Nono mês consecutivo sempre acima de 10.000 óbitos. Enterrou-se como nunca em Maio, Junho e Julho deste ano. O mais recente trimestre superou em 20% a média do último quinquénio, ultrapassando as 31 mil mortes. O Governo nada diz e a Procuradoria-Geral da República meteu todos os magistrados em “férias grandes”. Retrato de um país “esquizofrénico” que, ainda há pouco tempo, garantia que todas as vidas contavam.
Nove meses seguidos de mortalidade mensal sempre acima dos 10.000 mil óbitos já seria, por si só, calamitoso. Nunca antes sucedeu uma sequência tão longa a superar esta fasquia, mas as estatísticas mostram já muito mais do que uma mera calamidade. Estaremos ao nível de uma catástrofe ímpar; e ímpar até pelo ensurdecedor silêncio de políticos e magistrados.
O PÁGINA UM faz, entretanto, contas. Este Julho – que termina dentro de algumas horas, e mesmo faltando apurar números definitivos, sobretudo dos últimos dias – será garantidamente o pior de sempre desde que existem registos. E será certamente um máximo histórico para este mês em função da população nacional e da sua estrutura etária.
De acordo com os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), pelas 18:40 horas de hoje, estavam já contabilizados 10.527 óbitos por todas as causas desde o dia 1 de Julho. Certamente, o valor final superará os 10.600 – aliás, dentro das estimativas feitas pelo PÁGINA UM na passada quarta-feira –, ultrapassando assim o máximo anterior, o ano 2020.
Recorde-se que, há dois anos, num cenário pós-primeira vaga da pandemia – e quando a mortalidade por covid-19 rondava então somente três óbitos por dia –, o tempo mais quente causou um excesso de mortalidade nunca bem explicado.
Foi neste contexto que morreram quase duas dezenas de idosos num lar de Reguengos de Monsaraz, em parte por abandono e negligência. Nesse período, a Direcção-Geral da Saúde ainda desaconselhava o uso de ar condicionado por alegado perigo (nunca provado) de disseminação do SARS-CoV-2, agudizando assim as condições de saúde dos mais vulneráveis.
O mês de Julho de 2020 acabou assim com um saldo de 10.413 óbitos, de acordo com dados definitivos do Instituto Nacional de Estatística, o que já era um valor completamente anormal. Por regra, Julho é o segundo mês menos mortífero do ano (8.151 óbitos no quinquénio anterior à pandemia), ultrapassando apenas Setembro (7.885 óbitos no mesmo período).
Porém, mais grave ainda do que um Julho de 2022 anormalmente mortífero – com um recorde absoluto e ostentando os dois dias do ano mais letais (dias 14 e 15 com 458 e 454 óbitos, respectivamente) –, é este suceder a um Junho e a um Maio que também bateram recordes absolutos. E em larga escala.
Com efeito, o Junho deste ano terminou com 10.216 óbitos. Nunca noutro qualquer ano se superara os 10 mil. Cruzando os dados do INE e do Pordata, o Junho anterior mais mortífero foi o de 1981, com 8.867 óbitos, que ficou marcado por uma avassaladora onda de calor de 11 dias seguidos, e que terá causado um excesso de 1.906 óbitos.
Por sua vez, em Maio deste ano contaram-se 10.373 mortes por todas as causas, bem acima do pior ano anterior: Maio de 2020, em plena primeira vaga da pandemia, contabilizou 9.595 óbitos agregando todas as doenças.
Para destacar a situação inaudita que se tem estado a viver em 2022 – com o Governo a furtar-se a dar justificações e a recusar revelar bases de dados que intencionalmente esconde –, saliente-se que o mais recente Abril foi o segundo pior de sempre e o Março o quarto.
Mortalidade acumulada no trimestre Maio-Junho-Julho entre 1980 e 2022. Fonte: INE e Pordata. Análise: PÁGINA UM.
O morticínio do trimestre Maio-Julho deste ano – pela sua dimensão e persistência – também se releva quando se comparam períodos homólogos. No total, nestes três meses foram já contabilizados 31.116 óbitos, superando em mais de 2.500 mortes o segundo pior trimestre homólogo (2020, com 28.575 mortes).
Se se considerar a mortalidade média deste trimestre no último quinquénio (2017-2021), o excesso de mortalidade deste ano é de 5.211 óbitos, ou seja, um acréscimo de 20%. Ou, se se quiser noutra perspectiva, em média, nos meses de Maio, Junho e Julho morreram a mais 56 pessoas todos os dias. Todos os 92 dias, incluindo dias úteis, feriados e fins-de-semana.
E isto incluindo dois dos anos em que a pandemia da covid-19 esteve já presente, um dos quais (2020) sem vacina e com quase toda a população ainda sem contacto com o SARS-CoV-2.
Apesar deste morticínio da Primavera e Verão de 2022, a mortalidade total acumulada desde o início de Janeiro ainda não supera o ano passado, marcado por um excesso inaudito de óbitos sobretudo em Janeiro e Fevereiro.
Porém, caso se mantenha a tendência dos últimos meses – que está a atingir especialmente os maiores de 85 anos, o ano de 2022 ultrapassará os níveis de mortalidade total acumulada de 2021 ao longo do próximo mês de Agosto, algo que seria improvável acontecer em Fevereiro último.
Diferencial acumulado de óbitos por todas as causas ao longo do tempo (até 29 de Julho) entre 2022 e 2021. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Com efeito, uma vez que os dois primeiros meses de 2021 foram anormalmente letais, o diferencial no dia 28 de Fevereiro entre este ano e o ano passado era então de 10.003 óbitos – ou seja, em 2022 morreram em Janeiro e Fevereiro menos 10.003 pessoas do que no ano passado.
Porém, a partir de Março deste ano a mortalidade disparou, pelo que o diferencial se situa agora em redor de apenas 1.500 óbitos. Se Agosto se mantiver em 2022 tão mortífero como foram os últimos cinco meses, ter-se-á apenas de adivinhar o dia em que o presente ano supera o de 2021 em número acumulado de óbitos.
Governo, certos peritos e media mainstream insistem na tónica do excesso de mortalidade causada pelas temperaturas elevadas. E se é certo que o calor extremo pode, em muitas circunstâncias, contribuir ainda mais para piorar a situação, uma análise estatística do PÁGINA UM comprova, analisando somente os dias sem “anomalias térmicas”, que o excesso de mortalidade é estrutural. Mesmo sem tempo quente, o morticínio vai continuar. Até quando? Até quando o silêncio do Governo? Até quando o silêncio (cúmplice) da Procuradoria Geral da República?
Nem um milagre livrará já Portugal de chegar ao final de Julho com o nono mês consecutivo sempre com a mortalidade total acima da fasquia dos 10 mil óbitos – um fenómeno inédito na História de Portugal, e que não está relacionada com qualquer fenómeno meteorológico, revelando sim um gravíssimo problema estrutural de Saúde Pública ignorado e “abafado” pelo Governo.
De acordo com a análise estatística do PÁGINA UM, mesmo faltando contabilizar cinco dias para se concluir Julho, está garantido que a mortalidade por todas as causas ficará bem acima dos 10.000 óbitos. E será praticamente garantido que superará Julho de 2020 – já então marcado por uma mortalidade inusitada devida, apenas em parte, ao tempo quente.
O Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) indicava, até ao dia de ontem, 9.036 óbitos acumulados no mês em curso, um valor superior em 243 mortes ao então registado há dois anos entre 1 e 26 de Julho. Mesmo assumindo um forte abaixamento da mortalidade diária entre hoje e domingo, para níveis em redor do primeiro quartil deste mês (318), o total deverá rondar os 10.600 óbitos – algo inimaginável nesta época do ano, ainda mais tendo em conta a sucessão de meses em excesso de mortalidade.
Há dois anos Julho terminou com 10.425 óbitos, ultrapassa-se pela primeira vez este limiar. Saliente-se que, por norma, os meses de Verão são pouco “letais”, sendo Setembro aquele onde se regista um menor número de mortes.
