O PÁGINA UM pegou numa calculadora e no “cabaz de compras” de um ajuste directo celebrado entre a autarquia de Carlos Carreiras e o Modelo Continente, e foi saber se era mesmo preciso gastar-se os cerca de 180 mil euros previstos num contrato assinado em Julho passado. E não era: contas feitas a cerca de uma centena de itens, um a um, de mercearia, frescos, congelados e produtos de higiene e drogaria, o total dava pouco mais de 14 mil euros, e já com IVA incluído. A autarquia não quis reagir e o Modelo Continente remete as perguntas do PÁGINA UM para o município. Recorde-se que a edilidade de Cascais já terá gastado mais de 925 mil euros só em alimentação para refugiados ucranianos, incluindo três ajustes directos à mesma empresa (ICA), com periodicidade aleatória, mas recusa mostrar elementos sobre esta actividade.
Em Julho passado, mesmo tendo contratos de ajuste directo para fornecimento de refeições aos refugiados ucranianos, em número que não quer divulgar, o município de Cascais decidiu estabelecer um estranho contrato com a Modelo Continente no valor previsto de 166.124,88 euros, sem IVA incluído, para a entrega em períodos mensais, durante um ano, de cerca de uma centena de produtos. Com IVA, o contrato deverá aproximar-se dos 180 mil euros.
No contrato exposto no Portal Base inclui-se, neste caso, o caderno de encargos com as especificações para a aquisição de bens essenciais para o Centro de Refugiados de Cascais, onde consta uma extensa lista de produtos alimentares e de higiene que a autarquia liderada por Carlos Carreiras devia receber do Modelo Continente.
Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais.
Nos produtos de mercearia surgem 35 itens, que vão desde 300 embalagens de leite UHT até 100 embalagens de chá de cidreira e camomila, passando por quantidades distintas de açúcar, massas e cereais diversos, feijão e o incontornável atum, cogumelos em lata, azeite e óleo, café diverso e 30 quilogramas de sal, entre grosso e fino.
Na parte de produtos frescos – que, de acordo com as peças do contrato, deveriam ser entregues, tal como os outros produtos, com uma frequência semanal ao longo de 12 meses – encontram-se 25 itens, começando a lista por 500 embalagens de 600 gramas de jardineira de bovino para guisar e terminando em 60 quilogramas de beterraba sem rama. Pelo meio desta lista consta ainda carne picada, bifanas, salsichas frescas e costeletas de porco e outros produtos de frango e peru, tudo em doses de 50 quilogramas. No caso dos peixes – em quantidade de 10 quilogramas – estão listadas diversas espécies: carapau, cavala, pargo, dourada, robalo, salmão, truta, pota e choco. E depois ainda verduras, como batatas, cenoura, couve e cebola, além de ovos e manteiga.
Acresciam ainda 13 produtos congelados em embalagens de pesos distintos, abrangendo quer peixes quer legumes. Nestes destacavam-se as 100 embalagens de 200 gramas de corvina e ainda as 48 embalagens de 210 gramas de garoupa.
Por fim, no sector dos produtos de higiene, o caderno de encargos listava 25 itens – desde champôs e gel de banho até desodorizantes, sabonetes, tampões e lâminas –, e no sector da drogaria ficaram previstos nove itens, entre detergentes, esfregonas, baldes e vassouras.
Enfim, a lista é extensa, mas mais do que as quatro páginas – e mais umas linhas de uma outra – com a listagem de produtos e quantidades, aquilo que verdadeiramente surpreende é que, mesmo assim, parece pouco para aquilo que foi combinado na parte financeira entre a Câmara Municipal de Cascais e o Modelo Continente.
Com efeito, como contrapartida das quantidades listadas no caderno de encargos, a autarquia de Cascais comprometeu-se a pagar a pagar 166.980 euros, sem incluir IVA. Pareceu ao PÁGINA UM ‘fruta a mais’ – embora, curiosamente, só tenha ficado previsto a entrega de 150 embalagens de pêssego em calda com peso escorrido de 480 gramas e ainda 30 latas de polpa de maracujá de 565 gramas. E por isso “fomos às compras” – ou, melhor dizendo, conferimos os preços praticados na loja online do Continente para saber quanto se pagaria por aquele cabaz de compras.
A pesquisa do PÁGINA UM realizou-se nos primeiros dias deste mês de Outubro. Apesar de nem todos os produtos constantes no caderno de encargos para o centro de refugiados da Ucrânia não se encontrarem à venda na loja online do Continente, procurou-se produtos similares ou os preços em outros hipermercados semelhantes.
