Etiqueta: Dossier P1 – Transparência

  • Em França, o obscurantismo do Governo também se derrota nos tribunais administrativos

    Em França, o obscurantismo do Governo também se derrota nos tribunais administrativos

    Em Portugal, o PÁGINA UM é o único jornal português que luta para a obtenção de informação sobre a pandemia. Mas não é o único na Europa nem no Mundo. Esta semana, o histórico jornal Le Parisien, numa luta em todo idêntica às encetadas pelo PÁGINA UM, obteve uma vitória contra o obscurantismo das entidades governamentais: o Tribunal Administrativo de Paris obrigou o Ministério da Saúde a revelar publicamente uma auditoria à gestão da covid-19 feita há mais de dois anos.


    O Governo francês foi obrigado pelo Tribunal Administrativo de Paris a revelar ao jornal Le Parisien – Aujourd’hui en France um relatório mantido secreto de avaliação da primeira fase de gestão da pandemia da covid-19. E também a pagar 2.000 euros de custas do processo ao jornal parisiense, que conta, na capital francesa, com uma tiragem média diária de 184 mil exemplares, bem superior a qualquer periódico português.

    A sentença, revelada esta semana pelo jornal regional francês – criado no tempo da Resistência Francesa na II Guerra Mundial –, anula uma decisão do Ministério da Saúde do Governo Macron de não transmitir um relatório da Inspeção-Geral de Assuntos Sociais (IGAS) extremamente crítico à gestão política nos primeiros meses da epidemia.

    O obscurantismo e o show off em França durante a pandemia foi muito similar à verificada em Portugal. Em França, tal como em Portugal, poucos foram os jornais que não aceitaram a recusa de informação. Em França, o Le Parisien; em Portugal, o PÁGINA UM.

    O percurso do jornal francês até à obtenção desta vitória da transparência apenas em tribunal tem contornos muito similares aos diversos intentados pelo PÁGINA UM – o único jornal português que recorreu aos tribunais para aceder a informação escondida pelo Governo de António Costa sobre a pandemia. Até pelas entidades a que recorreu e à duração de todo o processo.

    Segundo o relato do jornal francês, em Junho 2020, o então ministro francês da Saúde, Olivier Véran, solicitou à Inspecção-Geral dos Assuntos Sociais um relatório sobre a resposta à primeira fase da pandemia. Essa auditoria, intitulada “Feedback da gestão da resposta à epidemia de covid-19 pelo Ministério da Solidariedade e Saúde”, foi-lhe entregue cinco meses depois, em Novembro de 2020.

    Mas apenas um número muito pequeno de pessoas no executivo conseguiu vê-lo. O Le Parisien solicitaria o acesso em Fevereiro de 2021, e recorreu depois à francesa Comissão de Acesso a Documentos Administrativos, em Abril, mas sempre em vão.

    Notícia do Le Parisien de quinta-feira, actualizada hoje, revelando a vitória nos tribunais para acesso a uma auditoria escondida pelo Ministério da Saúde de França sobre a gestão da primeira fase da pandemia.

    O recurso ao tribunal – tal como tem feito o PÁGINA UM – foi a derradeira solução para quebrar o obscurantismo. A petição ao Tribunal Administrativo de Paris, com a ajuda de um escritório de advocacia, foi apresentada em meados de 2021, passando ainda por audiência no Conselho de Estado, e depois regressou ao Tribunal Administrativo de Paris.

    O Ministério da Saúde francês alegava – aliás, como já fez o Ministério da Saúde português num processo ainda em recurso – que esse relatório fazia parte de decisões ainda em curso.

    Contudo, o Tribunal Administrativo de Paris acabou por considerar que “na ausência de qualquer precisão quanto à natureza e ao momento das decisões que recomendaria adoptar, o ministro da Saúde não demonstra que qualquer decisão foi tomada com base no relatório, ou que as decisões estariam sendo preparadas e que seria inseparável de um processo de tomada de decisão”.

    Capa do relatório de 205 páginas que foi escondido pelo Ministério da Saúde de França durante dois anos, e apenas libertado oficialmente por sentença do Tribunal Administrativo de Paris.

    Os juízes franceses concluíram assim que “não tem [a auditoria], ao contrário do que se sustenta, o carácter de documento preparatório para uma ou mais decisões administrativas”, ordenando que o Ministro da Saúde transmitisse “este relatório no prazo de 14 dias a contar da notificação da sentença”.

    Apesar da auditoria da Inspecção-Geral dos Assuntos Sociais ter sido já divulgada esta semana no seu site – e que o PÁGINA UM colocou já também no seu servidor –, o Le Parisien conseguira acesso por uma “fuga de informação” no início deste ano.  

    De acordo com o relatório, que abrangeu entrevistas a mais de três centenas de pessoas, para avaliar a resposta nas primeiras fases da pandemia, concluiu-se que a organização de centros de crise de saúde era “muito fluida” e o processo decisório “fragmentado”, onde ninguém pareceu ter “uma visão clara e exaustiva, independentemente de seu nível hierárquico”.

    Além disso, ficou patente que os serviços do Ministério da Saúde francês rapidamente se viram “sobrecarregados” e que “não conseguiu organizar-se de forma estruturada e sustentável”, pelo que, em resultado desta atmosfera caótica, vários fracassos surgiram.

    O Le Parisien revela, por exemplo, que nas primeiras semanas da crise sanitária cerca de 611 mil idosos residentes em lares acabaram completamente esquecidos.

    Saliente-se que em Portugal, apesar dos pedidos do PÁGINA UM, o Governo sempre se recusou a revelar dados estatísticos sobre a mortalidade exacta nos lares de idosos (ERPI) e nunca deu a conhecer a realização de um qualquer relatório de avaliação à resposta dos diversos serviços do Ministério da Saúde.

    Muitos destes pedidos podem ainda vir a ser satisfeitos, alguns já em fase de recurso, se os magistrados dos tribunais portugueses decidirem tomar uma linha similar às dos seus congéneres franceses.


    N.D. Os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos no decurso das intimações para a obtenção de informações escondidas pelo Ministério da Saúde, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 17 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • ERC mostra “cartão amarelo” ao Porto Canal e até identifica “jornalista comercial”

    ERC mostra “cartão amarelo” ao Porto Canal e até identifica “jornalista comercial”

    Menos de um ano após um polémico arquivamento, por caducidade, de um procedimento contra o Porto Canal, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) quis corrigir a mão, e passou a “pente fino” uma dezena de contratos entre o canal televisivo do Futebol Clube do Porto e entidades públicas. Saiu um rol de irregularidades e ilegalidades. E foi identificado, pela primeira vez, um jornalista, Pedro Carvalho da Silva, por participar em conteúdos que consubstanciam a execução de contratos comerciais. Este poderá ser o primeiro caso de muitas dezenas espalhados pelos principais órgãos de comunicação social portugueses. Além disso, a Porto Canal vai ter de exibir e ler um longo texto no seu noticiário para assumir as falhas.


    Ausência de identificação de patrocínios em programas, jornalistas a executarem programas comerciais, publicidade ilegal a bebidas alcoólicas e violação das normas do Código dos Contratos Públicos – este é o rol de irregularidades e ilegalidades detectadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) numa averiguação a “pente fino” de contratos entre o Porto Canal – detida pela empresa Avenida dos Aliados, maioritariamente detida por uma sociedade ligada ao Futebol Clube do Porto e presidida por Jorge Nuno Pinto da Costa.

    A deliberação do regulador, assumida em 22 de Março passado – e à qual o PÁGINA UM teve acesso em primeira-mão, e que ainda não constava hoje no site da ERC –, além de originar três procedimentos autónomos com vista a processos de contra-ordenação, obriga desde já o Porto Canal à leitura e exibição de um longo texto no seu serviço noticioso de maior audiência, “atendendo à colisão com a obrigação e garantir uma programação independente face ao poder económico”.

    Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto SAD e da Avenida dos Aliados S.A., detentora do Porto Canal.

    Nesse texto, o Porto Canal vai ter de assumir que em dois dos seus programas (Imperdíveis, patrocinado pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), e Viver Aqui, patrocinado pelo município de Vila Nova de Gaia, em Novembro e Junho de 2021, respectivamente), “ambos sob alçada da Direcção de Informação”, houve publicitação de bens, marcas e serviços de entidades públicas “sem que tal tivesse sido devidamente identificado perante os telespectadores”.

    A ERC obriga também o Porto Canal a assumir que esta sua opção “revestiu-se de opacidade, não cuidando de informar os telespectadores de que tais conteúdos resultaram de contrapartidas monetárias”, e que tal, quando não devidamente identificada, ameaça seriamente a independência do órgão de comunicação social e o livre exercício do direito à informação”.

    O regulador – no âmbito de uma análise detalhada, mas que incidiu somente no período de um ano (1 de Julho de 2021 a 30 de Junho de 2022, e em contratos exclusivamente com entidades públicas – identificou também, pela primeira vez, jornalistas habilitados com carteira profissional a executarem tarefas incompatíveis, ou seja, no cumprimento de tarefas impostas em contratos comerciais.

    Depois de ter deixado caducar um procedimento aberto em 2018, ERC voltou a passar os contratos do Porto Canal a “pente fino”. Irregularidades e ilegalidades são mais que muitas.

    Esta tem sido uma das matérias mais polémicas dentro da classe jornalística, denunciado várias vezes pelo PÁGINA UM, e sobre as quais a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, presidida pela jurista Licínia Girão, nada tem feito em concreto para atalhar.

    Desta vez – e é mesmo uma situação inédita –, a ERC nomeia explicitamente o jornalista Pedro Carvalho da Silva (CP 4108), pivot do Porto Canal e apresentador do programa de “infoentretenimento” Viver Aqui, por participar na produção de conteúdos onde “compromete não só o seu direito à autonomia e independência, como também o seu dever correspondente, tal como determinado no Estatuto do Jornalista”.

    Por outro lado, o Porto Canal comprometeu-se, neste contrato de 15 mil euros, a realizar cinco reportagens de 10 minutos em cinco meses, com conteúdos articulados entre as duas entidades, e ainda uma reportagem alargada de uma hora, ficando a hipótese de “dar ênfase ao Património Histórico ou até mesmo fazer várias reportagens em simultâneo em várias Caves de Vinho do Porto.” Ou seja, ingerências escandalosas na definição editorial de um órgão de comunicação social sob a forma de contrato público.

    Pedro Carvalho da Silva (“mascarado”), jornalista do Porto Canal, que será (em princípio) alvo de um processo disciplinar pela CCPJ, durante o primeiro aniversário do programa Viver Aqui (15 de Março de 2022), patrocinado pela autarquia de Vila Nova de Gaia. Ao seu lado esquerdo, o antigo director do Porto Canal, Tiago Girão, que cessou funções no mês de Março, mas que não foi abrangido pela deliberação da ERC.