Mortalidade total no mês de Julho (até dia 26) entre os anos de 2009 e 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
As análises do PÁGINA UM também demonstram ser uma perigosa falácia manter a ideia de ser o tempo quente – e as alterações climáticas – que justificam o excesso de mortalidade, porque tal percepção faz transparecer a ideia de que, terminando as temperaturas elevadas, a situação se “regularizará”. Não é verdade, de todo, em especial quando se cruza a mortalidade diária com os valores do Índice Ícaro.
Calculado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), entre Maio e Setembro de cada ano e – ainda disponível, desde 2020, no Portal da Transparência do SNS, podendo ser a qualquer momento retirado para “análise interna” por iniciativa de algum burocrata –, este índice apresenta o risco potencial de morte associado a elevadas temperaturas.
Mortalidade total nos últimos nove meses em Portugal. Mês de Julho é uma estimativa com valores reais até dia 26 e assumindo que os restantes cinco dias terão, em média, o valor do primeiro quartil deste mês (311 óbitos). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Contudo, permite também análises interessantes quando se confrontam períodos em que esse índice é zero – ou seja, quando não há qualquer efeito do calor extremo associado à mortalidade. Deste modo, consegue-se, de uma forma simplista mas rápida, conhecer a “mortalidade base” expurgada da meteorologia, comprovando assim a existência ou não de um problema estrutural de Saúde Pública.
Ora, cruzando os valores diários do Índice Ícaro com a mortalidade, desde 1 de Maio até 26 de Julho, observa-se que, efectivamente, o ano de 2022 está a apresentar um perfil de temperaturas elevadas bastante superior ao ano passado, mas apenas ligeiramente acima de 2020. Com efeito, este ano já se contabilizaram 34 dias com o Índice Ícaro acima de 0, cinco dias mais do que em 2020, e 17 dias mais do que em 2021. No caso de dias com o Índice Ícaro acima de 0,40, no ano passado não se contabilizou nenhum, enquanto este ano já se observaram sete dias, enquanto em 2020 foram cinco.
Distribuição dos óbitos diários em função dos valores do Índice Ícaro entre 1 de Maio e 26 de Julho para os anos de 2020, 2021 e 2022. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.
Contudo, sendo certo que um Índice Ícaro efectivamente resulta num incremento da mortalidade – empiricamente, valores acima de 0,40 resultam numa mortalidade diária acima de 350 óbitos, e acima de 0,80 podem ultrapassar os 400 –, também relevante se mostra observar o “perfil de mortalidade diário” quando as temperaturas são normais e amenas. Ora, e é aqui que o ano de 2022 mostra que algo está mesmo muito anormal.
Com efeito, desde Maio deste ano, mesmo quando o Índice Ícaro está em zero, a mortalidade diária ultrapassou quase sistematicamente os 300 óbitos diários. Este ano, desde Maio, só houve ainda sete dias abaixo desta fasquia, sendo que se registaram 55 dias com Índice Ícaro igual a zero. No ano passado houve 64 dias com mortalidade abaixo de 300 em 71 dias com Índice Ícaro de zero, enquanto em 2020, de entre os 58 dias com temperaturas normais, contabilizaram-se 33 com mortalidade inferior a 300 óbitos.
Diagramas de caixa para para os dias com Índice Ícaro zero (1 de Maio a 26 de Julho) em 2020, 2021 e 2022, com indicações dos valores extremos, primeiro quartil, mediana e terceiro quartil. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.
A profunda anormalidade deste ano – que não é fruto de qualquer anomalia meteorológica, apenas se agrava ainda mais quando ocorre uma onda de calor – também se observa numa simples análise estatística descritiva. Com efeito, contabilizando somente os dias com Índice Ícaro zero, constata-se que em mais de 75% dos dias (entre Maio e 26 de Julho), a mortalidade esteve acima de 311 óbitos, enquanto que em 2020 – para similar “perfil de temperaturas” – a mortalidade acima de 311 óbitos registou-se apenas em 25% dos dias.
Se compararmos medianas da mortalidade diária para os três anos – lidas como representando o valor a partir do qual se observou em metade dos dias – para os períodos em que o Índice Ícaro foi de zero, então ainda se constata que o Portugal de 2022 está estruturalmente doente. Com efeito, este ano, a mediana da mortalidade nesta condições (tempo normal sem excesso de mortalidade associado ao tempo quente) é de 312 óbitos (um valor absurdamente alto), que compara com 296 em 2020 e com apenas 276 em 2021.
A mortalidade média está com valores próximos da mediana: 328 para este ano, sendo de 275 no ano passado e de 293 em 2020. Em anos com maior prevalência de dias de excessivo calor mostra-se habitual a ocorrência de mortalidade ainda excessiva nos períodos subsequentes, mas nunca na dimensão que está a suceder este ano.
A testagem massiva, por vezes sem critério e a preços exorbitantes, faz de Portugal um dos países que mais gastou à “cata” do SARS-CoV-2, embora os valores não estejam apurados. Sabe-se, contudo, que cerca de dois em cada três testes feitos ao longo da pandemia foram processados apenas nos últimos sete meses, para apanhar a variante Omicron, mais transmissível, mas muito menos letal. Para os laboratórios pode-se dizer que, na verdade, “ficou tudo bem”. Venderam mais, aumentaram margens de lucro, e foi “dinheiro em caixa”. O Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. é um bom exemplo. Para os seus accionistas, claro.
A estratégia de massificação de testagem à covid-19 seguida por muitos países, sobretudo com o surgimento da variante Omicron, tem enchido os cofres dos laboratórios de análises clínicas. De acordo com dados do Worldometers, Portugal é o sexto país, de entre os 78 com mais de 10 milhões de habitantes, com o maior número de testes. Desde o início da pandemia terão sido realizados cerca de 43,5 milhões de testes, o que significa que cada português realizou, em média, um pouco mais de quatro testes (4,3).
Este indicador é apenas ultrapassado – no grupo dos 78 países de média e grande dimensão – pelos Emirados Árabes Unidos (17,3 testes por habitante), Espanha (10,1), Grécia (8,5), Reino Unido (7,6) e República Checa (5,2).
Embora não existam números concretos dos gastos com a testagem – nem tão-pouco da distribuição entre gastos do Estado, das autarquias, das empresas e dos particulares –, o PÁGINA UM estimava em Dezembro passado que este mercado já deveria ter movimentado perto de 1.300 milhões de euros em Portugal. No entanto, esses cálculos baseavam-se na quantidade de testes então feitos até 3 de Dezembro de 2021 – um total de 15.884.737, dos quais 39% de antigénio. Esse era já um número quase o triplo dos de 2020 – em que se processaram 5.695.754 testes, quase todos de PCR.
Deste modo, quase dois terços dos testes (PCR e de antigénio) realizados em Portugal acabaram por ser realizados nos últimos sete meses, sendo que a intensidade de testagem assumiu contornos inimagináveis em Janeiro com uma média diária de cerca de 250 mil testes por dia.
Em certa medida, essa corrida aos testes observou-se também pela obrigatoriedade de testagem em determinados períodos dos “estados de excepção” e pela “liberalidade” do Estado e de muitas autarquias comparticiparem testes. Por exemplo, em Lisboa houve períodos no início do ano em que era possível realizar até 14 testes por mês, dos quais uma dezena pela autarquia.
Saliente-se que a estatística diária da testagem – como muita outra informação ao longo da pandemia – foi “descontinuada” pela Direcção-Geral da Saúde, ou seja, foi intencionalmente retirada por esta autoridade, como já tem sido uma norma para obstaculizar qualquer comparação ou análise cronológica.
Em todo o caso, sendo evidente que o ano de 2022 será ainda um “ano de ouro” para os principais laboratórios de análises clínicas, certo é que a pandemia lhes tem concedido lucros surpreendentes.