E assim, “conseguimos” o cabaz de compras de produtos de mercearia, já com IVA incluído, por 4.078,70 euros. Os produtos frescos ficaram por 5.052,60 euros. Os produtos congelados por 1.256,45 euros, os produtos de higiene por 3.201,86 euros e, por fim, os produtos de drogaria por 770,70 euros.
Contas feitas, para uma lista de produtos para a qual a Câmara de Cascais assinou um contrato de 166.980 euros, sem incluir IVA (com IVA aproximar-se-á dos 180 mil euros), o PÁGINA UM – e qualquer outra pessoa, incluindo funcionários dos serviços da autarquia liderada por Carlos Carreiras – “faria a festa” por 14.360,37 euros. Ou, noutra perspectiva, compraria um cabaz mais de 10 vezes aquele que foi adquirido pelo município.
O PÁGINA UM tentou obter comentários da autarquia de Cascais e do Modelo Continente sobre esta contrato pouco ortodoxo de solidariedade com os refugiados ucranianos com evidentes sinais de desperdício de dinheiros públicos. Não conseguiu sequer entrar em contacto com o gestor do contrato, obrigatório por lei, porque no documento constante no Portal o seu nome e função foi apagado. Este procedimento de rasurar nomes de funcionários públicos em exercício de funções públicas é profundamente ilegal, constituindo uma forma de obscurantismo.
Parte inicial das especificações técnicas dos produtos a entregar pelo Modelo Continente à autarquia de Cascais para cumprimento do contrato.
No caso da Câmara Municipal de Cascais solicitou-se mesmo a entrega de facturas das remessas de dois meses para conferir as quantidades entregadas e os preços unitários praticados.
Por sua vez, o Modelo Continente reagiu através de uma agência de comunicação, indicando que as respostas deveriam ser dadas pelo município. Mas mesmo com insistência, a empresa do universo da Sonae não respondeu se foi ponderada a venda daqueles produtos, atendíveis os fins, sem a aplicação de margem de lucro ou uma doação de bens.
A “máquina” do Banco Central Europeu permitiu a ilusão de tudo se poder fazer. A Comissão Europeia impôs, e os Estados-membros aceitaram, a compra de vacinas contra a covid-19 à fartazana. O resultado está aí. Ontem à noite, o Tribunal de Contas já levantou o véu do desastre financeiro em Portugal, alertando para um desperdício de vacinas não administradas que poderia chegar aos 45%. Esse valor, estimado para o final do ano passado, pecará por defeito. O Estado português encomendou até 2022 um total de 61,2 milhões de doses, mas por causa da baixa procura nos meses mais recentes só se utilizaram, até agora, 28,2 milhões de doses. Houve mesmo duas vacinas em que a taxa de desperdício foi de quase 100%. Contas feitas, já voaram assim para os cofres das farmacêuticas mais de 511 milhões de euros sem qualquer préstimo público. E vai haver mais até 2026, pelo menos. A inflação e as oportunidades perdidas para o futuro do Serviço Nacional de Saúde são a factura a pagar pelos contribuintes.
Um desastre financeiro. Portugal encomendou 61.192.803 doses de vacinas contra a covid-19 até final do ano passado, segundo dados de um relatório do Tribunal de Contas ontem à noite revelado, mas os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) comprovam que, até agora, apenas foram administradas 28.200.460 doses no nosso país. Tendo em conta o tempo já passado – e mais compras entretanto feitas –, o desperdício financeiro, decorrentes dos secretos acordos prévios de aquisição negociados pela Comissão von der Leyen e as farmacêuticas, será, no mínimo, desastroso.
O relatório do Tribunal de Contas é prudente – e até bondoso na análise entretanto realizada –, estimando que, até final do ano passado, onde termina a análise, a taxa de desperdício era de 11,2%, apontando para um desperdício de cerca de 3,5 milhões de doses. Mas salientava que o desperdício seria previsivelmente maior, porque a percentagem de doses ainda não administradas face ao total então recebido era já de 42%, “deixando antever uma tendência de agravamento da taxa de desperdício de vacinas, ao longo do tempo”. Como a vacinação perdeu gás nos últimos meses, ao ponto da adesão dos menores de 50 anos para o terceiro reforço ter sido praticamente nula, a perda de validade terá atingido quase todo o stock e encomendas chegadas nos primeiros meses de 2023.
