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  • Paradoxo ou base de dados “martelada”: internamentos e mortalidade hospitalar caem a pique no primeiro semestre de 2022

    Paradoxo ou base de dados “martelada”: internamentos e mortalidade hospitalar caem a pique no primeiro semestre de 2022

    A Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) repôs a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, contendo já informação mensal até Junho deste ano, mas a análise do PÁGINA UM revela que os internamentos no primeiro semestre de 2022 desceram 30% face ao último quinquénio e os óbitos em meio hospitalar recuaram 27%. Enquanto isso, a mortalidade total este ano, dentro e fora dos hospitais, está bem acima do normal. Estará a base de dados do Ministério da Saúde a ser “manipulada” ou os portugueses moribundos estão agora a morrer longe dos hospitais? Uma incógnita. Até porque o Ministério da Saúde não comenta, como habitualmente.


    Os números de internamentos e de óbitos ocorridos em meio hospitalar nas unidades do SNS entraram em inexplicável queda abrupta no primeiro semestre deste ano, de acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados de Morbilidade e Mortalidade Hospitalar (BDMMH), sob gestão da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS).

    Recorde-se que esta base de dados esteve inoperacional durante cerca de quatro meses, por iniciativa de Vítor Herdeiro, presidente da ACSS – e amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, para impossibilitar assim a continuidade das análises que o PÁGINA UM estava a realizar ao desempenho do SNS durante a pandemia. Em 4 de Agosto passado, a ACSS colocaria, em substituição da BDMMH original, três bases de dados com informação completamente mutilada. As pressões do PÁGINA UM – que colocou, entretanto, um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para consultar também uma base de dados com informação mais vasta – levaram a ACSS a recolocar a BDMMH original, com dados até Junho deste ano. Quando da retirada desta base de dados da Plataforma da Transparência do SNS, em Maio passado, apenas estava disponibilizada informação até Janeiro de 2022.

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    Assim, com a informação agora já disponível para o primeiro semestre de 2022 (Janeiro a Junho), um paradoxo ressalta de imediato, através, saliente-se, de fonte oficial: apesar da mortalidade total em Portugal no presente ano estar praticamente ao nível do ano passado (actualmente, observa-se uma redução de 1,5%) e 6,7% superior à média do último quinquénio (2017-2021), a actividade hospitalar, medida pelos internamentos e óbitos aí declarados, está aparentemente em contra-ciclo. Ou então a BDMMH, disponibilizada novamente ao público, foi falseada.

    Com efeito, comparando o primeiro semestre de 2022 com os períodos homólogos entre 2017 e 2021, bem como com a média deste quinquénio, mostra-se espantosa a descida no número de internamentos. De acordo com a BDMMH, entre Janeiro e Junho deste ano foram contabilizados 274.385 hospitalizações, o que contrasta com os 360.837 internamentos em 2021. No último quinquénio, 2017 tinha sido o ano com mais internamentos no primeiro semestre, com mais de 430 mil. Em termos relativos, a redução dos internamentos no primeiro semestre deste ano foi praticamente de 30% face à média do último quinquénio.

    Internamentos hospitalares no SNS no primeiro semestre (Janeiro-Junho) entre 2017 e 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Para o período em análise, em todos os grandes grupos de doenças responsáveis pelos internamentos se constatam fortes decréscimos entre 2022 e o último quinquénio, exceptuando a covid-19 que apenas contabiliza hospitalizações desde 2020. As doenças do aparelho respiratório são aquelas que mais desceram, tanto em termos absolutos (-23.909 internamentos, embora quase em linha com 2021) como em termos relativos (-50,2%).

    Também muito relevante – até por ser o grupo de doenças que mais contribui para a entrada em hospitais – se mostra a redução dos internamentos por problemas de saúde relacionados com o aparelho circulatório. No primeiro semestre deste ano, a BDMMH contabilizou 35.002 internamentos, menos 20.893 do que a média do quinquénio. Face ao ano passado, o ano de 2022 contou entre Janeiro e Junho com menos 17.006 hospitalizações.

    Mesmo nas neoplasias – que muitos especialistas receavam vir a ter um recrudescimento face à gestão seguida pelo Governo em suspender diagnósticos e exames durante a fase pandémica –, a serem verídicos os dados da BDMMH, então algo inexplicável se passa. Comparando com a média do último quinquénio (39.861 internamentos), em 2022 registaram-se menos 14.711 hospitalizações, uma queda de 37%.

    Para os grupos de doenças com mais de 10 mil internamentos em média (no quinquénio 2017-2021) para o primeiro semestre, apenas as doenças do aparelho osteomuscular e do tecido conjuntivo registaram uma redução inferior a 20%.

    Na mesma linha, segundo a BDMMH, a redução de óbitos declarados nos hospitais do SNS ao longo do primeiro semestre de 2022 são significativos, e pouco compagináveis com um ano de excesso de mortalidade. No período em análise, enquanto no último quinquénio se contaram 25.900 mortes nas unidades de saúde do sector público, este ano registaram-se, segundo a base de dados do Ministério da Saúde agora novamente disponível, “apenas” 18.898 óbitos. Ou seja, uma descida de 27%.

    Confrontando 2022 com 2021 – e, sabendo-se que a mortalidade total em Portugal entre estes dois anos é quase similar –, observa-se, contudo, uma diferença de 10.324 óbitos a menos. Seguindo a mesma linha dos internamentos, em todos os grupos de doenças se observam descidas acentuadas entre 2022 e os anos transactos.

    No caso das doenças do aparelho respiratório, a variação é de 47% face ao último quinquénio e de 25% face a 2021, que já fora um ano pouco mortífero, uma vez que as pneumonias virais e bacterianas se reduziram com o surgimento da covid-19.

    Óbitos declarados nas unidades do SNS no primeiro semestre (Janeiro-Junho) entre 2017 e 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Também nas doenças do aparelho circulatório, a BDMMH indica uma queda surpreendente no primeiro semestre de 2022 face aos cinco anos anteriores (-35%, correspondentes a menos 1.785 óbitos), o mesmo sucedendo para as neoplasias (-43%, correspondentes a menos 2.058 óbitos). Em nenhum grupo de doenças – de entre aqueles que, em média no último quinquénio, registaram mais de mil óbitos no primeiro semestre – se observou uma queda nos primeiros seis meses deste ano inferior a 20%.

    A estranheza suscitada pela comparação entre o primeiro semestre de 2022 e os períodos homólogos desde 2017 ainda aumenta mais quando se observa a evolução cronológica contínua tanto nos internamentos como nos óbitos.

    Em termos globais, verifica-se que, desde Janeiro de 2017 – a partir do qual a BDMMH disponibiliza informação –, o mês de Junho de 2022 é o mês que regista o menor número de internamentos (34.487) e o menor número de óbitos (2.394), segundo uma tendência fortemente decrescente a partir de Dezembro do ano passado.

    Total de internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. ACálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em relação aos internamentos, confirma-se mais uma vez, a considerar verídica a BDMMH, que a pandemia terá causado, indirectamente, um “esvaziamento” dos internamentos hospitalares. Com efeito, se antes do surgimento da pandemia praticamente todos os meses registavam mais de 65 mil internamentos, a partir de Março de 2020 nunca mais nenhum mês ultrapassou essa fasquia, mesmo quando o SNS colapsou no Inverno de 2020-2021.

    Contudo, mostra-se surpreendente que a queda do número de internamentos tenha sido em Maio e Junho deste ano mais baixo do que em Abril de 2020, quando, no início da pandemia, houve uma debandada dos hospitais públicos.

    Na mesma linha, e no caso dos óbitos totais em meio hospitalar, também os últimos meses apresentaram uma evolução atípica. Se o Inverno de 2020-2021 foi particularmente mortífero nos hospitais (com um recorde inédito de 8.438 óbitos em Janeiro de 2021), já o mais recente Inverno foi anormalmente pouco letal com o máximo a ser atingindo em Dezembro do ano passado com “apenas” 4.227 mortes.

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    Antes da covid-19, na época gripal geralmente o número de óbitos em meio hospitalar situava-se entre os 5.000 e os 6.000. Porém, a partir de Janeiro deste ano, a mortalidade hospitalar foi descendo sempre, em todos os meses, com Junho a ser o valor mais baixo: 2.394. De acordo com a BDMMH, antes da pandemia, o mês com menor mortalidade hospitalar foi Setembro de 2018 com 3.684 óbitos.

    Em concomitância com os dados globais, também a evolução mensal dos internamentos e mortes nos grupos de doenças mais letais em meio hospitalar apresenta um perfil atípico.  

    No caso das doenças do aparelho respiratório, a chegada da covid-19 resultou numa descida abrupta nos internamentos, sobretudo no período invernal de 2020-2021 e 2021-2022. Até neste último período, o pico de internamentos pouco suplantou o que era norma nos Verões pré-pandemia. Em todo o caso, a mortalidade no Inverno de 2020-2021 foi relativamente elevada (embora muito mais baixa do que o habitual antes da pandemia), porque a taxa de sobrevivência foi fortemente afectada pelo colapso do SNS em Janeiro de 2021. Mais estranha, porém, é a tendência contínua de descida dos óbitos a partir de Janeiro deste ano. No último mês de Junho, a BDMMH apenas registou 435 óbitos por doenças do aparelho respiratório.

    Doenças do aparelho respiratório – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em relação às doenças do aparelho circulatório, se a pandemia não teve grande impacte no número de internamentos até finais de Dezembro de 2021 – com excepção de Abril de 2020, por causa da fuga dos hospitais –, já a partir de Janeiro a descida se mostra surpreendente, sobretudo porque contraria um padrão epidemiológico. Com efeito, antes da pandemia, os internamentos por doenças do aparelho circulatório – que incluem os enfartes e os AVC’s – situavam-se, por norma, entre os 8.000 e os 11.000, enquanto os óbitos variavam em função da época do ano: em Janeiro (geralmente o mês mais frio) ultrapassavam os 1.000, descendo até um mínimo próximos dos 600 no auge do Verão.  