O PÁGINA UM analisou o relatório e contas do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. – um dos maiores do país, fundado por este antigo bastonário da Ordem dos Médicos – que viu os seus lucros “explodirem” com a pandemia.
Em 2018 e 2019 registou lucros de, respectivamente, cerca de 3,9 milhões e 6,0 milhões de euros. Com o primeiro ano da pandemia (2020), os resultados operacionais quase quadruplicaram face ao ano anterior, passando de 8,1 milhões de euros para os 31,1 milhões. O lucro teve idêntico desempenho, atingindo os 23,2 milhões em 2020.
O ano de 2021 ainda foi melhor. Os resultados operacionais subiram para 48,4 milhões de euros e os lucros atingiram os 35,1 milhões.
Comparando os dois anos anteriores à pandemia (2018 e 2019), do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A., com os dois primeiros anos em pandemia (2020 e 2021), os lucros pularam de um total de 9,9 milhões de euros para uns impressionantes 58,4 milhões de euros. Ou seja, um crescimento de quase 490% comparando os dois períodos homólogos (2018-2019 e 2020-2021).
No entanto, também fantástica foi a subida da margem de lucro que, de uma forma simplificada, mede a percentagem retirada por cada euro de vendas ou prestação de serviços. De facto, sendo certo que os laboratórios de Germano de Sousa “venderam” quase três vezes mais nos dois anos da pandemia do que nos dois anos anteriores (189,8 milhões de euros vs. 66,2 milhões), o grande sucesso veio da subida impressionante da margem de lucro.
Em 2018 foi de 12,7%, passou no ano seguinte para 16,8%, e depois pulou nos anos da pandemia: 31,3% em 2020 e 30,4% em 2021. A venda de testes terá contribuído fortemente para este desempenho financeiro, o que basicamente significa que os preços de venda estiveram fortemente inflacionados.
O ano de 2022 deverá continuar a reflectir ainda o “bom” efeito-pandemia para os laboratórios.
A covid-19 tornou-se endémica, mas a mortalidade em Portugal mantém-se imparável. Desde Novembro do ano passado não houve ainda nenhum mês com menos de 10.000 óbitos. Os meses de Abril, de Maio e de Junho bateram recordes, e Julho caminha para essa funesta posição. Mas o problema tem sido a persistência, que mostra um inquestionável problema grave de Saúde Pública. Enquanto isto, o Governo adia uma avaliação independente e continua a obstaculizar as investigações do PÁGINA UM.
É situação inédita, impensável e intolerável, sobretudo pelo silêncio do Governo: com a primeira quinzena de Julho a registar mais de 5.200 óbitos, Portugal arrisca-se a contabilizar o nono mês consecutivo com os meses acima de 10.000 mortes por todas as causas.
De acordo com dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito, desde Novembro do ano passado, todos os meses têm estado acima da fasquia dos 10.000 óbitos, valores que sendo números aceitáveis no Inverno – face ao envelhecimento populacional e à maior prevalência de doenças letais dos aparelhos respiratório e circulatório –, são completamente atípicos nos meses de Primavera e Verão.
Com efeito, considerando os dados mensais da mortalidade do SICO e do Instituto Nacional de Estatística a partir de 1980, antes da pandemia apenas por duas ocasiões se registou uma séries de quatro meses consecutivos com mais de 10.000 óbitos: entre Dezembro de 2014 e Março de 2015, e entre Dezembro de 2017 e Março de 2018.
Mesmo a ocorrência de séries de três meses a suplantarem aquela fasquia eram bastante raros, identificando-se apenas seis desde 1980: Dezembro de 1995 a Fevereiro de 1996; Dezembro de 1998 e Fevereiro de 1999; Dezembro de 2001 e Fevereiro de 2002; Dezembro de 2006 e Fevereiro de 2007; e ainda Janeiro de 2012 a Março de 2012.
Em plena pandemia registar-se-ia mais uma série de quatro meses com mortalidade sempre acima de 10.000 óbitos – Novembro de 2020 a Fevereiro de 2021 –, mas com uma dimensão sem precedentes, uma vez que, sobretudo Janeiro do ano passado contabilizou o pior saldo de sempre (19.649 óbitos). No total, naqueles quatro meses faleceram quase 57 mil pessoas. Nas outras duas séries com quatro meses sempre acima dos 10.000 óbitos, o saldo tinha sido menos nefasto: cerca de 45 mil mortes em cada.
Mortalidade mensal desde Janeiro de 1980 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.
Por norma, uma elevada mortalidade durante um determinado período – neste caso, o primeiro ano da pandemia – deveria estar a “beneficiar” os períodos subsequentes por virtude de um “rejuvenescimento” da população por via da morte dos mais vulneráveis. Ademais, a variante Omicron – que surgiu em Novembro do ano passado – tem-se mostrado de menor letalidade, a que acresce a elevada taxa de vacinação contra a covid-19, que as autoridades de saúde recusam associar a efeitos adversos relevantes.
Contudo, certo é, desde Novembro do ano passado, nunca se ficou abaixo dos cinco dígitos na contabilização de pessoas falecidas. Sendo certo que Dezembro e sobretudo Janeiro são meses em que habitualmente se ultrapassam os 10.000 óbitos – e em Novembro e Março ocorre com alguma regularidade nos anos pré-covid –, não é habitual estarem todos com elevada mortalidade.
Abril com mais de 10.000 óbitos apenas ocorreu por uma vez, exactamente em 2020, no início da denominada primeira vaga, que também esteve associada a mortes por causas não-covid. Mas um Maio ou um Junho acima de 10.000 óbitos é completamente inédito. Se Julho mantiver o ritmo – a média diária é, por agora, de 349 óbitos –, baterá o recorde de 2020, a única vez que se ultrapassara os 10.000 óbitos.
Porém, o principal problema nem sequer são os recordes mensais, mas sobretudo a persistência de elevados valores em tantos meses.
Mortalidade mensal desde Julho de 2017 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.
Apesar desta situação, o Governo mantém-se impávido, recusando disponibilizar os dados brutos do SICO – o que implicou o recurso ao Tribunal Administrativo por parte do PÁGINA UM, através de um processo de intimação –, o que permitiria identificar as causas de mortes que se têm vindo a destacar e a justificar estes números.
Além disso, recentemente, o presidente da Administração Central do Sistema de Saúde, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ministra da Saúde, Marta Temido – retirou a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do SNS, impedindo assim o PÁGINA UM de escrutinar qual o grupo de doenças que se mostram agora com maior letalidade das unidades de saúde.
Anteontem, a ministra da Saúde referiu aos jornalistas que o Governo está “totalmente empenhado em conhecer aquilo que é a mortalidade, conhecer as suas causas e atuar sobre as suas causas”, alegando que para as análises serem sérias, demoram muitas vezes tempo, e como tal é necessária “alguma prudência”. Marta Temido acrescentou querer “chegar a conclusões céleres”, mas que estas “não são possíveis quando são sobre fenómenos complexos e necessitam de tempo e de análise técnica”.
Na verdade, fazer análises desta natureza, ainda mais com o detalhe que os dados do SICO permitem, não demora assim muito tempo.
Para a “prova dos 9”, o PÁGINA UM solicitou a um professor de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências que analisasse a mortalidade deste ano em comparação com os últimos cinco anos, incluindo os primeiros dois anos de pandemia. Os resultados confirmam uma mortalidade excessiva, mas pior ainda: uma persistência inaudita. O calor desta semana complicará mais esta tragédia, mas não pode ser o bode expiatório. Afinal, o que esconde o Ministério da Saúde, quando não disponibiliza ao PÁGINA UM os dados em bruto do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito? De que estão a morrer os portugueses? Irá a culpa continuar a morrer solteira?