Nem todas as vacinas terão tido o lixo como destino. Substituindo o obscurantismo do Ministério da Saúde – que tem mantido uma postura de secretismo inqualificável –, o Tribunal de Contas revela que, até ao ano passado, “o desperdício das doses em excesso foi minimizado através de doações, de revendas e de empréstimos”, salientando que 7,8 milhões de doses de vacinas foram doadas a países terceiros, quer através de doações bilaterais, quer do mecanismo GAVI/COVAX; 1,8 milhões de doses foram revendidas; e ainda 775 mil doses terão sido cedidas a título de empréstimo.
Em todo o caso, estes mecanismos não terão sido tão intensos nos três últimos trimestres do ano passado, e muito menos ao longo de 2023, porque há um excesso de oferta perante a escassez de procura. Com efeito, a adesão dos europeus aos segundo e terceiros reforços da vacina contra a covid-19 foi bastante baixa. Conforme o PÁGINA UM revelou na semana passada, nos países abrangidos pelo ECDC apenas 14,7% da população tomou o segundo reforço e somente 2,4% o terceiro.
Prova da fraca adesão ao longo de 2022 – e também de 2023 – nota-se pelo fraco acréscimo de doses administradas entre o final do ano passado – que segundo o relatório do Tribunal de Contas, era de 27.986.899 unidades – e o valor actualmente indicado para Portugal pelo ECDC: 28.200.460 unidades. Ou seja, nos últimos seis meses apenas foram administradas, de acordo com os números indicados por duas entidades credíveis, 215.561 doses no nosso país, fazendo aumentar as quantidades desperdiçadas, sem préstimo.
Assim, mesmo excluindo as encomendas ao longo do presente ano – quantidades que continuam no segredo dos deuses, enquanto se aguarda ainda pela sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa a uma intimação do PÁGINA UM entrada em 31 de Dezembro do ano passado –, o diferencial entre as compras até ao final de 2022 (cerca de 61,2 milhões de doses) e as doses efectivamente administradas aos portugueses até agora (28,2 milhões de doses) será, portanto, de 33 milhões de doses. Ou seja, a taxa de desperdício já atingirá os 54%, em vez dos 42% estimados para o final do ano passado pelo Tribunal de Contas.
E, cálculos feitos com base nos custos unitários apontados pelo Tribunal de Contas (15,5 euros por dose), conclui-se então que o montante gasto pelo Governo em vacinas não administradas já ultrapassará os 511 milhões de euros. Recorde-se que somando todas as autorizações de despesa emanadas por Resolução do Conselho de Ministros, a mais recente das quais no passado dia 22 de Setembro, o Governo português prevê gastar até 2026 um total de cerca de 1,1 milhões de euros na compra de vacinas.
Além de outros pormenores transmitidos pelo relatório, o Tribunal de Contas acaba por revelar casos paradigmáticos dos desperdícios milionários, em benefícios das farmacêuticas, por graça e obra da Comissão von der Leyen com os acordos prévios de aquisição.
Dados actuais do European Centre for Disease Prevention and Control mostram que Portugal administrou 28,2 milhões de doses, mas o Tribunal de Contas diz que, até ao final do ano, o Governo encomendou 61,2 milhões de doses. E vêm mais a caminho até 2026.
Por exemplo, por essa via, Portugal foi obrigado a comprar 408 mil doses à Novavax, mesmo se a aprovação dessa vacina só se tivesse concretizado em Abril do ano passado. O Tribunal de Contas diz mesmo que “o desperdício foi de quase 100% das doses encomendadas”. Na verdade, consultando os dados do ECDC foram administradas apenas 314 doses, ou seja, o desperdício real foi de 99,9%.
Mas nem foi, diga-se, a pior situação. Cruzando a informação das compras por marca, constante no relatório do Tribunal de Contas, com as doses administradas por marca no site do ECDC, fica-se a saber que a vacina da Sanofi-GSK, a Vidprevtyn, autorizada apenas em Dezembro do ano passado pela DGS, teve como consequência, pelos acordos da Comissão von der Leyen, que Portugal acabasse por comprar 830.400 doses. Segundo o ECDC foram administradas até hoje somente 77 doses da Vidprevtyn, ou seja, 0,0093% do total.
Doses encomendadas (até final de 2022) e administradas (até à actualidade) em Portugal por marca e respectivas taxas de administração de desperdício. Fonte: Tribunal de Contas e ECDC.
Mesmo a Pfizer tem, até agora, uma taxa de administração que não chega aos 55%, mesmo assim bem acima da vacina da Moderna (35,5%), da AstraZeneca (33,3%) e da Janssen (28,8%).