    Contudo, no último Inverno, as mortes hospitalares “só” atingiram, segundo a BDMMH, um máximo de 786 óbitos (Dezembro do ano passado), descendo sistematicamente a partir daí. Em Junho passado, a base de dados do Ministério da Saúde aponta as 378 mortes por este grupo de doenças, o que não só se mostra anormal do ponto de vista epidemiológico como não aparenta fazer sentido num ano com excesso de mortalidade total.

    Doenças do aparelho circulatório – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No caso das neoplasias, a situação também se mostra anormal, mas aqui desde o início da pandemia. É certo que em 2020 e 2021 já se verificara uma redução com alguma relevância (sobretudo em determinados períodos) no número de internamentos e de mortes pelos diversos cancros, mas essa descida tornou-se colossal a partir de Dezembro do ano passado.

    Se antes da pandemia os internamentos por neoplasias rondavam, sem grandes flutuações, os 7.000 em cada mês, em Junho deste ano quedaram-se abaixo dos 3.000. No que diz respeito aos óbitos, antes da pandemia geralmente situavam-se, em cada mês, entre os 800 e os 1.000, durante os anos de 2020 e 2021 passaram a situar-se entre os 700 e os 800, para agora em Junho deste ano – depois de contínua retracção – se terem contabilizado apenas 326 óbitos por cancros em meio hospitalar.

    Neoplasias – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Obviamente, deve-se salientar, mais uma vez que estas mortes se referem às contabilizadas nas unidades do SNS, podendo esta descida apenas significar que há muitos mais doentes terminais com neoplasias que morrem fora dos hospitais.

    A evolução das doenças do aparelho digestivo ao longo da pandemia teve um padrão quase normal até final de 2021, se se exceptuar duas quedas abruptas nos internamentos, em Abril de 2020 (devido à fuga dos hospitais) e no Inverno de 2020-2021. No entanto, a mortalidade até se manteve estável, e dentro dos padrões normais pré-pandemia, até Dezembro do ano passado. A partir desse mês, a mortalidade por este tipo de doenças caiu significativamente, tendo a BDMMH contabilizado “apenas” 125 óbitos. Antes da pandemia, o valor mais baixo, desde 2017, ocorreu em Setembro de 2018 (263 mortes).

    Doenças do aparelho digestivo – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Por fim, no caso das doenças infecciosas e parasitárias – agrupadas no grupo A e B da classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde –, o número de internamentos também desceu com a chegada da pandemia, mas quase regressou a valores pré-pandémicos no Verão de 2021. Porém, também para este grupo vasto de doenças – cuja taxa global de mortalidade hospitalar se situa geralmente acima dos 20%, mas que quase atingiu os 40% em Janeiro de 2021 –, o número de internamentos e de óbitos registados nas unidades do SNS quebrou a partir do início do presente ano.

    Segundo a BDMH, em Junho passado, apenas foram internadas 953 pessoas por causa deste grupo de doenças, registando-se 222 óbitos – os valores mais baixos desde 2017 para ambos os indicadores.

    O PÁGINA UM tentou obter um comentário do Ministério da Saúde sobre estas matérias, enviando mesmo o gráfico da evolução dos internamentos e óbitos em meio hospitalar relativo às neoplasias, de modo a ficar mais claro aquilo que estava em causa. Não obteve resposta.

    Doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B da CDI-OMS) – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    O processo de intimação que o PÁGINA UM apresentou no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ACSS a divulgar documentos administrativos, incluindo a BDMMH, ainda decorre. A ACSS alegou, junto do juiz, ter já cumprido o solicitado pelo PÁGINA UM, mas tal não corresponde à verdade.

    No pedido, que recorde-se foi formalmente feito em 21 de Julho, além da BDMMH, solicitava-se o “acesso presencial e/ou eventual cópia digital da Base de Dados central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogénos), vem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Mobilidade Hospitalar.” Estas duas bases de dados são, na verdade, as “mães” da BDMMH disponibilizada pelo Ministério da Saúde no Portal da Transparência do SNS, sendo assim consideradas documentos administrativos se os registos dos doentes forem anonimizados.

    Contudo, ao contrário da BDMMH – que integra já um tratamento estatístico mais técnico (e eventualmente político) dos dados recolhidos por cada hospital –, a base de dados do GDH e do BI-MH não são tão facilmente manipuláveis, porque individualizados. Daí o interesse do PÁGINA UM em analisá-las para conferir o rigor e exactidão da BDMMH que se encontra no Portal da Transparência do SNS.

  • Metade dos óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 estão agora fora dos hospitais. Mortes são por ou com covid-19?

    Metade dos óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 estão agora fora dos hospitais. Mortes são por ou com covid-19?

    Apesar da elevada imunidade vacinal – por ser um dos países do Mundo com maior taxa de vacinação –, e também natural – por mais de metade da população ter tido contacto com o vírus –, Portugal apresentou nos últimos meses um número de óbitos muito mais elevado do que nos períodos homólogos de 2020 e 2021. Mas também ressalta uma percentagem absurda de óbitos atribuídas à covid-19 que se registaram fora das unidades hospitalares do SNS. A Direcção-Geral da Saúde não explica por que razão metade das vítimas da covid-19 dos últimos meses (que seriam, assume-se, casos graves desta doença) não mereceu tratamento hospitalar, morrendo aparentemente sem assistência médica adequada.


    Entre Março e Junho deste ano, metade dos óbitos atribuídos à covid-19 registados pela Direcção-Geral da Saúde ocorreu fora dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), de acordo com uma análise do PÁGINA UM, que cruzou dados oficiais da Direcção-Geral da Saúde (DGS) com a base de dados da Morbilidade e Mortalidade no Portal da Transparência, entretanto “ressuscitado” (ver N.D., em baixo).

    Esta situação recoloca assim mais dúvidas sobre se os certificados de óbito para os casos fora das unidades hospitalares fazem directa referência ao SARS-CoV-2 como causa de morte, ou se optam por outras causas mais relevantes e a contabilização para as estatísticas da covid-19 se devem apenas ao facto de as pessoas falecidas estarem com teste positivo ao coronavírus.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Embora a percentagem de óbitos por covid-19 fora das unidades do SNS – por exemplo, em lares ou em residências – tenha sido sempre relevante desde o início da pandemia, e nunca explicado pela DGS, a informação retirada da mais recente versão da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, gerida pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mostra uma subida ainda mais inexplicável nos últimos meses.

    Esta situação pode indiciar um de dois problemas; ou ambos: os óbitos atribuídos à covid-19 estão exagerados, por incluírem mortes fora das unidades hospitalares sem mais qualquer diagnóstico para além de um teste positivo ao coronavírus; ou há doentes-covid em situação grave a morrerem fora dos hospitais sem tratamento devido.

    Óbitos atribuídos à covid-19 em Portugal por mês, com certificado nos hospitais e fora dos hospitais. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    De facto, uma elevada fracção de mortes atribuídas à covid-19 fora dos hospitais não é aspecto despiciendo, uma vez que a esmagadora maioria dos casos graves desta doença, que resultam em morte apresenta previamente um quadro clínico de insuficiência respiratória ou outros sintomas que recomendariam um internamento hospitalar.

    Por outro lado, recorde-se que esta doença foi considerada de elevadíssima infecciosidade.

    Portanto, coloca-se aqui saber se estas mortes se deveram mesmo à acção directa e letal do SARS-CoV-2 – e, portanto, uma elevada percentagem de doentes graves não teve apoio médico especializado que pudesse evitar a sua morte – ou se as mortes em causa ocorreram devido a outras comorbilidades relevantes e os óbitos acabaram por ser atribuídos à covid-19 apenas porque a vítima estava positiva naquela altura.

    Certo é que, estranhamente, a mortalidade atribuída à covid-19 pelas autoridades de Saúde tem estado bastante superior em 2022 face aos períodos homólogos de 2020 (quando não existiam vacinas e a população estava naive) e de 2021.

    Entre Março e Junho deste ano, a DGS diz terem morrido 3.063 pessoas por covid-19, enquanto no período homólogo do ano passado foram 720 e em 2020 atingiram os 1.036.

    Ora, mas se se descontar aos óbitos atribuídos à covid-19 pela DGS entre Março e Junho deste ano aqueles que foram observados nos hospitais – pela consulta da base de dados da ACSS –, constata-se que terão morrido 1.531 pessoas fora dos hospitais, ou seja, 50% do total. No ano passado, no período homólogo esse valor tinha rondado os 6,4% (48 óbitos) e em 2020 atingiu os 34,4% (543 óbitos)

    Ao longo da pandemia, o rácio óbitos fora / dentro do SNS foi sempre bastante variável, mas apenas esporadicamente alto em Maio de 2020 e no Inverno de 2020-2021, quando então os hospitais do SNS colapsaram, mas não tão persistente e elevado como em 2022.

    Aliás, em Maio passado, o PÁGINA UM já noticiara que até Dezembro de 2021 uma em cada três vítimas atribuídas à covid-19 tinha falecido fora dos hospitais do SNS, mas esse rácio ainda aumentou mais este ano.

    Evolução mensal da percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 e ocorridos fora das unidades do SNS. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    A partir de Janeiro, somente em Março se registou uma percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 fora do SNS abaixo dos 40%, chegando-se aos 57% em Junho (dos 999 óbitos, 429 ocorreram em hospital público e 570 fora dos hospitais públicos).

    Sobre estas matérias, o PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimento à DGS, com conhecimento para o Ministério da Saúde, mas não obteve (ainda) qualquer resposta.


    N.D. O PÁGINA UM apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Administração Central do Sistema de Saúde por ter eliminado, e depois reposto de forma mutilada, a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar que constava no Portal da Transparência do SNS. Esta base de dados, que então tinha informação até Janeiro de 2022, servira para o PÁGINA UM publicar um conjunto de trabalhos de investigação sobre o desempenho do SNS durante a pandemia.

