que as mulheres portuguesas grávidas não tenham sido afectadas pelas vacinas contra a covid-19.

    Com efeito, se estimarmos a ocorrência de 100 mil gravidezes por ano em Portugal (um valor que já considerará os abortos espontâneos em condições naturais), significa que o nosso país tem um peso da rondar os 2% no total de gravidezes no Espaço Económico Europeu. Ora, se se aplicar esse peso à totalidade dos efeitos adversos, então em Portugal terão já ocorrido 108 casos graves de reacções adversas em grávidas, das quais 61 em 2021, mais 46 no ano passado e apenas uma este ano.

    Estimativa do número de reacções adversas graves por ano (2023 apenas até à primeira semana de Fevereiro) em Portugal por tipo de vacina. Fonte: EudraVigilance. Análise: PÁGINA UM.

    Considerando as fatalidades, será de supôr então que tenham ocorrido – a menos que o Santo Ivo, esse, o padroeiro dos advogados venha argumentar com um milagre – 68 abortos e quatro mortes fetais em Portugal desde 2021. As estimativas podem ser feitas por farmacêutica.

    Este número pode, em termos absolutos, e do ponto de vista estritamente de Saúde Pública, ser considerado um número aceitável? Depende. Primeiro, qualquer que seja este valor, são vidas individuais que se perderam, dramas que se vivenciaram.

    Segundo, tem de se colocar uma questão essencial: valeram a pena essas vidas perdidas ou foram em vão? Quantas grávidas se salvaram por haver este programa de vacinação massivo para um grupo onde não existiam (e continuam a escassear) estudos de segurança sobre as vacinas contra a covid-19? Quantas mortes de grávidas houve em Portugal pela covid-19 antes das vacinas? Que se diga, mas sem mentiras.

    E, sobretudo, disponibilize-se essa informação às grávidas. O consentimento informado só pode exercer-se com informação. Não com omissões intencionais, não com obscurantismo deliberado, não com falsidades descaradas.


    O PÁGINA UM divulga os registos individuais (obviamente anonimizados) das notificações desde 2021 dos efeitos adversos graves da base de dados da Eudravigilance, gerida pela EMA, relacionadas com grávidas. Decidiu-se agrupar os dados por farmacêutica, sendo que em cada ficheiro se encontram todos os registos por ano e por vacina (havendo três da Pfizer e outros três da Moderna). Não se incluíram os ficheiros da Valneva e da Sanofi / GlaxoSmithKline, uma vez que, por serem ainda pouco usadas, não contabilizam ainda reacções adversas graves. Na coluna N de cada folha de cálculo constam as ligações directas para a base de dados do Eudravigilance onde se poderá consultar o respectivo registo de notificação.

    Pfizer

    Moderna

    AstraZeneca

    Janssen

    Novavax

  • Governo apaga contratos do Portal Base para enganar Tribunal Administrativo

    Governo apaga contratos do Portal Base para enganar Tribunal Administrativo

    Depois da intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a todos os contratos de compra de vacinas contra a covid-19, o Governo fez desaparecer o conteúdo dos únicos quatro contratos inseridos no Portal Base, que somente reportavam a compras de cerca de 10 milhões de doses. Portugal terá comprado pelo menos 45 milhões de doses, mas ignora-se as condições futuras. Com o expurgo dos quatro primeiros contratos, a estratégia do Ministério da Saúde seria convencer o Tribunal Administrativo de que, por haver um acordo central assinado entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, Portugal não assinou qualquer contrato. A artimanha, porém, não resultou. O PÁGINA UM tem os quatro contratos “apagados” do Portal Base. E quer mesmo ver os outros.


    O Governo apagou literalmente do Portal Base os quatro únicos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 numa clara tentativa de evitar que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigue o Ministério da Saúde a ceder ao PÁGINA UM a globalidade dos acordos comerciais com as farmacêuticas, que já deverão aproximar-se dos 700 milhões de euros. No último dia do ano passado, o PÁGINA UM colocou um processo de intimação, depois de esgotadas todas as tentativas para o ministério de Manuel Pizarro permitir a consulta dos contratos com a Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen.

