Etiqueta: Dossier P1 – Imprensa

  • Governo até já faz contratos com jornalistas (com carteira profissional activa)

    Governo até já faz contratos com jornalistas (com carteira profissional activa)

    Nuno Ramos de Almeida foi convidado para dirigir um jornal com o objectivo de divulgar projectos financiados por um programa governamental, estando a ser pago pela Presidência do Conselho de Ministros, por via de uma contratação por ajuste directo. O jornalista não suspendeu a carteira profissional e não vê qualquer incompatibilidade. Abre-se uma caixa de Pandora.


    São dezenas os profissionais de imprensa que, invariavelmente, em cada mandato governamental, saltitam das redacções para as assessorias governamentais ou de entidades públicas. E, em muitos casos, depois regressam ao posto original, ou seguem para outras paragens.

    Para aqueles que têm mais de 10 anos de jornalismo, a lei até permite que mantenham o seu estatuto, mesmo que não seja a profissão principal, mas há incompatibilidades que não são aceites, como seja as assessorias políticas e comerciais – enfim, as que ponham em causa a sua independência. E não apenas para o proteger de desconfianças, mas para proteger toda a classe.

    O Programa Bairros Saudáveis é um projecto governamental, que deveria ter terminado em 2021, mas continua activo.

    Por isso, invariavelmente, todos os jornalistas quando entram em funções nessas circunstâncias entregam o seu título (carteira) na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) enquanto desenvolvem as actividades incompatíveis. Suspendem, enfim, a sua actividade. E nunca se apresentam como jornalistas nem as entidades os contratam ou os apresentam como tal.

    Nunca, excepto agora, com uma inédita contratação do jornalista Nuno Ramos de Almeida.

    Jornalista com vasta experiência, tendo sido editor-executivo no jornal i e no semanário Sol entre 2011 e 2018, Ramos de Almeida foi agora contratado em finais de Setembro por ajuste directo para “prestar serviços de jornalista no âmbito do Programa Bairros Sociais”, através da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros.

    O valor do contrato é de 9.000 euros por um prazo de três meses, tendo como função a direcção do Jornal dos Bairros Saudáveis, a partir de um programa de iniciativa governamental presidida pela arquitecta Helena Roseta. Como o site, que não deverá ter registo na Entidade Reguladora para a Comunicação Social, por não ter carácter noticioso, tem ainda poucos conteúdos, será previsível que o contrato de Ramos de Almeida venha a ser prorrogado. A opção por um contrato trimestral com um valor médio mensal de 3.000 euros aparenta ter sido uma forma de isentar a redução a escrito do contrato, uma exigência a partir dos 10.000 euros.

    Nuno Ramos de Almeida

    Em todo o caso, a contratação de Nuno Ramos de Almeida era já um desejo do gabinete de Helena Roseta, depois deste jornalista ter regressado do Luxemburgo no início de 2021 após uma longa experiência como editor-chefe no jornal Contacto.

    Nuno Ramos de Almeida surge agora como correspondente daquele periódico luxemburguês de língua portuguesa, que ganhou em 2020 o prémio de melhor jornal local da Europa atribuído pelo European Newspaper Award. Além disso, colabora com o site informativo da associação AbrilAbril.

    O Programa Bairros Saudáveis é uma aposta pessoal de António Costa, envolvendo seis ministérios, para financiar projetos locais de iniciativa participativa, de modo a melhorar as condições sanitárias, inclusive das comunidades afetadas pela pandemia. Conta com uma dotação de 10 milhões de euros. Não existe qualquer dúvida sobre o carácter governamental do programa e do jornal: os sites respectivos têm o domínio gov.pt.

    O Jornal dos Bairros Saudáveis esteve pensado desde o início, mas por razões desconhecidas a contratação de Nuno Ramos de Almeida foi sendo adiada, até se concretizar em finais de Setembro passado.

    A participação de Nuno Ramos de Almeida neste programa já se iniciou no ano passado, mas como media trainer. Em Maio de 2021 recebeu 7.500 euros pela “prestação de serviços de formação jornalística e edição jornalística”, através de um contrato também não escrito, por ajuste directo. Neste caso, a entidade adjudicante foi a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.

    Contactado pelo PÁGINA UM, Nuno Ramos de Almeida, que ostenta a carteira profissional número 1551, ainda hoje activa na base de dados da CCPJ, diz que as suas “funções não são de assessoria de imprensa do Estado ou do Governo”. Afirmando ter ajudado “a imaginar um site” para divulgação dos projectos dos Bairros Saudáveis, bem como a dar “formação e sensibilização sobre formas de escrita jornalística”, Ramos de Almeida salienta que “neste momento, recebo e edito, com critérios jornalísticos possíveis” os textos enviados pelos beneficiários, sendo esse trabalho feito à distância.  

    António Costa, em Maio do ano passado, numa das iniciativas do Programa Bairros Saudáveis, no Barreiro.

    Considerando que não se encontra em incompatibilidade por integrar um projecto governamental – e sabendo-se que o jornal pretende divulgar de forma somente meritória as iniciativas financiadas pelo Estado –, Ramos de Almeida defende ainda que “aquilo que faço, a convite das pessoas que coordenam os Bairros Saudáveis e dirigem o jornal, não é nenhuma forma de assessoria, mas uma tentativa de ajudar projectos sociais de valor e com a participação das suas populações a noticiarem o que fazem de uma forma jornalística.”

    Instado a comentar se essas funções de comunicação – um dos pilares do marketing, cujas acções são proibidas aos jornalistas – não o deveriam levar a suspender a carteira profissional de jornalista enquanto estivesse nessas funções, Ramos de Almeida reitera que, na sua opinião não vislumbra qualquer incompatibilidade. “Não estou a fazer nem publicidade, nem assessoria de comunicação, nem sou titular de nenhum órgão de soberania”, diz, enfatizando que, na sua opinião, não trabalha para a Presidência do Conselho de Ministros – entidade que o contratou – nem para o Governo nem para nenhum ministério. Contudo, assegura agora que vai pedir à CCPJ “um parecer a esse respeito”.

  • Comissão da Carteira Profissional de Jornalista impede consulta de documentos e acaba como réu em processo de intimação

    Comissão da Carteira Profissional de Jornalista impede consulta de documentos e acaba como réu em processo de intimação

    É o 13º processo de intimação no Tribunal Administração de Lisboa intentado pelo PÁGINA UM desde Abril. Desta vez, será o próprio regulador do Estatuto do Jornalista que estará no “banco dos réus” por recusar o acesso a documentos administrativos. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, liderado pela jurista Licínia Girão, defende que nem sequer os jornalistas que tenham já escrito sobre um determinado assunto lhes dá legitimidade para consultar documentos administrativos relacionados. Diz também que tudo são dados nominativos e nenhuma informação pode ser fornecida pelos membros da CCPJ (todos jornalistas) porque lhes é exigido sigilo.


    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), presidida por Licínia Girão, recusa permitir a consultas dos processos supostamente abertos em Dezembro passado (e já alegadamente concluídos) aos responsáveis editoriais do Público e da Global Media. Esta recusa será agora dirimida pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, sobretudo porque os argumentos daquele organismo formado por oito jornalistas constituem um atentado constitucional ao direito à informação e à liberdade de imprensa.

    No caso do processo do Público, em causa está a assinatura de um contrato com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), no valor de 44.135 euros, assinado em Outubro de 2021, que tinha por objecto a prestação de serviços de “criatividade e marketing no âmbito das Comemorações dos 20 anos da classificação do Douro Património”, de publicidade e de “parceria editorial”, que resultou numa revista contendo artigos assinados por jornalistas em tons encomiásticos e um editorial do director Manuel Carvalho, consubstanciando um contrato comercial. Tanto assim que logo na página 5 constava um texto do presidente da entidade adjudicante, António Cunha.

    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista funciona no Palácio Foz, em Lisboa.

    Em relação à Global Media, o PÁGINA UM também revelara em Dezembro passado que o director da TSF, Domingos de Andrade, assinara contratos comerciais como administrador da Global Media, função incompatível segundo o Estatuto do Jornalista. Em Julho passado, notícias apontavam que a CCPJ não renovara a carteira profissional deste jornalista, mas, na verdade, Domingos de Andrade continua a constar na base de dados desta entidade como tendo o título válido.

    Além destas situações, o PÁGINA UM também quis saber quais os procedimentos que a CCPJ tinha tomado no primeiro semestre deste ano contra os conhecidos jornalista José Rodrigues dos Santos e José Alberto Carvalho por terem estado a trabalhar sem carteira profissional, uma situação que poderia também implicar sanções à RTP e TVI, de acordo com a Lei de Imprensa.

    No entanto, apesar do PÁGINA UM até já ter abordado – na verdade, denunciado – essas evidentes irregularidades, a CCPJ diz que analisados todos os pedidos, “notoriamente pela falta de fundamento do interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”, e também “por não ter sido alcançada justificação para tal”, não deve revelar os processos. A CCPJ diz que nos processos “poderá, eventualmente, constar (…) ficheiros pessoais de jornalistas”, considerando que “todos os documentos, comunicações e informações constituem documentos nominativos, sujeitos à proteção de dados pessoais e definição de perfis destes profissionais.”

    Licínia Girão, actual presidente da CCPJ, ostentando em Junho do ano passado o diploma da Menção Honrosa na categoria Ensaio/ Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.

    A temerária tese desta entidade formada por jornalistas – e que regula a prática jornalística – acaba por ser uma defesa do obscurantismo sobre o qual o PÁGINA UM tem vindo a lutar com a apresentação de processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa. Em suma, a CCPJ defende que até mesmo jornalistas que já tenham abordado e denunciado casos envolvendo a Administração Pública não podem aceder a informação por supostamente não terem “interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”. E defende ainda que todos os dados de um processo, incluindo o nome dos visados, são dados nominativos insusceptíveis até de serem expurgados.