    Entretanto, sem sequer informar o PÁGINA UM, a AACS indicou ao Tribunal Administrativo de Lisboa que já repusera a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, indicando que o fizera no passado dia 12 de Agosto.

    Esta data, cuja prova da veracidade não foi apresentada, é em todo o caso posterior à notícia do PÁGINA UM a denunciar as ligações de amizade entre o presidente da ACSS, Vítor Herdeiro, e a ex-ministra da Saúde Marta Temido (12 de Julho), e à notícia sobre a apresentação das bases de dados “mutiladas” (5 de Agosto). Aliás, a ACSS apenas comunicou ao PÁGINA UM, por ofício de dia 4 de Agosto, que disponibilizara três bases de dados (as mutiladas), e nunca mais nada comunicou, e devia.

    O PÁGINA UM lamenta, aliás, a postura e a estratégia da ACSS, não apenas pela tentativa de persistir na mutilação (voltando agora atrás) como estar a convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que toda a informação requerida foi disponibilizada (foi feito um pedido de inutilidade superveniente da lide). Não é verdade. O PÁGINA UM tinha também pedido à AACS “a consulta presencial e/ ou eventual cópia digital da Base de Dados Central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogéneos), bem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Morbilidade Hospitalar”, porque servirá para a aferir se os valores divulgados agora no Portal da Transparência são reais ou “martelados”.

    Como o PÁGINA UM revelará a partir de amanhã, pelo menos “estranhos” são.

    Saliente-se que os processos judiciais do PÁGINA UM, que têm constituído uma “frente de combate”em prol da transparência da Administração Pública, são financiados pelos leitores através do seu FUNDO JURÍDICO, que já envolveu 12 processos de intimação e uma providência cautelar.

  • Associação de médicos de Saúde Pública “lança-se nos braços” das farmacêuticas

    Associação de médicos de Saúde Pública “lança-se nos braços” das farmacêuticas

    Com a pandemia, a discreta Associação Nacional de Saúde Pública (ANMSP) foi ganhando projecção. Ricardo Mexia, presidente desde 2016, conseguiu com as suas aparições nos media alcançar um estatuto público que o ajudou a chegar a presidente da Junta de Freguesia do Lumiar. Já o seu substituto, Tato Borges, conseguiu algo que nunca tivera antes do cargo: já acumulou, desde Novembro, quatro apoios financeiros da Pfizer, incluindo uma viagem ao Canadá para um congresso. E a própria ANMSP está a atrair cada vez mais patrocínios do sector farmacêutico. A associação diz que está tudo dentro da lei e garante manter-se independente.


    Desde que assumiu a presidência da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges tem acumulado relações comerciais com a Pfizer, uma das farmacêuticas com maior facturação à conta da pandemia, através das vacinas Comirnaty e do antiviral Paxlovid.

    De acordo com a Plataforma da Transparência e Publicidade, este médico – que trabalha actualmente na Administração Regional de Saúde do Norte – não tinha qualquer registo de recebimento de financiamentos de farmacêuticas entre 2013 e finais do ano passado, mas tornou-se “apelativo” ao assumir a liderança desta associação há exactamente um ano, quando substituiu Ricardo Mexia, entretanto eleito líder presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, em Lisboa.

    Ricardo Mexia, à esquerda, durante o último congresso da ANMSP em Novembro do ano passado, em Amarante.

    Tato Borges, que era então vice de Mexia, começou a capitalizar o interesse da Pfizer, que lhe pagou 1.000 euros por um dia de consultadoria. Este ano, entretanto, a farmacêutica norte-americana consolidou a parceria com o médico, por três ocasiões: primeira, no 15º Encontro Pfizer Vacinas, que se realizou em 7 e 8 de Maio em Tróia, no valor de 553 euros; segunda, por uma palestra no Encontro Pfizer 2022, no valor de 1.000 euros; e a terceira, mais substancial: um cheque de 5.757 para custear a participação num congresso internacional de doenças pneumocócicas entre 19 e 23 de Junho na cidade canadiana de Toronto.

    Mas não tem sido só pessoalmente Tato Borges a beneficiar deste interesse da Pfizer. Também a ANMSO – criada em 1987 e que mantém a sua sede na Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa – tem começado a ser olhada com maior interesse pela indústria farmacêutica, sobretudo as empresas com interesses comerciais em redor da pandemia.

    Exemplo paradigmático foi o último congresso desta associação, que se realizou em Novembro do ano passado em Amarante: contou com o apoio financeiro da Merck Sharp & Dohme (produtora do antiviral molnupiravir), Pfizer (vacina e antiviral Paxlovid), Gilead (antiviral remdesivir), Johnson & Johnson (vacina, através da subsidiária europeia Janssen) e Roche (esta a única sem interesses relevantes no combate ao SARS-CoV-2).

    Tato Borges começou a facturar da Pfizer logo a seguir a assumir a presidência da ANMSP. Uma “coincidência”, diz a associação.

    Entre este congresso e pagamento de outros eventos – como seja em concreto o pagamento de 7.800 euros para uma acção descrita como “Apoio realização de trabalhos no âmbito da vacinação” (sic) –, a ANMP recebeu no ano passado 17.800 euros. Já contabilizados este ano encontram-se apoios da AbbVie (11.070 euros), da Janssen Cilag (3.000 euros), Merck Sharp & Dohme (10.990 euros), Pfizer (8.000 euros), Gilead (3.690 euros) e Roche (5.000 euros).

    Em oito meses de 2022, a ANMSP já recebeu assim 41.750 euros, um valor que contrasta com montantes muito mais modestos no primeiro ano da pandemia (15.900 euros, em 2020) e sobretudo antes da pandemia: entre 2013 e 2019 somente conseguiu “atrair” da indústria farmacêutica um total de 11.530 euros, uma média de 1.650 euros por ano.

    Contactado por e-mail pelo PÁGINA UM, Tato Borges respondeu através da Direcção da ANMSP, em que esclarece que “os apoios recebidos da indústria farmacêuticas estão enquadrados em normativos legais definidos para promover a transparência”, vincando ser esta associação uma “sociedade científica privada e independente”.

    Agradecimento na página do Facebook da ANMSP aos parceiros que financiaram o seu congresso, entre as quais quatro farmacêuticas com fortes negócios em redor da pandemia.

    Quanto ao facto de os apoios financeiros da Pfizer a Tato Borges terem começado a fluir apenas após o início da liderança da associação, a ANMSP diz tratar-se de uma “coincidência e [que] qualquer leitura para além desta é falaciosa”.

    A ANMSP diz também que os apoios da Pfizer atribuídos a Tato Borges como médico, e não como dirigente associativo, “não condicionam a sua actividade profissional ou associativos, nem têm impacto nas actividades desta associação”.

    Em todo o caso, saliente-se que Tato Borges tem sido particularmente activo na defesa de medidas não-farmacológicas contra a covid-19, como o uso de máscaras na actual fase endémica do vírus, e tem contribuído para a manutenção de uma tensão de permanente alarme, nomeadamente na população estudantil, onde em Portugal a covid-19 jamais foi um problema de Saúde Pública. 

    Recorde-se que, no nosso país, morreram sete pessoas com menos de 25 anos (que representam cerca de 2,5 milhões de habitantes) por covid-19, a última das quais em Janeiro deste ano (uma jovem entre os 15 e os 24 anos).

    E saliente-se ainda que, na sua resposta ao PÁGINA UM, a ANMSP diz ainda que “não pode deixar de lamentar que o Sr. Jornalista [Pedro Almeida Vieira] tenha procurado esclarecimentos no próprio dia em que vai publicar uma determinada matéria, pois isso revela que não pretende esclarecer estes assuntos, mas sim poder afirmar que as entidades foram questionadas e não responderam, sem intenção de apurar a verdade”.


    N.D. Efectivamente, o PÁGINA UM enviou um e-mail às 01:14 de hoje para a ANMSP, e um segundo e-mail para o endereço profissional de Tato Borges pelas 09:42 horas, onde além das questões se referia o seguinte: “Alerto que, independentemente dos seus esclarecimentos, que desde já muito agradeço, e uma vez que estamos perante factos públicos, escreverei sobre esta matéria nesta terça-feira.” A resposta da ANMSP chegou às 10:52 horas, e obviamente foi incluída, por ter sido sempre esse o objectivo inicial.

  • Mortes de adolescentes e jovens adultos em forte tendência crescente desde Outubro

    Mortes de adolescentes e jovens adultos em forte tendência crescente desde Outubro

    Agregando em Portugal cerca de um milhão de pessoas (10% da população), os adolescentes e jovens adultos da faixa dos 15 aos 24 anos estão na “flor da vida” e são raras aqueles que se deixam levar pela morte, socialmente bastante sentidas. A pandemia da covid-19 não teve qualquer impacte directo neste grupo etário, mas algo está a suceder para que se esteja com um desvio de 22% da mortalidade face à média (2017-2021). Além disso, os números da mortalidade estão em tendência crescente desde o Outono passado. Agosto foi o mês mais letal desde que há registos diários (a partir de 2014). O Governo sobre nada disto fala.


    Agosto de 2022 foi o mês mais mortífero para os adolescentes e jovens adultos, da faixa etária dos 15 aos 24 anos, desde que o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) começou a carrear informação detalhada, em 2014.

    De acordo com a análise do PÁGINA UM, no mês de Agosto, terminado na passada quarta-feira, contabilizaram-se 45 óbitos, tendo havido mesmo três dias (7, 10 e 22) em que se registaram quatro mortes neste grupo etário.

    A taxa de mortalidade nestas idades – abrange cerca de um milhão de pessoas – é extremamente baixa, mas certo é que, desde 2014, somente outros dois meses (Janeiro de 2017 e Julho de 2020, ambos com 43 óbitos) tinham ultrapassado a trágica fasquia dos 40 óbitos.

    silhouette of jumping people

    Porém, mais do que esse recorde, que poderia ser fruto da conjugação de diversos infortúnios, o passado mês de Agosto enquadra-se numa tendência crescente de mortalidade nesta faixa etária que se iniciou em Outubro do ano passado, sem mostrar sinais de inversão.