    Os custos exactos destas vacinas adquiridas por Portugal são desconhecidos, porque nunca foram comprovadas as quantidades efectivamente compradas nem o respectivo preço unitário, alegadamente por cláusulas de confidencialidade de legalidade duvidosa e de transparência democrática nula. Também se ignora as quantidades adquiridas a cada farmacêutica, sendo certo que as vacinas da Janssen e a AstraZeneca quase deixaram de ser administradas e a Pfizer tem vindo a suplantar a Moderna.

    Manuel Pizarro. O seu ministério luta com todas as armas e artimanhas possíveis e imagináveis para evitar mostrar compras e compromissos com as farmacêuticas ao PÁGINA UM. Quando não se pode já esconder, então apagam-se contratos.

    A Direcção-Geral da Saúde apenas colocara, até agora, os primeiros quatro contratos, assinados entre Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, no valor de 135 milhões de euros, que serviram para comprar as primeiras 10 milhões de doses para a fase inicial do programa de vacinação. Estes lotes terão dado para vacinar 5 milhões de pessoas. Na plataforma da contratação pública estavam, até há poucas semanas, tanto os dois contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e a Pfizer como os que foram assinados com a Moderna.

    Embora faltassem na plataforma de contratação pública todos os contratos subsequentes a partir de Janeiro de 2021 – que terão envolvido pelo menos a aquisição de cerca de 35 milhões de doses –, no Portal estiveram integralmente inseridos os quatro contratos, sem rasuras nem cortes, durante quase dois anos.

    Agora, os ficheiros dos quatro contratos foram substituídos por outros ficheiros completamente vazios de conteúdo. Toda a informação foi apagada, conforme se pode confirmar aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Nos dois ficheiros anexos aos dados dos contratos com a Pfizer, agora inseridos no Portal Base,

    white and black labeled bottle

    O acto de expurgo foi absoluto, intencional e recente. Com efeito, decorre neste momento um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa com vista ao acesso integral aos contratos das vacinas contra a covid-19, às comunicações com as farmacêuticas e a documentos complementares (como guias de transporte) , intentado pelo PÁGINA UM, tendo já o ministério de Manuel Pizarro alegado que como a Comissão Europeu “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”. Ou seja, que não existiam contratos entre a DGS e as farmacêuticas.

    Mas isso é falso – aliás, o recurso à mentira tem sido uma prática sistemática do Ministério da Saúde em processos de intimação. Há contratos, até porque, apesar dos acordos (APAs) terem sido concretizados ao nível da Comissão Europeia, existe sempre a necessidade de as compras específicas para Portugal serem suportadas por contratos mais simplificados, como se mostrava evidente nos quatro primeiros contratos colocados no Portal Base.

    Antes do “apagão” dos documentos no Portal Base, o PÁGINA UM pôde garantir que, no caso dos dois contratos aí existentes com a Pfizer, conseguia-se conhecer o número de doses adquiridas e os prazos de entrega, o valor da aquisição, o nome do responsável em Portugal pela recepção das vacinas e quem os assinara, entre outros pormenores.

    Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna agora inseridos no Portal Base, depois do expurgo ordenado pelo Governo, segundo consulta realizada hoje.

    No primeiro contrato – para a aquisição de 4.4400.804 doses, no valor total de 54.489.660 euros –, contendo seis páginas, pela Direcção-Geral da Saúde assinou a então subdirectora-geral Vanessa Pereira de Gouveia. No segundo contrato – para a compra de 2.220.596 doses por 34.419.238 euros –, também com seis páginas, foi Graça Freitas a signatária. Pela farmacêutica norte-americana assinou Nanette Coccero, presidente da Vaccine Global.

    Quanto aos dois contratos entre a DGS e a Moderna, que constavam no Portal Base, o PÁGINA UM também pode garantir que tinham menos detalhes e apenas cinco páginas cada. Ambos foram assinados por Graça Freitas e por Jerome Maddox, então vice-presidente da Moderna – que estava sedeado em Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts – em 29 de Dezembro de 2020, a um preço de 27.247.155 euros e de 18.780.000 euros. Saliente-se que é uma completa anormalidade a existência de contratos públicos desta natureza e dimensão financeira sem qualquer informação nem detalhe.