De entre as vacinas administradas em Portugal, ainda segundo os dados do ECDC – a DGS não revela essa informação –, 74% foram da Pfizer, que acabou assim por dominar completamente o mercado nacional. A Moderna regista uma quota de 14%, enquanto a AstraZeneca e a Janssen – que não usam a tecnologia RNAm – ficaram com quotas de 8% e 4%, respectivamente.
Carlos Carreiras, presidente da autarquia de Cascais, não pára de apoiar os refugiados ucranianos, e destaca-se da “concorrência”: dos cerca de 2,2 milhões de euros em apoios de entidades públicas desde Março do ano passado, o seu município justifica mais de 1,6 milhões de euros. Mas analisando, em detalhe, os fins nobres mostram, afinal, uma suspeitosa falta de transparência. Além de diversas empreitadas por ajuste directo, a autarquia já gastou mais de 925 mil euros em alimentação, incluindo três ajustes directos à mesma empresa (ICA), com periodicidade aleatória, e um “cabaz de compras” de compras de 166 mil euros ao Modelo Continente. A autarquia não diz quantos refugiados ainda apoia nem se disponibiliza a indicar um dia para conferir a distribuição alimentar. Anteontem, o novo contrato de 250 mil euros assinado com a ICA nem sequer quantifica o número de refeições a distribuir no próximo trimestre. Serão combinadas com um alto quadro da autarquia, cujo nome é secreto. Quantas destas entrarão em bocas ucranianas, não se sabe; apenas se sabe que saíram mais 250 mil euros do erário público.
A causa pode ser nobre, mas há muita coisa que, há mais de um ano, não bate certo nos alegados apoios da Câmara Municipal de Cascais aos refugiados da Ucrânia. Mais de um ano e meio depois da invasão da Rússia com a consequente debandada de ucranianos para diversos países europeus, incluindo Portugal, a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras tem-se destacado sobremaneira em gastos por ajuste directo, sobretudo através de contratos para remodelação de edifícios e para alimentação.
Para já, analisando no Portal Base todos os contratos públicos desde Março do ano passado para apoio aos refugiados ucranianos – e em alguns casos, em simultâneo, de apoio humanitário ao Afeganistão –, a autarquia de Cascais agrega 73% do total dos gastos contratualizados. Num total de 50 contratos de 21 entidades, entre as quais 16 autarquias, o município de Cascais assinou já 19, todos por ajuste directo, envolvendo um montante total de 1.602.911 euros, excluindo IVA. Uma parte substancial foi gasto no ano passado, mas este ano a factura está já acima dos 416 mil euros.
Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais.
Para se ter uma verdadeira dimensão deste apoio no contexto nacional, a segunda entidade com maiores gastos é a Câmara Municipal de Ourém, que já despendeu 166.055 euros. Todas as outras entidades, incluindo da Administração Pública, gastaram, cada uma, menos de 100 mil euros. Por exemplo, a Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional assumiu um encargo de 79.850 euros em Dezembro do ano passado para aquisição de geradores a enviar para a Ucrânia. O contrato foi assinado com a empresa Efaflu após concurso público.
Mas no caso concreto da autarquia de Cascais, mais do que o inusitado montante, no contexto nacional, aquilo que mais surpreende é a tipologia dos gastos e sobretudo a falta de transparência nos processos de aquisição.
O mais recente contrato assinado pela autarquia de Cascais relacionado com os refugiados da Ucrânia ocorreu anteontem, beneficiando, pela terceira vez, por ajuste directo, a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar. Todos os três contratos foram de 250.000 euros, o que já totaliza os 750.000 euros. O primeiro contrato foi assinado em 7 Abril de 2022, por 91 dias, pelo que durou até à segunda semana de Julho. Mas só houve novo contrato, com a mesma empresa alimentar, em 13 de Outubro do ano passado, por um prazo de 92 dias, o que significaria que expiraria em Janeiro deste ano. Desconhece-se o que terão comido os supostos refugiados ucranianos nos meses seguintes, porque, antes do contrato deste mês de Setembro, só em Julho passado se identifica um contrato de índole alimentar envolvendo a autarquia de Cascais e, neste caso, o Modelo Continente.
Gastos totais de entidades públicas em apoio explícito aos refugiados da Ucrânia.