    Actualmente, considerando a evolução da média móvel da mortalidade anual – ou seja, o somatório dos óbitos nos últimos 12 meses anteriores –, Agosto de 2022 está num pico e sem dar sinais de abrandamento: 360 óbitos. Há um ano, em Agosto de 2021, encontrava-se nos 304.

    Em Outubro do ano passado chegou aos 297, mas a partir daí tem estado sempre a subir, mostrando uma evolução preocupante. A mortalidade acumulada nos oito meses de 2022 está cerca de 22% acima da média de 2017-2021, conforme divulgou ontem o PÁGINA UM.

    Evolução da mortalidade anual (12 meses) desde Dezembro de 2014 até Agosto de 2022 na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Embora não haja um padrão sazonal de mortalidade para esta faixa etária – como sucede com os mais idosos, onde as doenças de maior letalidade “atacam” mais no Inverno –, antes da pandemia a evolução da mortalidade anual manteve-se relativamente estável entre os 300 e os 355 óbitos.

    Com a chegada do SARS-CoV-2, observou-se de imediato um acréscimo na evolução da taxa de mortalidade anual, que passou de 301 óbitos em Fevereiro de 2020 para 345 em Outubro daquele ano.

    No entanto, jamais se pode argumentar que se deveu directamente à covid-19. Até Outubro de 2020 apenas tinha falecido uma pessoa com covid-19 na faixa etária dos 20 aos 29 anos. Na verdade, a hipótese mais provável será o efeito da fuga aos hospitais nos primeiros meses da pandemia ou o agravamento de determinadas doenças ou problemas que afectam mais esta faixa etária.

    Mortalidade acumulada até Agosto nos anos de 2014 a 2022 na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Causas concretas ignoram-se, porque as causas de morte discriminadas para 2020 nesta faixa etária não se encontram disponibilizadas de forma inteligível pelo Instituto Nacional de Estatística, e o Eurostat somente tem dados detalhados da mortalidade sobre Portugal até ao ano de 2019.

    Em todo o caso, a partir de Outubro de 2020, a mortalidade nos adolescente a partir dos 15 anos e jovens adultos até aos 24 anos teve uma evolução bastante favorável, a caminho de uma situação normal. Em Junho de 2021, a taxa de mortalidade anual encontrava-se num valor bastante baixo (294), mantendo-se num nível estável (e reduzido) até Outubro. A partir daí, não parou a mortalidade nesta faixa etária de subir.

    Causas de morte (por grupo segundo o CDI da OMS) na faixa etária dos 15 aos 24 anos em Portugal nos anos de 2014 a 2019. Fonte: Eurostat. Análise: PÁGINA UM.

    Todas as especulações sobre esta inusitada subida para níveis recorde são possíveis, porque, na verdade, o Ministério da Saúde mantém a recusa em disponibilizar os dados do SICO de 2020, 2021 e 2022 para conhecer quais foram as causas dos óbitos, o que permitiria, no caso do grupo etário dos 15 anos 24 anos, conhecer com rapidez quais os maiores desvios, através da comparação com anos anteriores.

    Saliente-se que, de acordo com os dados do Eurostat, entre 2014 e 2019, os acidentes de transporte foram a primeira causa de morte na faixa etária dos 15 aos 24 anos, mas apesar de se considerar que tem um peso muito relevante, representam porém apenas 24,8% do total (465 óbitos em 1.877). Bastante relevantes são as neoplasias que, apesar de raras nestas idades, são a causa de morte em 16,1% dos óbitos totais, seguindo-se os suicídios com 11,2%

    Acima dos 5%, estão as doenças do sistema nervoso (9,4% do total), do sistema circulatório (6,8%) e as quedas, afogamentos e outros acidentes (6,1%).


    N.D. O PÁGINA UM considera fundamental que o Ministério da Saúde revele os dados das causas de morte registadas no SICO, uma vez que permitem, de forma rápida, identificar os desvios que estão a ocorrer tanto no grupo etário dos 15 aos 24 anos como nos idosos, sobretudo a partir dos 85 anos. A manutenção de um injustificável obscurantismo, além de constituir uma inaceitável postura antidemocrática, possibilita todo o tipo de especulações. É a falta de informação fidedigna do Governo que, infelizmente, tem promovido a desinformação. O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar o SICO e a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar.

  • Adolescentes e jovens adultos estão a morrer (muito) mais. Gerontocídio continuou em Agosto

    Adolescentes e jovens adultos estão a morrer (muito) mais. Gerontocídio continuou em Agosto

    Análise exclusiva do PÁGINA UM revela que o excesso de mortalidade continua imparável no grupo dos mais idosos (acima dos 85 anos) e está agravar-se entre a população em idade de reforma. Mas há ainda outro grupo etário onde se observa um inaudito agravamento da mortalidade: os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos, que apresenta um desvio de 22% face à média (2017-2021). A situação tem piorado inexplicavelmente desde Março em termos globais: em média, segundo os cálculos do PÁGINA UM, tem havido em Portugal 42 mortes a mais por dia.


    9.280 óbitos: este é o número, ainda provisório, do mês de Agosto que terminou esta quarta-feira. Definitivo já, porém, é este ter sido o Agosto mais letal desde 2003, mantendo uma série negra de excesso de mortalidade que parece interminável, e já se mostra estrutural, e nada é de conjuntural.

    Apesar de o mês passado ter sido o primeiro desde Novembro de 2021 abaixo dos 10 mil óbitos, os sinais estruturais de debilidade da população portuguesa em termos de Saúde Pública continuam evidentes – e pior ainda, consolidaram-se nos últimos seis meses. Em cada mês.

    photo of person reach out above the water

    Conforme já destacado anteriormente pelo PÁGINA UM, o excesso de mortalidade observa-se sobretudo nos grupos etários mais elevados, mas detectam-se agora também, de forma indesmentível do ponto de vista estatístico, no grupo etário dos 15 aos 24 anos. O número de óbitos de adolescentes e jovens adultos é, particularmente este ano, e sobretudo desde Março, completamente inusitado, e nunca abordado ao longo deste ano pelo Governo e autoridades de Saúde.

    E, no entanto, tudo isto sucede no presente ano, 2022, que até aparentava vir a ser de alívio após dois anos de pandemia.

    De acordo com os dados preliminares do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os meses de Janeiro e Fevereiro deste ano foram relativamente calmos: em comparação com a média (2017-2021) houve menos 2.374 óbitos. Mesmo excluindo da comparação o ano de 2021 (que registou mortalidade absolutamente anormal, no pico da pandemia), os dois primeiros meses de 2022 ficaram assim em níveis de letalidade dentro do expectável.

    Contudo, de repente, o excesso de mortalidade surgiu com a entrada do tempo primaveril, mantendo-se elevado pela época estival, e não dá sinais de parar. O Ministério da Saúde anunciou, no mês passado, um estudo a ser concluído em 2023, mas nem sequer é certo que inclua o período a partir de Março deste ano. Recorde-se que não são ainda conhecidas, em detalhe, todas as causas de morte discriminadas relativas ao ano de 2020 e de 2021.

    two men playing chess

    Mantendo-se o intencional mistério alimentado pelo Governo sobre a causa das mortes, porém os números totais não enganam: há um gravíssimo problema de Saúde Pública em Portugal, uma “herança” deixada pela pandemia e, muito provavelmente, pela gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que secundarizou o diagnóstico e tratamento das outras doenças. De igual modo, o Governo e as autoridades de Saúde não colocam sequer a hipótese de se estudar a existência de qualquer relação causal entre os processos de vacinação contra a covid-19 e a prevalência de doenças letais sobretudo nos mais idosos.

    Certo é que as análises estatísticas do PÁGINA UM revelam um imparável aumento da mortalidade a partir do fim do Inverno: entre Março e Agosto, o excesso de mortalidade em 2022 foi de 7.769 óbitos face à média do período homólogo de 2017-2021.

    No período em análise, o ano de 2022 foi o primeiro em que se ultrapassou os 60 mil óbitos desde 1980 (ano com dados estatísticos acessíveis com facilidade). Para o presente ano, o SICO indica um total de 61.621 mortes entre Março e Agosto, ou seja, cerca de 335 mortes por dia.

    No ano passado não chegara, no período homólogo, aos 53 mil óbitos, e a média (2017-2021) ronda os 54 mil, isto é, uma média diária de 293, mesmo assim “puxada” pelos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021). Assim, entre 1 de Março e 31 de Agosto, todos os dias tem, em média, ocorrido mais 42 mortes do que seria expectável. Todos os 184 dias.

    Mortalidade por grupo etário entre Janeiro e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.

    A dimensão dos números de 2022 é tão avassaladora que jamais se pode justificar com base na covid-19, em ondas de calor ou envelhecimento populacional. Aliás, devido à pandemia e ao quase contínuo excesso de mortalidade nos mais idosos, o grupo etário dos maiores de 85 anos até terá diminuído face ao período pré-pandemia.

    Embora em número total, 2022 ainda não tenha ultrapassado o morticínio de 2021 – marcado pelos meses de Janeiro e Fevereiro anormalmente letais, no pico da pandemia –, no caso dos maiores de 85 anos a situação deste ano tem sido absolutamente aterradora. Um autêntico gerontocídio, sobretudo por ser silenciado. Comparando com o período de 2017 a 2021 (que inclui, portanto o pico da pandemia), a mortalidade dos mais idosos (acima dos 85 anos) em 2022 já ultrapassa largamente a média: 37.538 vs. 33.273 óbitos, ou seja, mais 4.262. Mesmo face ao ano passado, os números de 2022 já o superam em 731 mortes.

    Se se considerarem apenas os últimos seis meses (Março a Agosto), a diferença entre 2022 e 2021 é avassaladora: mais 5.535 óbitos. Ou seja, entre 1 de Março e 31 de Agosto registaram-se este ano, em comparação ao ano passado, mais 30 cerimónias fúnebres por dia apenas de pessoas com mais de 85 anos. Todos os dias.