    Mas este não é o único motivo para o PÁGINA UM fazer seguir para uma intimação junto do Tribunal Administrativo – que deu entrada na passada quinta-feira.

    Pelos mesmo motivos, a CCPJ também recusou revelar os pareceres que terão sido emitidos desde a criação desta entidade em 1995 relativos à conduta de jornalistas. A intenção seria conhecer se alguma vez mais tinha o Secretariado da CCPJ, neste e em mandatos anteriores, lavrado um parecer similar ao que fez contra o director do PÁGINA UM em Agosto passado.

    pile of newspapers

    Recorde-se que a CCPJ, no decurso de uma queixa do presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPS), acusou num parecer o director do PÁGINA UM de práticas “sensacionalistas” e de não separar factos da opinião. A CCPJ, além de nem sequer ter informado o director do PÁGINA UM da queixa – nem sequer lhe dando possibilidade de defesa –, ignorou por completo que, no decurso das notícias de investigação jornalística do PÁGINA UM, o presidente da SPS seria alvo de um processo de contra-ordenação pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) e afastado pelo Infarmed de consultor.

    Como existem fortes suspeitas de este tipo de parecer ad hominem – sem ser levantado um processo formal que permitisse uma defesa – ser único, com o objectivo de difamar o PÁGINA UM, foi assim requerido ao Tribunal Administrativo de Lisboa que obrigue a CCPJ a revelar todos os pareceres ou a admitir que nunca antes se elaborara outro.

    À margem destes casos, o PÁGINA UM também não conseguiu saber quantos processos disciplinares ou de outra natureza foram já instaurados no mandato de Licínia Girão à frente da CCPJ, nem saber se algumas das pessoas que com ela colaboram no jornal Sinal Aberto sem título profissional tinham sido alvo de algum processo de averiguação. O Secretariado da CCPJ alega que os seus “membros e colaboradores (…) estão sujeitos, por imperativo legal, a dever de sigilo relativamente a informações, esclarecimentos e procedimentos” sobre a sua actividade.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    A vingar esta tese – que tem sido, aliás, defendida por outras entidades públicas “amantes” do obscurantismo no acesso à informação – implicaria que até qualquer membro do Governo ou alto dirigente da Administração Pública pudesse alegar “dever de sigilo” para nada informar nem revelar.

    Na verdade, o dever de sigilo aplica-se aos funcionários, e não às instituições. Ou seja, pretende-se que os funcionários não utilizem para seu benefício (ou de terceiros) informações que obtiveram no exercício das suas funções. Bem diferente é a necessária abertura das instituições à disponibilização de informação (e documentos administrativos), que se encontra consagrada pelo código do procedimento administrativo e pela Lei do Acessos aos Documentos Administrativos.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.131 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começamos a divulgar todas as peças processuais dos processos. em curso no Tribunal Administrativo.

  • Ucrânia: CNN Portugal usou mesmo imagens falsas

    Ucrânia: CNN Portugal usou mesmo imagens falsas

    Já se sabia, mas fica assim preto no branco: a CNN Portugal interrompeu, na madrugada do dia 24 de Fevereiro, o enviado especial a Kiev, Filipe Caetano – seu editor de negócios estrangeiros e então membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas –, para transmitir imagens falsas. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social provou tudo e quis inicialmente obrigar o canal da Media Capital a pedir desculpa. Mas acabou por ser mais benevolente: a CNN Portugal só levou uma recomendação. Pede desculpa se quiser. Até agora, não quis.


    Confirma-se. Agora é mesmo oficial. A CNN Portugal utilizou, na madrugada do passado dia 24 de Fevereiro, imagens falsas, retiradas de um jogo de computador, com “mísseis a rasgar o céu” à noite, fazendo crer aos telespectadores que se tratavam dos primeiros momentos dos ataques da Rússia à Ucrânia.

    O pivot da emissão, o jornalista Cláudio Carvalho, na emissão da madrugada (4:10 horas) corroborara então a “veracidade” (agora falsa) das ditas: “E são imagens, de facto, impressionantes, do início desta invasão, ou deste ataque – utilizando uma expressão que está a ser usada pela Casa Branca –, este ataque por parte das forças russas ao território ucraniano. Vincando ser “possível ver e ouvir” os mísseis. Afinal, eram simplesmente imagens manipuladas do jogo War Thunder,

    Durante cerca de um minuto, a CNN Portugal revelou imagens “impressionantes”, nas palavras do jornalista Cláudio Carvalho, dos primeiros ataques da Rússia à Ucrânia. Afinal, eram de um jogo de computador.

    Esta é a conclusão da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), através de uma deliberação aprovada em 7 de Setembro, mas só ontem revelada no site daquela entidade. A ERC fala taxativamente de se estar perante “uma violação grosseira [por parte da CNN Portugal] do dever de assegurar o rigor informativo”. Contudo, após uma audiência prévia concedida ao canal, decidiu não obrigar a CNN Portugal a confessar que fez desinformação junto dos seus leitores.

    Mas o canal televisivo leva apenas um “puxão de orelhas” da ERC, mas leve: uma recomendação para “assumir o seu erro cometido perante o seu público”. Ou seja, não é obrigado a fazer nada.

    Em todo o caso, a CNN Portugal não se livra da censura por parte do regulador. A deliberação da ERC é, nesse aspecto, taxativa: o canal veiculou conteúdos passíveis de serem classificadas de fake news, algo que, aliás, já se sabia através de uma análise no próprio dia de início das hostilidades, através do fact checker Full Fact.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Embora faça apenas uma recomendação para que a CNN Portugal assuma “o seu erro perante o seu público”, a ERC lança na sua deliberação vários recados muito comprometedores para a chamada imprensa mainstream: “é essencial que, no ambiente atual em que prolifera a desinformação, os media noticiosos ditos tradicionais garantam uma informação rigorosa e pugnem por alcançar a máxima credibilidade junto do público”. A deliberação salienta ainda que a imprensa tradicional deve “posicionar-se como portos seguros onde se encontra informação de qualidade.”

    Curiosamente, o então enviado especial da CNN Portugal à Ucrânia – e que foi mesmo interrompido pelo pivot para serem emitidas as imagens falsas – era o jornalista Filipe Caetano, editor de negócios estrangeiros do canal. Caetano era, à data, membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Esta entidade não se debruçou sobre esta matéria.

    A leitura desta deliberação da ERC permite também conhecer as diversas tentativas da CNN Portugal em desvalorizar a colocação de imagens completamente falsas em antena.

    No processo, o regulador revela que enviou ao canal um projecto de decisão em finais de Maio passado, tendo o canal televisivo da Media Capital reconhecido que o “vídeo em questão não [era] real”, mas considerando que o “vídeo não é em si a notícia, sendo antes um elemento visual de corroboração das demais fontes disponíveis”. E assumia que, enfim, a “exibição de vídeo não distorceu o retrato da realidade factual, uma vez que efectivamente a Ucrânia tinha sido invadida”.

    Editor dos negócios estrangeiros da CNN Portugal, Filipe Caetano, então membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, foi interrompido pelo pivot, para serem emitidas “imagens novas que nos acabam de chegar”. Eram falsas, afinal.

    Mais curiosa ainda se mostra a argumentação do canal televisivo de se ter usado uma “fonte incorrecta para corroborar informação correcta”. A CNN Portugal diz mesmo que as imagens de computador exibidas têm “uma semelhança evidente com imagens reais” sobre “o funcionamento do sistema de defesa antiaéreo ucraniano”.

    E perante a sugestão do projecto de decisão da ERC de ser obrigatório a assumpção pública da emissão de imagens falsas, a CNN Portugal manifestou que isso seria “excessivamente contundente” e que até poderia “inclusivamente ser contraproducente para os fins que lhe parecem estar subjacentes – o reforço da confiança nos media tradicionais”. Ou seja, a CNN Portugal achou que seria melhor não assumir um erro para assim escapar ao juízo dos telespectadores.

    No âmbito da audiência prévia, em 27 de Julho passado também foi ouvido o director executivo da CNN Portugal, Frederico Roque de Pinho, que acabou por revelar a fonte das imagens falsas: a NEXTA, por ele classificada como “uma televisão digital” e “uma fonte independente com sede na Polónia”. Contudo, na verdade, a NEXTA é um canal de um exilado bielorusso que usa apenas as redes sociais para difundir informações, como o YouTube, Telegram, Instagram e VKontakte (o “Facebook russo”).

    Um jogo de computador serviu para a CNN Portugal “mostrar” imagens do início da invasão da Ucrânia.

    Nesse aspecto, a própria ERC aceitou a tese de que “não foi a CNN Portugal que retirou o vídeo das redes sociais ou de plataformas de partilhas de vídeos”; foi sim a NEXTA que o facultou. Aqui o regulador aparenta não ter aprofundado o método de trabalho daquele canal bielorusso.

    Com efeito, a NEXTA somente divulga informação via redes sociais, pelo que, a existir cedência, esta é feita de forma passiva, tendo os utilizadores que descarregar os vídeos. O PÁGINA UM conferiu os quatro vídeos deste canal com data de 24 de Fevereiro e, apesar de um deles possuir imagens nocturnas supostamente de mísseis, nenhum integra as imagens transmitidas pela CNN Portugal.

    Por outro lado, não existem dúvidas de que o vídeo transmitido pela CNN Portugal na madrugada de 24 de Fevereiro é exactamente igual, incluindo o som, àquele colocado na plataforma do Youtube em 15 de Dezembro do ano passado, portanto, antes da invasão da Ucrânia.  

    O canal NEXTA, que a CNN Portugal diz agora ser a fonte das “imagens falsas”, tem quatro vídeos do dia 24 de Fevereiro. Um desses vídeos integra imagens nocturnas com supostos mísseis, mas não as imagens do jogo de computador.