Desde 21 de Fevereiro até 10 de Julho – antes da actual onda de calor –, o excesso de mortalidade por todas as causas já terá atingido quase 5.700 óbitos, de acordo com cálculos, a solicitação do PÁGINA UM, de João José Gomes, professor do Departamento de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Utilizando estatística mais elaborada, e analisando semanalmente os níveis de mortalidade desde o início do presente ano e comparando com períodos homólogos dos cinco anos anteriores (2017-2021) – incluindo, portanto, os dois primeiros anos da pandemia –, os cálculos deste investigador universitário destacam de forma ainda mais marcante a elevada e incompreensível mortalidade sobretudo desde o início de Março, e que se tem prolongado pela Primavera e Verão. Estas épocas do ano costumam ser as de menor mortalidade, só de quando em vez interrompidas, de forma curta, por alguma onda de calor.
Com efeito, a anormalidade deste ano mostra-se, sobretudo, por não estar associada a nenhum evento extraordinário, embora oficialmente tenha subsistido uma relativa mortalidade causada oficialmente pela covid-19, embora inédita, porquanto Portugal é um dos países europeus com maior taxa de vacinação contra esta doença e com maior contacto com o SARS-CoV-2.
Segundo os cálculos de João José Gomes, o mês de Janeiro deste ano até foi bastante “ameno” – com um “défice de mortalidade” que chegou aos 677 na terceira semana. A situação de menor mortalidade face à média ainda se manteve até à semana 7 – mas já com uma aproximação à média do período 2017-2021 a partir do início de Fevereiro.
Porém, sem qualquer evento meteorológico associado com implicações na saúde, Março foi o início de um inusitado processo atípico: em vez de uma redução, a mortalidade manteve-se em níveis quase similares ao Inverno. Significou isso, que o excesso de mortalidade se foi evidenciando.
Mortalidade semanal em 2022 comparada com intervalos de confiança de 95% construídos com base nos anos 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes (FC-UL)
E de uma forma abismal. De facto, a partir da semana 12, iniciada a 22 de Março, a mortalidade total diária esteve quase invariavelmente acima da média do período homólogo entre 2017 e 2021. A situação ainda piorou mais entre a semana 21, que começou a 24 de Maio, e a semana 25, que terminou em 27 de Junho. Neste período de transição da Primavera para o Verão – que inclui Junho, o segundo mês menos mortífero do ano, a seguir a Setembro, pela sua amenidade –, o valor mínimo diário em 2022 esteve quase sempre acima do limite superior do intervalo de confiança de 95%. Isto sistematicamente. Pior seria impossível.
De acordo com os cálculos de João José Gomes, é sobretudo a persistência de um longo período de excesso de mortalidade num período do ano caracterizado pela baixa mortalidade que causa estupefacção.
Estimativa do défice (verde) e excesso (vermelho) de mortalidade por semana em 2022 face à média do período 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes.
Entre as semanas 12 e 27, apenas em duas se excedeu as 200 mortes no respectivo período de sete dias. A mortalidade excedeu em mais de 60 óbitos por dia (ou seja, mais de 420 óbitos em sete dias) na semana 25 (21 a 27 de Junho, com 676 óbitos a mais, isto é, quase 97 por dia), na semana 24 (14 a 20 de Junho, com 563 óbitos a mais), na semana 20 (17 a 23 de Maio, com 468 óbitos a mais), na semana 23 (7 a 13 de Junho, com 467 óbitos a mais) e na semana 21 (24 a 30 de Maio, com 424 óbitos a mais).
Para reconfirmar a persistência da mortalidade sempre em valores muito acima do perfil normal – em que, no período primaveril e estival se sucedem largos períodos com óbitos diários a rondar os 280 por dia –, saliente-se que este ano apenas se verificaram, até hoje, 15 de Julho, sete dias com menos de 300 óbitos. Significa que se contabilizaram já 189 dias com mais de 300 óbitos, muito acima dos 161 registados em 2020, quando a primeira vaga encontrou uma população completamente desprevenida. No ano passado, que contabilizavam-se, neste período, já 104 dias abaixo dos 300 óbitos, embora tal se tenha devido em grande medida ao morticínio dos meses de Janeiro e Fevereiro.
Número de dias com 300 ou mais óbitos e com menos de 300 óbitos entre 2009 e 2022 até 15 de Julho. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Note-se que, na quase totalidade do período analisado, o índice Ícaro – que mede o risco de acréscimo de mortalidade devido a temperatura elevadas – esteve quase sempre com o valor de zero. Até 8 de Julho apenas em um dia esteve acima de 0,1 (ou seja, com impacte quase irrelevante), e somente na última semana esteve consecutivamente positivo. Em todo o caso, ainda não superou o valor de 1, que constitui já uma fasquia de grande perigo.
Esta análise demonstra, de forma categórica, que o excesso de mortalidade nos últimos dias associada exclusivamente à onda de calor em curso está profundamente errada. E que o comunicado de imprensa de ontem à tarde da Direcção-Geral da Saúde, apontando para um excesso de 238 óbitos no período de 7 a 13 de Julho em função exclusivamente das condições meteorológicas, e omitindo o passado mais recente (e os problemas estruturais do SNS), constitui, na verdade, uma manobra de diversão.
Na verdade, se é previsível (aliás, seria estranho o contrário) que a mortalidade total venha a ser extremamente elevada por estes dias – ontem, segundo dados provisórios, terão morrido 436 pessoas, o que a confirmar-se será o quarto dia mais mortífero de 2022 –, mostra-se evidente que o “ponto de partida”, ou seja, a base de mortalidade (por factores ainda ignorados) está muito acima do expectável. Portanto, acabando a onda de calor, continuará elevada a mortalidade, porque não é a temperatura que está a desequilibrar. Excepto, se enfim, alguém obrigar o Ministério da Saúde a revelar as causas deste contínuo morticínio, e a encontrar rapidamente uma solução.
Nada tem a ver com a onda de calor em curso. No passado domingo, a mortalidade acumulada nos mais idosos (acima dos 85 anos) desde Janeiro deste ano ultrapassou os atrozes valores de 2021, quando então se bateram recordes de óbitos em Janeiro e Fevereiro. Mas, ao contrário do que sucedeu em 2021, o morticínio nos mais velhos está a acontecer na Primavera e no Verão de forma persistente e silenciosa, contrariando aquilo que seria expectável. E tem sido um evento silenciado. Na verdade, não está ser apenas um morticínio; está a ser um gerontocídio. O PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada daquilo que está a suceder, a exigir investigação, que pode ser judicial.
Gerontocídio – a palavra existe no léxico, embora seja pouco usada. Mas sendo pouco ou nada usual ouvi-la e vê-la escrita, tem agora andado a pairar por todo o lado no nosso país, de norte a sul, de este a oeste, apesar das autoridades de Saúde, e particularmente o Governo, nem sequer queiram proferir um qualquer eufemístico sinónimo. Nada. Silêncio. Um atroz silêncio: é esta a reacção de um Estado democrático perante uma mortandade sem precedente atinge níveis inauditos numa franja que já deu muito ao país: os super-idosos, os maiores de 85 anos.
De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM, incluindo tratamento estatístico, aos dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os óbitos acumulados desde 1 de Janeiro deste ano neste grupo etário ultrapassaram, no passado domingo (dia 10 de Julho), os números já colossais de 2021, que incluíram Janeiro e Fevereiro, no auge da pandemia da covid-19.
Com os números provisórios até 12 de Julho, terão já morrido este ano um total de 30.648 pessoas com mais de 85 anos, o que representa quase 10% dos idosos daquela faixa etária, que nos últimos anos estava em contínuo crescimento. De acordo com as estimativas do Instituto Nacional de Estatística viviam em Portugal 328 mil pessoas com mais de 85 anos em 2020, sendo que, naquele ano, mais de 56 mil tinham apagado oito dezenas e meia de velas.
Este grupo etário esteve em contínuo crescimento nas últimas décadas, fruto das melhorias nos cuidados médicos, tendo duplicado mesmo o seu número entre 2004 (quando então viviam apenas cerca de 16 mil pessoas com mais de 85 anos) e 2020. Esse crescimento será quebrado, certamente agora, com o excesso de óbitos em 2021 e 2022.