    E o PÁGINA UM pode garantir tudo isto, porque, antes de o Governo ter ordenado a substituição dos contratos do Portal Base – para apagar provas perante o Tribunal Administrativo de Lisboa –, descarregou os originais do Portal Base.

    Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna, e inicialmente colocados no Portal Base, antes do expurgo ordenado pelo Governo.

    Assim, quem quiser pode confrontar-se, para o primeiro contrato da Pfizer, o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    Para o segundo contrato da Pfizer, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está (que é igual ao do primeiro contrato) com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    Para o primeiro contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    E, por fim, para o segundo contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

    Recorde-se ainda que outro argumento do Ministério da Saúde junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, para evitar o acesso do PÁGINA UM aos contratos, é a alegada realização de uma auditoria à gestão das vacinas, algo que não foi ainda comprovado nem justificado, nem conflitua com uma consulta.

    E, depois de tudo isto, retirar as devidas conclusões, esperando que o último bastião da Democracia, os tribunais, não se deixem ludibriar com estas artimanhas governamentais.


    N.D. Não vá o Ministério da Saúde repor os ficheiros originais no Portal Base, fazendo crer que o PÁGINA UM não é rigoroso, decidiu-se então gravar integralmente uma consulta aos conteúdos do contratos nesta madrugada. A confiança na transparência do Governo, em geral, do Ministério da Saúde, em particular, é neste momento nula. Para memória futura, os ficheiros expurgados agora pelo Governo podem ser visualizados aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer, que aparenta ser igual ao do primeiro, pelos sombreados), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Também para memória futura, conheça-se um dos contratos originais entre a Pfizer (BioNTech) e a Comissão Europeia (SANTE/2020/C3/043/043) antes de ser expurgado e depois de ser expurgado das partes “sensíveis”.

  • Filipe Froes recebe dinheiro por sessão de lançamento de fármaco ineficaz que recomendou como consultor da DGS

    Filipe Froes recebe dinheiro por sessão de lançamento de fármaco ineficaz que recomendou como consultor da DGS

    Já nem é uma questão só de promiscuidade, mas de despudor: o pneumologista Filipe Froes já recebe honorários para estar presente em sessões de lançamento de fármacos que acaba por recomendar como consultor da Direcção-Geral da Saúde. O caso passou-se com um evento sobre um fármaco da AstraZeneca, o Evusheld, um anticorpo monoclonal. Mas o fármaco serve para tão pouco que, nos Estados Unidos, a Food & Drug Administration retirou a autorização porque o Evusheld tinha eficácia sobre menos de 10% das variantes do SARS-CoV-2. O Ministério da Saúde mantém-se em silêncio sobre (mais este) caso do pneumologista que se destacou como uma das figuras mais mediáticas a nível nacional durante a pandemia, e que é mandatário de Carlos Cortes, um dos “finalistas” a novo bastonário da Ordem dos Médicos.


    O médico Filipe Froes recebeu 750 euros da farmacêutica da AstraZeneca apenas por participar na sessão de lançamento do Evusheld, um fármaco constituído por anticorpos monoclonais. A verba consta do Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, onde se mostra que o pneumologista acumulou, só em Janeiro deste ano, 3.353 euros da AstraZeneca, Merck Sharpe & Dohme e GlaxoSmithKline.

    O montante recebido pelo evento da AstraZeneca, em si, até chega a ser banal para os bolsos deste pneumologista – actual mandatário de Carlos Cortes nas eleições a bastonário da Ordem dos Médicos – que saltita entre os corredores do Hospital Pulido Valente e as salas e apertos de mão de dezenas de farmacêuticas, sempre com contrapartidas económicas, se não fosse o caso de ele ser um dos consultores da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que recomendou este mesmo fármaco Evusheld como terapia contra a covid-19 para imunodeprimidos.

    Filipe Froes (ao centro), entregou como mandatário, no dia 21 de Novembro, a candidatura de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.