    Aliás, sobre a não referência à NEXTA aquando da emissão das imagens, Roque de Pinho deu, em sede de audiência prévia, uma explicação muito sui generis: “Nós consideramos que ali, de facto, desinformação não existe. Existe um conteúdo vídeo de facto errado. Na CNN há uma regra que denota maior credibilidade, até em relação à concorrência, que nós regra geral temos também no ecrã a fonte, ou seja, a origem das imagens, e neste caso, salvo erro, não estava lá, e é a NEXTA. Portanto há aqui esse lapso.”

    Sobre a possibilidade de um mea culpa, Roque de Pinho remeteu apenas a possibilidade de abordar a questão do programa “Fontes bem informadas”, aos sábados naquele canal, mas nem isso ainda foi feito. E nem vai precisar, tendo em conta que a ERC decidiu alterar o projecto de deliberação inicial – uma decisão individualizada vinculativa –, porquanto a CNN Portugal reconheceu, durante a instrução do procedimento administrativo, o erro e mostrou, segundo a ERC, “abertura, lisura e transparência”.

  • Na “guerra de palavras”, o Público mudou de opinião… e a ERC apoia

    Na “guerra de palavras”, o Público mudou de opinião… e a ERC apoia

    Em Junho, a organização da Marcha do Orgulho LGBTI+ (MOL) classificou o embaixador de Israel como persona non grata. Dor Shapira respondeu à letra no Público, mas não houve réplica, porque a direcção do diário não apreciou determinadas expressões. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) veio agora dar razão ao director do Público, e acha mesmo que há mais expressões contra Israel que deveriam ser “proibidas”. Os tempos são agora bem diferentes do que eram, por exemplo, há oito anos… nas páginas também do Público. Confira.


    Em 2014 escrevia-se longo e grosso nas páginas do jornal Público, no auge de uma ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza. No dia 16 de Julho, a embaixadora Tzipora Rimon não poupava nas palavras em artigo de opinião intitulado “Em busca da estabilidade perdida dos cidadãos de Israel”: “Em Israel o valor da vida fica no topo da escala de valores e o Estado dedica todos os seus meios a melhorar a forma de a preservar. Contrária a isto é a actuação do Hamas, internacionalmente reconhecida como organização terrorista, cuja motivação é destruir vidas de israelitas.”

    E continuava sem rodeios nem receios: “O Hamas dirige os seus mísseis para áreas residenciais populosas para, indiscriminadamente, atingir o máximo de civis israelitas – crianças, mulheres, idosos. O Hamas declara abertamente ser seu objectivo atingir centros populacionais, como Telavive, Jerusalém, Haifa e muitas outras cidades, e não alvos militares.”

    man in black and white long sleeve shirt standing near people during daytime

    Nem uma linha fora do contexto. Uma piscadela para passar o parágrafo seguinte, e a embaixadora, que esteve em Portugal entre 2013 e 2017, mantinha a linha sem contemplações: “Esta é uma clara violação do direito internacional e é um crime de guerra. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, declarou: Esta é a diferença entre nós e o Hamas. Usamos um sistema defensivo antimíssil para proteger os cidadãos de Israel e o Hamas está a usar os residentes de Gaza para defender os seus arsenais de mísseis.”

    O artigo de opinião ainda contava mais quatro parágrafos, mas o importante aqui é acrescentar que teve resposta a preceito, três dias depois. Em nome do Comité de Solidariedade com a Palestina, um grupo de cinco pessoas pôde fazer duas coisas simples: contestar a opinião da embaixadora de Israel no próprio jornal que a publicou – então dirigida por Bárbara Reis –, e prescindiu, sem problemas, de ser meigo na escolha das palavras.

    Logo a abrir, o título: “Um artigo racista da embaixadora israelita”.

    Na polémica em 2014 entre o embaixador de Israel e apoiantes da causa palestiniana não se mediram palavras.

    Depois, em apenas quatro parágrafos, os mimos foram constantes: “(…)  as únicas ‘vidas humanas’ que importam ao regime racista israelita são as dos seus cidadãos judeus”; “incrível cinismo” da embaixadora; “campanha israelita de limpeza étnica” e “regime israelita do apartheid”. E ainda, em relação à postura dos israelitas em relação aos palestinianos na Faixa de Gaza, explícitas comparações com o “extermínio dos judeus na Alemanha nazi” e acusações de “lógica genocida” similar ao nazismo.

    Tudo valeu como argumentos – e, independentemente das posições extremadas, fez-se opinião. Chocante? Sim. Mas expôs-se opinião, dura e crua, de ambos os lados. A liberdade de expressão é assim.

    Mas isso foi há oito anos…

    Hoje, aquele texto de André Trassa, Elsa Sertório, João Jordão, Sahd Wadi e Teresa Cabral – os autores do artigo em 2014 em nome do Comité de Solidariedade com a Palestina – jamais seria publicado no Público.

    E não por o actual director do Público, Manuel Carvalho, fosse eventualmente considerar ilegítimo que o Comité de Solidariedade com a Palestina retorquisse (por não ter mandato de representação do Hamas), mas sim porque aquele texto de há oito anos seria agora acusado de “conter expressões desproporcionadamente desprimorosas ou que envolvem responsabilidade criminal, nos termos do disposto no número 4, do artigo 25º da Lei de Imprensa”.

    Marcha de Orgulho LGBTI+ teve este ano um “condimento especial”, uma polémica entre a organização e o embaixador de Israel.

    E porque se diz isto? Por uma simples razão: a citação do parágrafo anterior consta de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, apenas esta semana colocada no seu site (embora tomada em 31 de Agosto passado). A dita deliberação dá razão ao Público por recusar um direito de resposta à Comissão Organizadora da 23ª Marcha do Orgulho LGBTI+ (MOL) sobre um artigo de opinião do embaixador israelita Dor Shapira.

    Recue-se para contextualizar. No cerne da polémica esteve a recusa da organização daquela marcha, que se realizou em Lisboa no passado dia 18 de Junho, em acolher a participação do embaixador israelita, não por qualquer tipo de discriminação sexual naquele país, mas por razões políticas relacionadas com a Palestina.

    Dor Shapira não gostou e aproveitou a abertura das páginas do Público para opinar, no dia 21 de Junho, sobre a MOL, dizendo não saber se a decisão de o colocar como persona non grata se devia a “ignorância, estupidez ou hipocrisia”. E zurzia mais, acusando a organização de estar “capturada por uma extrema-esquerda com tiques assustadoramente autocratas”, acabando a defender o seu país, atacando a Palestina: “Em muitos dos países vizinhos de Israel – e especialmente na Faixa de Gaza – não há Comunidade LGBTI+ por uma razão muito simples: se alguém o assumir será sumariamente punido. Na melhor das hipóteses, com a prisão e na pior com a execução. Israel acolhe estas pessoas.”

    Ao contrário da sua antecessora em 2014, o embaixador de Israel não teve de receber resposta ao seu artigo de Junho passado.

    Uma polémica é sempre boa para dirimir com palavras, duras que sejam; antes isso do que usarem-se somente armas, pensar-se-á. Mas o director do Público não deixou. E a novela passou para outro patamar.

    Primeiro, no dia 23 de Junho, a organização do MOL quis publicar um artigo de resposta, alegando até a Lei da Imprensa, mas Manuel Carvalho, o director do Público, não deixou. Havia uma frase terrível no texto dos organizadores do MOL: “Um estado que se vangloria da sua democracia e respeito pelos DH [Direitos Humanos] enquanto desenvolve um dos mais longos genocídios da história da humanidade.”

    Segundo consta da deliberação da ERC, andou a direcção do Público a contar palavras – e achou “exagerada [a] dimensão do texto [da organização da MOL], por comparação com a do artigo respondendo“ [do embaixador]. E alegou também existirem “referências que não tinham relação directa e útil com o teor do artigo de Dor Shapira”, além de constarem “expressões desproporcionadamente desprimorosas ou que envolviam responsabilidade criminal”.

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social só divulgou esta semana a polemica deliberação votada em finais de Agosto.

    Dois dias mais tarde, após a recusa inicial, a organização da MOL reduziu o texto, mas continuou a encravar no director do Público, que pretendeu ver retirada a expressão “campanhas de genocídio”, porque, segundo conta a deliberação da ERC, era “contrária ao Estatuto Editorial do Público e desproporcionadamente desprimorosa ou implicando responsabilidade criminal”. Com a expressão “campanhas de genocídio”, Manuel Carvalho não publicava; sem a dita expressão, publicava…

    E, então, foi o caso parar à ERC. E o resultado ainda foi mais restritivo quanto ao uso de certas expressões. Na deliberação, o regulador (ainda) presidido pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas defende que a “acusação a Israel de levar a cabo campanhas genocidas, e sendo o genocídio um dos crimes mais graves que pode ser imputado a um Estado” pode “mesmo ser fonte de responsabilização para o jornal caso o texto de resposta fosse publicado”, concluindo assim pela legitimidade da recusa do director do Público.

    Mas a ERC acabou por ainda ir mais longe, considerando que seria suficiente, para a recusa legítima de publicação de um texto de resposta ao abrigo da Lei de Imprensa, que se acusasse Israel de práticas de “políticas segregacionistas e de apartheid”, de “colonização”, de “crimes de guerra”, de “violações de direitos humanos” e de desrespeito por “inúmeras resoluções” das Nações Unidas sobre o conflito na Palestina.


    N.D. Há momentos em que o jornalista não consegue decidir se deve informar ou se deve opinar, manifestando a sua repulsa. Este é um deles. Todo este episódio – e sobretudo o contraste de hoje com um passado tão recente na aceitação do debate duro – mostra a lamentável e miserável mudança social nos últimos anos.

    Se este episódio nos revela algo, não é tanto as raízes e ramificações do conflito israelo-palestiniano – que esse vai durar; é sim a perda (recente) da nossa capacidade como sociedade em saber discutir aberta e tenazmente um qualquer assunto. O politicamente correcto anda a ser imposto; prevalece o respeitinho; censura-se a palavra mais dura, mesmo se discutível a sua essência e justeza. A Censura is the new black.