O valor da mortalidade acumulada dos mais idosos em 2022 excede, por agora, em pouco menos de uma centena (97) os números do ano passado (30.551 óbitos). Encontram-se também substancialmente acima do primeiro ano da pandemia (27,866 óbitos) e são muitíssimo superiores ao período pré-pandemia (25.493 óbitos em média entre 2015 e 2019).
Recorde-se que o ano passado foi particularmente mortífero para os mais idosos. Nos dois primeiros meses do ano passado, a mortalidade total atingiu patamares inéditos: em Janeiro morreram 19.649 pessoas e em Fevereiro 12.784. Destas, 46% (14.809) eram idosos com idade igual ou superior a 85 anos.
Apesar disso, este ano a situação de Saúde Pública dos mais idosos está a assumir contornos ainda mais catastróficos, porque o morticínio não se iniciou nos meses de Inverno – associado a doenças mais letais neste grupo etário –, tendo-se sim intensificado, de forma espantosa e imparável, sobretudo a partir de Março.
Não se registou assim a habitual diminuição dos óbitos ao longo da Primavera e Verão; pelo contrário. Neste momento, os níveis de mortalidade nesta faixa etária estão próximos dos valores de Inverno, e com um excesso significativo face aos anos anteriores e sobretudo aos períodos homólogos pré-pandemia.
O início deste ano até aparentava vir a ser “ameno” para os mais idosos, após a pandemia ter causado um excesso de mortalidade sem precedentes. De facto, o último Janeiro teve uma mortalidade diária para os maiores de 85 anos até ligeiramente abaixo da média do período pré-pandemia: 167 óbitos vs. 174. O mês de Fevereiro esteve já um pouco acima, mas, mesmo assim, até ao dia 25 daquele mês tinham morrido menos 4.828 idosos desta faixa etária do que em igual período de 2021.
Aquilo que sucedeu depois mostra-se ainda inexplicável, pela sua dimensão e persistência, e por mais especulações que as autoridades de Saúde façam, enquanto se recusam a investigar ou impedem ostensivamente que haja investigações independentes. Este ano, entre Março e 12 de Julho, morreram 20.647 idosos com mais de 85 anos, um valor que excede em 4.901 os óbitos registados em 2021, em 2.227 os contabilizados em 2020 (que inclui o início da pandemia), e em 5.004 os que se registaram em média no período entre 2015 e 2019. Em relação à fase pré-pandemia, os óbitos neste grupo etário incrementaram em 32% no período do ano geralmente pouco mortífero.
Evolução do diferencial de óbitos acumulados entre 2022 e 2021 até 12 de Julho no grupo etário dos maiores de 85 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
De facto, o perfil da mortalidade deste ano para os mais idosos é completamente atípica. Desde Março, a mortalidade diária dos maiores de 85 anos tem variado entre uma média diária de 149 óbitos em Julho (nos 12 primeiros dias) e os 160 em Março. A média diária no período pré-pandemia (2015-2019) situa-se, para este intervalo de tempo, entre os 99 óbitos em Julho e os 135 em Março.
Ou seja, desde Junho observa-se um excesso de mortalidade neste grupo etário a rondar 50 óbitos em cada dia. Em dois meses são cerca de três mil mortes a mais. Não há explicação oficial, justificada por estudos técnicos, para estes números.
Esta hecatombe ainda assume pior intensidade, por duas razões: por um lado, nenhum outro grupo etário apresenta este perfil de mortalidade ao longo deste ano; por outro lado, o morticínio dos últimos meses sucede a um longo e (quase) contínuo período de excesso de mortalidade desde o surgimento da pandemia. Ademais, praticamente todo este grupo populacional se encontra com imunidade vacinal contra a covid-19 com três ou quatro doses.
Mortalidade média diária por mês dos maiores de 85 anos no período 2015-2019 (média), 2020, 2021 e 2022 (Julho até dia 12). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Com efeito, analisando todos os grupos etários do SICO, aqueles que são subsequentes aos maiores de 85 anos até estão em situação muito mais favorável relativamente ao ano passado. Apesar de os valores ainda estarem algo acima da média pré-pandemia, se comparamos a mortalidade acumulada até 12 de Julho deste ano com o período homólogo do ano passado para o grupo etário dos 75 aos 84 anos, observa-se até um decréscimo de 1.504 óbitos. Para o grupos dos 65 aos 74 anos a redução é de 839.
A relativa redução na mortalidade entre os 65 aos 84 anos justifica, assim, que o total de óbitos na população portuguesa até 12 de Julho de 2022 ainda seja bastante inferior ao ano passado: 67.939 óbitos contra 70.677, ou seja, menos 2.728.
Porém, esse mesmo diferencial, confirma ainda mais que o problema se concentra em exclusivo nos mais idosos, embora seja questão menos mediatizável por atingirem pessoas que já vivem acima da esperança média de vida. Em todo o caso, fica patente que o suposto “efeito rejuvenescimento” – devido à morte dos mais “fracos” ao longo da pandemia – não foi assim suficiente para estancar um “inesgotável morticínio”.
Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos mais idosos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
A constatação de se estar perante um silencioso e silenciado problema em exclusivo para os mais idosos ainda se evidencia mais numa análise aos grupos etários das pessoas com menos de 65 anos – onde, felizmente, a mortalidade em qualquer caso é muito inferior. No grupo dos 55 aos 64 anos – em que a mortalidade em 2022 ainda está acima do período pré-pandemia –, no presente ano contabilizam-se menos 320 óbitos do que no ano passado.
Para os menores de 55 anos, o ano de 2022 está dentro de valores considerados normais, incluindo os anos anteriores à pandemia. Na verdade, durante 2020 e 2021, a mortalidade nos menores de 55 anos foi mesmo geralmente mais baixa do que no período pré-pandemia (2015-2019), com uma excepção (pouco relevante do ponto de vista estatístico) no grupo etários dos 15 aos 24 anos.
No caso dos menores de 15 anos, ao longo da pandemia a mortalidade – já de si muito reduzida em situações normais – esteve sempre mais baixa. Na verdade, a taxa de mortalidade infantil desceu mesmo nos dois primeiros anos da pandemia, e o ligeiro crescimento deste ano face a 2021 não é (ainda) preocupante numa perspectiva de Saúde Pública.
Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos menores de 65 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Em suma, por covid-19, por outras doenças, por negligência das autoridades de outros responsáveis políticos, certo é que os maiores de 85 anos estão a acelerar a partida deste mundo – depois de décadas de esforço na melhoria dos cuidados de saúde, que tornaram Portugal num país moderno e civilizado. E aparentemente não há quem deseje investigar as causas.
Sendo certo que a covid-19 teve o seu peso no excesso de mortalidade após Março de 2020, não se encontra (ainda) justificação (técnica e científica, excluindo bitaites mesmo se de “peritos”) para os actuais níveis de mortalidade nos maiores de 85 anos. Mostra-se assim necessário investigar em vez de especular; é necessário pegar nos dados brutos do SICO e analisar as causas de mortes antes e durante a pandemia para todas as faixas etárias.
E acabar com o alarmismo e o fomento do medo que anestesiou toda uma população, a tal ponto que a convenceu que a covid-19 era a “doença”, a única, a globalmente perigosa. O impacte da pandemia está por fazer, bem como as soluções, que não incluem apenas o ataque à doença, mas também uma análise crítica à gestão da pandemia, ou seja, as consequência da suspensão do Serviço Nacional de Saúde e mesmo os efeitos não estudados dos sucessivos boosters das vacinas contra a covid-19 nos mais idosos e nos outros grupos etários.
Aliás, mostra-se fundamental mostrar que a covid-19, tendo sido um problema de Saúde Pública grave, teve níveis de gravidade completamente distintos, e que todas as acções implementadas de forma generalizada foram erradas.