    Com efeito, no passado dia 2 de Dezembro, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, aprovou a norma 015/2022 que definiu “a implementação da profilaxia de pessoas com imunodepressão grave, através da utilização de anticorpos monoclonais anti-SARS-CoV-2”.

    Nessa linha ficou estabelecido que eram elegíveis para profilaxia com anticorpos monoclonais (PAM) as pessoas com transplantes (medula óssea, coração e pulmão), com certos tumores ou com infecção por VIH, tendo-se recomendado “a administração conjunta de Tixgevimab e de Cigavimab”, os dois anticorpos monoclonais que constituem o fármaco Evusheld, da AstraZeneca. A Agência Europeia do Medicamento tinha aprovado este fármaco apenas em Setembro do ano passado.

    De entre os 12 peritos da DGS que elaboraram esta norma, consta Filipe Froes. Este médico participou, aliás, na generalidade das normas terapêuticas aprovadas contra a covid-19 durante a pandemia, introduzindo medicamentos de farmacêuticas com quem trabalhava, através de consultadorias e participação em eventos de interesse comercial.

    O fármaco da AstraZeneca foi aprovado pela Agência Europeia do Medicamento em Setembro do ano passado.

    Froes foi, por exemplo, consultor da Gilead especificamente para o remdesivir, um polémico antiviral usado para o tratamento de doentes com covid-19. E no ano passado esteve particularmente activo em eventos com a Sanofi e a GlaxoSmithKline, farmacêuticas que entraram recentemente no chorudo negócio das novas versões dos boosters contra a covid-19, com a VidPrevtyn Beta.

    Ao longo do ano passado, Filipe Froes foi um dos mais fervorosos adeptos do uso – e da compra pelo Estado – dos diversos medicamentos de última geração contra a covid-19, mas de eficácia duvidosa, que foram surgindo pelas mãos de muitas importantes farmacêuticas, como a Pfizer (antiviral Paxlovid), a Merck Sharpe & Dohme (antiviral Lagrevio) e a GlaxoSmithKline (anticorpo monoclonal Xevudy).

    Com todas e muitas mais farmacêuticas, Froes teve fortes relações comerciais, com valores totais que rondam os 50 mil euros por ano, de acordo com o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed. Convém, contudo, salientar que o regulador não faz fiscalização regular a estas relações entre clínicos e farmacêuticas, sendo a inserção dos montantes realizada voluntariamente e sem necessidade de comprovativo legal.

    Apesar do Ministério da Saúde não ter revelado ao PÁGINA UM, depois de questionado, o valor de eventuais compras de Evusheld à AstraZeneca, certo é que a sua utilização poderá vir a ser reduzida, se for seguida, na Europa, a decisão da agência norte-americana Food and Drug Administration (FDA) que, no passado dia 26 de Janeiro, decidiu retirar a autorização para administração do fármaco da AstraZeneca.

    O regulador dos Estados Unidos concluiu que o Evusheld era eficaz apenas para menos de 10% das variantes que circulavam naquele país, e que só se justificariam os eventuais efeitos adversos se a eficácia fosse superior a 90%. A própria farmacêutica já assumiu essa decisão do regulador norte-americano no seu próprio site.

    Registo de Janeiro de 2023 dos honorários (registados) de Filipe Froes provenientes da indústria farmacêutica. Fonte: Infarmed.

    A decisão da FDA acaba por não surpreender, porque o regulador foi dando avisos ao longo de 2022 sobre o fraco desempenho do fármaco da AstraZeneca: o primeiro em Fevereiro do ano passado, o segundo em Junho, o terceiro em Outubro e o quarto já no dia 6 de Janeiro deste ano.

    Surpreendente, talvez mais, seja a manutenção da confiança do Ministério da Saúde em Filipe Froes, que entretanto está com um processo disciplinar instaurado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) desde Fevereiro do ano passado. O PÁGINA UM quis saber se a participação de Filipe Froes na sessão de lançamento – um evento comercial – do fármaco da AstraZeneca alteraria essa postura governamental, mas não obteve, até agora, qualquer resposta.