    Na sua deliberação, os membros do Conselho Regulador dizem mesmo – e querem agora que o Porto Canal o exponha aos seus telespectadores – que “ao não acautelar as previsões legais e deontológicas exigidas, a televisão do Futebol Clube do Porto SAD “poderá ter comprometido a veracidade , rigor e objectividade dos conteúdos, em prejuízo do interesse público e da livre formação da opinião”.

    Nessa medida, a ERC enviou o processo do jornalista Pedro Carvalho da Silva para instauração de um processo disciplinar pela CCPJ. Ao contrário do que é habitual, desta vez a ERC invoca expressamente o artigo 14º do Estatuto do Jornalista, o que impedirá, em princípio, a CCPJ de não abrir, como é habitual, a abertura deste tipo de procedimentos disciplinares.

    Além de outras situações aparentemente legais mas que revelam grande promiscuidade – como autarcas que patrocinam programas a serem entrevistados nesses mesmos programas, como sucedeu com políticos de Valongo (duas vezes), Vizela e Póvoa de Varzim –, a ERC detectou ainda três casos de contratos públicos celebrados em data posterior à emissão das “peças jornalísticas”, designadamente aqueles assinados entre o Porto Canal e a UTAD e os municípios de Valongo e Póvoa de Varzim. Para estes casos, a ERC remeteu o caso para o Tribunal de Contas que poderá vir a determinar a nulidade destes três contratos e a correspondente devolução das verbas, além da eventual aplicação de multas.

    Excerto do caderno de encargos entre o Porto Canal e o município de Vila Nova de Gaia que estipula a obrigatoriedade da realização de reportagens jornalísticas sobre o município e uma entrevista ao edil.

    No caso do contrato com a UTAD, que envolveu a divulgação e cobertura do evento Vinhos Alumni, a ERC considerou que, pelas declarações dos enólogos, se estava perante publicidade a bebidas alcoólicas, pelo que será levantado um processo de contra-ordenação por violação da Lei da Publicidade.

    Na mesma linha, o patrocínio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte para o programa Norte num Minuto mereceu críticas do regulador que, apesar das justificações do Porto Canal, decidiu abrir um “processo administrativo com vista ao apuramento sistemático e em profundidade das questões legais”.

    Em suma, o regulador pretende analisar com maior detalhe uma prática cada vez mais sistemática dos media mainstream: a encomenda de conteúdos específicos por parte de um patrocinador para serem explicitamente transmitidos por um órgão de comunicação social sem que seja claro para o público que se está perante um condicionamento (pelo menos indirecto) à liberdade editorial.

    Além de tudo isto, a ERC ainda detectou que a empresa Avenida dos Aliados – a detentora do Porto Canal – não tinha colocado no ano passado a informação sobre os fluxos financeiros na Plataforma da Transparência dos Media e se existiam clientes relevantes.

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    Jornalistas a cumprirem contratos comerciais abundam nas redacções, mas até agora a ERC não os identificava nem remetia os processos para a CCPJ invocando o artigo correcto do Estatuto do Jornalista.

    A situação foi entretanto corrigida, ficando-se agora a saber que a empresa do Porto Canal teve um prejuízo em 2021 da ordem dos 233 mil euros e que depende quase exclusivamente da FCP Media (do universo da Futebol Clube do Porto SAD) para sobreviver. Com efeito, dos cerca de 3,7 milhões de euros de rendimentos naquele ano, quase 3,5 milhões (93,94%) foram “injectados” pela FCP Media.

    Saliente-se que esta fiscalização especial ao Porto Canal sucede depois de um polémico arquivamento no ano passado de um procedimento, que deveria ter culminado num processo de contra-ordenação. O arquivamento foi justificado por “caducidade”, através de uma deliberação do Conselho Regulador da ERC, e a celeuma provocou mesmo uma reestruturação interna.

    A ERC, sabe o PÁGINA UM, está também a analisar um vasto conjunto de contratos similares aos do Porto Canal que envolvem a maioria dos principais órgãos de comunicação social, tendo jornalistas habilitados com carteira profissional a executá-los como se fossem “jornalistas comerciais”.

  • Juíza aplicou “ultimato”, que termina hoje, para Manuel Pizarro esclarecer contratos sonegados

    Juíza aplicou “ultimato”, que termina hoje, para Manuel Pizarro esclarecer contratos sonegados

    Depois de apagar contratos públicos relativos às compras de vacinas contra a covid-19 no Portal Base, o Ministério da Saúde quis ignorar o Tribunal Administrativo como tem feito com o PÁGINA UM. Mas a juíza do processo não foi pelos ajustes e deu um “ultimato”. Se, pela segunda vez, não responder ao Tribunal Administrativo de Lisboa com aquilo que lhe é solicitado, Manuel Pizarro pode ser condenado como litigante de má-fé. Entretanto, a adesão à vacinação está a aproximar-se do zero: na última semana com dados, apenas se vacinaram por dia menos de 600 pessoas; em Dezembro eram quase 18 mil. Mas Portugal pode estar obrigado a comprar mais doses mesmo que não as administre, daí o interesse em se conhecerem os contratos e as comunicações com as farmacêuticas.


    No mês passado, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, quis elevar ao absurdo os padrões de obscurantismo deste Governo no acesso à informação de documentos administrativos públicos, recusando responder ao despacho da juíza que analisa o processo de intimação do PÁGINA UM com vista ao acesso aos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e as farmacêuticas.

    Mas um novo despacho da juíza Telma Nogueira, no passado dia 24 de Março, deixou-o sem margem de manobra, e mandou repetir a notificação para a “Entidade demandada [Ministério da Saúde] (…), em cinco dias, se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”

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    Nesse requerimento, o PÁGINA UM apresentou provas cabais da existência de quatro contratos integrais – ou seja, as cópias, que estiveram durante mais de um ano no Portal Base –, bem como das páginas expurgadas de quaiquer dados que actualmente constam na plataforma da contratação pública.

    A sonegação daqueles quatro contratos foram feitos no Portal Base após a apresentação da intimação pelo PÁGINA UM em 31 de Dezembro do ano passado, e teve o claro objectivo por parte do Ministério da Saúde de convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa que nunca houve contratos assinados por nenhuma entidade da Administração Pública portuguesa e as farmacêuticas.

    Além destes quatro, haverá um número indeterminado de outros contratos, uma vez que terão já sido adquiridas cerca de 45 milhões doses de vacinas e os quatro primeiros contratos englobam pouco mais de 10 milhões de doses. Porém, o número de 45 milhões de doses não tem nenhum documento de suporte; são meras indicações transmitidas pelo gabinete de imprensa do Ministério da Saúde aos órgãos de comunicação social. Também se ignora os montantes já pagos pelo Governo português às farmacêuticas.

    A notificação ao Ministério da Saúde do despacho da juíza foi concretizada no dia 27 de Março passado, pelo que o prazo de cinco dias termina hoje.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde, nem ordens do Tribunal Administrativo de Lisboa quis respeitar.

    Caso Manuel Pizarro dê instruções para não dar mais qualquer informação ao Tribunal, o Ministério da Saúde pode vir a ser condenado, desde já, como litigante de má-fé, conforme requerimento já apresentado no mês passado pelo PÁGINA UM.

    Recorde-se que o PÁGINA UM apresentou (mais) este processo de intimação face à recusa do Ministério da Saúde em disponibilizar os contratos assinados entre a DGS e as farmacêuticas para a compra de vacinas contra a covid-19. Numa primeira fase, o Ministério de Manuel Pizarro começou por alegar a existência de uma auditoria em curso à gestão das vacinas, algo que nunca comprovou nem justificou, e que nem conflitua com uma consulta. E também tentou convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que não existiam contratos entre entidades públicas portuguesas e as farmacêuticas.

    Tanto num ofício da DGS, assinado por Graça Freitas, enviado ao PÁGINA UM em Dezembro, como num requerimento de defesa do Ministério da Saúde, argumenta-se que, no âmbito da aquisição de vacinas contra a covid-19 se “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, acrescentando que isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”.

    Despacho da juíza Telma Nogueira a dar ultimato ao Ministério da Saúde. São cinco dias para responder.

    Mas isso não é verdade, como comprovou o PÁGINA UM. Durante cerca de dois anos, constaram quatro contratos no Portal Base assinados pela DGS: dois com a Pfizer e outros dois com a Moderna. Os quatro contratos originais encontram-se no servidor do PÁGINA UM.

    Porém, estes quatro contratos abrangiam uma percentagem minoritária das cerca de 45 milhões de doses supostamente adquiridas pelo Governo, razão pela qual o PÁGINA UM requereu o acesso aos outros contratos, bem como às guias de transporte e às comunicações entre farmacêuticas e Ministério da Saúde. O objectivo também é de saber se existem indicações sobre compras obrigatórias futuras e cláusulas sobre responsabilidades futuras em caso de reacções adversas graves.

    Recorde-se que Portugal terá já gastado mais de 675 milhões de euros com vacinas contra a covid-19, mas está em risco de deitar para o lixo mais de oito milhões de doses, no valor estimado de 120 milhões de euros, face ao desinteresse manifestado nos últimos meses pelos portugueses na toma dos denominados boosters.

    Além disso, os acordos assumidos pela Comissão von der Leyen – e que tanto polémica já suscitam – poderão obrigar o Estado a assumir compras obrigatórias de mais 500 milhões de euros de vacinas mesmo que não as administre.

    Face às manifestas mentiras do Ministério da Saúde, o PÁGINA UM remeteu ao Tribunal Administrativo de Lisboa um conjunto de provas documentais sobre a existência dos quatro contratos do início de 2021, bem como do “apagão” desses documentos no Portal Base ordenado pelo Ministério da Saúde.

    Em consequência, a juíza do processo, Telma Nogueira, exarou um despacho no passado dia 20 de Fevereiro com o seguinte conteúdo: “Notifique a Entidade demandada [Ministério da Saúde] para, em cinco dias se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelo Autor [PÁGINA UM] em 06.02.2023, nomeadamente, quanto à existência dos contratos cujo acesso é peticionado nos autos, cf. doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial.”

    Mas o Ministério da Saúde decidiu simplesmente ignorar a ordem do Tribunal, nem sequer respondendo à juíza Telma Nogueira, consubstanciando assim a prática de litigância de má-fé. De facto, de acordo com o Código do Processo Civil, um litigante de má-fé é a parte que, “com dolo ou negligência grave”, por exemplo, tenha “alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” ou “tiver praticado omissão grave do dever de cooperação”.

    Se recusar uma segunda vez, aparentemente não restará à juíza do processo outra opção que não seja considerar que ostensivamente o Ministério da Saúde se recusa a colaborar com um Tribunal.

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    Ministério da Saúde apagou quatro contratos do Portal Base e nunca publicou um número indeterminado de outros contratos de compra de vacinas contra a covid-19. A intimação do PÁGINA UM pretende fazer luz sobre estes estranhos negócios.