    Mortalidade por grupo etário entre Março e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.

    Este acréscimo de mortalidade na faixa dos maiores de 85 anos reforça-se pelo desvio relativo (face à média), em especial quando se restringe a uma análise aos últimos seis meses. Considerando o período de Janeiro a Agosto, a mortalidade neste grupo etário foi 12,8% superior à média (2017-2021), mas no período de Março a Agosto quase duplica, atingindo-se os 23,8%.

    Nos grupos etários imediatamente antecedentes, o acréscimo relativo é muito menor, embora também se observe uma intensificação nos últimos seis meses. No caso do grupo dos 75 aos 84 anos, contabiliza-se um acréscimo de 10,1% face à média no período de Março a Agosto, sendo de apenas de 2,3% se se incluírem os dois primeiros meses. No grupo dos 65 aos 74 anos o desvio é de 8,7% no período de Março a Agosto, e de 5,3% para todos os meses do ano. E no grupo dos 55 aos 64 anos o desvio é de 6,1% no período de Março a Agosto, embora somente de 2,9% se se incluir todos os oito meses.

    Note-se, contudo, que nestes grupos etários a mortalidade deste ano (Janeiro a Agosto) é ainda mais baixa do que a registada no ano passado, mas já é bastante superior se se analisar apenas o período a partir de Março, sobretudo nos maiores dos 65 anos, o que indicia que a tendência é 2022 vir a ser mais mortífero do que 2021.

    people holding shoulders sitting on wall

    Abaixo dos 55 anos, a situação deste ano – tal como ocorreu durante a pandemia – pode considerar-se normal. Ou seja, mortalidade dentro dos padrões normais quer comparando os anos de pandemia quer os anos de pré-pandemia. Mas com uma surpreendente e gravíssima excepção no grupo etário dos 15 aos 24 anos.

    Com efeito, se se comparar 2022 com o período 2017-2021 (tanto em termos médios como individualmente), os números de mortalidade geral abaixo dos 55 anos não surpreendem, se olhados em conjunto. Mesmo a mortalidade infantil deste ano, embora superior ao do ano passado (155 vs. 114), pode considerar-se “normal”, porque a subida se deveu a um número atípico (bastante baixo, mas difícil de manter) em 2021. De facto, o número de mortes de bebés em 2022 (até Agosto) é exactamente igual ao de 2020, e até bastante inferior aos anos de 2017 (163 óbitos), 2018 (200 óbitos) e 2019 (192 óbitos).  

    Mas se não existe um problema de Saúde Pública na mortalidade infantil – e até aos 14 anos –, nos adolescentes a partir daquela idade e nos jovens adultos (até aos 24 anos), já os números do SICO deveriam levar a tocar os sinos a rebate. Tanto mais que o padrão de mortalidade não se reflecte nos três grupos etários subsequentes (25-34 anos; 35-44 anos; e 45-54 anos) nem se mostra similar em dois dos três grupos precedentes (menos de 1 ano; e 5-14 anos) . No grupo dos 1 aos 4 anos, observa-se este ano um pequeno acréscimo absoluto face à média (4 óbitos), mas pouco relevante do ponto de vista estatístico, até porque se observam valores superiores em 2018.

    De facto, os alarmes devem ser dirigidos aos adolescentes e jovens adultos. Aqui há mesmo um problema incontornável. Segundo a análise do PÁGINA UM aos números do SICO, este ano (Janeiro a Agosto) registaram-se já 254 óbitos na faixa etária dos 14 aos 25 anos, o que contrasta com os 208 óbitos em média no período homólogo de 2017-2018. Estamos assim perante um desvio de 21,9%. Este ano morreram mais 46 jovens neste grupo etário do que em média. Face ao ano passado, essa diferença é de 48. Em relação a 2020 é de 21 óbitos, e comparando com 2018 é de 68.

    three men and one woman laughing during daytime

    Se se considerar o período a partir de Março, até Agosto, o desvio é ainda maior: 24,3% (mais 37 óbitos em seis meses) – e também contrasta com os valores dos grupos etários subsequentes (entre os 25 anos e os 54 anos) que registaram reduções da mortalidade face à média. Desde o início do Verão (21 de Junho) até finais de Agosto, o SICO regista a morte de 84 jovens (15-24 anos), o que contrasta com uma média de 69 para o mesmo período entre 2017 e 2021.

    Razões para esta dramática diferença – numa população na “flor da vida” – são desconhecidas. E continuarão se o Ministério da Saúde recusar divulgar os dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, para se conhecerem as causas de morte. E também se a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) mantiver online a “mutilada” base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, impedindo assim de se perceber quais são as doenças que, de repente, estão a afectar (e a matar) mais na faixa dos 15 aos 24 anos.

    O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar essas bases de dados.

  • Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980

    Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980

    Apesar de um abrandamento, o excesso de óbitos continua ainda em Agosto. Os dias com menos de 300 óbitos tornaram-se mais frequentes, mas mesmo assim a média continua acima daquele patamar, o que se mostra intolerável face a um excesso de mortalidade que vem desde finais de Fevereiro. Com base na situação até dia 18, o PÁGINA UM prevê que este será o segundo mais mortífero Agosto deste século, apenas ultrapassado por 2003 que registou uma das piores onda de calor.


    Apesar de uma redução da mortalidade nas últimas três semanas, o presente mês de Agosto continua a estar com níveis muito acima do expectável. De acordo com a análise do PÁGINA UM, a partir do perfil e especificidades em anos anteriores e ao longo do mês em curso, será provável que a mortalidade total em Agosto de 2022 fique apenas abaixo da registada em 2003, quando uma onda de calor intensa no início daquele mês fez disparar os óbitos. Naquele ano, Agosto contabilizou 10.111 óbitos.

    Agosto de 2003 registou uma das mais inclementes ondas de calor de que há registo, que se iniciou em 30 de Julho e se prolongou até ao dia 15 daquele mês. Quando a população estava menos envelhecida, foi estimado um excesso global de 1.953 óbitos, sobretudo no interior. Nos distritos de Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Évora a mortalidade foi superior a 80% face ao expectável.

    black and gray stethoscope

    Agora, sendo quase garantido que no presente mês de Agosto se interromperá a inédita série de nove meses, iniciada em Novembro do ano passado, com mortalidade total acima dos 10 mil óbitos, mostra-se muito provável, em todo o caso, que se fique bem acima dos 9 mil, mesmo assim um valor bastante elevado para esta época do ano.

    Até dia 18, de acordo com os dados disponível do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito terão morrido 5.447 pessoas, ou seja, 7% acima da média do último quinquénio.

    Desde 2009, no período homólogo apenas 2018 apresenta um número mais elevado (5.617), mas muito por força também de uma onda de calor que, no início de Agosto daquele ano, causou uma elevada mortalidade, mas à qual sucedeu uma queda acentuada na segunda quinzena.

    No caso de Agosto deste ano, a mortalidade continua bastante elevada, mesmo nas semanas em que as temperaturas estiveram mais amenas. Apesar do mês em curso ter tido 10 dias em mortalidade diária abaixo dos 300 óbitos – algo que somente acontecera em sete dias até finais de Julho –, a média continua elevadíssima (303 por dia), sobretudo porque o excesso de mortalidade tem estado omnipresente desde finais de Fevereiro.

    close-up photography of person lifting hands

    Nessa medida, e com o aumento da temperatura para os próximos dias, será expectável que a mortalidade diária continue a rondar os 300 óbitos, o que a confirmar-se significará que Agosto de 2022 será o segundo pior de sempre, a seguir a 2003. O PÁGINA UM prevê que a mortalidade do final de Agosto estará compreendida entre 9.300 e 9.500 óbitos.

    Recorde-se que o Ministério da Saúde prometeu apenas para 2023 revelar as conclusões de um estudo, do qual pouco se sabe, sobre as causas do excesso de mortalidade em Portugal, mantendo, por outro lado, a recusa em divulgar o acesso aos dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, uma questão que está a ser dirimida no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Também a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que poderia dar indicações sobre as causas principais desse excesso, foi retirada pelo Ministério da Saúde do Portal da Transparência do SNS – e depois mutilada –, razão pela qual também ontem o PÁGINA UM intentou outro processo de intimação junto do Tribunal para obrigar a Administração Central do Serviço de Saúde a disponibilizar a versão original.


    N.D. Foi alterado o título e alguns pormenores do texto em 28 de Agosto, porque se constatou que, pelo menos até aos anos 40 do século XX, em grande parte devido à elevadíssima taxa de mortalidade infantil, os meses de Verão eram bastante mortíferos, ao contrário do que passou a verificar-se nos últimos 50 anos.

  • Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

    Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

    Depois de dois processos contra o Ministério da Saúde (um dos quais em “representação” da Direcção-Geral da Saúde), de mais dois contra o Infarmed e de mais um contra a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma nova intimação desta vez contra a decisão da Autoridade Central do Sistema de Saúde. Em causa está o “expurgo” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que foi retirada em Maio passado do Portal da Transparência, após o PÁGINA UM ter publicado investigações comprometedoras. A base de dados foi “reposta” no início deste mês, mas completamente “mutilada” , impossibilitando qualquer análise séria que possa, por exemplo, explicar as causas para o excesso de mortalidade em Portugal desde finais de Fevereiro.


    Vítor Herdeiro, amigo de longa data da ministra da Saúde e presidente da Administração Central do Serviço de Saúde, vai ter de justificar junto do Tribunal Administrativo de Lisboa as razões para a retirada da base de dados original da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar que constava do Portal da Transparência do SNS.

    Esta é a consequência imediata do processo de intimação apresentado hoje pelo PÁGINA UM – o sexto envolvendo o Ministério da Saúde ou entidades tuteladas pela ministra Marta Temido – que tem, como objectivo primordial, a reposição da base de dados que permitia uma avaliação rigorosa do desempenho do SNS durante a pandemia, auxiliando também a perceber quais as doenças que estarão a causar um excesso de mortalidade desde finais de Fevereiro.