    N.D. Embora se esteja a noticiar factos, tanto nesta como em outras notícias o PÁGINA UM poderia ter tentado obter um comentário de Filipe Froes. Sucede que não o fez nem faz por uma simples razão: há um meses, tentou-se obter uma reacção deste pneumologista, através de uma mensagem por Messenger, que obteve como resposta um simples “bloqueio de conta”, que se mantém. Presume-se assim que Filipe Froes jamais esteja interessado em dar esclarecimentos aos leitores do PÁGINA UM. Contudo, isso não desonera o PÁGINA UM de escrever com o máximo rigor sobre tudo aquilo que diga respeito à acção pública deste médico. Como, aliás, faz com tudo o resto.

  • Aqui há gato: Instituto Superior Técnico com pressa em “destruir” original do “esboço embrionário” para impedir confronto de documentos

    Aqui há gato: Instituto Superior Técnico com pressa em “destruir” original do “esboço embrionário” para impedir confronto de documentos

    A Ciência costumava ser aberta e transparente, mas o Instituto Superior Técnico tem estado a escrever vergonhosas linhas sombrias. Um simples pedido de envio de um relatório em Julho feito por um jornal, transformou-se numa “recusa infantil” enviada pelo smartphone do presidente da instituição universitária. O caso acabou no Tribunal Administrativo de Lisboa, onde a defesa do catedrático Rogério Colaço garantiu estar-se perante não um relatório, mas sim um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Agora, feita a sentença, que o PÁGINA UM ainda aguarda esclarecimentos, o Instituto Superior Técnico enviou apressadamente o suposto relatório (que recusara em Julho) e não perdeu tempo a requerer a retirada do processo do suposto original que fora obrigado pela juíza a enviar em envelope lacrado. Se a juíza concordar com este expediente, apaga-se a prova de um eventual crime de fraude científica.


    Tem 11 páginas, um sumário, 12 gráficos, uma breve conclusão. O PÁGINA UM recebeu ontem pela manhã, por correio electrónico, o famigerado Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico, que em Julho do ano passado “responsabilizou” as festividades de Junho (festas populares e festivais de música) da responsabilidade por 330 mortes. Mas esta autêntica “novela científica” está ainda longe do seu epílogo.

    A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, assinada pela juíza Telma Nogueira na sexta-feira passada, concedeu razão ao PÁGINA UM quanto ao considerar a existência do direito de acesso aos relatórios elaborados pelo Instituto Superior Técnico numa parceria – que até teve apresentação pública – com a Ordem dos Médicos. No total, terão sido realizados 52 relatórios.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, quer ver destruído documento enviado ao Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar confronto com a cópia que foi remetida ontem. Não deu sequer tempo para o trânsito em julgado. Tanta pressa e falta de transparência alimenta legítimas suspeitas de se estar perante uma fraude.

    Porém, a juíza ter-se-á esquecido de decretar explicitamente que o Instituto Superior Técnico teria também de enviar os outros relatórios, bem como os ficheiros com os dados que permitiram a elaboração das previsões e dos gráficos para se garantir não se estar perante uma fraude científica com objectivos de alarme social ou outros fins menos nobres. No requerimento do PÁGINA UM constava explicitamente esses pedidos, que permitiriam uma avaliação independente do rigor científico, uma tarefa considerada normal e até banal em debates científicos.  

    No entanto, sem sequer aguardar o trânsito em julgado – e, portanto, o direito de o PÁGINA UM requerer a consulta do processo e tomar outras diligências, incluindo recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul para satisfação integral dos direitos de acesso aos outros relatórios e aos ficheiros informáticos –, ontem mesmo os serviços jurídicos do Instituto Superior Técnico requereram à juíza Telma Nogueira o “desentranhamento” (retirada e devolução) do original do documento que fora obrigado a enviar em envelope lacrado.

    Última página do relatório nº 52 enviado ontem pelo Instituto Superior Técnico. O conteúdo será similar ao documento enviado à juíza? Existiria em Julho de 2022?

    O envio desse original ao Tribunal teve como objectivo saber se o polémico relatório rápido número 52 era ou não um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Se fosse assim considerado pela juíza, então não seria um documento administrativo e o Instituto Superior Técnico estaria livre de continuar a esconder esse documento ao PÁGINA UM e ao público.