    Além do interesse em perceber quais as verbas que foram já gastas pelo Governo português com as vacinas contra a covid-19, o PÁGINA UM pretende verifcar se constam condições específicas para aquisições futuras, daí que tenha requerido também as comunicações entre entidades públicas e as farmacêuticas.

    Sabe-se que os compromissos estabelecidos pela Comissão von der Leyen com as farmacêuticas incluem compras adicionais que, aparentemente, não serão usadas. Com efeito, a procura por vacinas contra a covid-19 têm estado em queda livre à medida que a confiança neste fármaco, tanto em termos de eficácia como de segurança, tem decaído.

    Por exemplo, em Portugal, de acordo com o último relatório sazonal, relativo à semana 12 deste ano (20 a 26 de Março), apenas foram vacinadas contra a covid-19 uma média diária de 561 pessoas. Em Dezembro do ano passado, na semana 50 de 2022, foram vacinadas 17.960 pessoas por dia. A procura pelo booster sazonal (Inverno) na população com menos de 50 anos terá sido de cerca de 1%, enquanto no grupo etário dos 50 aos 59 anos foi de apenas 45%.

    A baixa adesão pode ter, como consequência imediata, a perda de validade de lotes de vacinas. O PÁGINA UM estima que, incluindo as já entretanto destruídas, Portugal venha a desperdiçar oito milhões de doses de vacinas contra a covid-19 no valor de 120 milhões de euros, já pagos às farmacêuticas.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 17 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Internamentos hospitalares: Ministério da Saúde “estrebucha” mas vai ter (mesmo) de mostrar base de dados escondida

    Internamentos hospitalares: Ministério da Saúde “estrebucha” mas vai ter (mesmo) de mostrar base de dados escondida

    Enquanto coniventes investigadores do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge garantem, num relatório ontem divulgado, que não existem dados disponíveis para saber as causa do excesso de mortalidade, o PÁGINA UM continua a sua luta pela transparência, tentando obrigar o Ministério da Saúde a mostrar as diversas bases de dados efectivamente existentes mas intencionalmente escondidas sobre os internamentos e as causas de morte dos portugueses. Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul – a segunda instância – veio agora reconfirmar a legitimidade do direito do PÁGINA UM para ver aquilo que o Governo não quer mesmo mostrar: a base de dados que permite saber quais foram as doenças que levaram os portugueses a serem internados e quais as suas taxas de mortalidade ao longo do tempo. A Administração Central do Sistema de Saúde, presidido por um amigo de longa data da ex-ministra da Saúde Marta Temido, tem agora 10 dias para disponibilizar ao PÁGINA UM a base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos.


    É um acórdão verdadeiramente histórico em prol da transparência – e a confirmação de (mais) uma derrota da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) na desesperada tentativa de esconder o que se tem passado no Sistema Nacional de Saúde nos últimos anos.

    Aprovado pelos desembargadores Ricardo Ferreira Leite, Catarina Jarmela e Paula Ferreirinha Loureiro, o acórdão com data de 23 de Março, em resposta a um recurso da ACSS, é categórico na confirmação da sentença de primeira instância, de Novembro do ano passado, que obrigara a entidade tutelada pelo Ministério da Saúde a “facultar (…) o acesso ou cópia digital da base de dados do GDH [Grupos de Diagnósticos Homogéneos], expurgada dos dados pessoais que nela constem” ao PÁGINA UM.

    Marta Temido (ex-ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. A antiga governante e o dirigente da ACSS foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    O acórdão do passado dia 23 de Março concede um prazo de 10 dias úteis para o seu cumprimento. Embora ainda haja possibilidades de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, um volte-face será pouco provável: os desembargadores descartaram agora qualquer possibilidade de nulidades pretendidas pela ACSS, através da sociedade de advogados BAS, que através de contratos por ajuste directo tem assessorado diversas entidades ligadas ao Ministério da Saúde.

    A base de dados em causa (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.

    Contém também dados de identificação (nome, idade e sexo), mas como em qualquer base de dados moderna, o expurgo de dados nominativos, neste caso o nome do doente, é uma opção prevista na concepção dos perfis de acesso, tornando assim os dados completamente anonimizados (insusceptíveis de identificação de pessoas), permitindo assim todo o tipo de tratamento estatístico.

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    Constitui assim – e sem qualquer risco de violação da intimidade, porque os dados estão completamente anonimizados – uma ferramenta por excelência para identificar e quantificar o efectivo impacte da pandemia e da covid-19 desde 2020. Perante as dificuldades de acesso aos dados integrais do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que também se encontra em análise nos tribunais administrativos –, a BD-GDH possibilitará obter indicadores fundamentais sobre as principais afecções e doenças que poderão estar a contribuir para o contínuo excesso de mortalidade, numa fase em que a covid-19 se encontra já em fase endémica.

    Esta redobrada vitória histórica do PÁGINA UM – que se sucede a outras sentenças favoráveis – surge no decurso de um longo processo de obstaculização por parte do presidente da ACSS, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, que começou, em meados de Maio passado, por expurgar do Portal da Transparência do SNS uma base de dados pública sobre morbilidade e mortalidade hospitalar, uma versão manipulada e mais simplista da BD-GDH.

    A decisão de Victor Herdeiro – justificada pela necessidade nunca provada de “análise interna” – foi uma reacção política ao conjunto de artigos de investigação do PÁGINA UM sobre o desempenho hospitalar desde 2020, e não apenas relacionado com a covid-19.

    No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho do ano passado, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

    Mesmo sendo uma simplificação da BD-GDH, essa base de dados que estava no Portal da Transparência permitira, através de análise estatística feita pelo PÁGINA UM, revelar que, até Janeiro desse ano, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Após várias tentativas para “convencer” o Ministério da Saúde – que nunca quis rectificar a conduta de Victor Herdeiro –, o PÁGINA UM apresentou em 19 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra a ACSS, mas já não apenas para a reposição da versão original da base de dados da mortalidade e morbilidade – que fora entretanto reposta mas completamente “mutilada”. Com efeito, foi também solicitado o acesso à BD-GDH, por se ter considerado ser uma base de dados mais completa e muito mais “imune” a intervenções políticas.

    No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

    Desde logo, a ACSS mostrou que não estava interessada em abrir mão à “secreta” BD-GDH. Alegando que já repusera a base de dados original da morbilidade e mortalidade hospitalar – o que, de facto, terá sucedido em meados de Agosto –, a ACSS começou por tentar iludir a juíza do processo, Ilda Maria Côco, fazendo crer ter já satisfeito o pedido integral do PÁGINA UM, e solicitou assim que a intimação fosse “totalmente julgada improcedente e indeferida, tudo com legais consequências”.

    Somente após um requerimento do advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, provando que estava sobretudo em causa a continuada recusa do acesso à BD-GDH, a ACSS veio pronunciar-se sobre este assunto – ou seja, foi obrigada a justificar a recusa. Mas recorrendo à mentira.

    Com efeito, através da mesma sociedade de advogados, a ACSS defendeu que a BD-GDH continha “dados pessoais” e que “as funcionalidades dos sistemas de informação nos quais se encontram localizadas não permitem tecnicamente a respetiva consulta sem acesso aos dados pessoais em causa”, acrescentando que “reprodução (digital) da informação da base de dados com expurgo dos dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação”.

    Primeira página do acórdão histórico de 23 de Março passado.

    E concluiu ainda que, “associado à extensão dos dados em causa e à própria arquitetura dos sistemas de informação em que se suportam as bases de dados”, obrigar a anonimização “acarretaria para ACSS uma atuação administrativa, com gestão dos recursos disponíveis para a prossecução das respetivas atribuições legais em desvio dos princípios aplicáveis e pelos quais se deve reger a atividade administrativa, nomeadamente, os princípios do interesse público, da boa administração, da proporcionalidade e da razoabilidade”.

    Este arrazoado tinha, porém, apenas um fito: continuar a esconder a BD-GDH do escrutínio público, tentando convencer a juíza do processo de que a anonimização de uma base de dados deste género não é um processo corriqueiro, nem que basta seleccionar as variáveis que se pretenda e, nessa linha, excluir aquelas que não se pretendem. Destaque-se que o PÁGINA UM jamais teve a pretensão de revelar dados pessoais de doentes, sobretudo por não ser ético, mas também por ser de interesse nulo para quaisquer diagnósticos em saúde pública.

    Mas este arrazoado jurídico tinha perna curta. De facto, a anonimização da BD-GDH é um procedimento tão corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, conforme a Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto do ano passado.

    Na sentença de primeira instância, a juíza Ilda Côco deu razão ao PÁGINA UM. De acordo com a magistrada, como a ACSS apenas se limitou a “alegar, de forma conclusiva, que o expurgo de dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado (…), mas sem que alegue quaisquer factos concretos que permitam concluir no sentido por si pretendido”, terá assim 10 dias para facultar o acesso à base de dados… carregando no teclado e/ ou no rato do computador para expurgar os dados nominativos.

    No recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, a ACSS ainda alegou nulidades diversas e apontou um custo elevado para disponibilizar uma base de dados que terá 44 milhões de registos – o que, convenhamos, numa época de big data dá tanto trabalho como 44 registos – mas os desembargadores não foram convencidos.

    No acórdão, os desembargadores afirmam que a ACSS “limitou-se a considerações genéricas sobre a onerosidade de satisfação do peticionado, nunca procurando densificar (como pretende fazer agora, em sede de recurso), em que se traduziria tal ‘onerosidade’ e em que medida a mesma se mostrava ‘desmesurada’.”

    medical professionals working

    E criticam os desembargadores ainda a ACSS por apresentar novos trunfos nesta fase. “O que, oportunamente, não foi levado aos autos, permitindo ao tribunal a respetiva apreciação, in illo tempore, não pode agora, em sede de recurso, ser usado como ‘arma de arremesso’ contra uma argumentação que, forçosamente, não levou tais argumentos em linha de conta”, destaca-se no acórdão.

    A única “vitória” da ACSS neste recurso acabou por ser na distribuição das custas. Na primeira instância, a juíza decretara que deveria ser a ACSS a arcar com todas as custas do processo. Os desembargadores, assumindo que uma pequena parte do pedido – que envolvia também a disponibilização de uma outra base de dados no Portal da Transparência do SNS – já fora satisfeita – determinaram que o PÁGINA UM assumisse afinal um terço das custas, ficando os outros dois terços da responsabilidade da entidade presidida por Víctor Herdeiro, que há mais de nove meses anda a esconder informação pública.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Conhecer questionário de governantes tem “consequências graves para a Nação ou nações aliadas”, diz Governo

    Conhecer questionário de governantes tem “consequências graves para a Nação ou nações aliadas”, diz Governo

    O Governo considera que basta considerar que um determinado acto, mesmo se escrito, é político para que deixe de ser administrativo. No decurso de um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa intentado pelo PÁGINA UM, devido à recusa de acesso ao questionário prévio à sua indigitação pelo novo secretário de Estado da Agricultura, a assessoria jurídica de António Costa defende também a legalidade da classificação de “Nacional Secreto” para este tipo de documento, mesmo se a legislação invocada se aplica exclusivamente a informação cujo conhecimento (público ou privado) possa ter “consequências graves para a Nação [Portugal] ou nações aliadas”. Esta intimação do PÁGINA UM visa também evitar que o Governo possa vir a usar o estratagema do “Nacional Secreto” para obstaculizar o acesso a informação apenas por ser politicamente sensível.