    Confesso que me encontro (lamentavelmente) impreparado para poder concordar com todas as acusações contra Israel de práticas de “políticas segregacionistas e de apartheid”, de “colonização”, de “crimes de guerra”, de “violações de direitos humanos” e de desrespeito por “inúmeras resoluções” das Nações Unidas sobre o conflito na Palestina.

    white and black printed paper

    Mas sei, e isso sem pestanejar, ser lamentável que haja quatro pessoas que lamentavelmente serpenteiam pelos corredores de uma entidade que foi criada pela Constituição para defender a liberdade de expressão achem que, no espaço público, de debate, não se possa usar aquelas expressões considerando-as “desproporcionadamente desprimorosas”. E que digam que isso não pode ser porque, enfim, o embaixador de Israel até mostrou um “tom contido e o lamento nele expresso pela recusa em participar” na MOL.

    Sobre o Público de agora; não faço já mais comentários por agora: confrontar a postura de 2014 com a de 2022 mostra-se suficiente e prescinde de mais opinião.

    Há qualquer coisa aqui, por aí, de bafiento. E um futuro sombrio se coloca nos nossos horizontes, com gente assim.

  • Global Media recebe 600 mil euros em quatro anos para mediatizar evento da câmara de Cascais… com direito a exclusivo do ministro do Ambiente

    Global Media recebe 600 mil euros em quatro anos para mediatizar evento da câmara de Cascais… com direito a exclusivo do ministro do Ambiente

    A polémica estalou quando se soube que o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, recusou falar com jornalistas alegando que tinha um “exclusivo” com a Global Media, o media partner do Mobi Summit, que se realizou na semana passada. Mas por detrás destas parcerias mediáticas há todo um mundo de promiscuidades, com a mediatização a ser paga a preço de ouro, com garantia de ser favorável, e escrita por jornalistas que saltitam impunemente entre a imprensa e a comunicação empresarial. O PÁGINA UM escalpeliza os meandros do Mobi Summit, onde nem sequer falta um “curador editorial” para filtrar a “informação” que deve sair como “notícias”.


    A Global Media já recebeu 600 mil euros desde 2019 de uma empresa municipal de Cascais para promover o Mobi Summit, um evento anual sobre mobilidade. Além da choruda verba, os jornais daquele grupo empresarial – Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo – conseguiram exclusivos com os participantes, incluindo até o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro.

    A polémica estalou na semana passada, quando jornalistas de outros órgãos de comunicação social não conseguiram chegar à fala com Duarte Cordeiro quando este participou naquele evento na quarta-feira passada. O ministro alegou que “apenas fazia declarações aos media partners” do Mobi Summit. O ministro, no início do seu discurso, fez uma saudação específica ao chairman da Global Media, Marco Galinha, logo após ter cumprimentado os presidentes das Câmaras Municipais de Cascais e Lisboa, Carlos Carreiras e Carlos Moedas, formalmente os organizadores deste evento.

    Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, alegou ter exclusivo com os órgãos de comunicação social da Global Media para recusar prestar declarações aos outros jornalistas após a sua apresentação na Mobi Summit.

    A postura do governante levou esta sexta-feira a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas a emitir um comunicado sobre “parcerias mediáticas” onde salienta que “a confirmarem-se as queixas e também as notícias, entretanto veiculadas por alguns órgãos de informação, dando conta do ocorrido, este caso configura um grave atentado à liberdade de imprensa e ao dever de equidade dos responsáveis governamentais para com todos órgãos de informação jornalísticos.”

    Apesar desta posição crítica da CCPJ – que também relembra no seu comunicado que “o jornalismo patrocinado, ou seja, trabalho que é executado em troca de um patrocínio comercial ou de qualquer outra forma de pagamento, é expressamente proibido pelo Estatuto do Jornalista” – esta entidade tem sido bastante branda em termos práticos.

    A CCPJ não tem, aliás, agido sobre diversas revelações do PÁGINA UM sobre as promiscuidade nos contratos entre grupos de media e entidades públicas ou privadas (incluindo farmacêuticas), onde jornalistas surgem a executar acções de marketing. E mesmo “compra” de entrevistas ou a produção de revistas corporativas por jornalistas. Há mesmo jornalistas que se assumem como partners de empresas de comunicação empresarial, escrevendo notícias e conteúdos pagos em simultâneo para os mesmos jornais, não ficando clara a distinção para os leitores.

    A Mad Brain, gerida pelos jornalistas Fátima Ferrão (CP 6197) e Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706), é um dos casos mais emblemáticos, sem intervenção da CCPJ. Estes jornalistas escrevem, de forma despudorada, tanto notícias como conteúdos comerciais, sobretudo para publicações da Global Media e Impresa (jornal Expresso), produzindo em simultâneo a revista Energiser, da Galp.

    Marco Galinha, chairman da Global Media, durante a sua apresentação no Mobi Summit.

    O PÁGINA UM tentou, aliás, saber em concreto, sobre a participação do director do Público, Manuel Carvalho, se a CCPJ tinha já concluído um processo de averiguações que garantira ter iniciado em Dezembro do ano passado, mas a entidade agora liderada pela jurista Licínia Girão tem recusado dar quaisquer informações.

    Na verdade, como o PÁGINA UM tem vindo a revelar, mais do que a obtenção de exclusivos com os participantes de eventos com “parceria mediáticas”, é a promiscuidade entre jornalismo e marketing que mais choca. Ou seja, além de “prostituir” o jornalismo – que não pode, por lei, fazer acções de comunicação empresarial ou de marketing –, a media partner pode passar a constituir, se envolver comparticipação económica relevante, a forma mais eficaz de uma entidade comprar cobertura mediática especializada, dócil e orientada. Além disso, criando uma dependência económica, a independência de um órgão de comunicação social arrisca a estar em causa para não se perder um futuro patrocinador.

    Cobertura mediática do evento, com garantia de entrevistas aos participantes, foi um exclusivo dos órgãos de comunicação social da Global Media.

     

    O caso da promoção e cobertura mediática da Mobi Summit – que vai já no quarto ano de organização pela Global Media, com uma contrapartida de 150.000 euros por ano – é um dos casos mais paradigmáticos da promiscuidade entre grupos empresariais e imprensa mainstream, envolvendo jornalistas com carteira profissional, que ora escrevem para as plataformas de comunicação do evento quer para o próprio jornal que integra os media partners.

    Jornalistas a exercerem esta dupla função encontram-se vários na última edição do Mobi Summit. O PÁGINA UM detectou quatro jornalistas em funções à margem da lei. Rute Coelho (CP 1893) é o caso mais evidente, pela quantidade de textos similares que foram publicados tanto no Diário de Notícias como no site do Portugal Mobi Summit.

    Esta jornalista, com mais de 20 anos de experiência, é também, aliás, um dos casos evidentes de “mercantilização” do jornalismo, impedido por lei, uma vez que oferece serviços de relações públicas e consultoria em marketing no LinkedIn.

    Embora Rute Coelho assuma a autoria de diversos artigos de cobertura do Mobi Summit onde as fronteiras entre jornalismo e marketing são muito fluídas, a esmagadora maioria dos textos no site do evento e nos jornais da Global Media não estão assinados, embora seja facilmente identificável um estilo jornalístico. Se foram escritos por jornalistas sob anonimato – como muitas vezes sucede – ou por antigos jornalistas ou por pessoas sem ligação à imprensa, ignora-se.

    Em todo o caso, ao longo dos dois dias deste evento – pomposamente denominado Grande Cimeira do Portugal Mobi Summit –, a cobertura mediática foi também feita, assumidamente, pelas jornalistas Elisabete Silva (CP 4391), Ana Meireles (CP 2808) e Carla Aguiar (CP 739), que foi a autora da peça sobre a intervenção do ministro Duarte Cordeiro. Esta jornalista do Jornal de Notícias fez também pelo menos uma entrevista a um participante do Mobi Summit antes da realização do evento.

    A profunda envolvência directa da Global Media neste evento, usando jornalistas para funções de comunicação de marketing, ficou também no destaque dado a Marco Galinha, chairman deste grupo de comunicação social. Foi ele, aliás, quem deu “o pontapé de saída da edição deste ano do Portugal Mobi Summit”, conforme consta do próprio site produzido por “jornalistas da casa”.

    Produção de contéudos sem fronteiras entre jornalismo e comunicação empresarial, incluindo a oferta de serviços de relações públicas por jornalistas, é cada vez mais frequente, sem que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tome medidas efectivas. Já nem sequer as ofertas são feitas de forma discreta.

    O resumo da participação de Marco Galinha acabou publicado no Diário de Notícias no passado dia 28 de Setembro, sem assinatura do autor, mas no site do evento o mesmo texto aparece como sendo da autoria da jornalista Ana Meireles.

    A participação activa de responsáveis editoriais das publicações do grupo liderado por Marco Galinha também se destacou no Mobi Summit.

    Quase todos os debates foram moderados por directores das publicações da Global Media, demonstrando a forte ingerência de jornalista num evento comunicacional. Com efeito, Rosália Amorim (directora do Diário de Notícias, CP 1788), Joana Petiz (directora-adjunta do Diário de Notícias e directora do Dinheiro Vivo, CP 4449) e Pedro Cruz (director executivo da TSF, CP 1611) moderaram três debates, cada um. Pedro Ivo Carvalho, director-adjunto do Jornal de Notícias, CP 3104) moderou dois e Jorge Flores (editor executivo do Motor 24, sem registo de carteira profissional) um.

    Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias, é habitué na moderação de eventos comerciais onde a Global Media é media partner. No Mobi Summit moderou três debates em dois dias.

    Além destas participações, a Global Media montou uma forte cobertura comunicacional, incluindo a emissão integral das intervenções de todos os participantes através da TSF.