O PÁGINA UM fez, aliás, uma “simples” e rápida análise comparativa da mortalidade por grupo etário em dois períodos homólogos: entre 1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019 (fase pré-pandemia) e entre 1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022 (fase da pandemia). Os valores absolutos comprovam que em Portugal se viveu um pânico colectivo sem justificação e que terá sido bastante contraproducente para uma gestão eficaz e eficiente.
Assim, no grupo dos menores de 1 ano, dos 1 aos 4 anos, dos 5 aos 14 anos, dos 25 aos 34 anos, dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos – ou seja, com excepção do grupo dos 15 aos 24 anos (situação que deveria ser também investigada) –, a pandemia não teve qualquer impacte, ou até mesmo paradoxalmente “positivo”. A mortalidade foi mesmo inferior. No caso dos menores de 1 ano, a redução até foi de 22% (na realidade um pouco menor, porque a taxa de natalidade desceu).
De resto, o impacte nos maiores de 55 anos foi muito distinto, mas a merecer prudência em assacar responsabilidades exclusivas à covid-19. Com efeito, o incremento da mortalidade nestes dois períodos foi muito distinto e não foi linear, como seria de supor se o SARS-CoV-2 fosse a única explicação.
Mortalidade por grupo etário na fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e na fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.
No grupo dos 55 aos 64 anos e dos 75 aos 84 anos, o acréscimo de mortalidade entre a fase pré-pandemia e fase de pandemia foi de 8%, mas estranhamente foi de 12% no grupo dos 65 aos 74 anos. Ou seja, seria expectável – caso a covid-19 fosse o único factor a explicar este acréscimo – que a subida da mortalidade neste grupo etário estivesse algures entre o valor do grupo que o precede (55 aos 64 anos) e o que lhe segue (75 aos 84 anos).
Por outro lado, observa-se que o incremento da mortalidade nos maiores de 85 anos concentra o maior crescimento, o que tendo em consideração que é o grupo etário com maior peso absoluto. De facto, são quase 20 mil mortes a mais (128.224 na fase da pandemia vs. 108.559 na fase pré-pandemia). Tendo em conta que estamos a falar de 864 dias, significa um acréscimo de quase 23 óbitos em excesso por dia. Não foi tudo, certamente da covid-19. Nem o que está agora a acontecer tem essa tão singela explicação. Nem pode a onda de calor, que está agora por aí, levar com as culpas.
Mas a ignorância sobre toda esta situação é imensa, tanto mais que é fomentada pela própria Direcção-Geral da Saúde, instituição que nem permite sequer que se saiba qual o peso efectivo da covid-19 nos maiores de 85 anos – e também nos outros grupos etários.
Variação da mortalidade (%) por grupo etário entre a fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e a fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.
Desde o início da pandemia, o Governo desfasou, com o claro propósito de obstaculizar qualquer análise séria, os dados da mortalidade total (contabilizados no SICO) e da mortalidade por covid-19. Assim, por exemplo, sabe-se quantas pessoas com mais de 80 anos morreram de covid-19, mas não se consegue calcular o contributo da doença na mortalidade total, porque os grupos etários usados no SICO vão dos 75 aos 84 anos e depois dos maiores de 85 anos.
Saber quais as doenças que determinaram, por exemplo, este desvio seria essencial, mas o Governo esconde os dados. Tal como esconde todos os dados e toda a informação, por amiguismo ou protecção política, que procurem fazer um diagnóstico dos problemas e encontrar soluções.
E um Governo que intencionalmente faz isto, faz isso para esconder a verdade. E uma sociedade que admite isto, aceita um Governo a fazer tudo.
Continua sem existir uma justificação documental (e plausível) para o desaparecimento da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar retirada do Portal da Transparência pelo presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Do gabinete da ministra da Saúde remete-se a responsabilidade para a ACSS, presidida por um amigo de longa data de Marta Temido, com quem esteve lado a lado no passado dia 7 na apresentação do novo Estatuto do SNS. A ministra nega razões políticas, mas não responde sobre se vai fazer algo para que seja retomado o acesso público daquela base de dados.
Victor Marnoto Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), continua sem identificar quais foram as razões técnicas que levaram aquele instituto público – sob alçada directa da ministra Marta Temido, sua amiga de longa de longa – a expurgar a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, onde constam dados que revelam a situação caótica do Serviço Nacional de Saúde e desmentem muitos aspectos da narrativa oficial do Governo.
A base de dados permitiu ao PÁGINA UM elaborar um dossier de investigação jornalística, que já contava com nove artigos, publicados entre 13 de Maio e 23 de Junho. O seu expurgo impede o acesso a dados mais actuais, posteriores a Janeiro deste ano, impossibilitando assim uma melhor avaliação do desempenho do SNS e das políticas públicas do actual Governo.
Da esquerda para a direita: Rui Ivo (presidente do Infarmed), as ministras Mariana Vieira da Silva e Marta Temido, Victor Herdeiro (presidente da ACSS) e Fernando Alfaiate (presidente da Estrutura de Missão Recuperar Portugal) na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho.
Esta base de dados foi criada em 2018, sendo um sistema de informação de suporte à monitorização do desempenho dos hospitais do SNS.
Em concreto, este sistema recolhe dados administrativos, incluindo codificação clínica, permitindo apurar a evolução mensal, desde Janeiro de 2017, de episódios de internamentos, ambulatório e óbitos por capítulo de diagnóstico (por grande grupo de doença) em cada hospital ou centro hospitalar, por grupo etário e sexo. Tem também a particularidade de conseguir identificar a evolução dos internamentos e desfechos da covid-19, uma vez que, neste caso concreto, esta é a única doença do grupo denominado “Códigos para fins especiais”.
Certo é que o responsável da ACSS – que assumiu sem esclarecer a retirada da base de dados da Plataforma da Transparência, alegando “análise interna” – foi uma escolha directa e pessoal da actual ministra para aquele posto. Aliás, Marta Temido presidiu àquele instituto desde 2016, quando em 2018 foi convidada por António Costa para integrar o Governo.
Victor Herdeiro demorou três anos a conseguir o cargo antes ocupado pela sua amiga Marta Temido, quando então ocupava a vice-presidência da Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, uma entidade pública, mas com ligações à APIFARMA. Antes daquele cargo, Herdeiro tinha sido presidente da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, que gere o Hospital Pedro Hispano.
Printscreen de apresentação da base de dados expurgada pela ACSS (imagem arquivada). Fonte: Internet Archive.
Os laços entre Marta Temido e Victor Herdeiro são bastante estreitos e de longa data. Ambos tiraram o curso de Direito, tendo-se cruzado nos corredores da Universidade de Coimbra, embora o actual presidente da ACSS seja mais velho (nasceu em 1969, enquanto Temido nasceu no início de 1974). No entanto, passaram a ter contactos estreitos há cerca de duas décadas, porque ambos ingressaram na carreira de administradores hospitalares.
Na Associação Nacional de Administradores Hospitalares (APAH) – uma poderosa agremiação por via das ligações políticas e dos financiamentos das farmacêuticas –, Victor Herdeiro e Marta Temido compartilharam mesmo três mandatos ao longo de nove anos: 2008-2011, 2011-2013 e 2013-2016.
Nos dois primeiros, Temido foi tesoureira e Herdeiro vogal, enquanto naquele último triénio a actual ministra presidiu à APAH, mantendo-se Herdeiro como vogal. Já sem Marta Temido nos órgãos sociais desta associação, Victor Herdeiro foi vice-presidente no mandato de 2016-2019. Ambos são também “responsáveis” pelo convite a Alexandre Lourenço para presidir à APAH há seis anos, como o próprio confessou em Março último.
Mandatos em que Marta Temido e Victor Herdeiro coincidiram na Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. Fonte: APAH.