    O Governo quer convencer o Tribunal Administrativo de que os questionários escritos que passaram a ser exigidos pelo primeiro-ministro António Costa aos convidados a integrarem o Executivo não são “documentos administrativos” por supostamente terem natureza política.

    Este é o primeiro argumento usado nas alegações do gabinete de António Costa à intimação do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, depois da recusa em disponibilizar o acesso ao inquérito já preenchido pelo secretário de Estado da Agricultura, Gonçalo Caleia Rodrigues, o único governante que entrou em funções desde a Resolução do Conselho de Ministros que, no passado dia 13 de Janeiro, elencou um conjunto de 36 perguntas, incluindo algumas que já são alvo de escrutínio pelo Tribunal Constitucional.

    António Costa cumprimentando Gonçalo Caleia Rodrigues na tomada de posse. O secretário de Estado da Agricultura foi o primeiro, e até agora único, governante a preencher um inquérito que o primeiro-ministro quer secreto, apesar da Resolução do Conselho de Ministros invocar a transparência.

    O dito diploma determinou que estes questionários são classificados como “Nacional Secreto”, numa tentativa de não os tornar públicos, mas baseando-se numa Resolução do Conselho de Ministros, que por ser diploma hierarquicamente inferior, como sucede perante a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), não a pode contrariar nem sobrepor.

    Adiantando que o questionário está a ser aplicado “tendo em vista a melhoria do processo de avaliação política para a designação de um indivíduo para funções governativas”, a defesa do gabinete do primeiro-ministro – assinada pelos assessores Gonçalo Carrilho e Mariana Melo Egídio, ambos também assistentes convidados da Faculdade de Direito de Lisboa –, alega, contudo, estar-se perante “um processo de nomeação subsumível [integrado] na função política”, defendendo que como são “atos políticos, envolvendo uma partilha de competência de direção política do Presidente com o Governo”, não dizem assim respeito à actividade administrativa. Daí que, defendem, não se aplica a LADA.

    Esta tese do gabinete de António Costa não deixa de ser temerária. Além de querer assumir que uma simples Resolução do Conselho de Ministros – mesmo num Governo de maioria parlamentar – tem mais força do que uma Lei da Assembleia da República –, o argumento do acto político não ser um acto administrativo conflitua até com a Constituição da República.

    Primeira página (de sete) das alegações do gabinete de António Costa, assinadas por dois assessores que são também assistentes convidados da Faculdade de Direito de Lisboa.

    Com efeito, no artigo 182º do texto constitucional taxativamente explicita-se que “o Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública” – em simultâneo, portanto.

    Depreendendo-se que não pode um Governo ser uma coisa em certo momento e outra noutro, dever-se-ia deduzir que todos os actos de um Governo sejam vistos sempre como actos administrativos, mesmo se políticos ou de política – que, na verdade, são conceitos algo distintos.

    Porém, o actual Governo aparenta considerar que lhe basta considerar que um determinado acto é político para que deixe de ser administrativo. Algo que, certamente, virá a ser analisado pelo Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Saliente-se, aliás, que a LADA estabelece o conceito de “documento administrativo” para “qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades referidas no artigo seguinte [que inclui o Governo]”, seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material”.

    E apenas salienta três excepções: “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte”, bem como “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação” e ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português”.

    Mas o Governo diz ainda, nas suas alegações que, mesmo se os questionários aos governantes venham a ser considerados documentos administrativos pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, estes devem manter-se secretos, defendendo a legalidade dessa classificação.

    Embora a Resolução do Conselho de Ministros de Janeiro passado não explicite qual a norma usada para a classificação de “Nacional Secreto”, nas alegações para o Tribunal Administrativo de Lisboa o gabinete de António Costa explicita que se baseia nas instruções de segurança nacional, salvaguarda e defesa das matérias classificadas (SEGNAC), remetendo para uma Resolução do Conselho de Ministros com quase 25 anos, do primeiro governo de Cavaco Silva.

    O Governo diz agora que “resulta clara a motivação para esta classificação [Nacional Secreto]: a informação em causa diz respeito ao processo de nomeação de membros do Governo, assunto da mais elevada importância para o Estado, nos termos e para os efeitos do nº 3.2.2 da referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 3 de dezembro.”

    Cavaco Silva em 1988 na Sala Oval, com o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Foi nesse ano que uma outra Resolução do Conselho de Ministros estabeleceu a classificação “Nacional Secreto” agora usada por António Costa para esconder os inquéritos aos novos governantes. Mas esse diploma de 1988 estipulava o secretismo apenas para questões que pudessem vir a ter “consequências graves para a Nação [Portugal] ou nações aliadas”.

    Mas apesar de explicitar o enquadramento [o ponto nº 3.2.2 da dita Resolução do Conselho de Ministros dos tempos de Cavaco Silva), os assessores não a expõem nas alegações. O ponto nº 3.2.2 diz o seguinte: “Este grau de classificação [Nacional Secreto] abrange as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte, em resultado de: Fazerem perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte; Comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte; Revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

    Em suma, o Governo está assim a tentar convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que a revelação pública de informações sobre os governantes – quase toda pública, embora complexa de recolher por existir em várias fontes públicas, como cartórios e registos civis, comerciais e prediais – pode ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte por afectar projectos nacionais importantes, comprometerem a segurança pública e militar ou revelarem assuntos civis e militares de alta importância.

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    Por fim, nas alegações, a assessoria jurídica de António Costa ainda acrescenta que nos inquéritos constam dados nominativos – que, aliás, o PÁGINA UM destaca, no seu requerimento, que devem ser expurgados, de acordo com a lei – e que por esse simples motivo não devem ser acessíveis.

    E, apesar de o requerimento do PÁGINA UM dirigido directamente a António Costa ter sido assinado por um jornalista – cuja função é reconhecida e protegida constitucionalmente, havendo sempre um interesse direto, pessoal, legítimo na obtenção de informação –, o gabinete do primeiro-ministro argumenta que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não demonstrou qualquer interesse direto, pessoal, legítimo, muito menos constitucionalmente protegido, que o habilite ao acesso ao documento nominativo em causa constitucionalmente protegido”.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 16 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Vacinas contra a covid-19: Doses para o “lixo” valem 120 milhões de euros

    Vacinas contra a covid-19: Doses para o “lixo” valem 120 milhões de euros

    Ao longo de 2021 e 2022, os portugueses mostravam, orgulhosos, os comprovativos das vacinas contra a covid-19, cuja eficácia afinal se perdia em poucos meses. À suposta necessidade de “reforçar” a imunidade vacinal, os portugueses estão agora cada vez mais desconfiados, e a adesão aos boosters estão em queda livre. Mas o Governo português, tal como em outros países, tratou de comprar sem olhar a custos. Resultado: um país que ainda tem um milhão de cidadãos sem médico de família vai em breve contabilizar 8 milhões de doses destas vacinas deitadas literalmente ao lixo. O custo desta falta de gestão de dinheiros públicos em benefício da indústria farmacêutica: 120 milhões de euros. Para já…


    O silêncio absoluto do Ministério da Saúde sobre as alternativas a dar a um stock de 8 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 só encontra eco no vazio dos centros de vacinação em sistema de Casa Aberta, que nas últimas semanas – passe a analogia literária – terão tido mais moscas que gente.

    De acordo com o mais recente relatório da resposta sazonal em saúde, da Direcção-Geral da Saúde (DGS), apenas hoje divulgado, na semana 7 deste ano – entre 13 e 19 de Fevereiro – apenas foram administradas 11.861 doses, um ritmo de administração de menos de 1.700 doses por dia. Metade destas terão sido dadas a pessoas com idade entre os 18 e os 50 anos, grupo para quem o reforço sazonal é recomendado a pessoas vulneráveis.

    Porém, depois de dois anos de comunicação intensiva sobre os alegados benefícios dos reforços (boosters), a DGS passou a ter uma posição ambígua para a população saudável com menos de 50 anos: não recomenda nem desaconselha. E mais: nem revela – em “cooperação” com o Infarmed – os efeitos adversos dos reforços. O resultado desta situação tem sido desinteresse quase absoluto no reforço vacinal.

    Embora a DGS não revele os números exactos das doses de reforço administradas, desde que a modalidade Casa Aberta foi disponibilizada para o grupo etário entre os 18 e os 50 anos – um universo de um pouco mais de 4 milhões de portugueses –, terão sido vacinadas menos de 40 mil pessoas desta faixa em mais de um mês. Ou seja, cerca de 1% do total.

    A fraca procura da vacina contra a covid-19 colocará, assim, uma questão bastante relevante, e que se tem verificado em outros países europeus. Por exemplo, ainda este mês a Suécia anunciou que teria de descartar 8,5 milhões de doses por perda de validade. No Verão do ano passado, a Suíça revelou a perda de 10,3 milhões de doses.

    Evolução da administração de doses de vacinas contra a covid-19 por semana por grupo etário. A linha negra representa o número acumulado desde a semana 35 do ano de 2022. Fonte: DGS.

    No caso português é previsível que estejam a perder a validade cerca de 5 milhões de doses. Portugal terá comprado cerca de 45 milhões de vacinas, e em Outubro passado o Ministério da Saúde revelou ao PÁGINA UM que tinham sido doadas 7,8 milhões de doses, sobretudo aos PALOP, e revendidas 2,6 milhões de doses. Tendo em conta que foram já administradas cerca de 26,5 milhões de doses desde finais de 2021 e outras 3 milhões foram já entretanto inutilizadas até ao final de 2022, haverá assim um pouco mais 5 milhões de doses que podem estar em risco de serem inutilizadas por falta de uso.

    Considerando que o preço médio unitário das vacinas ronda os 15 euros, a perda económica total, para as 8 milhões de doses, ascenderá aos 120 milhões de euros. Mas Portugal pode ainda ser “chamado” a entregar mais dinheiro às farmacêuticas, sobretudo à Pfizer, caso se tenha de concretizar solidariamente o acordo estabelecido pela Comissão von der Leyen. Pelas estimativas do PÁGINA UM, o Governo português poderá ter de comprar cerca de 500 milhões de euros em doses de vacinas para a covid-19, independentemente da adesão para novos reforços nos próximos anos.

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    O PÁGINA UM pediu informações ao Ministério da Saúde para confirmar a quantidade de doses que perderão a validade dos próximos três meses e qual a perda potencial, tendo enviado mensagens a três dos assessores de imprensa de Manuel Pizarro, a saber: Pedro César, Romana Santos e Marta Reis. O e-mail foi remetido para os três assessores no dia 20 deste mês, ou seja, há uma semana. Não houve qualquer reacção.