    Na verdade, a cobertura do evento acabou por ser coordenada não pelas editorias dos órgãos de comunicação social da Global Media, mas sim por Paulo Tavares, denominado “curador editorial” do Portugal Mobi Summit 2022. Embora se assuma ainda como jornalista na rede LinkedIn, Paulo Tavares é, desde Fevereiro do ano passado, consultor de comunicação e marketing. No jornalismo teve uma longa passagem, a partir de 1993, na TSF, tendo depois transitado para o Diário de Notícias, onde chegou a ser director-adjunto entre Setembro de 2016 e Agosto de 2018.

    Em termos concretos, como nem sequer existe a figura de “curador editorial” na Lei da Imprensa, e não sendo Paulo Tavares agora jornalista, aquele cargo revela sobretudo que as notícias “vazadas” para os órgãos de comunicação social da Global Media durante o Mobi Summit foram decididas e “filtradas” previamente sem um independente controlo editorial.

    Paulo Tavares, antigo jornalista, foi nomeado “curador editorial” do Mobi Summit. Esta função não existe na Lei da Imprensa nem os jornalistas podem estar sob a alçada de pessoas sem carteira profissional de jornalista ou equiparado.

    Pelos “serviços de mediatização” da edição deste ano do Mobi Summit, a Global Media recebeu 150.000 euros, em contrato assinado em Junho passado com a Cascais Próxima, uma empresa municipal daquela vila, constando no Portal Base, mas sem o caderno de encargos.

    Este contrato veio no seguimento de outro, assinado em Maio de 2019, no valor de 450.000 euros, mas para a organização e promoção mediática do Mobi Summit para três anos. Nenhum destes contratos foi alvo de concurso público. A autarquia de Cascais decidiu sempre por ajuste directo. O evento contou ainda com os patrocínios da EDP, Brisa, Fidelidade e Lidl.

  • Instituto Superior Técnico diz agora que afinal fez “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    Instituto Superior Técnico diz agora que afinal fez “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    Divulgado há menos de dois meses, um alarmista relatório do Instituto Superior Técnico, que “responsabilizava” as festividades e festivais de música de Junho de terem causado centenas de mortes, afinal parece que não foi bem um relatório. No Tribunal Administrativo de Lisboa, uma das mais credenciadas instituições universitárias públicas do país, que tem um protocolo com a Ordem dos Médicos, diz agora que só fez um “esboço embrionário”, e que não há relatório algum. A Lusa, porém, garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório existe, naturalmente”. Moral da história: cerca de uma dezena de órgãos de comunicação social divulgaram, como verídico, um estudo científico alarmista, afinal nunca validado, e que, aparentemente, nem sequer existiu, apesar de a Lusa ter feito citações na sua notícia original. Eis um caso paradigmático do estado da Ciência e do rigor informativo do Portugal de hoje.


    Foi apresentado taxativamente como um relatório do Instituto Superior Técnico (IST). Em 28 de Julho passado, a agência noticiosa Lusa – detida maioritariamente pelo Estado – divulgou um take, replicado por cerca de uma dezena de órgãos de comunicação social, revelando que o IST estimava que a realização em Junho das festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio tinha sido a causa da ocorrência de cerca de 340 mil casos de covid-19.

    E mais: citando frases do relatório – assim apresentado sempre nas notícias divulgadas pela imprensa –, salientava-se que com medidas sem impacto económico, designadamente o uso de máscara e a testagem gratuita, ter-se-ia registado igualmente uma sexta vaga, devido à variante Ómicron, mas “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida”.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer agora o Tribunal que aquilo que fez foi apenas “um esboço embrionário”.

    O estudo na base do relatório – que a direcção editorial da agência noticiosa garantiu em 2 de Agosto passado ao PÁGINA UM que “existe, naturalmente, caso contrário a Lusa não teria feito notícia” – ainda terá permitido que os peritos apontassem “a morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados às festas populares de Junho.”

    Mas, afinal, a história estava mal contada. Muito mal contada. Por todos os envolvidos.

    Em resposta ao Tribunal Administrativo de Lisboa – no seguimento de uma intimação feita pelo PÁGINA UM no início deste mês por recusa de acesso aos diversos relatórios e dados em bruto produzidos por esta instituição universitária pública desde 2021 –, o gabinete jurídico do IST afiança que “o grupo de investigadores (…) [encabeçado pelo próprio presidente, o catedrático Rogério Colaço] apenas realizou um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Repita-se: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Destaque-se de novo: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Com essa manobra, o IST está a procurar convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa a não o obrigar a disponibilizar qualquer relatório nem dados em bruto, uma vez que a lei determina que “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” não são classificados como documentos administrativos.

    Trecho das alegações do IST junto do Tribunal Administrativo de Lisboa a garantir que realizou “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. A Lusa garante que viu um relatório, e até o cita.

    Ou seja, o IST pretende ver reconhecido pelo Tribunal Administrativo de Lisboa que o relatório que a Lusa garante existir, afinal não existe porque não passa afinal de um esboço – ou menos do que isso: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    No entanto, antes das insistências do PÁGINA UM em finais de Junho junto do investigador Henrique Oliveira – e mais tarde junto do próprio presidente do IST, Rogério Colaço –, nunca aquela instituição universitária renegou as notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social.

    Pelo contrário, na troca de e-mails com Henrique Oliveira, este investigador do IST mostrava que conhecia o impacte mediático da divulgação do take da Lusa.

    Num dos e-mails ao PÁGINA UM, este investigador, que assume ser “o único do grupo de trabalho [de cinco elementos] mandatado a falar sobre esses assuntos de análise”, escreveu o seguinte: “ontem [dia 28 de Julho] recusei diversos convites, antes do seu e-mail, nomeadamente de três televisões nacionais, para falar sobre o assunto porque… entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

    Resposta da directora-adjunta da Lusa ao PÁGINA UM garantindo que o relatório do IST “existe, naturalmente”, caso contrário não teria sido feita notícia. Mas para o Tribunal Administrativo de Lisboa, o IST diz agora que nunca houve relatório mas apenas um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”. Aparentemente, o “esboço embrionário” não evoluiu, ao fim de dois meses, não tendo havido gestação e o “nascimento” de um qualquer relatório científico.

    Henrique Oliveira salientou também ao PÁGINA UM que todos os outros membros do grupo de trabalho do IST – Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, além de Rogério Colaço – estavam de férias. Ou seja, a notícia da Lusa foi convenientemente divulgada na véspera de todos os cinco investigadores do IST meterem férias.

    Saliente-se que as conclusões alarmistas do alegado relatório do IST – afinal um “esboço embrionário” transmitido ao público como se fosse pura Ciência saída de uma universidade pública portuguesa – não encontram respaldo nas evidências observadas durante o mês de Junho, como o PÁGINA UM revelou.

    Com efeito, enquanto decorreram as festas de Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais ao de Junho, os casos positivos de covid-19 foram sempre descendo em Portugal, contrariando mesmo as previsões anteriores de um relatório do IST, conforme comprovara o jornal digital Blind Spot dias antes do take da Lusa.

    Por exemplo, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.

    Um relatório anterior do IST alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, o IST está a recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos regrediram face a Maio

    Durante o mês de Junho, os casos positivos de covid-19 aceleraram sempre, mas na direcção oposta à subida: ou seja, reduziram-se, o que contrariou os defensores do uso de máscaras e de restrições aos ajuntamentos como formas eficazes de controlo da pandemia. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos em cada dia (média móvel de sete dias). Em Agosto, os casos mantiveram-se sempre estáveis em redor dos 2.500 casos positivos. Actualmente, rondam os 2.200 casos por dia.

    A acção do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa, com o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO, surgiu depois de esgotados todos os prazos e tentativas para o presidente do IST, Rogério Colaço, disponibilizar voluntariamente todos os relatórios e dados brutos sobre as análises em redor da pandemia. A verificação externa independente é, aliás, uma prática comum de validação em debates científicos, algo que o catedrático que agora lidera esta instituição pública parece querer ignorar, independentemente da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.

    Mas o presidente do IST sempre recusou disponibilizar essa informação. Aliás, a única vez que Rogério Colaço se dirigiu ao PÁGINA UM foi numa lacónica mensagem enviada através do seu Galaxy: “O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.”

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, nunca negou a existência e paternidade do relatório divulgado pela Lusa no final de Julho. No Tribunal Administrativo de Lisboa alega agora que a instituição universitário pode promover, sob a forma de Ciência, um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”, não permitindo sequer uma validação externa independente.

    Saliente-se, por fim, que o PÁGINA UM questionou no início de Agosto os responsáveis editoriais do Público, Observador, Visão, TSF, Correio da Manhã, jornal i, Sábado e CNN Portugal para saber se, tendo todos replicado o take da Lusa, houvera antes da divulgação junto dos leitores uma confirmação da veracidade dos factos, se houvera confronto de outras fontes e se alguém das respectivas redacções tivera acesso ao famigerado relatório do IST.

    Só dois responderam ao PÁGINA UM: Sábado e jornal i. E confirmaram que não tinham tido acesso ao relatório. Todos os outros nem sequer responderam ao PÁGINA UM, considerando assim o assunto irrelevante.

    Em suma, cerca de uma dezena de órgãos de comunicação de âmbito nacional divulgaram uma notícia sobre um “relatório” que afinal a própria instituição científica diz ser agora ser “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” – e, por esse motivo, não o quer divulgar. Nem divulgar os supostos dados científicos que estiveram na base de uma notícia alarmista não confirmável.

    O processo de intimação do PÁGINA UM continua a correr no Tribunal Administrativo de Lisboa, até porque foi solicitado ao IST mais informação do que a referente ao suposto “esboço embrionário”.