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    Como denunciou o PÁGINA UM em editorial no dia 16 de Junho, o Ministério da Saúde decidiu “expurgar” a base de dados com informação mensal desde Janeiro de 2017 sobre o número de internamentos e de óbitos, envolvendo 62 unidades do SNS, desagregados por sexo (dois) e por grupo etário (sete). Essa base de dados, que em Janeiro deste ano contava 440.036 linhas de informação, permitira ao PÁGINA UM elaborar um dossier específico de oito artigos, entre 13 de Maio e 1 de Junho, que mostrava uma situação muito distinta da “narrativa oficial” quanto aos números da pandemia e sobre o desempenho das diferentes unidades hospitalares mesmo em relação a outras doenças.

    Esses dados permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Ómicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, agora “apagada”.

    O ministério liderado por Marta Temido nunca assumiu terem sido razões políticas, em resultados das investigações do PÁGINA UM, a determinarem o “apagão” da base de dados, embora haja uma coincidência entre a decisão de retirar essa informação do Portal da Transparência e a publicação dos primeiros artigos noticiosos.

    A ACSS adiantaria, mais tarde, como causa do “expurgo”, a necessidade de uma “análise interna”, mas nunca explicou cabalmente qual o propósito.

    Certo é que após um pedido expresso do PÁGINA UM para acesso à base de dados original, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), Vítor Herdeiro decidiu em 5 de Agosto repor no Portal da Transparência um “sucedâneo” da base de dados, mas que constitui uma autêntica mutilação da versão pública original, tornndo-a inútil.

    Com efeito, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário.

    Também ficou impedido de se conhecer os números absolutos de internamentos e de óbitos em unidades de saúde por tipologia de doença, impossibilitando apurar-se que tipo de doenças estarão a tornar-se mais mortíferas desde finais de Fevereiro, quando Portugal iniciou um período sem precedentes de contínuo excesso de mortalidade.

    A intimação agora apresentada ao Tribunal Administrativo de Lisboa pretende assim que, independentemente de Marta Temido concordar com a “mutilação” da base de dados agora exposta no Portal da Transparência do SNS, a versão original seja disponibilizada ao PÁGINA UM. Isto é, o objectivo é o Tribunal sentenciar o amigo da ministra da Saúde a entregar obrigatoriamente a base de dados original (existente antes e existente agora) da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – que esteve disponível ao público até Maio deste ano – ao PÁGINA UM.

    Se o Tribunal Administrativo de Lisboa condenar a ACSS a entregar essa base de dados original, o PÁGINA UM compromete-se a disponibilizá-la imediatamente no seu site. E continuará a dissecar essa informação – vital para compreender o excesso de mortalidade em curso –, sob a forma de análises e notícias rigorosas e isentas.

    Saliente-se que a intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões é um processo considerado e, por isso, os prazos são curtos. A entidade pública responsável dispõe de 10 dias para responder, e o juiz deve decidir em cinco dias, embora possam ser pedidos mais informações.

    Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. Foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Caso a entidade pública continue sem satisfazer o pedido, após intimada pelo tribunal para o fazer, o juiz deve determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, sem prejuízo da responsabilidade (civil, disciplinar, criminal) a que possa haver lugar.

    Além dos seis processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboam envolvendo entidades públicas na área da Saúde (Ministério da Saúde, Infarmed, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e agora AACS), o PÁGINA UM tem ainda em curso mais três acções similares (satisfação de pedidos de acesso a documentos administrativos) sobre a Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos e Conselho Superior da Magistratura (CSM), tendo já vencido duas acções em primeira instâncias. Porém, nesses dois casos, as duas entidades (CSM e Ordem dos Médicos) recorreram da decisão para o tribunal superior, demonstrando uma cultura pouco atreita à transparência.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.

  • Infarmed e a “arte” dos três E: esconder, enviesar e enganar

    Infarmed e a “arte” dos três E: esconder, enviesar e enganar

    O PÁGINA UM apresenta hoje uma análise detalhada ao recente relatório do Infarmed da farmacovigilância das vacinas contra a covid-19. Além da fé em estudos com mais de um ano, o relatório com dados até final de Julho esconde muito, interpreta de forma enviesada e tenta fabricar uma narrativa. Com esta análise, o PÁGINA UM não pretende afirmar que as vacinas contra a covid-19 são inseguras; exige sim que a informação seja disponibilizada para análise independente e que o Infarmed mostre uma efectiva transparência, defendendo os interesses da Saúde Pública.


    Com dados referentes a 31 de Julho, o Infarmed acaba de publicar mais um relatório de farmacovigilância sobre a monitorização da segurança das vacinas contra a covid-19 em Portugal.

    Antes de debater o estilo deste relatório do Infarmed, diga-se que não disfarça ao que vem: logo na primeira página da Introdução, à terceira frase, dispara-se: “A vacinação contra a COVID-19 é a intervenção de saúde pública mais efetiva para reduzir o número de casos de doença grave e morte originados pela infeção pelo SARS-CoV-2. Diversos estudos comprovam que as vacinas contra a COVID-19 são seguras e efetivas.”

    Mostra-se muito curioso observar um “árbitro”, que ainda por cima tem como função a defesa da saúde pública, fazer essa declaração de princípios. Pode-se dizer que, na verdade, remete para a existência de “diversos estudos”, e até os cita.

    person holding white ballpoint pen

    Fomos ver.

    Descontando a referência ao INFOMED (Base de dados de medicamentos de uso humano) e a relatórios do Public Health England, o Infarmed remete os “comprovativos” de que as vacinas contra a covid-19 para cinco estudos em concreto, presumindo-se que fossem as últimas actualizações com dados científicos independentes e inquestionáveis.

    Desenganem-se já.

    O primeiro intitula-se “Effectiveness of Pfizer-BioNTech and Moderna Vaccines Against COVID-19 Among Hospitalized Adults Aged ≥65 Years” – e, portanto, abrange apenas população com mais de 65 anos – e foi publicado como relatório do United States Department of Health and Human Services em Maio de 2021. Portanto, há 15 meses.

    Refere-se este artigo a dados recolhidos, portanto, numa fase muito prévia da vacinação – ou seja, sem se poder aferir de efeitos a médio e longo prazo. Além disso, este relatório integra quatro investigadores com ligações à Pfizer. Daqui se compreende, desde já, a necessidade de uma regulação independente em termos de farmacovigilância, e que o Infarmed não pode nem deve assumir que este estudo (não inteiramente independente) constitui uma garantia da eficácia e da segurança das vacinas.

    O segundo estudo intitula-se “Effectiveness of BNT162b2 mRNA Vaccine Against Infection and COVID-19 Vaccine Coverage in Healthcare Workers in England, Multicentre Prospective Cohort Study (the SIREN Study)”, e ainda se mostra mais fraco como argumento científico para o Infarmed. Aconselho mesmo que seja retirado de um próximo relatório.

    Capa do último relatório do Infarmed. São 13 páginas com parca e enviesada informação.

    Integrando investigadores associados à vacina da AstraZeneca, este artigo está a “marinar” desde 22 de Fevereiro de 2021 num portal como Preprint. Passaram mais de 17 meses desde a pré-publicação e custa a ser validado pelos seus pares. Formalmente, ainda não é um artigo científico e os 17 meses de espera não são uma boa notícia.

    O terceiro estudo intitula-se “Vaccine side-effects and SARS-CoV-2 infection after vaccination in users of the COVID Symptom Study app in the UK: a prospective observational study”; e este sim está já publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases. Porém, foi publicado em Julho de 2021.

    Como facilmente se compreende aborda apenas os efeitos de curto prazo das vacinas, ainda mais numa fase em que ainda não se tinha decidido politicamente dar doses de reforço (terceira e quarta toma). Basta, aliás, citar a parte final das conclusões deste estudo para perceber que utilizá-lo, como faz o Infarmed, como garantia da eficácia e da segurança das vacinas é perfeitamente abusivo:

    In conclusion, short-term adverse effects of both vaccines are moderate in frequency, mild in severity, and short-lived. Adverse effects are more frequently reported in younger individuals, women, and among those who previously had COVID-19. The post-vaccine symptoms (both systemic and local) often last 1–2 days from the injection. Our data could be used to inform people on the likelihood of side-effects on the basis of their age and sex and the type of vaccine being administered. Furthermore, our data support results from randomised controlled trials in a large community-based scenario showing evidence of reduction in infection after 12 days and substantial protection after 3 weeks.”

    Na verdade, estudos desta natureza mostram, sim, a necessidade de uma farmacovigilância independente – e que analise a informação recolhida ao longo do tempo (e não apenas de curto prazo) sem estar com uma postura pré-concebida de que um medicamento é seguro porque… há estudos.

    Mas avancemos. O quarto estudo citado pelo Infarmed intitula-se “BNT162b2 mRNA Covid-19 Vaccine in a Nationwide Mass Vaccination Setting”. Digamos que “sofre” do mesmo problema do anterior.

    Publicado em 24 de Fevereiro de 2021 no New England Journal of Medicine, mostra bem os “estranhos tempos” da Ciência em tempos de pandemia: o artigo científico aborda a eficácia da vacinação com base na recolha de dados entre 20 de Dezembro de 2020 e 1 de Fevereiro de 2021, e foi logo aceite menos de um mês após ser encerrado. Turbo-ciência. Além disso, estamos perante um estudo da primeira fase da vacinação, e nem sequer se debruça sobre eventuais efeitos secundários. Também não abrangeu população com idade inferior a 16 anos nem população com infecção prévia do SARS-CoV-2.

    Não sei se vale a pena referir que os valores apontados de eficácia das vacinas neste estudo – numa altura em que a variante Ómicron ainda não surgira – são hoje pouco realistas.

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    Onde está a Ciência e o rigor nos tempos que correm?