    Recorde-se que o PÁGINA UM tem em curso uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar Manuel Pizarro a revelar todos os contratos e entregas de vacinas contra a covid-19, bem como as comunicações entre o Ministério da Saúde e as farmacêuticas que as vendem. Após a interposição deste processo, o Ministério da Saúde chegou mesmo a “apagar” quatro contratos que estavam já no Portal Base desde meados de 2021.

  • Presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista decidiu aumentar taxas, mas recusa dizer quanto ganha em cargo público

    Presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista decidiu aumentar taxas, mas recusa dizer quanto ganha em cargo público

    Em casa de ferreiro, espeto de pau. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) recusa ceder documentos administrativos aos próprios jornalistas sobre o seu funcionamento, mesmo se esta entidade é pública. Em causa estão as decisões tomadas desde 2020 pelo órgão regulador e de acreditação de uma profissão que está em polvorosa, com um abaixo-assinado de 1.400 jornalistas, por causa da subida da taxa obrigatória para o exercício da profissão. Num pedido do PÁGINA UM, pretende-se saber a remuneração da presidente da CCPJ, Licínia Girão, que assumiu o cargo em Maio do ano passado. como “jurista de mérito”, mesmo se foi incapaz de concluir o estágio de advocacia, que iniciara em finais de 2020.


    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) recusa o acesso às actas do plenário daquele órgão regulador, bem como aos documentos que comprovem as remunerações dos seus membros, numa altura em que se avolumam as críticas contra a entidade reguladora da classe. Este mês, a CCPJ aumentou os emolumentos para o exercício da actividade jornalística, levando à criação de um abaixo-assinado de cerca de 1.400 jornalistas.

    A entidade presidida por Licínia Girão – uma jornalista freelancer cooptada por oito jornalistas que integram o Plenário da CCPJ por ser considerada uma “jurista de mérito”, apesar de nem sequer ter conseguido concluir o estágio de advocacia – decidiu subir os encargos pela aquisição e renovação bianual da carteira profissional, subindo os emolumentos de 66,5 euros para os 76 euros.

    Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tem sede no Palácio Foz, na Praça dos Restauradores, em Lisboa.

    A CCPJ – um organismo independente de direito público para a acreditação e disciplina dos jornalistas, embora sem qualquer semelhança com uma Ordem – alegou que os emolumentos são “a única base fundamental do [seu] orçamento (…) para efetuar a sua missão legal, nomeadamente o processamento e a emissão física dos próprios títulos, pagar os salários aos cinco colaboradores que asseguram o serviço diário da Comissão e as despesas inerentes à manutenção deste organismo”.

    Nesse comunicado, o Secretariado da CCPJ – composto por Licínia Girão e Jacinto Godinho, que é jornalista da RTP e professor na Universidade Nova de Lisboa – acrescentou ainda que “a receita anual proveniente dos valores pagos a título de emolumentos pelos jornalistas e equiparados, não são suficientes para a total autonomia financeira da Comissão”.

    Contudo, nem o Orçamento nem o plano de actividades nem tão-pouco os encargos dos funcionários e também dos diversos membros da CCPJ são divulgados no site da entidade nem são revelados, quando pedidos pelos próprios jornalistas.

    Licínia Girão é, desde Maio do ano passado, presidente da CCPJ por ser considerada “jurista de mérito”, mas quando assumiu cargo estava a desenvolver estágio de advocacia, que foi incapaz de concluir, e “chumbou” ainda no acesso ao curso de magistrados do Centro de Estudos Judiciários. Da sua actividade jornalística actual sabe-se pouco: consta apenas na “Ficha Técnica” do jornal Sinal Aberto, surgindo identificada na “Redação” ao lado de pessoas que não possuem carteira profissional, o que não é permitido por lei.

    Em 6 de Fevereiro passado, o PÁGINA UM, no âmbito de outros pedidos, requereu a Licínia Girão “o acesso a presencial de todas as actas do Plenário da CCPJ desde 2020” e ainda “o acesso presencial ao documento administrativo original onde constem os pagamentos a qualquer título, mensal ou por presença, a cada um dos membros da CCPJ desde 2020 até à data”.

    Desde Maio do ano passado, a CCPJ é presidida por Licínia Girão, uma jornalista freelancer que vive em Coimbra, não lhe sendo conhecida qualquer ocupação além do cargo no órgão regulador. No seu perfil do LinkedIn, a sua experiência como “Jurista” e “Jornalista Jurista” estão dadas como encerradas em Junho de 2022, sendo assim sensato pensar que estará a ser remunerada como funcionária da CCPJ, o que seria aceitável mas inédito nesta entidade.

    Em resposta ao legítimo requerimento do PÁGINA UM – formalmente apresentado ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos por assim obrigar a uma resposta no prazo máximo de 10 dias –, o Secretariado da CCPJ invocou uma norma da LADA para prorrogar uma resposta por dois meses, mas ainda avisando que desse adiamento “não resulta qualquer assunção expressa ou tácita de que é devido o acesso requerido”. Ou seja, daqui a dois meses, a resposta pode ser não.

    person using magnifying glass enlarging the appearance of his nose and sunglasses

    Além de ser uma justificação bizarra – e ainda mais sendo feita por jornalistas que ocupam cargos públicos perante um pedido de acesso a informação por um colega de profissão –, o Secretariado da CCPJ nem sequer fundamenta, como exige a legislação, a necessidade de um prazo tão alargado para disponibilizar actas e documentos tão simples.

    De facto, a norma alegada pela CCPJ somente é usada, por uma questão lógica de espírito da lei, depois de assumido o direito de acesso, quando é necessário despender muito tempo para agregar os documentos requeridos.

    Ora, a disponibilização de actas e de um documento sobre remunerações dos membros da CCPJ – que devem estar devidamente arquivadas – não aparenta ser tarefa hercúlea que necessite de 60 dias, até porque Licínia Girão foi considerada, pelo seus pares, que a cooptaram, uma “jurista de mérito”.

    Além de Licínia Girão, compõem o Plenário da CCPJ os jornalistas Jacinto Godinho (CP 772), Anabela Natário (CP 326), Miguel Alexandre Ganhão (CP 1552), Isabel Magalhães (CP 1024), Cláudia Maia (CP 2578), Paulo Ribeiro (CP 1027), Luís Mendonça (CP 1407) e Pedro Pinheiro (CP1440).

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    Anteontem, três dos membros da CCPJ foram ouvidos na comissão parlamentar de Cultura sobre o modelo de financiamento e os indispensáveis ajustes dos diplomas que regulam a atividade jornalística. Nessa audição, citado pelo ECO, Jacinto Godinho terá dito que “o trabalho jornalístico mexe directamente com liberdades, direitos e garantias de todos”.

    E, de facto, a recusa da CCPJ em disponibilizar ao PÁGINA UM o acesso à informação (e a documentos) é, efectivamente, algo que mexe indubitável e directamente com liberdades, direitos e garantias.


    N.D. Além dos dois pedidos destacados nesta notícia, o PÁGINA UM solicitou outros dois pedidos de acesso a documentação já solicitados à CCPJ, e recusados. Essa recusa fez com que o PÁGINA UM apresentasse uma intimação no Tribunal Administrativo, mas teve de se voltar à estaca zero (novo pedido formal) por um lapso nos prazos. Com esta postura da CCPJ, o PÁGINA UM não vê outra alternativa que não seja a intimação judicial, o que se lamenta, porque não é aceitável esta postura obscurantista numa “casa de jornalistas”. O ponto 3 do Código Deontológico dos Jornalistas diz o seguinte: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos” – e por isso mesmo aqui o fazemos. Saliente-se, por fim, que não assinei, nem como jornalista nem como director do PÁGINA UM, o abaixo-assinado referido na notícia.

  • Gouveia e Melo “mercadejou” (mesmo) administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force

    Gouveia e Melo “mercadejou” (mesmo) administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force

    N.D. Republicamos um dos trabalhos de investigação da campanha “Todos por Quem Cuida”, originalmente publicados em Dezembro do ano passado, após a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ter decidido tomar uma “deliberação” (leia-se a opinião de três pessoas) que, entre outros dislates, dá bitates sobre como se deveria conduzir uma investigação jornalística num país democrático, “insta o PÁGINA UM ao escrupuloso cumprimento dos normativos legais e deontológicos em matéria de rigor informativo”. Como nada há a mudar no que publicámos em Dezembro passado, o PÁGINA UM insta a ERC a não ingerir, como reiteradamente tem feito, na independência dos jornalistas e a interferir nos seus métodos de trabalho (sobretudo naquele que seja incómodo), recomenda-lhe ainda que aprenda a analisar melhor as normas da DGS e as questões atinentes sobre a matéria em causa, que estude melhor (e sem viés) os documentos que profusamente apresentámos (e que não eram públicos antes, e tornaram-se acessíveis por sentença do Tribunal Administrativo), e, por fim, que prescinda de juízos de valor sobre esta investigação jornalística, sobretudo antes de serem conhecidos os resultados do “processo de esclarecimento” instaurado por despacho do inspector-geral das Actividades em Saúde em 15 de Janeiro passado. O PÁGINA UM deseja também um sossegado fim de mandato (que, por lei, já deveria ter terminado em Novembro passado) aos (ainda) membros do Conselho Regulador da ERC, e que o façam com um mínimo de dignidade. Recorde-se ainda que em outra deliberação, esta de Julho do ano passado, a ERC também decidiu criticar um trabalho do PÁGINA UM sobre o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais. A investigação do PÁGINA UM era tão má, mas tão má, mas mesmo tão má, que, enfim, e afinal, esteve na base da aplicação de uma contra-ordenação sobre António Morais, que, hélas, se queixara à ERC do mau trabalho jornalístico. Este presente artigo manter-se-á como manchete até sexta-feira.


    Em Fevereiro de 2021, num polémico início da campanha de vacinação contra a covid-19, e apenas uma semana após tomar posse na task force, Gouveia e Melo, o agora Chefe do Estado-Maior da Armada, negociou com o bastonário Miguel Guimarães as condições para se vacinarem vários milhares de médicos que não estavam na lista de prioridade da Direcção-Geral da Saúde. Mais de 27 mil euros foram parar aos cofres do Hospital das Forças Armadas, sem que o acordo ad hoc tenha sido autorizado. Pior ainda foi a operação contabilística: a conta acabou paga pela campanha “Todos por Quem Cuida” (detida por três particulares), mas a factura foi endereçada para a Ordem dos Médicos. Entretanto, este ano, surgiram quatro farmacêuticas a “reivindicar” o apoio nesta operação à Ordem dos Médicos, atestando sob a forma de recibo. Este é o quarto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.


    Há pelo menos mais de uma semana que Manuel Pizarro, ministro da Saúde, sabe, mas não comenta: em Fevereiro do ano passado, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o então responsável pela task force, Gouveia e Melo, mercadejaram a administração de vacinas a quase quatro mil médicos a troco de um pagamento de mais de 27.000 euros, que foram encaminhados para o Hospital das Forças Armadas.