  • Imprensa ganhou em publicidade do Estado em 2021 mais do que nos cinco anos anteriores

    Imprensa ganhou em publicidade do Estado em 2021 mais do que nos cinco anos anteriores

    O montante da despesa do Estado com a compra de espaço publicitário atingiu o recorde de 12 milhões de euros em 2021. O valor obliterou qualquer verba anual registada desde que são comunicados os gastos com publicidade nos media por parte de entidades estatais. A DGS foi a entidade pública mais generosa, sendo responsável por cerca de metade dos montantes entregues aos órgãos de comunicação social em 2021. As TVs arrecadaram a maior fatia das verbas. Já em 2022, no primeiro semestre, o Estado gastou em publicidade nos media mais do que em todo o ano de 2020.


    O Estado foi muito generoso com os media no ano passado: 12,5 milhões de euros provenientes de 30 entidades públicas financiaram campanhas publicitárias. Nunca os órgãos de comunicação social tiveram tanto dinheiro em marketing estatal. A pandemia foi a principal causa, mas não só.

    Em 2020, primeiro ano da pandemia, apenas se chegou aos dois milhões de euros de publicidade estatal, um pouco menos do que em 2019. Há cinco anos nem se ultrapassou a fasquia de um milhão.

    A Direção-Geral da Saúde (DGS) foi, de longe, a entidade mais “benemérita”: pagou mais de cinco milhões em publicidade, com SIC e TVI a ficarem com a maior fatia, como noticiou o PÁGINA UM em Fevereiro deste ano.

    man in black and white checkered dress shirt sitting on chair

    Para passar a “mensagem oficial” em redor da pandemia, o ano publicitário de 2021 não se transformou apenas num recorde. Foi um rotundo recorde: o ano de 2021 ultrapassou largamente o total da despesa do quinquénio 2016-2020.

    Os canais de televisão engoliram mais de metade desta verba: 6.841.320 euros, repartidos por 23 serviços de programas de âmbito nacional.

    Entretanto, o ano de 2022 está com valores de publicidade do Estado mais modestos do que os de 2021, mas mesmo assim deverá também superar largamente os montantes no período pré-pandemia. Nos primeiros seis meses, o Estado entregou já 2,6 milhões de euros aos órgãos de comunicação social pela compra de espaço publicitário.

    Num levantamento do PÁGINA UM, o mês de Junho deste ano registou a maior despesa global do primeiro semestre de 2022, com uma verba de 1.149.088 euros.

    A entidade responsável pela maior despesa este ano já não é, contudo, o Ministério da Saúde, mas sim o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, que já gastou um milhão de euros.

    Estes dados, com frequência mensal, são divulgados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), e começaram a ser alvo de registo no final de 2015.

    Gastos (em euros) do Estado em compra de espaço publicitário nos media. Fonte: ERC

    No relatório de 2021, além da estatística geral, a ERC reportou ao Tribunal de Contas que cerca de meia centena de campanhas não cumpriram o requisito de investimento mínimo nos media locais e regionais. Isto significa que os maiores órgãos de comunicação social de âmbito nacional saíram ilegitimamente beneficiados.

    Na imprensa regional, em comparação com o ano anterior, em 2021 houve até uma queda de 7,0 pontos percentuais na atribuição de verbas para espaço publicitário, apesar de se registar um aumento no investimento global.

    Globalmente, a despesa com a compra de espaço publicitário pelo Estado nos meios locais e regionais somou 3.090.278 euros, que corresponde a 25% do total investido.

    A ERC afirma, no seu comunicado de apresentação do relatório anual de 2021, divulgado anteontem, que foram identificadas “51 campanhas de publicidade institucional do Estado que envolveram investimentos superiores a 5 mil euros, e destas, seis em que a parcela investida em órgãos de comunicação social regionais e locais foi inferior a 25% do custo global da campanha”. Trata-se de “um incumprimento do dever previsto no artigo 8.º da Lei n.º 95/2015, de 17 de agosto, e que foi oportunamente comunicado pela ERC ao Tribunal de Contas, que detém a competência nesta matéria”.

    Entre as campanhas que violaram a lei, consta a “Campanha Covid-19”, da DGS, que apenas entregou aos media locais e regionais 15% da verba total gasta na compra de espaço publicitário, ou 754.750 de euros. Devia ter entregado cerca de 1,28 milhões de euros.

    Media ganham com pandemia

    Além das contínuas iniciativas publicitárias da DGS – agrupadas numa rubrica global denominada “Campanha Covid-19”, no valor global de 5,1 milhões de euros –, a pandemia deu para múltiplas acções de marketing do Estado. De entre estas salienta-se a campanha “Não deixes o vírus entrar”, desenvolvida na época natalícia de 2020, onde um dos spots mostrava uma neta a oferecer uma camisola de lã ao avô, figura do SARS-CoV, e a dizer-lhe: “vai-te ficar a matar”. Custou 422.411 euros.

    brown wooden i love you wooden table ornament

    Em pouco menos (398.955 euros) ficou a campanha “Não deixes cair a máscara”, uma iniciativa do Ministério do Ambiente de promoção da reutilização dos panos faciais, e que tinha como um dos lemas “sabemos que a voz pode soar mais alto em silêncio”.

    A promoção da testagem – ou melhor da “massificação da testagem”, conforme surge nomeada no relatório da ERC – atingiu um preço total de 279.478 de euros, enquanto a dinamização pública do “reposicionamento” do SNS24 teve, por sua vez, um custo global de 249.920 de euros.

    A divulgação da “telescola da pandemia”, oficialmente conhecida por #Estudo em casa – e que teve Marcelo Rebelo de Sousa como professor convidado contou com uma verba destinada aos órgãos de comunicação social de 215.402 de euros.

    four person hands wrap around shoulders while looking at sunset

    Por fim, ainda para o combate contra a covid-19, e para convencer os jovens a deixarem “abraços e beijinhos (…) para outra altura”, o Governo gastou 73.883 de euros.

    Houve outros gastos publicitários em Saúde contabilizados em 2021 para sectores não-covid, mas irrelevantes: 300 euros para divulgar o Centro Hospitalar da Cova da Beira e mais 885 euros para uma campanha de prevenção de suicídios, da responsabilidade da Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano.

    Refira-se, em todo o caso, que em 2021 as despesas publicitárias do Estado também foram relevantes para três iniciativas “esporádicas”: as eleições presidenciais (405.275 euros) e autárquicas (199.785 euros), e ainda a promoção dos Censos (1.168,628 euros) pelo Instituto Nacional de Estatística.

  • Oito jornalistas “protegem” com silêncio advogada-estagiária em cargo que exigia mérito

    Oito jornalistas “protegem” com silêncio advogada-estagiária em cargo que exigia mérito

    O silêncio como resposta. Uma semana após o PÁGINA UM revelar que Licínia Girão, actual advogada-estagiária de 57 anos, foi eleita para liderar o órgão regulador e de disciplina dos jornalistas – onde sempre se exigiu “jurista de mérito” –, não há nenhum dos outros oito membros da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista que queira revelar como foi feita a sua cooptação. O currículo desta jornalista freelancer, sobretudo associada à imprensa regional, mostra-se paupérrimo para a exigência da lei: tem dois mestrados, mas o de Ciências Jurídicas terá demorado pelo menos 11 anos a concluir. E nas provas do concurso para a magistratura foi excluída logo na primeira fase com um comprometedor “chumbo”, tendo ficado quase na cauda da tabela.


    Oito mensagens electrónicas, cada uma com quatro perguntas, e nem uma resposta. Nenhum dos oito jornalistas eleitos para a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas (CCPJ) – quatro por sufrágio da classe e os restantes indicados pelos operadores do sector – se disponibilizou durante uma semana inteira para dizer ao PÁGINA UM quem indicou a advogada-estagiária Licínia Girão para presidir àquela entidade.

    Também nenhum destes oito jornalistas quis dizer se previamente houve análise curricular desta jornalista freelancer que, como jurista, está longe de ter pergaminhos relevantes, além de ter desenvolvido a sua actividade profissional quase em exclusivo na imprensa regional, mas sem grande regularidade nos últimos anos. Neste momento, o seu nome apenas se encontra na ficha técnica do Sinal Aberto, um projecto editorial que se apresenta como “um coletivo de Jornalismo de interesse público que recusa a informação apressada e procura a verdade, sabendo que nunca será neutro.”

    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista funciona no Palácio Foz, em Lisboa.

    De acordo com a lei que regula o funcionamento da CCPJ, a sua presidência somente pode ser ocupada por “um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, cooptado pelos outros oito membros. E é aqui que se colocam os aspectos centrais: quem, de entre os oito jornalistas (eleitos para a CCPJ), sugeriu para cooptação o nome de Licínia Girão, e como foi esta apresentada para ser reconhecida como “jurista de mérito”? E uma outra, também fulcral: podem os jornalistas, como profissionais que por inerência estão incumbidos de “fiscalizar” a sociedade ao serviço dois leitores, aceitar que se mantenham situações dúbias no seu próprio seio?

    Estes aspectos são ainda mais pertinentes porque, ao contrário dos outros oito elementos da CCPJ, Licínia Girão não chegou ao cargo por qualquer eleição ou sufrágio, foi por cooptação, e por supostas razões de mérito.

    Ora, a cooptação é um regime de escolha colegial – seguida em muitos casos, como sucede com alguns juízes do Tribunal Constitucional – em que são os membros já eleitos que seleccionam uma pessoa externa. Recentemente, a cooptação do juiz Almeida Costa esteve envolta em polémica, e ele acabou mesmo por não ser escolhido. Também em muitas universidades, a escolha de membros para o Conselho de Escola é realizada por esta via, existindo em todos os casos regras específicas que obrigam a uma análise prévia dos atributos dos candidatos.

    Licínia Girão é advogada-estagiária em lugar que,por lei,exige “jurista de mérito”, ignorando-se quem a “recomendou”.

    No caso da indicação de Licínia Girão para ser cooptada para a presidência da CCPJ, nenhum dos oito jornalistas da CCPJ quer agora assumir a “paternidade” pela colocação do seu nome para votação (e subsequente comprometedora eleição) como presidente.