    A solicitação, feita de forma inaudita e tão lesta, para a retirada do suposto relatório original – a única pessoa fora da instituição universitária que, até agora, o viu e analisou foi a juíza Telma Nogueira –, alimenta e sustenta fortes e legítimas suspeitas de o dito original não ser semelhante ao relatório ontem enviado ao PÁGINA UM.

    Se houver deferimento da juíza, algo ao qual o PÁGINA UM já se opôs por requerimento, o Instituto Superior Técnico conseguiria, para todo o sempre, apagar a “prova do crime”.

    Este caso absurdo, aliás, mostra-se ainda mais suspeito, porquanto, apesar do relatório enviado ser de qualidade paupérrima – por não justificar cientificamente qualquer número e conter afirmações pueris do género “Neste momento ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre (…)” –, pela sua estrutura nunca poderia ser considerado um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. Quando muito apenas um mau relatório.

    Aliás, durante o processo de intimação, a defesa do Instituto Superior Técnico acabou até por defender que as suas conclusões, que permitiu serem divulgadas com grande destaque pela imprensa em finais de Julho passado, ” “não se vislumbra[va] também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, ” pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Ao longo dos últimos seis meses, a instituição universitária tudo fez para não ser obrigada a divulgar o documento ao PÁGINA UM, o que incluiu até a sugestão de ser ouvida uma testemunha, algo que a juíza considerou não ser necessário.

    A instituição liderada actualmente por Rogério Colaço, integrada na Universidade (pública) de Lisboa esteve intensamente envolvida em actividades de investigação e de parcerias empresariais durante a pandemia, contando com pelo menos 14 projectos em áreas tão distintas como a produção de viseiras, desinfectantes e zaragatoas até um jogo de computador para boas práticas sociais relacionado com a covid-19, passando por modelos de simulação e previsão e até por sistemas de detecção do SARS-CoV-2 através da fala.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria, mas foram elaborados 52 relatórios, sem que nunca se tenha visto ainda os ficheiros de dados

    Além destes projectos, não se conhecem ligações directas dos investigadores do Instituto Superior Técnico a farmacêuticas, mas no famigerado relatório número 52 tecem-se considerações muito elogiosas às “vacinas de nova geração”, mesmo se o foco do estudo não mede indicadores de eficiência das antigas e novas versões. Por exemplo, na página 11 do relatório 52 diz-se, sem se vislumbrar qualquer base científica que “se a hipótese da perda de imunidade se verifica, estas vagas [de infecções] vão-se suceder de forma periódica ao longo dos anos”, concluindo que “a única forma de quebrar estes ciclos será com vacinas de nova geração”.

    Recorde-se que o processo de intimação do PÁGINA UM veio no decurso de uma tentativa informal, em finais de Julho, para que a equipa do Instituto Superior Técnico, supervisionada pelo próprio presidente Rogério Colaço, disponibilizasse o relatório, os dados e a metodologia de um relatório divulgado em exclusivo pela Lusa – e que “viralizaria” pela imprensa mainstream, que nunca o viu. O suposto relatório responsabilizava o levantamento das restrições por 790 mortes atribuídas à covid-19, das quais 330 devidas às festividades de Junho.

    Essa conclusão (supostamente científica de uma prestigiada instituição universitária pública) contrastava, porém, com a realidade: ao longo daquele mês até se observara uma redução dos casos positivos e da mortalidade por essa doença, mesmo a despeito dos grandes ajuntamentos de eventos como as festas de Santo António de Lisboa e do São João do Porto e também de alguns festivais de música.

    Investigadores do Instituto Superior Técnico responsabilizaram festividades de Junho pela morte de 330 pessoas e culparam o levantamento das restrições por 790 óbitos. Números constam do relatório ontem enviado ao PÁGINA UM, mas surgem “caídos do céu”.

    Na verdade, tendo havido uma descida de casos – ao contrário de uma previsão anterior dos investigadores do Instituto Superior Técnico, que apontavam para valores mais elevados –, mostrava-se impossível individualizar um efeito negativo das festividades. E muito menos apontar a responsabilidades directas por mortes, quantificando-as mesmo.