    Este expediente, realizado à margem das orientações então emanadas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – que é a Autoridade de Saúde Nacional – começou a desenhar-se apenas uma semana após o então vice-almirante Henrique Gouveia e Melo tomar posse como coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, substituindo Francisco Ramos. Este ex-secretário de Estado da Saúde demitira-se por irregularidades relacionadas com as prioridades de vacinação no Hospital da Cruz Vermelha. Nas primeiras fases da vacinação, devido à escassez de doses, surgiram muitos casos de administração indevida, levando mesmo à instauração de 216 processos judiciais, apesar de apenas um ter levado a condenação, conforme revelou ontem o jornal Público.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS.

    Embora no dia de posse tivesse considerado “lamentável” a administração indevida de vacinas que então estava na ordem do dia. incluindo no Parlamento e prometido “apertar mais as regras” de controlo, uma semana mais tarde, em 10 de Fevereiro, Gouveia e Melo reuniu-se com o bastonário Miguel Guimarães para acertar uma forma de contornar a posição da DGS que não priorizara a vacinação dos médicos que trabalhavam fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de não constar no processo consultado pelo PÁGINA UM eventuais respostas escritas de Gouveia e Melo, nessa reunião terá saído a garantia de colaboração não apenas da task force, mas também das próprias Forças Armadas.

    No dia 19 de Fevereiro, o bastonário escrevia um e-mail ao “Distinto Senhor Coordenador da Task Force Mui Ilustre Vice-Almirante Henrique Gouveia e Melo”, enviando em anexo, “tal como combinado na reunião do passado dia 10”, uma lista de médicos a serem vacinados, à margem do programa oficial de vacinação, defendendo a justeza e relevância desta questão.

    A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades, que Miguel Guimarães “brilhasse”.

    Certo é que, independentemente da eventual justeza desta medida, muitos médicos sobretudo do sector privado e social, bem como os médicos aposentados do SNS que mantinham actividade clínica, não estavam na lista das prioridades em Fevereiro do ano passado. Gouveia e Melo tinha conhecimento disso, até por integrar a task force desde Novembro de 2020, e também saberia que negociar à margem do processo oficial era cometer os mesmos erros ou até ilegalidades que levaram à “queda” de Francisco Ramos.

    As negociações foram rápidas. Em 25 de Fevereiro, após um contacto telefónico com Gouveia e Melo, Miguel Guimarães fecharia então um acordo ad hoc – dir-se-ia informal, porque não há qualquer protocolo ou acordo escrito – para vacinar um pouco mais de quatro mil profissionais, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas, Miguel Guimarães estava preocupado em saber se poderia chamar a comunicação social para acompanhar toda a operação, que acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial.

    O uso das palavras “negociação” e “acordo ad hoc” não são abusivas nem despropositadas no contexto em que se realizou esta vacinação paralela.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.

    Com efeito, a vacinação daqueles médicos à margem das orientações da DGS não teve apenas como eventual desiderato “proteger os profissionais de saúde e dar confianças aos doentes”, como então garantia Miguel Guimarães ao jornal Nascer do Sol, mas envolveu também contrapartidas monetárias. Apesar das vacinas serem gratuitas, Gouveia e Melo somente as disponibilizou contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos. Mas é aí que surge ainda mais um caso rocambolesco, envolvendo o fundo “Todos por Quem Cuida”.

    A Ordem dos Médicos quis ficar com os louros mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril do ano passado, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação. Sendo expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser um das três pessoas que decidia se dava apoio –, como foi, o problema mais uma vez passou pelo expediente contabilístico pouco ortodoxo. Isto é, ilegal.

    Factura pela vacinação paralela dos médicos foi enviada à Ordem mas paga pela campanha solidária.

    Uma vez que a factura do Hospital das Forças Armadas estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros. Porém, não foi isso que sucedeu.

    A factura manteve-se na Ordem dos Médicos, e em seu nome, mas o dinheiro recebido pelo Hospital das Forças Armadas proveio da conta do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado por Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Contudo, para aumentar a estranheza desta operação de financiamento, a Ordem dos Médicos passaria, já este ano, facturas/ recibos a quatro farmacêuticas assumindo que tinham sido estas a suportar os custos de vacinação.

    De acordo com os documentos consultados na Ordem dos Médicos pelo PÁGINA UM – por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, no passado dia 4 de Março a Ordem dos Médicos passou este documento contabilístico com o valor de 3.725,2 euros à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Três dias mais tarde, a Ordem de Miguel Guimarães passaria mais três facturas/ recibo a outras três farmacêuticas [vd., as ligações]: Ipsen Portugal (no valor de 11.040 euros), Bial (2.590 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros), também expressando que se trata de “donativo sem contrapartida” para a “campanha de vacinação da Ordem dos Médicos”.

    Para aumentar a estranheza destes comprovativos – que, em última análise, permitiriam que as farmacêuticas pudessem assumir o donativo como uma despesa para efeitos fiscais –, apenas no caso do alegado donativo da Ipsen surge a referência a “pronto de pagamento”. No caso da Gilead aparece, como condição de pagamento, “Factura 10 dias”, enquanto nas situações da Bial e Laboratórios Atral surge “Factura 30 dias”. Ou seja, numa situação normal, isto significaria que a Ordem dos Médicos teria, nestes casos, a promessa de entrada de dinheiro em caixa no prazo de 10 e 30 dias, respectivamente.

    Mas, repita-se, o pagamento foi feito pela conta solidária já no ano anterior – ou seja, deveria ser esta (ou os seus titulares) a receber a factura/ recibo das farmacêuticas.

    Factura/ recibo da Laboratórios Atral, uma das quatro em que se assume que o apoio financeiro para vacinar quase quatro mil médicos proveio de farmacêuticas. Contudo, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi realizado pela conta solidária titulada (em nome individual) por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Acresce também que, independentemente de serem ou não documentos forjados, ou de a Ordem dos Médicos ter recebido mesmo os donativos daquelas quatro farmacêuticas (apesar do pagamento ter sido feito pela conta solidária), os montantes daquelas facturas deveriam ter sido declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    Não foram, e nem o Infarmed reagiu ainda, passado mais de uma semana, ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM.

    Sobre estas matérias, o bastonário da Ordem dos Médicos, a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e o médico Eurico Castro Alves – ou seja, os gestores da conta solidária “Todos por Quem Cuida” – optaram por não responder directamente à dezena de perguntas que o PÁGINA UM lhes colocou, decidindo fazer uma declaração conjunta através de uma representante legal.

    A advogada Inês Folhadela diz que “o procedimento de quitação [no caso da operação das vacinas] foi o mesmo que foi adotado em relação aos restantes donativos”, e garante que para a sua administração “foi estabelecido [um acordo] com o Ministério da Saúde, através do coordenador da task force, vice-almirante Gouveia e Melo”, acrescentando que “o Hospital das Forças Armadas não prescindiu da remuneração dos serviços prestados, tendo a Comissão de Acompanhamento (sem intervenção da Ordem dos Médicos) deliberado que as despesas seriam suportadas pela ação solidária”. A advogada insiste que a task force, sendo uma “unidade criada pelo Governo para assegurar a estratégia, planificação e logística para a campanha de vacinação em massa contra a covid-19 (…), estava autorizada a concertar essa ação”.

    Convém salientar que não há nenhum acordo escrito por Gouveia e Melo, até porque o Despacho 11737/2020 não lhe dava autonomia para Gouveia e Melo contrariar as orientações da DGS sem sequer autorização superior. A definição da estratégia, do plano logístico e outras acções eram sempre feitas sob liderança da DGS, do Infarmed e de outros organismos tutelados pelo Ministério da Saúde, como taxativamente consta do despacho governamental assinado em 23 de Novembro de 2020 pelos ministros da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Saúde.

    O PÁGINA UM não encontrou no processo consultado qualquer documento de autorização nem qualquer protocolo que tenha formalizado o acordo de administração das vacinas entre Gouveia e Melo e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.


    N.D. Este é o quarto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Reaccções adversas: Infarmed mente mas consegue enganar Tribunal Administrativo

    Reaccções adversas: Infarmed mente mas consegue enganar Tribunal Administrativo

    Desde Dezembro de 2021, o PÁGINA UM quer consultar o Portal RAM que regista as reacções de fármacos, e em concreto as referentes às vacinas contra a covid-19 e ao antiviral remdesivir. O Infarmed recusou e lutou tenazmente, através de requerimentos e testemunhos, para induzir o Tribunal Administrativo de Lisboa de que estavam em causa dados nominativos e que seria impossível evitar por completo a exposição da identidade de pessoas. O PÁGINA UM ainda requereu a junção de dois documentos no processo que provavam a completa anonimização do Portal RAM, mas a juíza do processo rejeitou a junção, argumentando que um deles nem existia e que outro não era relevante. Afinal, num outro processo, paralelo a este, o Infarmed acabou por entregar os tais documentos, incluindo o supostamente inexistente. E no outro, um caderno de encargos para melhoria do Portal RAM, devido ao número “exponencial” de reacções adversas às vacinas contra a covid-19, afinal garante-se que a informação do Portal RAM é “totalmente anonimizada”, ou seja, é impossível identificar pessoas em concreto. O caso segue para o Tribunal Central Administrativo Sul onde os juízes desembargadores terão oportunidade de analisar os documentos que a juíza de primeira instância ostensivamente recusou ver.


    O Infarmed depositou anteontem no Tribunal Administrativo de Lisboa, no âmbito do Processo 646/23.9BELSB – uma intimação do PÁGINA UM colocada em 27 de Fevereiro passado – um conjunto de documentos administrativos que confirmam, de forma taxativa, que a plataforma de registo das reacções adversas de fármacos (Portal RAM), incluindo especificamente das vacinas contra a covid-19, é “totalmente anonimizada” antes do seu envio à Agência Europeia do Medicamento.

    De entre esses documentos entregues pelo Infarmed – e também já enviados ao PÁGINA UM esta semana – encontra-se o caderno de encargos do “procedimento de ajuste direto para a celebração de contrato de implementação urgente de alteração à aplicação Portal das Reações Adversas”, que viria a ser assinado entre o regulador e a empresa Altran em 12 de Novembro de 2021.

    Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed, continua há mais de um ano a esconder dados do Portal RAM. Até quando?

    Segundo este documento – nunca divulgado anteriormente –, na parte do enquadramento, o Infarmed salientava que “face ao aumento exponencial do nº de RAM [números de reacções adversas a medicamentos] submetidas pelos profissionais de saúde e cidadãos relativas às vacinas COVID, é impossível atualmente tratar manualmente toda a informação submetida” à Agência Europeia do Medicamento, pelo que seria necessário, “neste contexto, e por forma a eliminar (ou, pelo menos, minimizar) todos os constrangimentos daí decorrentes”, se mostrava necessário “contratar serviços de implementação de alterações à aplicação Portal RAM”.