    No fim-de-semana passada, o PÁGINA UM endereçou a cada um dos oito jornalistas eleitos pelos pares e operadores do sector um conjunto de quatro perguntas.

    Na primeira questionava-se se tinham “conhecimento de quem propôs /indicou o nome da Dra. Licínia Girão para a presidência da CCPJ”. Na segunda se tinham existido “outros nomes em análise (e votação) aquando da escolha”; e se sim, “qual ou quais os candidatos propostos”. Na terceira questão pretendia-se saber se antes da eleição, tiveram todos acesso ao currículo e actividades profissionais de Licínia Girão. E na última se consideravam que o currículo e actividades da actual presidente da CCPJ se enquadravam no perfil exigido por lei: “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”.

    Apesar de ter sido confirmada a recepção dos oito e-mails na segunda-feira passada, nem Jacinto Godinho (CP 772), nem Anabela Natário (CP 326) nem Miguel Alexandre Ganhão (CP 1552) nem Isabel Magalhães (CP 1024) nem Cláudia Maia (CP 2578) nem Paulo Ribeiro (CP 1027) nem Luís Mendonça (CP 1407) nem Pedro Pinheiro (CP1440) responderam a qualquer daquelas questões. Saliente-se que, apesar das insistências, o PÁGINA UM não conseguiu que Licínia Girão esclarecesse aspectos fundamentais da sua vida profissional e da sua cooptação para a presidência da CCPJ.

    person wearing black and white gas mask

    Adensa-se assim um inexplicável mistério entre a classe jornalística, apesar de estarmos perante um organismo formado por jornalistas que supostamente lutam pelo acesso à informação e à transparência.

    Recorde-se que, como divulgou o PÁGINA UM com provas documentais, Licínia Girão encontra-se a realizar, aos 57 anos, um estágio de advocacia não-presencial num escritório de Santo Tirso (vivendo em Coimbra).

    O seu nome continua sem constar no site da Rodrigues Braga & Associdos, e um contacto prévio do PÁGINA UM revelou que será uma estagiária-fantasma.

    Além disso, o seu percurso académico tem pouco de distinto, mesmo se esforçado: terá demorado pelo menos 11 anos a concluir um mestrado em Ciências Jurídicas pela Universidade de Coimbra, uma vez que já aí era aluna em 2011 e apresentou a tese no ano passado. Possui também, desde 2019, um mestrado em Comunicação e Jornalismo com 16 valores.

    No entanto, não detém qualquer currículo relevante do ponto de vista académico ou na escrita, se se exceptuar o 2º Prémio Prosa na 1ª Edição do Concurso Literário de Prosa e Poesia 2021 do Centro Comunitário de Inserção da Cáritas Diocesana de Coimbra, ou ainda a Menção Honrosa na categoria Ensaio/Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.

    De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Licínia Girão candidatou-se este ano ao 39º curso de ingresso de formação de magistrados no Centro de Estudos Judiciários, mas os resultados foram desastrosos, chumbando na primeira fase a duas das três provas, tendo sido logo assim excluída. Num total de 269 candidatos, ficou apenas na posição 230, destacando-se os 5,05 valores (em 20) em Direito Penal e mesmo os 8,50 valores (em 20) numa prova de cultura geral em que se solicitava uma breve dissertação em redor de notícias do jornal Público e da revista Gerador.

    Licínia Girão também se candidatou a mediadora de conflitos dos julgados da paz do agrupamento de concelhos da Batalha, Leiria, Marinha Grande, Pombal e Porto de Mós, e do agrupamento de concelhos de Alvaiázere, Ansião, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Porto de Mós, não se conhecem os resultados.

    Licínia Girão, presidente da CCPJ, ostentando em Junho do ano passado o diploma da Menção Honrosa na categoria Ensaio/Prosa no âmbito dos 13º Jogos Florais da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana.

    Além disso, a actual presidente da CCPJ assume-se ainda como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista. De acordo com a alínea b) do nº 1 deste diploma legal são incompatíveis com a actividade jornalística as “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    No entanto, apesar do PÁGINA UM ter conhecimento que a CCPJ se tem mostrado particularmente activa na análise do cumprimento de requisitos profissionais, esta questão sensível não deverá ser, certamente, alvo de análise por aquela entidade reguladora e de desciplina. Até porque Licínia Girão acumula, com Jacinto Godinho, o Secretariado da CCPJ, que constitui o primeiro “crivo” para a instauração de processos disciplinares ou contra-ordenacionais, que depois são decididos em Plenário.


    N.D. O PÁGINA UM criticou recentemente, com veemência, uma inaudita recomendação da CCPJ, sem enquadramento legal, que visou “censurar” um trabalho de investigação sobre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Tem também o PÁGINA UM colocado diversas questões à CCPJ, algumas ainda no tempo de Leonete Botelho como presidente. E vai colocar mais, até porque se justificam. Os artigos do PÁGINA UM sobre Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, são de indiscutível relevância e interesse público, e sustentam-se exclusivamente em factos, tendo-se sempre dado primazia ao contraditório. Na nossa opinião, a existência de discórdias, e mesmo de processos que a CCPJ ou outras entidades venham a colocar ao director ou a jornalistas e colaboradores do PÁGINA UM, jamais serão redutoras da nossa liberdade editorial. Será assim absurdo considerar-se que existem motivações extra-editoriais na base destes artigos. Aliás, mal seria se se usasse a regra de “não noticiar” sobre entidades com quem existam conflitos, porquanto abriria porta para uma solução simples: qualquer entidade incomodada por um jornal independente apresentaria uma queixa-crime e, desse modo, accionaria uma espécie de “protecção”. Ora, o PÁGINA UM não acolhe essa lógica. Pelo contrário: quem ataca a imprensa livre merece ser ainda mais escrutinado.

  • Falta de transparência coloca Entidade Reguladora para a Comunicação Social no “banco dos réus”

    Falta de transparência coloca Entidade Reguladora para a Comunicação Social no “banco dos réus”

    A Lei da Transparência dos Media, que obriga as empresas a declararem quem são os seus proprietários e os fluxos económicos e financeiros, tem uma escapatória: através de requerimentos à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), pode ser solicitado um regime de excepção. O PÁGINA UM quis saber quem pediu essas excepções, quais as decisões da ERC, e sob que critérios. O silêncio foi a resposta. Um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ERC a ser transparente foi a contra-resposta do PÁGINA UM, através do seu FUNDO JURÍDICO.

    [Recorde-se que, no passado dia 9 de Agosto, a ERC acusou o autor desta notícia de andar “a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem”]


    Por esconder a identidade das empresas de comunicação social que pediram confidencialidade na divulgação de dados económicos e financeiros, bem como a respectiva decisão administrativa aos requerimentos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) é ré desde ontem no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    O processo de intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões – já identificado com o número 2589/22.4BELSB e distribuído à juíza Maria Carolina da Silva Duarte – foi intentado pelo PÁGINA UM no último dia do prazo. O PÁGINA UM tinha feito um requerimento à ERC no dia 21 de Julho, que teria 10 dias úteis para responder. Para intentar um processo judicial, o PÁGINA UM teria um prazo de mais 20 dias seguidos. Como a ERC continuou a recusar satisfazer um legítimo pedido, o processo de intimação foi concretizado. Este é o 10º processo de intimação do PÁGINA UM levado a cabo desde Abril, sempre em virtude da recusa em facultar a consulta a processos, documentos e bases de dados.

    No pedido sobre a Lei da Transparência dos Media, o PÁGINA UM solicitou ao juiz conselheiro Sebastião Póvoas, que preside à ERC desde Dezembro de 2017, “o acesso a cópia digital ou analógica de todos os requerimentos – desde 2017 até à data – das empresas de comunicação social que solicita[ram] confidencialidade dos principais fluxos financeiros e identificação das pessoas singulares ou colectivas que representam mais de 10% dos rendimentos totais e mais de 10% do montante total de passivos no balanço e dos passivos contingentes.”

    De igual modo, requereu-se a consulta dos “documentos administrativos da ERC que contenham a eventual análise e decisão para cada um dos referidos pedidos de confidencialidade”, bem como dos “critérios ou normas de orientação para que que haja deferimento ou indeferimento dos pedidos.”

    A ERC preferiu nem reagir, estando focada, nas últimas semanas, em fabricar inopinados incidentes envolvendo o PÁGINA UM, que culminaram num comunicado no passado dia 9 de Agosto em que acusava explicitamente o seu director [autor da presente notícia] de andar “a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem” a pretexto da consulta de outros processos naquela entidade reguladora.

    TVI – Televisão Independente tentou que os dados financeiros de 2021 ficassem ocultos no Portal da Transparência. Com a divulgação pública, a ERC indeferiu pedido, mas não quer identificar as outras 21 empresas que solicitaram o mesmo, e qual a decisão.

    A promoção da transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento das entidades que prosseguem atividades de comunicação social tem sido uma das matérias mais sensíveis nos últimos anos no sector da comunicação social. Em 2015, uma lei aprovada na Assembleia da República estipulou que as empresas detentoras de órgãos de comunicação social disponibilizassem, no denominado Portal da Transparência dos Media, a relação de titulares e de detentores, discriminando as percentagens de participação social e identificando toda a cadeia de entidades a quem uma participação de pelo menos 5% pudesse ser imputada.

    Por outro lado, ficou também estipulada a obrigatoriedade de comunicar à ERC a informação relativa aos principais fluxos financeiros daquelas entidades (com contabilidade organizada). Esta obrigação deveria, por lei, incluir “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10 % para os rendimentos apurados nas contas de cada uma daquelas entidades ou que sejam titulares de créditos suscetíveis de lhes atribuir uma influência relevante sobre a empresa”, mas em “termos a definir no regulamento da ERC”.