Ao contrário dos dois contratos com a ICA, nesta compra ao Modelo Continente, no valor total de 166.124,88 euros, consta no Portal Base o caderno de encargos com a discriminação de todos os produtos adquiridos, tanto alimentares como de higiene. E é aqui que – ainda mais perante o silêncio da autarquia de Cascais face ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM – mais se adensam as suspeitas sobre se há tantos refugiados para apoiar que justifiquem sucessivos contratos de 250.000 euros de periodicidade aleatória intercalados por uma compra avultada de bens que aparenta ser mais próprio de um cabaz de compras, mas que, no caso da componente alimentar, necessitam de ser confeccionados, tanto mais que muitos são perecíveis.
Mas no meio destas aquisições de produtos e serviços alimentares ressalta uma questão: afinal, quantos ucranianos estão ainda a ser verdadeiramente apoiados pelo município de Cascais, e se estão mesmo a ser apoiados ou se estamos perante contratos fictícios. A autarquia de Cascais acha que não tem de dar respostas e os contratos também não ajudam, pelo contrário.
O recente contrato com a ICA, tal como os outros dois, não traz qualquer indicação do número de refeições – e, portanto, ignora-se o número de refugiados apoiados – nem tão-pouco as suas tipologias ou variedade, sabendo-se apenas que se referem a pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar. No caderno de encargos deste terceiro contrato – que, neste caso, surge no Portal Base – diz-se apenas, nas especificações técnicas, que as entregas deverão ser feitas nos centros de acolhimento a refugiados, e que quanto a localizações e quantidades serão a “acordar com o gestor do contrato” na autarquia de Cascais.
Repasto em Junho do ano passado em Cascais aquando da visita do presidente da autarquia russa de Irpin a um dos centros de acolhimento de refugiados.
Neste terceiro contrato com a ICA disponibilizado no Portal Base, a autarquia decidiu abusiva e ilegalmente rasurar o nome do gestor do contrato, ficando apenas a saber-se que será o chefe do Gabinete de Intervenção Socioprofissional. Ou seja, fica tudo em combinações entre um funcionário autárquico e a empresa alimentar. Tudo no segredo dos deuses.
Numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro passado, Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento então existentes estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”.
Mas não é apenas em alimentação que a Câmara de Cascais tem feito gastos suspeitos envolvendo apoio aos refugiados ucranianos. Em Junho do ano passado, o PÁGINA UM já revelara duas empreitadas extraordinárias para a execução de obras de alojamento – algo que mais nenhuma outra autarquia portuguesa que acolheu ucranianos fez.
O primeiro contrato foi celebrado em 11 de Abril de 2022 com a Ediperfil, para adaptação da antiga creche de São José, entretanto alocada à Santa Casa da Misericórdia de Cascais, tendo um valor de 157.274,84 euros (IVA incluído).
Fachada da antiga creche de São José, na Avenida de Sintra, em Cascais, entretanto reabilitada para receber refugiados ucranianos. A autarquia nunca mostrou caderno de encargos da empreitada. Foto: Google Street.
Uma dezena de dias mais tarde foi assinado outro contrato, desta vez, com a empresa Valente & Carreiras para remodelação urgente de habitações num antigo bairro operário perto da creche, na Avenida de Sintra. O custo deste contrato: 321.052,80 euros, com o fito de criar 40 quartos, segundo informações do gabinete de imprensa da autarquia.
Porém, informações detalhadas sobre as obras destes dois contratos são escassas. O PÁGINA UM procurou então obter junto da autarquia cascalense os dois cadernos de encargos relativos a estas empreitadas, que deveriam constar do Portal Base. No entanto, a autarquia nunca os disponibilizou, optando apenas por elencar referências meramente descritivas das obras realizadas sem qualquer custo associado. Uma situação que se repetiu em relação a similares pedidos de outros contratos.
Sobre o facto de ambas as empresas terem sido contratadas por ajuste directo e também ambas serem do concelho da Batalha, o gabinete de imprensa de Carlos Carreiras foi então lacónico; “Não havendo motivo, não há nada a acrescentar”.
Mas mesmo depois destes gastos em empreitadas, o município de Cascais ter-se-á visto ainda na necessidade de fazer mais dois contratos com uma empresa de alojamento local, a Juicycategory. Custo total: 108.120 euros. Nos contratos com esta empresa – sobre os quais a autarquia nada quis revelar ao PÁGINA UM –, presentes no Portal Base, ignora-se até o objecto em concreto.
Com efeito, no primeiro contrato, assinado em 11 de Maio do ano passado, no valor de 36.040 euros, surge referência a “uma proposta apresentada em 29 de março de 2022, que aqui se dá como reproduzida e que fica a fazer parte integrante deste contrato”, mas depois nada é incluído no Portal Base. Apenas se sabe, pela descrição nesta plataforma de suposta transparência relativa à contratação pública, que este contrato teve um prazo de execução de 61 dias.