Apesar destas relações íntimas, e do expurgo da base de dados da Morbilidade e da Mortalidade Hospitalar beneficiar Marta Temido, o Ministério da Saúde insiste nada ter a ver com a decisão de Victor Herdeiro, que se mantém silencioso, não apresentando ao PÁGINA UM, conforme solicitado, qualquer documento que ateste a necessidade de uma “análise interna” da informação que esteve até Maio no Portal da Transparência.
Por insistência do PÁGINA UM, um porta-voz da ministra da Saúde insiste que “não houve qualquer intervenção de qualquer membro do Governo ou dos seus gabinetes na retirada do referido indicador do Portal da Transparência, nem tal intervenção foi suscitada pela ACSS, seguramente em razão de tal retirada ter obedecido a critérios estritamente técnicos e na esfera da competência da ACSS”. E acrescenta que, “dessa forma, não se suscita qualquer comentário político sobre a matéria.”
Tendo em consideração que actos técnicos desta natureza necessitam de ordens escritas expressas – até porque manifestamente terão de ser justificados os procedimentos inerentes à tal “análise interna” –, o PÁGINA UM irá recorrer ao Tribunal Administrativo para que Victor Herdeiro seja obrigado a justificar-se. Ou, pelo menos, a admitir publicamente que a sua ordem foi verbal, e portanto sem justificação técnica, embora com óbvios benefícios político-partidários.
A Federação Portuguesa de Judo (FPJ) enviou ontem uma norma para treinadores e atletas impondo uma discriminação entre quem se vacinou e não se vacinou contra a covid-19, que se reflecte no custo da pernoita em dois hotéis de Coimbra. A justificação para a diferença está, segundo a FPJ, nas diferenças de preços entre testes de antigénio (para quem foi vacinado) e PCR (para não-vacinados), algo que não encontra respaldo na lei portuguesa nem nas actuais normas da Federação Internacional de Judo. Hotéis garantem que nada têm a ver com esta política discriminatória.
Para participarem na Taça da Europa de Seniores, que se realizará em Coimbra nos próximos dias 27 e 28 de Agosto, a Federação Portuguesa de Judo (FPJ) está a exigir que atletas e treinadores não-vacinados paguem em certos casos mais do dobro pela pernoita em dois hotéis da cidade em comparação com os vacinados.
A discriminação explícita de preços consta da circular nº 117/22, assinada ontem pelo próprio presidente da FPJ, Jorge Fernandes, onde, além de se indicarem normas de participação, se impõe a obrigatoriedade de envio do certificado de vacinação ou de recuperação por parte de atletas e treinadores, de modo a assim permitir destrinçar depois o tipo de exigências à chegada para a competição. Estar ou não vacinado tem repercussões no preço da estadia nos dois hotéis escolhidos oficialmente pela FPJ: Villa Galé e D. Luís.
Com efeito, embora a todos os atletas e respectivos treinadores seja exigido um teste PCR negativo feito há menos de 48 horas antes da chegada ao hotel oficial, a FPJ impõe depois uma discriminação imediata entre vacinados (incluindo recuperados há menos de seis meses) e não-vacinados (incluindo aqueles sem esquema vacinal completo).
Para os primeiros, a FPJ diz que têm de fazer ainda “um teste antigénio à chegada ao hotel oficial”, enquanto os segundos têm de fazer “um teste PCR”. Os custos são distintos: os testes de antigénio, se forem realizados sem credencial do SNS (nesse caso são gratuitos), podem ter um preço de 18 euros (valor cobrado pela Cruz Vermelha Portuguesa) e os PCR rápidos (com resultados em 30 minutos) chegam aos 70 euros. Ou seja, uma diferença de 52 euros.
Contudo, saliente-se que aquilo que distingue os testes PCR e de antigénio residente são a melhor sensibilidade e especificidade dos primeiros – ou seja, teoricamente, dão menos falsos positivos e falsos negativos. Deste modo, não existe nenhum argumento científico que permita afirmar que um teste de antigénio seja o método mais adequado para uma pessoa vacinada, e que, para se detectar uma eventual infecção de uma não-vacinada, terá que se usar sempre um teste PCR.
Extracto da circular nº 117/22 da Federação Portuguesa de Judo impondo preços distintos na estadia para atletas e treinadores em função do estado vacinal.
O diferencial de preços nos testes exigidos aos dois grupos implica assim que a estadia tenha preços distintos. Por exemplo, um quarto individual para um atleta no Vila Galé custará 117 euros para um atleta vacinado e 190 euros para um atleta não-vacinado – ou seja, uma diferença de 73 euros. A mesma diferença (73 euros) se observa no Hotel D. Luís entre vacinados e não-vacinados. Ou seja, a preços de mercado, mesmo que houvesse necessidade de aplicar métodos distintos, os não-vacinados estariam a pagar sempre mais.
Miguel Galhardas, responsável da comunicação da FPJ, alega que os valores mais elevados pela pernoita dos atletas e treinadores “não é uma discriminação”, devendo-se apenas “as normas exigidas pelas organizações internacionais de judo”, designadamente a European Judo Union (EJU) e a Internacional Judo Federation (IJF).
Sucede, porém, que essas normas são já conflituantes. Com efeito, as normas da EJU prevêem um tratamento discriminatório aos não-vacinados, exigindo que façam um teste PCR (ao custo de 80 euros), enquanto que ao vacinados exige apenas um teste de antigénio, mesmo assim a um preço bem acima do mercado (40 euros). Já as normas do IJF não fazem discriminação, exigindo testes PCR para atletas e treinadores, independentemente do estado vacinal.
No meio desta política discriminatória, os dois hotéis escolhidos pela FPJ mostram-se surpreendidos. Em declarações ao PÁGINA UM, o gerente do Hotel D. Luís em Coimbra diz que nunca houve qualquer política de discriminação de preços com base na vacinação contra a covid-19. “Para nós as pessoas são todas iguais, não fazemos discriminação”, garante Luís Ribeiro da Silva, explicando ainda que “se um hóspede estiver doente, o que fazemos é apenas levar-lhe a comida ao quarto, mas até nessas circunstâncias os preços são iguais “.
Por sua vez, o Hotel Vila Galé Coimbra esclarece também que os preços praticados pela empresa são sempre idênticos para vacinados e não-vacinados. “Não fazemos preços diferentes nem estamos a perguntar às pessoas se têm a vacina ou se não têm”, frisou André Pereirinha, assistente de direcção daquela unidade hoteleira.
O PÁGINA UM quis consultar as ordens (políticas ou técnicas) que determinaram a suspensão da base de dados pública que permitia avaliar o desempenho do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, incluindo sobre a covid-19. Marta Temido diz que não deu ordens. E a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) justificou hoje o acto de expurgo por razões de “análise interna” mas sem indicar motivos nem apontar outra qualquer base de dados com processo similar.
O conselho directivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) – presidido por Victor Herdeiro, nomeado em Março do ano passado por Marta Temido e pelo então ministro das Finanças, João Leão – assume que expurgou a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde.
A base de dados permitiu ao PÁGINA UM elaborar um dossier de investigação jornalística, que já contava com nove artigos, publicados entre 13 de Maio e 23 de Junho. O seu expurgo impede o acesso a dados mais actuais, posteriores a Janeiro deste ano, impossibilitando assim uma melhor avaliação do desempenho do SNS e das políticas públicas do actual Governo.
Marta Temido, ministra da Saúde, garante não ter dado ordens para expurgar base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, mas beneficia do desaparecimento daquela fonte de informação.
Esta base de dados foi criada em 2018, sendo um sistema de informação de suporte à monitorização do desempenho dos hospitais do SNS.
Em concreto, este sistema recolhe dados administrativos, incluindo codificação clínica, permitindo apurar a evolução mensal, desde Janeiro de 2017, de episódios de internamentos, ambulatório e óbitos por capítulo de diagnóstico (por grande grupo de doença) em cada hospital ou centro hospitalar, por grupo etário e sexo. Tem também a particularidade de conseguir identificar a evolução dos internamentos e desfechos da covid-19, uma vez que, neste caso concreto, esta é a única doença do grupo denominado “Códigos para fins especiais”.