    Efectivamente, a ERC criaria um regulamento em Outubro de 2020, onde, além de estabelecer a obrigação do envio do relatório anual de governo societário (RGS), concedia excepções arbitrárias que, na prática, destruíam o princípio da transparência. Com efeito, no artigo 8º do regulamento – que não teve que passar pela Assembleia da República – refere-se que “atendendo à sensibilidade e ao caráter sigiloso de alguns dados solicitados, as entidades poderão solicitar à ERC a aplicação do regime de exceção”.

    Sebastião Póvoas, presidente da ERC e juiz conselheiro.

    Em 6 de Julho passado, no decurso de um pedido de confidencialidade da TVI S.A. – empresa detentora da TVI e da CNN Portugal –, que o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, a ERC não quis identificar quais as outras empresas que solicitaram igual tratamento.

    O regulador adiantou apenas que “os pedidos podem incidir sobre informação muito específica ou cumulativamente sobre vários elementos comunicados em cumprimento das obrigações legais da transparência”, acrescentando ainda que “os requerentes invocam, genericamente, (…) a sensibilidade dos dados e antecipam impactos negativos resultantes da sua divulgação, relacionados com estratégias de negócio, estruturas de receitas e a sustentabilidade económico-financeira do meio, em particular em mercados locais.”

    A ERC também não indicava o número absoluto de pedidos entre 2017 e 2021, dando somente dados relativos. Segundo o regulador, naquele quinquénio, mais de três quartos dos pedidos de confidencialidade (77%) tinham sido indeferidos pelo Conselho Regulador, “que entendeu que os argumentos apresentados não justificavam a não disponibilização da informação”.

    Perto de 12% dos pedidos foram deferidos, “salientando-se que uma parte incidia sobre uma informação muito específica, como a percentagem que representa um cliente relevante”. Em perto de 11% das situações o Conselho Regulador concedeu deferimento parcial. No entanto, não sabe o número absoluto que esses 23% representam nem que dados ficaram assim escondidos e porquê.

    Já quanto ao presente ano, no início de Julho a ERC informava que recebera 22 pedidos de confidencialidade submetidos por entidades de comunicação social, que incluía o da TVI S.A., que veio entretanto a ser indeferido. No entanto, desconhece-se a identidade das outras 21 empresas, e quais foram as decisões da ERC.

    Embora o argumento do segredo comercial seja, de facto, o mais utilizado, o PÁGINA UM sabe que as maiores empresas de media procuram, com o regime de excepção, também esconder a dependência elevada de determinados clientes, bem como de detentores de passivo, que podem englobar bancos, fundos ou mesmo o Estado, por via de dívidas fiscais.

    O pedido de confidencialidade dos detentores de um montante acima de 10% do passivo pode também impedir a identidade de entidades ou pessoas que, como obrigacionistas ou credores, acabam por ter um controlo na gestão da empresa, acabando assim por “manobrar” na sombra.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso 10 processos administrativos e mais dois em preparação, além de uma providência cautelar. Dois dos processos foram ganhos pelo PÁGINA UM em primeira instância, mas as duas entidades (Ordem dos Médicos e Conselho Superior da Magistratura) recorreram. Apenas em taxas de justiça, o PÁGINA UM já gastou 4.131 euros. Este valor não inclui honorários e outros gastos na preparação dos processos.

  • Chumbada: presidente do regulador dos jornalistas teve das piores notas no concurso para a magistratura

    Chumbada: presidente do regulador dos jornalistas teve das piores notas no concurso para a magistratura

    A lei obriga à escolha de um jurista de mérito, mas o currículo de Licínia Girão para presidir à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) está longe de ser excepcional. Advogada-estagiária aos 57 anos, concorreu nesta Primavera ao concurso para formação de magistrados, e os resultados dificilmente poderiam ser piores. Ninguém quis assumir ao PÁGINA UM como chegou ela à presidência do órgão que regula e disciplina os jornalistas.


    Reprovada sem apelo nem agravo. Eleita em Maio passado para a presidência da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) por alegadamente ser uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, como determina a lei, Licínia Girão – a jornalista freelancer e advogada-estagiária de 57 anos – foi chumbada logo na primeira fase deste ano do concurso para formação de magistrados. E com um desempenho que, no mínimo, se pode considerar muito sofrível.

    De acordo com as pautas consultadas hoje pelo PÁGINA UM no Centro de Estudos Judiciários em Coimbra, onde realizou as provas, o sonho de Licínia Girão em se tornar magistrada ficou adiado, pelo menos por um ano. E nem esteve próxima dessa meta.

    Licínia Girão preside à CCPJ por ser considerada “jurista de mérito reconhecido”, Nas provas do concurso deste ano para o curso de magistrados do CEJ foi das piores candidatas.

    Com efeito, atendendo às suas notas nas três provas escritas – Direito Civil, Direito Penal e Desenvolvimento de Temas Culturais, Sociais ou Económicos –, certo ficou que não lhe bastará ser considerada, entre alguns dos seus pares, uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social” para ser aceite nos cursos de formação de juízes e delegados do Ministério Público. Vai ter muito que estudar.

    Sendo exigido aos candidatos – para passar à segunda fase do concurso que escolherá, este ano, 104 alunos – a obtenção de notas positivas em todas as três provas (pelo menos 10, em 20), o melhor que Licínia Girão conseguiu foi, contudo, um 10,50 em Direito Civil. Mesmo assim, foi apenas a 96ª melhor classificação entre 269 candidatos.

    No caso de Direito Penal, “apanhou” um 5,05 (em 20). Houve 249 candidatos com melhor nota.

    Já bastaria, por si só, o “chumbo” a Direito Penal para Licínia Girão ser excluída, mas ainda teve direito a um duplo carimbo por força da negativa (8,75) à prova de Desenvolvimento de Temas Culturais, Sociais ou Económicos.

    Nesta última prova, seria expectável um melhor resultado por parte de uma jornalista, porquanto foram colocadas aos examinados, para dissertar, duas questões de cultura geral – sobre capacidade de carga turística e sobre o impacto da digitalização na transformação das práticas culturais dos portugueses – a partir de trechos de notícias do Público e do Gerador. Licínia Girão não conseguiu os mínimos, isto é, uma nota de 10 ou superior. Só foi melhor do que 16 candidatos.

    Apesar de ser irrelevante na passagem para a fase seguinte – provas orais e análise curricular –, uma vez que para a exclusão bastava uma negativa, Licínia Girão obteve, no cômputo geral das três provas, um total de 24,30 valores (num total de 60 possíveis), colocando-a assim no lugar 230 em 269 candidatos.

    Saliente-se que passaram para a segunda fase, 119 candidatos (por esta via académica), ou seja, a taxa de aprovação foi de 44%. Nos 10 melhores classificados, constam sete mulheres.

    Pautas expostas nas instalações do Centro de Estudos Judiciários em Coimbra. Foto: ©António Honório Monteiro.

    A este desempenho de Licínia Girão nas provas para o curso de formação de magistrados do CEJ – que colocam em causa o seu estatuto de “jurista de mérito” –, acresce ainda, como já noticiou o PÁGINA UM, o facto de ser advogada-estagiária num escritório em Santo Tirso, apesar de morar em Coimbra, e de se assumir como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista. 

    Porém, o seu fraco currículo não a impediu de ser escolhida para a presidência do órgão regulador e disciplinar dos jornalistas. Criada em 1995, a CCPJ foi sempre presidida por magistrados durante duas décadas: Eduardo Lobo (entre 1995 e 2001; juiz de direito à data); Eurico dos Reis (entre 2001 e 2005; juiz desembargador à data); Pedro Mourão (entre 2005 e 2014; juiz desembargador à data).

    Depois, foi escolhido em 2015 o advogado Henrique Pires Teixeira, que exercia aquela profissão desde 1982 e ocupara também o cargo de director de um jornal regional (A Comarca). Antes de Licínia Girão, o cargo de presidente da CCPJ foi ocupado por Leonete Botelho, advogada desde 1992, de acordo com os registos da Ordem dos Advogados, e jornalista do Público desde os anos 90, sendo actualmente grande repórter, depois de já ter sido editora das secções Política (2009-2016) e de Sociedade (2003-2006).

    Folha com notas de Maria Licínia Vieira Girão, candidata 287, excluída. Foto: ©António Honório Monteiro.

    Sobre a indicação de Licínia Girão para o cargo de presidente da CCPJ, o PÁGINA UM não conseguiu saber como o seu nome surgiu para o cargo. A própria não quis esclarecer esta questão.

    O PÁGINA UM também quis saber junto dos oito jornalistas membros da CCPJ – que elegeram Licínia Girão – quem (pessoa ou entidade) a indicou para o cargo, se tinham visto o seu currículo e se houvera outros candidatos para o cargo. Contudo, nenhum destes jornalistas – Jacinto Godinho, Anabela Natário, Miguel Alexandre Ganhão, Isabel Magalhães (nomeados pelos jornalistas), e Cláudia Maia, Paulo Ribeiro, Luís Mendonça e Pedro Pinheiro (nomeados pelos operadores do sector) – respondeu às questões do PÁGINA UM nem prestou qualquer esclarecimento até agora.


    N.D. No passado dia 12 de Agosto, o PÁGINA UM criticou, com veemência, uma inaudita recomendação da CCPJ, sem enquadramento legal, que visou “censurar” um trabalho de investigação sobre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Tem também o PÁGINA UM colocado diversas questões à CCPJ, algumas ainda no tempo de Leonete Botelho como presidente. Em alguns casos sem resposta. Os artigos do PÁGINA UM sobre Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, são de indiscutível relevância e interesse público, e sustentam-se exclusivamente em factos, tendo-se sempre dado primazia ao contraditório. Na nossa opinião, a existência de discórdias não pode condicionar a linha editorial do PÁGINA UM. Se assim fosse, tendo em conta que o PÁGINA UM tem até processos de intimação em tribunal contra o Ministério da Saúde, tal significaria, por absurdo, que teríamos de deixar de noticiar temas sobre Saúde ou sobre Marta Temido.