O PÁGINA UM, além de solicitar esclarecimentos sobre os contratos de alimentação, pediu que a Câmara Municipal de Cascais indicasse uma ou várias datas para se poder acompanhar in loco o fornecimento aos refugiados ucranianos das refeições trazidas pela empresa ICA, com um valor diário superior a 2.750 euros. Não se obteve (ainda) resposta.
Foi como se nada tivesse acontecido. Em Maio passado, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social identificou 14 “jornalistas comerciais” e abriu processos de contra-ordenação a sete empresas de media pela forma como cumpriam contratos comerciais com entidades públicas. Tudo ficou igual. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) mantém encartados todos os jornalistas identificados pela ERC, e os órgãos de comunicação social continuam a vender jornalistas para produzir notícias sob encomenda. Até sexta-feira em Coimbra, com a autarquia local, o Expresso mostra como se faz isto… a troco de 23.985 euros.
O Expresso continua a usar jornalistas com carteira profissional para cobrir eventos patrocinados e alvo de contratos de prestação de serviços, apesar de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) de Maio passado já ter detectado situações similares e ter aberto um processo de contra-ordenação à Impresa, dona deste jornal.
Conforme hoje o PÁGINA UM constatou, o jornalista Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) – que, aliás, através de uma empresa de comunicação, a Mad Brain, costuma fazer trabalhos ambíguos de jornalismo e comunicação empresarial em outros órgãos de comunicação social – iniciou hoje a cobertura para o Expresso do Coimbra Invest Summit, uma iniciativa da Câmara Municipal de Coimbra. No lead da notícia, assinada por Francisco de Almeida Fernandes, surgindo a sua identificação como Jornalista, diz-se que “O Expresso se associa como media partner”.
Auditório do Convento de São Francisco, em Coimbra
O Coimbra Invest Summit 2023 é uma iniciativa da Câmara Municipal de Coimbra – em parceria com a Universidade de Coimbra, o Politécnico de Coimbra, o Instituto Pedro Nunes e o iParque – para promover o ecossistema empresarial da região, tendo começado hoje e termina na próxima sexta-feira. Conta com a presença do ministro da Economia, António Costa e Silva, na sessão de encerramento das conferências, sendo certo que, assim, terá cobertura do Expresso como media partner.
No entanto, esta situação de media partner possui, na verdade, uma componente comercial pecuniária – ou seja, uma troca de conteúdos noticiosos por um pagamento directo feito pelo beneficiário desses conteúdos noticiosos –, o que impediria, de acordo com o Estatuto de Jornalista, a colaboração de jornalistas da empresa adjudicante (neste caso da Impresa), designadamente através de textos jornalísticos.
Com efeito, na quinta-feira passada foi assinado entre a Câmara Municipal de Coimbra e a Impresa Publishing – dona do Expresso – um contrato por ajuste directo para “a aquisição de serviços de Media Partner para o evento Coimbra Invest Summir 2023”, remetendo para um caderno de encargos que, incumprindo a lei, não foi colocado pela autarquia no Portal Base. O valor do contrato é de 23.985 euros, com IVA, e foi publicado no Portal Base na sexta-feira passada, vigorando até ao dia 6 de Outubro.
Recorde-se que em Maio passado, numa acção sem precedentes, a ERC identificou 14 jornalistas por escreverem conteúdos pagos em resultado de contratos assinados por grupos de media com entidades públicas. As relações comerciais, e tudo o que fica acordado, fica no segredo dos deuses, uma vez que não existe obrigatoriedade de publicitação.
Em sete processos abertos pelo regulador dos media, em reacção a questões colocadas pelo PÁGINA UM em Junho do ano passado, no âmbito exclusivo da sua função jornalística, após uma notícia sobre o financiamento dos media, foram analisados mais de meia centena de contratos com entidades públicas assinados por sete grupos de media (Global Media, Trust in News, Impresa, SIC, TVI, Cofina e Público), a análise do regulador foi feita de forma a inocentar as direcções editoriais dos órgãos de comunicação social.
Com excepção de Celso Filipe, director-adjunto do Jornal de Negócios (Cofina) e do director da Exame (Trust in News), nenhum outro director dos media analisados – entre os quais o Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF, Expresso, Visão, Público, SIC e TVI – foram identificados pela ERC como tendo participado activamente na execução de contratos comerciais, mesmo se, por exemplo, uma parte substancial deles participa regularmente como moderador de eventos pagos.