    Apesar de o PÁGINA UM ter como prática a máxima transparência dos documentos recebidos, no caso do relatório enviado ontem pelo Instituto Superior Técnico aguardaremos esclarecimentos do Tribunal Administrativo de Lisboa, estando ainda em análise outro tipo de medidas.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Gripes e pneumonias letais são raras em jovens, mas em 2020 até mataram mais do que a covid-19

    Gripes e pneumonias letais são raras em jovens, mas em 2020 até mataram mais do que a covid-19

    Há uma semana, o PÁGINA UM denunciava o atraso de Portugal na divulgação das causas de morte por idade no site do Eurostat, e menos de uma semana depois surgiram. Coincidências à parte, conseguiu-se finalmente saber o impacte do primeiro ano da pandemia e sobretudo revelar a fraca relevância da covid-19 na população jovem, que acabou vacinada ao longo de 2021 e 2022. Sem necessidade, na verdade: a mortalidade por covid-19 nos menores de 25 anos não teve qualquer expressão estatística (cinco mortes em 2020), muito abaixo do impacte das pneumonias e praticamente ao nível da gripe. Os dados também permitem saber finalmente o número exacto para fins estatísticos das mortes atribuídas à covid-19 em Portugal no primeiro ano da pandemia (2020): segundo os valores enviados ao Eurostat, morreram 7.009 pessoas com confirmação laboratorial, a que acresceram mais 116 sob suspeita (sem confirmação laboratorial). A Direcção-Geral de Saúde apontava para 6.972 mortes em 31 de Dezembro de 2020.


    Apesar das pneumonias virais e bacterianas serem doenças raras e felizmente pouco letais nas populações jovens, o seu impacte neste grupo etário diminuiu em 2020 – no primeiro ano da pandemia causada pelo SARS-CoV-2 –, mas mesmo assim o número de óbitos foi quatro vezes superior à da covid-19. Noutra perspectiva, a relevância da covid-19 em termos de saúde pública para este grupo etário foi claramente empolada antes e durante a fase de vacinação.  

    Esta é uma das principais conclusões da análise do PÁGINA UM feita à base de dados do Eurostat referente à mortalidade entre 2012 e 2020, incidindo sobre os óbitos no grupo etário dos menores de 25 anos. Ainda não existe qualquer informação para 2022, e os dados de 2021 ainda não estão disponibilizados para a esmagadora maioria dos países da União Europeia. Mesmo para o ano de 2020 a Itália e a Bélgica ainda não os disponibilizaram, pelo que esta análise excluiu estes países. Curiosamente, só esta semana surgiram os dados de Portugal, por coincidência poucos dias depois de o PÁGINA UM ter denunciado o atraso do Governo português.

    photo of three men jumping on ground near bare trees during daytime

    Sabe-se agora, finalmente, os números totais das mortes atribuídas à covid-19 no nosso país em 2020: para todas as idades, houve 7.125 óbitos, embora 116 sem confirmação laboratorial. As pneumonias foram responsáveis por 4.375 mortes, observando-se uma descida acentuada face aos anos anteriores. Por exemplo, em 2012 (sem covid-19), as pneumonias tinham sido responsáveis por 6.795 mortes em todas as idades. Mesmo com a baixa actividade do vírus influenza, os registo portugueses apontam para 133 óbitos, quando em 2019 se tinham contabilizado 334.

    No caso do grupo das crianças, adolescentes e adultos jovens, os dados confirmam, contudo, que a covid-19 teve um impacte nulo do ponto de vista do risco de vida. De acordo com a base de dados do Eurostat – que, ao contrário da informação disponível pelo  Instituto Nacional de Estatística, desagrega em detalhe as causas de morte pela codificação da Organização Mundial da Saúde –, a covid-19 terá causado no ano de 2020 a morte de 176 jovens com menos de 25 anos da União Europeia (não incluindo ainda Bélgica e Itália), representando somente 0,6% do total dos óbitos deste grupo etário (29.585).

    As pneumonias, por sua vez, resultaram em 680 desfechos fatais neste grupo etário (2,3% do total), enquanto a gripe – mesmo com o seu quase desaparecimento – surge como causa de 84 mortes (0,3% do total).