    O quinto estudo intitula-se “FDA-authorized mRNA COVID-19 vaccines are effective per real-world evidence synthesized across a multi-state health system” e foi publicado na revista Med em Agosto de 2021. Consiste num estudo feito por uma empresa médica (Mayo Clinic), e considerando a data da sua publicação, fácil se mostra concluir que se aplica às primeiras fases da vacinação e quando se estava perante outras variantes dominantes. As anotações sobre as limitações deste estudo, expostas no próprio artigo, deveriam levar o “nosso” Infarmed a uma maior contenção.

    Dissecar estes estudos “lançados” pelo Infarmed para sustentar uma “tese” – que não lhe cabe fazer, porque a sua função é avaliar, de forma independente, eventuais efeitos adversos não detectados nas fases prévias dos ensaios clínicos – serve para demonstrar a falta de independência do regulador nacional nesta matéria.

    E constitui a antecâmara para mostrar a forma enviesada como o Infarmed apresenta números e os comenta no seu relatório.

    Aliás, como esconde dados e como interpreta de forma enviesada as reacções adversas (e a sua gravidade). E quando se esconde ou se interpreta abusivamente, legitimamente há motivos para desconfiar das motivações.

    Através da leitura deste relatório do Infarmed – e dos anteriores – não se sabe, por exemplo, o número de casos por grupo etário das hospitalizações, risco de vida (e quais as afecções e as eventuais sequelas) e morte decorrentes da vacinação.

    Essa informação é vital, porque não é indiferente o risco em função da idade, tendo em conta uma doença (que a vacina pretende evitar) que apresenta taxas de letalidade (também em função da variante e também da imunidade natural) absolutamente distintas.

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    Quem sai beneficiado por não se saber toda a informação? E quem sai prejudicado?

    Um efeito adverso grave num grupo etário em que a doença é bastante letal não pode ser visto da mesma forma que um efeito adverso grave num grupo etário em que a doença é praticamente benigna. Uma morte causada por uma vacina (medicamento), contra uma doença que tem uma taxa de letalidade de 15% num determinado grupo etário numa certa fase, não pode ser olhada nem analisada da mesma forma que uma morte causada num grupo etário em que a taxa de letalidade seja praticamente de 0,00% numa faixa etária de pessoas jovens e saudáveis. Para o primeiro caso, a decisão de manter o medicamento pode justificar-se; no segundo caso não.

    Aliás, veja-se como reagiram as autoridades de saúde da Dinamarca perante a vacinação de menores de idade por força do (re)conhecimento científico. Aliás, este país escandinavo já deixou de permitir a vacinação de menores de 18 anos.

    Ora, no seu relatório, o Infarmed esconde intencionalmente toda essa informação.

    Por outro lado, o relatório do Infarmed impossibilita também de se saber quais os efeitos adversos de médio e longo prazo sobre as pessoas vacinadas, até porque lança logo um aviso quando se refere às mortes causadas pelas vacinas:

    Estes acontecimentos não podem ser considerados relacionados com uma vacina contra a COVID-19 apenas porque foram notificados de forma espontânea ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Na grande maioria dos casos notificados em que há informação sobre história clínica e medicação concomitante, um resultado adverso fatal pode ser explicado pelos antecedentes clínicos do doente e/ou outros tratamentos, sendo as causas de morte diversas e sem apresentação de um padrão homogéneo. A vacinação contra a COVID-19 não reduzirá as mortes provocadas por outras causas, por exemplo, problemas de saúde não relacionados com a administração de uma vacina, pelo que durante as campanhas de vacinação é expectável que as mortes por outras causas continuem a ocorrer, por vezes em estreita associação temporal com a vacinação, e sem que necessariamente haja qualquer relação com a vacinação.

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    Estas frases são muito verdadeiras, mas com um “problema”: quando se tratou ou trata da doença propriamente dita – a covid-19 –, as autoridades de saúde nunca tiveram a mesma interpretação.

    Veja-se como ficaria esta passagem do relatório do Infarmed se se aplicasse à covid-19 [marca-se a negrito as partes alteradas do texto original do Infarmed]:

    “Estes acontecimentos não podem ser considerados relacionados com a COVID-19 apenas porque foram notificados de forma espontânea ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Na grande maioria dos casos notificados em que há informação sobre história clínica e medicação concomitante, um resultado adverso fatal pode ser explicado pelos antecedentes clínicos do doente e/ou outros tratamentos, sendo as causas de morte diversas e sem apresentação de um padrão homogéneo. A COVID-19 não reduzirá as mortes provocadas por outras causas, por exemplo, problemas de saúde não relacionados com a esta doença, pelo que durante a pandemia é expectável que as mortes por outras causas continuem a ocorrer, por vezes em estreita associação temporal com a COVID-19, e sem que necessariamente haja qualquer relação com a COVID-19.”

    Parecem lógicas as frases assim, certo?

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    Quem tem medo da informação? Quem tem medo dos olhares independentes?

    Aliás, há um outro aspecto onde se mostra um enviesamento na análise. Como se sabe, as autoridades andam a inculcar a ideia de existir uma “pandemia” de long-covid – efeitos de longo prazo da covid-19. Porém, se uma parte muito substancial da população que teve covid-19 também foi vacinada, como atribuir cientificamente uma deterioração da saúde a uma causa ou a outra? Ou a outra qualquer?

    Na verdade, está verdadeiramente o Infarmed a considerar os efeitos de longo prazo da vacinação?

    Por outro lado, veja-se o rigor “científico” do Infarmed mesmo quando, escondendo dados essenciais, deixa “rabos de fora”. Na página 6 escreve que “verifica-se que as reações adversas às vacinas contra a COVID-19 são pouco frequentes, com cerca de 1 caso em mil inoculações, um valor estável ao longo do tempo”. Mentira. Falso.

    Fazendo umas contas simples a partir dos quadros disponibilizados, e se compararmos globalmente as vacinas administradas em Abril-Maio de 2022 (441.980 doses) e em Junho-Julho (700.997), verificamos que foram registadas, respectivamente, 480 e 1.204 reacções adversas. Significa que no primeiro período se passou de um registo de 1,08 casos por 1.000 vacinas para 1,72 por 1.000 vacinas no período mais recente. Resultado: temos um incremento de 59% nas reacções adversas que coincidiram com a fase da quarta dose para os mais idosos. Mesmo que existam reportes deferidos (que não é dito), o Infarmed não considera isto relevante?! Não batem as sinetas de alarme?

    E também o Infarmed não considera relevante que, face aos dados de Dezembro de 2021, as reacções adversas da vacinação – contra uma doença que é genericamente benigna para crianças e adolescentes saudáveis – tenham subido de 0,06 casos por 1.000 vacinas para 0,21 na faixa dos 5 aos 11 anos – ou seja, um aumento de 250% –, e tenha incrementado de 0,17 para 0,22 na população dos 12 aos 17 anos (aumento de 25%)? Nada disto conta para o Infarmed?

    Infarmed declara que a “transparência é um [seu] princípio fundamental”, mas luta pelo contrário no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    E depois de tudo isto, ainda tem o Infarmed o descaramento de terminar as suas 13 páginas cheias de coisa nenhuma, e parca e enviesada informação, com a seguinte frase: “A transparência é um princípio fundamental para o Infarmed e para a Agência Europeia do Medicamento”.

    Claro que é! Por isso mesmo, o Infarmed anda a batalhar no Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar ser obrigado a entregar os dados anonimizados e em bruto do Portal RAM ao PÁGINA UM. O processo de intimação do PÁGINA UM, recorrendo ao FUNDO JURÍDICO financiado pelos leitores, foi intentado em Maio, aguardando-se nas próximas semanas uma decisão. Fundamental para se saber a verdade.

  • Morticínio desde Maio não tem um padrão regional mas concentra-se nos municípios com menos recursos médicos

    Morticínio desde Maio não tem um padrão regional mas concentra-se nos municípios com menos recursos médicos

    Uma análise detalhada do PÁGINA UM – embora ainda não validada pelo Secretariado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista – revela que, entre Maio e a primeira semana de Agosto deste ano, morreram mais 5.548 pessoas do que no período homólogo de 2017-2021, um acréscimo de 20,1%. Mas o excesso de mortalidade não é semelhante: em alguns concelhos assistiu-se a um autêntico morticínio, em Lisboa e Porto o fenómeno é “moderado” e há até 48 municípios em que os óbitos foram em menor número do que expectável. O Ministério da Saúde anuncia estudo, mas continua a lutar no Tribunal Administrativo para não dar informação.


    Em Monforte, pequeno município norte-alentejano com um pouco menos de três mil habitantes, morre-se pouco, mesmo se a população é idosa. Entre 2017 e 2021, nas semanas de 18 a 31 – sensivelmente entre Maio e o início de Agosto –, não foram frequentes as cerimónias fúnebres: 10, em média, o que dá menos de um enterro em cada uma destas 14 semanas.

    Este ano, porém, foi bem diferente. De acordo com os dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), em Monforte realizaram-se 25 enterros. No ano passado, no mesmo período, apenas foram sete. Há dois anos, 15.

    Embora Monforte seja, com 150% de óbitos acima da média desde Maio, o concelho do país com um maior excesso relativo de mortalidade, a situação é absolutamente anómala em muitas mais regiões, mas sem se encontrar um padrão muito definido. Segundo os cálculos rigorosos – e não sensacionalistas – do PÁGINA UM, há mais dois concelhos do país em que, no período em análise, a mortalidade mais do que duplicou: Povoação (114%), com 30 mortes este ano que confronta com uma média de 14, e Alvito (102%), com 19 mortes este ano que compara com uma média de nove.

    Apesar de não se encontrar bem definido um padrão regional no excesso de mortalidade – os 20 municípios com um excesso de 50% distribuem-se pelas diversas regiões do Continente e também pelos Açores e Madeira –, destacam-se, porém, diversos municípios alentejanos. Além de Monforte e Alvito, salienta-se o excesso de mortalidade em Arraiolos (75%), Avis (60%) e Nisa (52%). E também algarvios, como Vila do Bispo (80%), Lagoa (64%), Alcoutim (62%) e Vila Real de Santo António (50,2%).