São, por exemplo, os casos já detectados pelo PÁGINA UM de Mafalda Anjos (directora da Visão), Rosália Amorim (directora do Diário de Notícias), David Pontes (antigo director-adjunto e actual director do Público), Manuel de Carvalho (director do Público até Maio deste ano), Inês Cardoso (directora do Jornal de Notícias) e Joana Petiz (antiga directora do Dinheiro Vivo, que foi agora dirigir O Novo).
Francisco de Almeida Fernandes é um jornalista com carteira profissional que faz conteúdos comerciais pagos e conteúdos jornalísticos, através de uma empresa de comunicação. ERC já o identificou, mas CCPJ nada fez de concreto.
Na esmagadora maioria das situações, estes directores editoriais participam como mestres-de-cerimónias de eventos patrocinados, ou seja, como moderadores. E, em última análise, são responsáveis pela cobertura noticiosa desses eventos, que em muitos casos estão previstos nos cadernos de encargos. Isto é, os directores são obrigados contratualmente a dar cobertura noticiosa, o que significa uma ingerência externa considerada ilegal pela Lei da Imprensa.
No lote dos jornalistas considerados “comerciais” – termo que não surge na deliberação, mas que o PÁGINA UM considera adequado para tipificar as acções –, destacam-se três nomes relevantes. O primeiro é, como já referido, Celso Filipe (CP 852), director-adjunto do Jornal de Negócios desde 2018, e que já se integra na equipa editorial deste periódico da Cofina desde 2006. A ERC aponta-lhe a produção de textos para a execução de um contrato assinado com a Secretaria-Geral do Ministério da Economia.
O segundo jornalista conhecido é Miguel Midões (CP 4707), que, além de uma das vozes da TSF desde 2014 é ainda professor de Comunicação Social na Universidade de Coimbra e do Instituto Politécnico de Viseu, além de vogal do Sindicato dos Jornalistas. A ERC analisou, entre outros contratos, o pagamento de 75.000 euros para a realização, por Miguel Midões, de 15 programas radiofónicos “Desafios do Urbanismo”, entre 1 de Julho e 7 de Outubro de 2021.
O terceiro jornalista com maior visibilidade é Luís Ribeiro (CP 3188), que trabalha desde 1999 na revista Visão, coordenador da secção de Ambiente, além de ser habitual comentador na SIC Notícias. Neste caso, a ERC apontou-lhe a autoria de cinco textos jornalísticos (incluindo entrevistas) assinados para cumprimento de um contrato com a Águas de Portugal para apoio aos Prémios Verdes, mas que estabelecia a obrigatoriedade de cobertura noticiosa e a publicação de artigos de opinião de dirigentes daquela empresa pública tutelada pelo Ministério do Ambiente.
Também o director da Exame, Tiago Freire (CP 3053), foi “apanhado” a escrever um editorial de um suplemento em cumprimento de um contrato com a COTEC. Apesar da própria Trust in News ter até admitido que “o tratamento destes conteúdos foi realizado por colaboradores com carteira profissional e por jornalistas da EXAME, sempre, em qualquer um dos casos, com total autonomia editorial”, o director foi o único identificado pela ERC.
Além destes quatro, a ERC ainda identificou – para efeitos de averiguação, para eventuais processos disciplinares, por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – mais 11 jornalistas: Rute Coelho (CP 1893), Carla Aguiar (CP 739), Adriana Castro (CP 7692), Alexandra Costa (CP 2208) – por textos publicados em periódicos da Global Media –, Filipe S. Fernandes (CP 1175) e António Larguesa (CP 5493) – por textos publicados no Jornal de Negócios –, Mário Barros (CP 7963) – por um texto publicado no Público – e ainda José Miguel Dentinho (CP 882), Fátima Ferrão (CP 6197) e Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) – por textos publicados no Expresso.
O PÁGINA UM questionou, há semanas, a CCPJ sobre se as deliberações que a ERC lhe enviou com a identificação dos “jornalistas comerciais” tinha originado algum procedimento disciplinar, mas esta entidade escusou-se a responder, alegando confidencialidade. Em finais de Julho, a CCPJ fez sair uma recomendação sobre “o fenómeno dos conteúdos patrocinados feitos por jornalistas, ou dos conteúdos comerciais disfarçados de jornalismo”, assumindo ser “de dimensões preocupantes”, dizendo também que “tem atuado tomando várias e diferentes medidas para enfrentar o problema”, mas não informou sobre a abertura de qualquer procedimento disciplinar.
ERC fez deliberações em Maio identificando “jornalistas comerciais”. Tudo ficou na mesma.