    Mortalidade por pneumonias, gripe e covid-19 entre 2012 e 2020 nos jovens com menos de 25 anos na União Europeia (excluindo Bélgica e Itália). Fonte: Eurostat. Análise: PÁGINA UM.

    Em parte pelas medidas não-farmacológicas – que afectaram significativamente o normal desenvolvimento dos mais novos, tanto a nível escolar como de convívio social –, a letalidade das pneumonias até registaram uma redução significativa. No quinquénio anterior ao início da pandemia (2015-2019), as pneumonias provocaram, em média, 864 óbitos por ano nestes países europeus, o que significa que em 2020 se contabilizou uma queda de 21,3% (menos 184 óbitos). Comparando com os piores anos da última década, a redução das mortes de jovens por pneumonias ainda é maior. Por exemplo, em 2012 faleceram 1.175 jovens destes países europeus por pneumonias – o que confronta com as 176 mortes por covid-19 e as 680 mortes por pneumonias em todo o ano de 2020.

    Aliás, para uma comparação mais efectiva e correcta do impacte da pandemia nos mais jovens, se se somar as mortes por covid-19, gripe e pneumonias – o denominado PIC (pneumonia, influenza e covid), que chegou a ser usado nos Estados Unidos para medir o impacte da pandemia – observa-se que, face a 2020, houve anos muito piores. Com efeito, para o grupo dos menores de 25 anos, segundo os dados do Eurostat, a mortalidade por PIC nos menores de 24 anos foi de 940 óbitos, ligeiramente superior ao ano anterior, mas sendo o terceiro menos mortífero desde 2012. Portanto, antes da existência da vacina contra a covid, esta situação configura um contexto claramente muito desfasada do alarme social junto de muitos pais e de jovens adultos.

    girl in white shirt and blue denim jeans standing on green grass field during daytime

    Este cenário da mortalidade por PIC foi, porém, bastante distinto nos diferentes países, mas não necessariamente por causa da covid-19, antes sim pelo paradoxal aumento das mortes por pneumonias não-covid-19 e pela gripe. Neste grupo de países em contra-ciclo destacam-se a França, Espanha e até Portugal.

    Com efeito, no nosso país, embora a covid-19 tenha apenas causado em 2020 a morte de cinco menores de 25 anos (dos quais dois com menos de um ano, que nasceram com comorbilidades), as pneumonias provocaram 13 e a gripe mais quatro.

    As quatro mortes em 2020 por gripe em Portugal de menores de 25 anos acabam mesmo por ser surpreendentes, porque a actividade do vírus influenza foi muito fraca nesse ano, por via da sua “substituição” pelo SARS-CoV-2. Com efeito, entre 2012 e 2019 apenas em três anos houvera mortes neste grupo etário causadas pelo vírus influenza: em 2016 (cinco óbitos), 2018 (também quatro óbitos) e 2019 (um óbito). Contudo, 2016 e 2018 ficaram marcados por uma forte actividade gripal.

    No caso das pneumonias, os 13 óbitos também foram um número relativamente elevado, apenas ultrapassado, desde 2012, pelas 15 mortes em 2016.

    Mortalidade por pneumonias, gripe e covid-19 entre 2012 e 2020 nos jovens com menos de 25 anos em Portugal. Fonte: Eurostat. Análise: PÁGINA UM.

    Numa outra (breve) análise do PÁGINA UM, verificou-se também que a covid-19 – face à mortalidade de 2020 e dos anos anteriores com maior mortalidade por infecções respiratórias de cariz sazonal (pneumonias e gripes) – somente começou a ser uma doença de contornos mais preocupantes no primeiro ano da pandemia a partir dos 40 anos.

    Além de somente a partir dos 40 anos de idade a covid-19 ter começado no ano de 2020 a matar mais – e, portanto, a ser mais perigosa do que as pneumonias –, se considerarmos as PIC no ano de 2016 (sem covid-19 e “apenas” com gripe e pneumonias) registou exactamente o mesmo número de mortes do primeiro ano da famigerada pandemia.