A assumpção pela ACSS da autoria da retirada daquela base de dados do Portal da Transparência do SNS surgiu hoje, após a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde ter garantido ao PÁGINA UM “não [ter] havido indicação, ordem ou despacho por parte da Sra. Ministra da Saúde [Marta Temido] que determine a inclusão ou supressão de quaisquer dados naquele Portal e, em concreto, referentes à morbilidade e mortalidade hospitalar”.
Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, entretanto expurgada.
O PÁGINA UM decidiu solicitar, no passado dia 22 de Junho, o Ministério da Saúde, a Direcção-Geral da Saúde (DGS), os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e a ACSS que disponibilizasse a consulta “da ordem emanada – ou ordens emanadas – que determin[aram], em data ignorada (…) neste segundo trimestre de 2022, a exclusão (ou retirada) na Plataforma da Transparência do SNS da base de dados relativa à Morbilidade e Mortalidade Hospitalar”.
Apenas hoje, último dia do prazo determinado pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos para uma resposta, houve uma reacção do Ministério da Saúde e da SPMS – que remeteu responsabilidades pelo expurgo à ACSS.
Confrontado com a posição do Ministério da Saúde – que assim garante não ter ocorrido qualquer ordem política para a retirada de dados comprometedores sobre o desempenho do SNS durante a pandemia –, o gabinete de comunicação da entidade presidida por Victor Herdeiro alega que “desde o início de 2022, a informação disponibilizada neste Portal [da Transparência], relativamente aos indicadores que estão sob a responsabilidade da ACSS, incluindo os dados da morbilidade hospitalar, está a ser submetida a um processo de análise interna”.
A mesma fonte oficial refere que “foi este processo que ditou a interrupção temporária deste fluxo informativo sendo que, uma vez terminada a referida análise, será expectável que os dados em causa voltem a estar disponíveis”.
A alegação da ACSS é, contudo, falsa. Na verdade, esta entidade – que gere cerca de seis dezenas de entre as 150 base de dados do Portal da Transparência do SNS – apenas retirou a informação da morbilidade e mortalidade hospitalar do sistema.
Ou seja, o expurgo – não assumidamente feito por razões políticas – da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar foi único, e ocorreu imediatamente após os recentes artigos de investigação do PÁGINA UM que usava dados até Janeiro deste ano.
O PÁGINA UM insistiu junto do gabinete de Victor Herdeiro para que indicasse uma outra qualquer base de dados sob sua administração que tenha sido retirada, desde a sua nomeação, para similar “processo de análise interna”. Não houve resposta nem foi sequer indicado um prazo para a reposição dos dados no Portal da Transparência.
Printscreen de apresentação da base de dados expurgada pela ACSS (imagem arquivada). Fonte: Internet Archive.
Saliente-se que a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar foi disponibilizado ao público em Março de 2018, e esteve sempre disponível desde então no Portal da Transparência, sendo actualizado mensalmente com um deferimento de apenas cerca de três meses. Isso permitiu que em Maio deste ano já estivessem disponíveis os dados recolhidos entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022.
Caso a ACSS não disponibilize voluntariamente o documento administrativo que ordenou, fundamentadamente, o expurgo da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – ou assuma que a ordem foi meramente oral –, o PÁGINA UM recorrerá ao Tribunal Administrativo com um processo de intimação.
“Vai ficar tudo bem”, clamou-se nos primórdios da pandemia. Mas afinal está a “ficar tudo mal”, com a mortalidade por todas as causas a atingir valores absurdos para esta época do ano. Com base nos dados históricos, o PÁGINA UM estima que este mês, a poucas horas de terminar, houve um excesso de 60 óbitos todos os dias. Incluindo dias santos.
Um excesso de mortalidade de quase 1.800 óbitos – este será, para já, o saldo negro de um insólito mês de Junho em Portugal, de acordo com cálculos do PÁGINA UM baseados no histórico desde 1980 e dos valores expectáveis para esta época do ano.
Algumas horas antes de Junho encerrar, aquele que em situações normais deveria ser o segundo mês menos mortífero de um qualquer ano – apenas atrás de Setembro –, apresenta este ano valores de mortalidade total típicos de Inverno, quando o frio e os surtos de doenças do aparelho respiratório e circulatório fazem mais vítimas.
Segundo os dados disponibilizados em tempo real pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), até às 21 horas de hoje estavam já contabilizados 10.104 óbitos no mês de Junho. O valor deverá, contudo, chegar próximo das 10.200 mortes com as actualizações finais.
Este número contrasta com uma média de 8.323 óbitos no mês de Junho ao longo do último quinquénio (2017-2021), que englobam dois dos anos de pandemia. Nunca antes houve um registo estatístico de Junho acima sequer dos 9.000 óbitos. Por norma, apenas os meses de Janeiro, Fevereiro e Dezembro ultrapassam a fasquia dos 10.000 óbitos.
Antes do presente ano, o triste recorde em Junho pertencia a 1981. Há cerca de quatro décadas, uma extrema onda de calor entre os dias 9 e 21 de Junho – com termómetros a ultrapassarem os 43 graus em Beja, quase 42 em Lisboa e 39 no Porto – contribuiu fortemente para se atingir, no final desse mês, 8.867 óbitos. Só no dia 15 de Junho daquele ano foram registadas 676 mortes.
Mas nessa altura, na década de 1980, a população idosa não era tão numerosa como agora – e os óbitos rondavam geralmente, no sexto mês de cada ano, os cerca de sete mil.
Mais recentemente, mesmo com um tempo mais quente em Junho nos anos de 2013 e 2020, as mortes nunca ultrapassaram a fasquia dos 8.600 óbitos totais.
Porém, mesmo contabilizando o expectável incremento da mortalidade – devido ao incremento da população mais idosa –, a situação actual é deveras impressionante, ainda mais sabendo-se que, do ponto de vista de saúde pública, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) andou parte do tempo mais preocupada com a varíola dos macacos, que não causou qualquer vítima mortal.
Óbitos totais no mês de Junho entre 1980 e 2022. Linha de tendência a azul. Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.
De facto, como em 2020 e 2021, os efeitos da pandemia não se fizeram sentir na transição da Primavera para o Verão, seria de esperar que a mortalidade total de 2021 rondasse os 8.300 óbitos, de acordo com a linha de tendência traçada pelo PÁGINA UM. Significa assim que os números de Junho deste ano são absurdamente elevados, sem que haja uma explicação oficial coerente.
No passado dia 17 de Junho, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) alegou que a mortalidade mais elevada deste mês se devia à conjugação da covid-19 – num país com uma das mais elevadas taxas de vacinação do Mundo e com a maior prevalência de covid-19 desde o início da pandemia – com o ‘aumento da temperatura média do ar’. A entidade liderada por Graça Freitas dizia mesmo que “este indicador tem estado ‘acima do normal para esta época do ano’”, o que é desmentido pelos dados do Índice Ícaro constantes do Portal da Transparência.
Com efeito, ao longo de Junho, dos 30 dias destes mês, houve 22 com valor de zero neste índice – ou seja, sem qualquer impacte na mortalidade. E o valor máximo foi de apenas 0,11 no dia 13, o que não é excessivamente relevante. No dia 14, por exemplo, foi apenas de 0,06, mas isso não impediu que se tenham atingido os 421 óbitos, quando a média diária no último quinquénio é inferior a 280 mortes.
Recorde-se que a DGS, apesar de poder saber quais são as doenças que estiveram a matar mais do que seria suposto ao longo de Junho – recorrendo aos dados em bruto do SICO –, nada tem investigado sobre este excesso. Por sua vez, o Ministério da Saúde tem-se também oposto a que o PÁGINA UM aceda a essa base de dados para realizar uma análise independente, razão pela qual está em curso um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.