    Os outros concelhos com mortalidade acima de 50% no período estão, efectivamente, distribuídos pelo país: Nordeste (Açores, 91%), Manteigas (distrito da Guarda, 80%), Azambuja (Lisboa, 74%), Calheta (Açores, 70%), Fornos de Algodres (Guarda, 68%), Figueiró dos Vinhos (Leiria, 65%), Calheta (Madeira, 61%), Santa Cruz (Madeira, 60%), Póvoa de Lanhoso (Braga, 55%), Vila Nova de Foz Côa (Guarda, 55%).

    red vehicle in timelapse photography

    Por regra, a maioria dos municípios com excesso de mortalidade superior à média nacional neste período – que foi de 20,1% no período em análise, a que correspondem mais 5.548 mortes do que o expectável – são de pequena ou média dimensão. Ou seja, com menor capacidade de resposta em termos de cuidados médicos.

    Com efeito, o concelho de Lisboa – o município que, por ser o mais populoso e também bastante envelhecido apresenta sempre o maior número de óbitos – não foi particularmente atingido por esta “onda de morticínio” que está a atravessar Portugal sem que haja sinais evidentes de uma intervenção governamental ou judiciária. Entre Maio e a primeira semana de Agosto, o PÁGINA UM apurou que se registaram na capital portuguesa um total de 1.892 óbitos, o que contrasta com uma média de 1.659 no período homólogo de 2017-2021. Em todo o caso, mesmo se o valor deste ano significa um excesso de 14% – portanto, 6 pontos percentuais abaixo da média nacional –, está relativamente próximo do número de 2020 (1.835 óbitos).

    Aliás, o problema do excesso de mortalidade, apesar de mesmo assim ser relevante, parece bastante menor nos principais centros urbanos, onde existem melhores cuidados hospitalares mas também uma maior atenção mediática.

    Além de Lisboa, também o Porto registou um excesso de mortalidade relativamente moderado: contabilizaram-se este ano 785 óbitos, que confronta com uma média de 708 no período 2017-2021.

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    Já os outros três concelhos do top 5 em termos populacionais – e com menos recursos de cuidados hospitalares – tiveram excesso de mortalidade mais elevado. Em Sintra – o segundo município mais populoso – contam-se este ano, no período em análise, 850 óbitos, um acréscimo de 125 óbitos face à média (+17,3%). Já acima da média nacional encontram-se Vila Nova de Gaia (excesso de 24,2%) e Cascais (22,6%). No primeiro destes concelhos morreram este ano 807 pessoas (650 no período 2017-2021) e no segundo 613 (mais 113 do que no período homólogo de 2017-2021).

    De entre os concelhos com um excesso de mortalidade acima da média nacional destacam-se também, pela diferença absoluta de óbitos, os casos da Covilhã (mais 59 óbitos este ano face à média, um acréscimo de 49%), Seixal (mais 117 óbitos, um acréscimo de 34%), Braga (mais 101, um acréscimo de 33%), Santa Maria da Feira (mais 82 óbitos, um acréscimo de 31%), Maia (mais 80, um acréscimo também de 31%), Loulé (mais 56, um acréscimo de 29%), Viseu (mais 63, um acréscimo de 26%), Barreiro (mais 57, um acréscimo também de 26%), Barcelos (mais 56, um acréscimo de 25%), Odivelas (mais 78, um acréscimo de 24%), Valongo (mais 43, um acréscimo também de 24%) e Figueira da Foz (mais 46, um acréscimo também de 24%).

    Porém, não se pense que o excesso de mortalidade seja um problema transversal em todos os municípios – e que, portanto, se possa apenas especular com base em ondas de calor, nas mortes por covid-19 ou por outros factores mais ou menos metafísicos. De facto, para mostrar que o problema é mais complexo – e a necessitar de uma investigação meticulosa e independente –, observam-se 48 municípios onde a mortalidade este ano, no período em análise, até foi mais baixa do que a média.

    Saliente-se que hoje o Ministério da Saúde anunciou que vai avançar com “um estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”.

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    Segundo o Público –  que atribuiu erradamente ao Expresso ter sido o primeiro órgão de comunicação a detectar que todos os meses deste ano tiveram sempre mais de 10.000 óbitos – este estudo incidirá sobre os dois primeiros anos da pandemia “mas pressupõe-se que abrangerá também os primeiros sete meses deste ano, uma vez que o número de óbitos continuou elevado neste período, bem acima do padrão dos anos anteriores à pandemia, apesar de a covid-19 ter agora um peso mais reduzido na estatística das mortes por todas as causas.”

    O Ministério da Saúde continua, entretanto, a recusar disponibilizar ao PÁGINA UM os dados detalhados e em bruto do SICO – que permitiria fácil e rapidamente identificar as causas de mortes que justificam o excesso de mortalidade nos últimos meses –, aguardando-se ainda a decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre esta matéria. Por sua vez, a Procuradoria-Geral da República mantém-se silenciosa sobre este assunto.

  • Amigo da ministra Marta Temido “mutila” informação e serve sucedâneo para esconder caos do SNS

    Amigo da ministra Marta Temido “mutila” informação e serve sucedâneo para esconder caos do SNS

    Um discreto e diligente burocrata, que foi saltitando de administração hospitalar em administração hospitalar, até ser colocado na presidência da Administração Central do Serviço de Saúde pela ministra Marta Temido (amiga de longa data), decidiu expurgar do acesso público, em Maio passado, uma detalhada base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar. Repôs agora, mas trucidando-a em três e “mutilando” a informação, tornando-a num sucedâneo inútil. O PÁGINA UM vai recorrer, mais uma vez, ao Tribunal Administrativo, e ao seu FUNDO JURÍDICO (com o apoio dos seus leitores), para obrigar o Ministério da Saúde a disponibilizar a base de dados original.


    Um carniceiro de cutelo em riste não teria feito melhor obra a despedaçar uma carcaça. Victor Herdeiro – presidente da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) e amigo de longa data da ministra da Saúde Marta Temido – mandou repor ontem a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, mas partida em três, com uma frequência trimestral e expurgando dados estatísticos que tornam intencionalmente a informação inútil.

    Recorde-se que a retirada da base de dados original ocorreu após o PÁGINA UM ter começado a elaborar um conjunto de artigos de investigação sobre o desempenho das unidades hospitalares do SNS nos seus diversos departamentos (e doenças) ao longo da pandemia. Até Maio passado, a base de dados então existente no Portal da Transparência do SNS continha informação estatística (e, portanto, anonimizada) com uma frequência mensal e diversos campos que possibilitavam múltiplas análises: mês e ano, tipo de doenças (por grupo, incluindo covid-19), grupo etário, sexo, unidade de saúde, número de internados, dias de internamento e óbitos.

    Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho.

    Esses dados – que então compreendiam um período mensal entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022 – permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Omicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Ora, os serviços de Victor Herdeiro “mutilaram” completamente a base de dados, com o fito de esconder análises mais elaboradas a partir da base de dados original – que requeria conhecimentos estatísticos mais avançados –, impedindo assim a descoberta de diferenças entre a “narrativa oficial” do Ministério da Saúde e a realidade.

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da original base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar. Com a base de dados sucedânea e “mutilada” passará a ser impossível análises similares.

    Com efeito, a ACSS – que alega, na comunicação formal de Victor Herdeiro ao PÁGINA UM, que estavam em causa informação protegida pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados (na verdade, nunca houve nomes de pessoas divulgados) – não apenas alargou a periodicidade (passando a agregar dados mensais em trimestre) como expurgou, com intenção, os dados absolutos, disponibilizando somente taxas de internamento e de mortalidade.

    A utilidade desta informação é agora nula.

    Além disso, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário. Algo que se conseguia antes, agora o presidente da ACSS decidiu expurgar para evidente satisfação do Ministério da Saúde, para quem a base de dados original poderia vir a fazer (mais) mossa.  

    Recorde-se que os laços entre Marta Temido e Victor Herdeiro são bastante estreitos e de longa data. Ambos tiraram o curso de Direito, tendo-se cruzado nos corredores da Universidade de Coimbra, embora o actual presidente da ACSS seja mais velho (nasceu em 1969, enquanto Temido nasceu no início de 1974). No entanto, passaram a ter contactos estreitos há cerca de duas décadas, porque ambos ingressaram na carreira de administradores hospitalares.

    Na Associação Nacional de Administradores Hospitalares (APAH) – uma poderosa agremiação por via das ligações políticas e dos financiamentos das farmacêuticas –, Victor Herdeiro e Marta Temido compartilharam mesmo três mandatos ao longo de nove anos: 2008-2011, 2011-2013 e 2013-2016.

    Nos dois primeiros mandatos, Temido foi tesoureira e Herdeiro vogal, enquanto naquele último triénio a actual ministra presidiu à APAH, mantendo-se Herdeiro como vogal. Já sem Marta Temido nos órgãos sociais desta associação, Victor Herdeiro foi vice-presidente no mandato de 2016-2019. Ambos são também “responsáveis” pelo convite a Alexandre Lourenço para presidir à APAH há seis anos, como o próprio confessou em Março último.

    Apesar desta tentativa de obstaculização ao acesso à informação e ao sinal evidente de obscurantismo da Administração Pública por conveniência política, o PÁGINA UM já solicitara expressamente ao presidente da ACSS o acesso integral à base de dados original – que continua a ser produzida mas não divulgada agora no Portal da Transparência do SNS. Como Victor Herdeiro não cedeu essa base de dados original, e já passou o prazo de 10 dias úteis para resposta, o PÁGINA UM apresentará, na próxima semana, um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo para obrigar a ACSS a disponibilizar esse conjunto de dados.

    close-up photography of person lifting hands

    Caso o Tribunal Administrativo de Lisboa conceda ao PÁGINA UM o direito a ter acesso à base de dados original, poderemos continuar a ter informação isenta e rigorosa. Se o Tribunal não conceder esse direito, o obscurantismo do Ministério da Saúde vence e não haverá mais informação sobre o desempenho do SNS de forma independente.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.