    Nesse documento anexo ao contrato com a Altran explicava-se também que o Portal RAM “permite aos profissionais de saúde e utentes comunicarem ao Infarmed suspeitas de reações adversas a medicamentos (RAM), contribuindo para a monitorização contínua da segurança e a avaliação do benefício/ risco dos medicamentos”, e que “assim, após receção e validação a informação é avaliada por uma equipa de farmacêuticos e médicos especialistas em segurança de medicamentos”, sendo que, “posteriormente, a informação do caso (totalmente anonimizada) é enviada para as bases de dados europeia (Eudravigilance) e mundial da OMS (Vigibase), para efeito de uma avaliação permanente mais abrangente do perfil de segurança do medicamento”.

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    Ou seja, de raiz, a informação relativa a Portugal constante do Portal RAM está “totalmente anonimizada” antes de ser enviada para as outras bases de dados, onde surge agregada. Recorde-se que a norma ISO 29100:2011 define anonimização como o “processo pelo qual as informações pessoais identificáveis (IPI) são alteradas irreversivelmente de modo que uma entidade IPI já não possa ser identificada direta ou indiretamente, quer pelo responsável pelo tratamento de IPI por si só ou em colaboração com qualquer outra parte”.

    O Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) salienta que os dados pessoais deixam de o ser se forem anonimizados. A anonimização é diferente de um outro processo de ocultação de dados nominativos – a pseudonimização. Com efeito, na pseudonimização os dados nominativos escondidos podem ser recuperados porque se mantêm elementos informativos para uma reversão.

    Outros documentos relevantes que o Infarmed veio agora entregar ao Tribunal Administrativo de Lisboa, no processo 46/23.9BELSB, são os manuais do utilizador do Portal RAM, o primeiro que esteve activo até ao início deste ano, e um segundo que foi aprovado, curiosamente, em 27 de Janeiro. Ambos mostram a existência de vários perfis de acesso, incluindo a tarefa de anonimização – ou seja, exclusão de dados que permitam identificação em concreto, mesmo que de forma indirecta, de qualquer pessoa afectada por efeitos adversos de medicamentos.

    Caderno de encargos revela que Portal RAM tem informação “totalmente anonimizada”.

    No entanto, desde Abril do ano passado, o Infarmed andou a tentar – e até conseguiu – convencer a juíza de um processo principal – relativo à consulta do Portal RAM pedida pelo PÁGINA UM para se conhecerem em detalhe os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir em Portugal – de que os dados continham dados nominativos de saúde, e por isso um processo de “anonimização” nunca seria completamente possível, porque permitiria, indirectamente, uma identificação concreta de pessoas, o que perigaria a confiança no sistema.

    De facto, no passado dia 8 de Março, em sentença de primeira instância, ainda passível para o Tribunal Central Administrativo Sul, a juíza Sara Ferreira Pinto dispensou o Infarmed, num processo de intimação iniciado em Abril do ano passado (Processo 980/22.5BELSB), de ceder ao PÁGINA UM o acesso directo ao Portal RAM, por considerar, e apenas com base em prova testemunhal – de uma técnica e do presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, ouvidos em audiência em Janeiro passado –, que, apesar de anonimizados, seria sempre “possível identificar uma pessoa em concreto”.

    Para esta recusa, a magistrada considerou que um eventual expurgo de dados nominativos (porque disse ter sido provado que o Portal RAM tinha em todas as fases dados nominativos passíveis de identificação de pessoas) seria equivalente à produção de um novo documento, pelo que o Infarmed não estaria obrigado a fazer essa tarefa. Saliente-se que esta é uma posição polémica, abrindo um precedente ainda não acolhido na jurisprudência, porquanto expurgo de dados nominativos (retirada, com rasura de tinta, ou ocultação de dados em ficheiro informático) é uma tarefa prevista legalmente para permitir o acesso a partes dos documentos que não contenham matéria reservada. Aliás, o PÁGINA UM sempre defendeu a retirada de dados nominativos.

    Além disto, na sua sentença, a juíza Sara Ferreira Pinto aparentemente confundiu conceitos de pseudonimização e anonimização. No primeiro caso, existe possibilidade de se identificarem pessoas, porque há efectivamente a possibilidade de reversão. Mas o processo de anonimização é bem diferente – e o Infarmed diz expressamente, no caderno de encargos, que os dados estão anonimizados –, porque aí é irreversível, não existindo forma de ninguém saber, até mesmo o técnico que procedeu a essa tarefa, a que pessoas se referem os dados.

    Embora o Infarmed tenha usado todos os processos para obstaculizar e baralhar o processo no Tribunal Administrativo – que são morosos e baseados quase em exclusivo em troca de argumentos por escrito com grande formalismo –, a juíza do processo principal, Sara Ferreira Pinto, impediu activamente que o PÁGINA UM pudesse incluir como prova o caderno de encargos do contrato com a Altran e os manuais do utilizador do Portal RAM.

    PÁGINA UM tem analisado dados anonimizados da Agência Europeia do Medicamento sobre reacções adversas às vacinas contra a covid-19, mas os dados especificamente de Portugal são escondidos pelo Infarmed, que usou todos os subterfúgios para convencer uma juíza de primeira instância que a plataforma nacional contém dados nominativos que identificam pessoas.

    De facto, prevendo que o referido caderno de encargos e o manual de utilizador do Portal RAM pudesse confirmar a completa anonimização dos dados, o PÁGINA UM requereu à juíza Sara Ferreira Pinto, em 30 de Novembro, que requeresse ao Infarmed a junção desses documentos ao processo principal, bem como fosse ouvida em audiência o responsável da Altran que tivesse assinado o contrato.

    Mas a juíza optou por nunca responder ao requerimento, apenas liminarmente recusado a sua junção no final da audiência em 23 de Janeiro.

    Em acta, a juíza escreveu o seguinte: ”Considerando a prova documental junta aos autos, a prova por depoimento de parte e prova testemunhal produzida em sede de audiência, além do mais, aferida a inexistência do Manual de utilização do portal RAM na componente backoffice, por entender-se que os referidos documentos [manual e caderno de encargos do Portal RAM] não detêm interesse para a decisão da causa, indefere-se o peticionado, nos termos do artigo 429.º CPC e aplicado por força do artigo 1.º do CPTA).”

    No mesmo dia, e após esta estranha recusa da juíza na parte final da audiência, o PÁGINA UM requereu formalmente esses documentos ao Infarmed, que não respondeu, razão pela qual foi intentado novo processo de intimação.

    Juíza Sara Ferreira Pinto escreveu em acta (imagem central) que foi “aferida a inexistência do Manual de utilização do portal RAM”, e considerou que o caderno de encargos requerido pelo PÁGINA UM “não detém interesse para a decisão em causa”. A magistrada nunca quis ver os documentos em causa. Ora, afinal, o caderno de encargos prova que os dados do Portal RAM estão completamente anonimizados e, além disso, nos últimos dois anos o Infarmed elaborou dois manuais de utilização da aplicação (imagens laterais).

    Foi apenas nesse segundo processo de intimação que se acabou por revelar que, afinal, não apenas existe um manual de utilização na componente backoffice como o caderno de encargos – que a juíza dizia não deter interesse para a decisão da causa – mostrava que afinal a informação do Portal RAM está “totalmente anonimizada”.

    Em todo o caso, somente em sede de recurso a sentença da juíza Sara Ferreira Pinto no processo principal poderá ser contestada, juntando-se como elementos probatórios os documentos que recusou analisar, mas que agora estão apensos ao segundo processo de intimação.

    Saliente-se, em todo o caso, que a sentença da juíza Sara Ferreira Pinto considera que o Infarmed tem a obrigação de disponibilizar as notificações que tenham sido enviadas por e-mail – e não pelo sistema informático do Portal RAM.

    Para estes casos, em número desconhecido, a sentença diz que “os elementos solicitados à Entidade Requerida [Infarmed] e que esta tem disponíveis devem, pois, ser comunicados [ao PÁGINA UM] conquanto se garanta a não identificação (direta e indireta) das pessoas a quem digam respeito (expurgando todos os dados pessoais e de saúde do doente e do notificador, incluindo, além dos mais, o nome (ainda que anonimizado), devendo a idade ser referida por intervalos e a localização, havendo-a, limitada ao distrito).”

    Extracto do caderno de encargos de contrato entre o Infarmed e a Altran. Apesar de requerido pelo PÁGINA UM, juíza Sara Ferreira Pinto recusou sequer ver o conteúdo deste caderno de encargos, agora entregue pelo Infarmed num processo de intimação autónomo. Será requerido que os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul o analisem para saber se o Portal RAM tem ou não informação “totalmente anonimizada” e, sendo assim, se é necessário expurgar dados ou criar novos documentos.

    Nesse aspecto, a sentença é paradoxal, porque além de considerar que o expurgo de dados nominativos não constitui, quando em papel ou em mensagem electrónica, a produção de um novo documento, na verdade a juíza acaba mesmo por determinar que o Infarmed terá que fazer um tratamento de dados posterior, com a criação de classes etárias que nem sequer explicita – e aí sim, há uma elaboração de um documento anteriormente não existente).     

    Com o envio deste longo processo para o Tribunal Central Administrativo Sul, o Infarmed – e em especial o seu presidente Rui Santos Ivo – continuará a esconder dos portugueses a verdadeira dimensão dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdesivir. O PÁGINA UM esgotará todas as possibilidade jurídicas para que a verdade seja conhecida.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de cerca de uma dezena e meia de processos em curso (amanhã serão revelados mais dois intentados recentemente), o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Instituto Superior Técnico admite que podem ser “fantasmas” os seus relatórios rápidos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 51

    Instituto Superior Técnico admite que podem ser “fantasmas” os seus relatórios rápidos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 51

    O Tribunal Administrativo de Lisboa, depois de uma longa “novela”, obrigou em finais de Janeiro o Instituto Superior Técnico a mostrar ao PÁGINA UM o relatório que quantificava as mortes supostamente causadas pelas festividades de Junho de 2022 e pelo levantamento das restrições. Mas a sentença em primeira instância esqueceu-se de responder ao pedido do PÁGINA UM para aceder aos anteriores relatórios, bem como aos ficheiros numéricos. O Instituto Superior Técnico vem agora alegar que não foi provado que existem mais relatórios para além do Relatório Rápido nº 52, apesar de o PÁGINA UM até ter tido acesso ao Relatório Rápido nº 51, e aí constarem várias referências a “relatórios anteriores”. Que ares pairam pela zona da Alameda, em Lisboa? E é isto a Ciência em Portugal?


    Foi uma parceria apresentada em 14 de Julho de 2021, com toda a pompa e circunstância, em conferência de imprensa pelo presidente do Instituto Superior Técnico (IST), Rogério Colaço, e pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. Em causa estava um indicador de avaliação do risco de pandemia, elaborado por matemáticos do IST e com a participação do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos – então liderado pelo pneumologista Filipe Froes –, prometendo-se uma avaliação semanal.

    No site da Ordem dos Médicos garantia-se que “a ferramenta agora apresentada potencia a transparência e a flexibilidade pois democratiza o conhecimento e, com isso, ajuda não só na coerência das medidas de contenção aplicadas mas também na adesão a essas mesmas medidas.”

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em 14 de Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria, e que não está provada a existência de 52 relatórios, apesar de serem conhecidos dois relatórios: o Relatório Rápido nº 51 e o Relatório Rápido nº 52.

    E também no site no IST se seguia o mesmo diapasão, citando mesmo Miguel Guimarães que “explicou que este novo indicador é ‘democrático’ e poderá ser feito ‘em casa’ por qualquer cidadão”, acrescentando que seria necessário “só colocar os dados que a Direção-Geral de Saúde publica – o Rt, a incidência, os internamentos em enfermaria, os internamentos em cuidados intensivos e também os óbitos”.

    Mas, cerca de um ano depois, estalou a polémica. Em 28 de Julho do ano passado, a Agência Lusa divulgou um relatório do IST – “viralizado” pela imprensa mainstream – que responsabilizava directamente o levantamento das restrições e as festas populares e festivais musicais de Junho por mortes, quantificando-as até.

    De acordo com as notícias, que citaram um relatório então não tornado público, “houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio”. A notícia da Lusa salientava ainda, citando o relatório do IST, que “se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil”. E apontava ainda, expressamente, para as consequências: 790 óbitos devido ao levantamento das restrições e 330 óbitos associados apenas às festas populares de Junho.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, tem procurado afincadamente não disponibilizar relatórios científicos sobre a pandemia realizados em coordenação com a Ordem dos Médicos. Agora, quer fazer crer ao Tribunal Central Administrativo Sul, que, apesar de ter sido obrigado a mostrar o Relatório Rápido nº 52, que não existem provas da existência de mais nenhum.

    Perante a recusa do IST em disponibilizar os dados e o relatório em causa, o PÁGINA UM decidiu requerer a totalidade dos relatórios elaborados desde Julho de 2021, ao abrigo do acordo com a Ordem dos Médicos, bem como os ficheiros numéricos e a metodologia.

    No processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que se seguiu – onde se revelou que o IST assumia que o polémico relatório que quantificava as mortes causadas pelas festas populares e festivais musicais era afinal “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” –, a juíza do processo acabou apenas por determinar, por sentença no final de Janeiro deste ano, a obrigatoriedade da entrega desse relatório – denominado Relatório Rápido nº 52 –, não fazendo qualquer referência aos outros 51 relatórios anteriores nem aos ficheiros numéricos. Isto apesar de serem expressamente pedidos e a obrigatoriedade da sentença de justificar uma eventual recusa no acesso.

    Como o requerimento formal do PÁGINA UM, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativo, era muito explícito sobre a totalidade dos relatórios do IST sobre esta matéria – e assumindo que o último tinha o número 52 –, foi apresentado já este mês um recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul. Esse expediente legal visava também evitar que o IST conseguisse “destruir” o original do Relatório Rápido nº 52 que enviara ao Tribunal Administrativo de Lisboa, o que, a concretizar-se, impediria qualquer confronto com a cópia que entretanto esta instituição enviara ao PÁGINA UM logo no dia seguinte à sentença, no passado dia 1 de Fevereiro.

    Investigadores do Instituto Superior Técnico responsabilizaram festividades de Junho pela morte de 330 pessoas e culparam o levantamento das restrições por 790 óbitos. Números constam do Relatório Rápido nº 52, feito no âmbito de uma parceria com a Ordem dos Médicos, dinamizada por Miguel Guimarães e Filipe Froes.

    Mas agora, em sede de contra-alegação, o IST defende que não deve existir qualquer alteração da sentença, porque terá ficado “apenas provada a existência do relatório intitulado Relatório Rápido n.º 52, não se provando a existência de outros elementos”, requerendo assim, em sede de recurso, que não haja lugar a entrega de quaisquer outros relatórios ou ficheiros. O IST também pretende, subsidiariamente, a alteração da sentença que faz equivaler relatórios científicos a documentos administrativos.

    A jurista do IST que assina a contra-alegação, Cláudia Figueira, numa tentativa clara de convencer os juízes desembargadores que irão decidir o recurso de que não existe mais qualquer documento, argumenta que “cabia ao recorrido [PÁGINA UM] fazer prova da existência dos restantes relatórios, assim como, dos alegados ficheiros informáticos com dados numéricos, usados para a elaboração dos supostos relatórios.” E que não terá provado.

    Deste modo, aquilo que o IST dá explicitamente a entender, em suma, é que não existe qualquer relatório elaborado pelos seus investigadores desde Julho de 2021 até ser criado o polémico Relatório Rápido nº 52, em 27 de Julho de 2022, intitulado “Resumo da sexta vaga de COVID-19 em Portugal”, e que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigou a mostrar.

    Trecho das contra-alegações do Instituto Superior Técnico.

    Ou seja, o IST quer fazer crer agora ao Tribunal Central Administrativo Sul que em cerca de um ano, afinal não houve relatórios periódicos; que não houve o Relatório Rápido nº 1, nº 2, nº 3, nº 4, nº 5, nº 6, nº7, nº 8, nº 9, nº 10, nº 11, nº 12, nº 13, nº 14, nº 15, nº 16, nº 17, nº 18, nº 19, nº 20, nº 21, nº 22, nº 23, nº 24, nº 25, nº 26, nº 27, nº 28, nº 29, nº 30, nº 31, nº 32, nº 33, nº 34, nº 35, nº 36, nº 37, nº 38, nº 39, nº 40, nº 41, nº 42, nº 43, nº 44, nº 45, nº 46, nº 47, nº 48, nº 49, nº 50 e nº 51.

    E ainda que, portanto, segundo esta alegação do IST, quando os seus investigadores decidiram fazer o primeiro relatório sobre esta matéria não viram qualquer falta de lógica em baptizarem-no de Relatório Rápido nº 52, e não de Relatório Rápido nº 1, mesmo se o Ministério da Educação anda há décadas a ensinar as crianças do primeiro ciclo que o número 1 é um número que antecede os números 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12,13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33,34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52 (e os seguintes, acrescente-se, até ao infinito).

    Mas o argumento do IST aparenta cair por terra quando se analisam os factos conhecidos e evidentes. Por um lado, é público também a existência de um outro relatório – o Relatório Rápido nº 51, que previa um aumento significativo de casos positivos decorrentes das festas populares e festivais de Junho de 2022, e que os próprios investigadores do IST disponibilizaram ao Blind Spot em meados de Julho do ano passado. A previsão do IST, constante no Relatório Rápido nº 51, de que seria previsível um aumento de 350 mil casos positivos de covid-19 foi também divulgado pela Lusa, em 8 de Junho de 2021.

    Capas do Relatório Rápido nº 51 e do Relatório Rápido nº 52, este apenas obtido após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa. Nas contra-alegações do recurso apresentado pelo PÁGINA UM, o Instituto Superior Técnico alega que só se provou a existência do Relatórios Rápido nº 52, falando nos outros 51 como “supostos relatórios”.

    Na notícia do Blind Spot acrescenta-se também que, apesar das notícias da imprensa não colocarem o relatório em linha, “entrámos em contacto com o IST que nos disponibilizou o relatório”. O Blind Spot colocou o referido Relatório Rápido nº 51 – portanto, anterior ao Relatório Rápido nº 52 – em anexo descarregável.

    Aliás, o PÁGINA UM, quando em 17 de Fevereiro passado esmiuçou o Relatório Rápido nº 52, também analisou, e colocou no seu servidor, o Relatório Rápido nº 51.

    Mas, assumindo ser uma evidência que o Relatório Rápido nº 52 não é “filho único” – porque há o Relatório Rápido nº 51 enviado em Julho do ano passado pelo IST ao Blind Spot –, existem então provas cabais da existência do Relatório Rápido nº 1, nº 2, nº 3, nº 4, nº 5, nº 6, nº7, nº 8, nº 9, nº 10, nº 11, nº 12, nº 13, nº 14, nº 15, nº 16, nº 17, nº 18, nº 19, nº 20, nº 21, nº 22, nº 23, nº 24, nº 25, nº 26, nº 27, nº 28, nº 29, nº 30, nº 31, nº 32, nº 33, nº 34, nº 35, nº 36, nº 37, nº 38, nº 39, nº 40, nº 41, nº 42, nº 43, nº 44, nº 45, nº 46, nº 47, nº 48, nº 49 e nº 50?

    Então, e o PÁGINA UM tem provas cabais da existência da existência de 50 relatórios antes do Relatório Rápido nº 51 e do Relatório Rápido nº52?

    Cientificamente, com um grau de certeza de 100%, não. Não tem, efectivamente, não – não tem essas provas a 100%. Apenas pode apelar ao mais elementares níveis de leitura e entendimento como prova, propondo uma leitura, por exemplo, da primeira frase do Relatório Rápido nº 51, que tem o seguinte conteúdo: “O facto mais marcante a realçar neste relatório é que a mortalidade diária em média a sete dias subiu para 41.4, tal como previsto por nós em anteriores relatórios.”

    Trecho inicial do Relatório Rápido nº 51 da autoria dos investigadores do Instituto Superior Técnico.

    E, já agora, também para a leitura do Relatório Rápido nº 52 – aquele que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigou o IST a disponibilizar ao PÁGINA UM –, onde são feitas referências a relatórios anteriores. Como, por exemplo, a seguir ao gráfico da da página 6: “A incidência acumulada a 14 dias por 100.000 habitantes desceu entre relatórios de 3.352 para 636. Este é um mau indicador, como já referido nos relatórios anteriores.”

    Mas isto, visto está, agora, com os investigadores do IST – com estes investigadores do IST, que tiveram sempre a supervisão do seu presidente, Rogério Colaço, que sempre mostrou uma atitude obscurantista – pode afinal ser uma ilusão de óptica ou de memória, um lapso, uma banal gralha, até por supostamente estarmos perante “esboços embrionários, que consubstanciam meros ensaios para uns eventuais relatórios”.

    Portanto, colocam-se academicamente duas hipóteses: os investigadores do IST estavam convencidos que, quando escreveram aquela frase, tinham mesmo feito relatórios anteriores aos Relatórios Rápidos nº 51 e nº 52, mas estes afinal eram “fantasmas”.

    Trecho da página 6 do Relatório Rápido nº 52. O IST alega que não se provou a existência de mais relatórios para além do Relatório Rápido nº 52.

    Ou então estão a mentir ao tribunal.  

    Qualquer que seja a verdadeira hipótese, estes investigadores do IST estão a dar uma imagem pouco condizente com a de uma tão prestigiada instituição universitária pública de Portugal. E legitimamente deve levar à questão: é assim que se faz Ciência em Portugal? É esta a qualidade dos nossos cientistas que dão cartas além-fronteiras?  


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