Em resposta a um pedido de esclarecimento do PÁGINA UM, a entidade presidida pela jurista Licínia Girão diz que “nos termos da Lei é reconhecida à CCPJ a possibilidade de instaurar inquérito ou processo disciplinar”, sendo que “essa possibilidade de atuação é analisada caso a caso, de forma independente, sem interferências de pessoas, entidades ou órgãos alheios”, acrescentando que “os membros e colaboradores da CCPJ estão obrigados a manter sigilo” quanto às decisões tomadas nos respectivos órgãos.
Acrescenta ainda esta entidade, só será divulgado algo depois de “esgotado o prazo de impugnação contenciosa, ou transitado em julgado o processo respetivo, a parte decisória da condenação (…), no prazo de sete dias e em condições que assegurem a sua adequada perceção, pelo órgão de comunicação social em que foi cometida a infração”.
Saliente-se que, tal como sucede com a generalidade dos processos administrativos e judiciais, a abertura de processos é genericamente público, mantendo-se apenas o segredo de justiça até à conclusão do inquérito com a subsequente acusação ou arquivamento.
A Administração do Hospital de Braga “esqueceu-se” de publicar no Portal Base, durante mais de dois anos, e em alguns casos até mais de três anos, dezenas de contratos de aquisição de equipamentos de protecção individual e de materiais relacionados com a pandemia. O PÁGINA UM identificou 32 contratos acima de 100 mil euros, envolvendo 17 empresas, que tiveram um custo total de 7 milhões de euros para os cofres do Hospital de Braga. A legislação obriga que sejam publicitados na plataforma da contratação pública no prazo máximo de 20 dias úteis, mas detectaram-se sete contratos que demoraram mil ou mais dias até serem conhecidos. O atraso, que curiosamente só atinge aquisições associadas à covid-19, não é um mero pormenor burocrático. Ao fim deste tempo todo, mostra-se agora quase impossível averiguar as condições de aquisição e se as entregas foram mesmo realizadas pelos fornecedores, tanto mais que, como se estava num regime de excepção, tudo foi combinado por ajuste directo e sem redução a escrito.
O Hospital de Braga demorou mais de dois anos, e por vezes até mais de três anos, a disponibilizar pelo menos 32 contratos no Portal Base relacionadas com aquisições de equipamentos de protecção individual e materiais relacionados com a pandemia.
Como a generalidade desses contratos foi feita por ajuste directo, sem sequer serem reduzidos a escrito – beneficiando de um regime de excepção instituído pelo Governo – não existem quaisquer documentos de suporte nem referências, na maior parte dos casos, às quantidades compradas nem comprovativos idóneos que atestem as quantidade efectivamente entregue pelos fornecedores escolhidos a dedo, e sem critério objetivo, pela administração hospitalar.
São 32 contratos acima de 100 mil euros que acabaram “esquecidos” pelo Hospital de Braga durante mais de dois anos, dificultando agora qualquer verificação da sua execução. Todos associados a aquisições no âmbito da pandemia.
De acordo com um levantamento do PÁGINA UM, foram estabelecidos, sem documentação, 32 contratos superiores a 100 mil euros pelo Hospital de Braga durante 2020 – e em grande parte nos primeiros meses da pandemia – e os primeiros meses de 2021 (até Maio) para a compra sobretudo de máscaras, luvas de nitrilo e outros equipamentos de protecção individual, bem como de zaragatoas e testes. Só estes contratos totalizaram 7.013.105 euros. Existem mais contratos com valores abaixo da fasquia dos 100 mil euros, a generalidade por ajuste directo sem redução a escrito.
Cinco destes contratos ascendem aos 400 mil euros, tendo sido estabelecidos por ajuste directo entre Março e Agosto de 2020, embora a informação no Portal Base apenas tenha começado a surgir a partir de Janeiro deste ano. Três destes contratos milionários de 2020, esquecidos nos corredores do Hospital de Braga, só foram introduzidos no mês passado, em Maio deste ano. Segundo a portaria que regula o funcionamento e gestão do portal dos contratos públicos (Portal Base), as entidades públicas têm a obrigatoriedade de entregar informação sobre os contratos, mesmo daqueles que sejam por ajuste directo e sem redução a escrito, até 20 dias úteis após a sua celebração. Atente-se também que sem o regime de excepção seria impossível a aquisição deste tipo de materiais por ajuste directo, sem contrato escrito, envolvendo tão avultados montantes.
Sendo certo que nem sempre as entidades públicas cumprem o prazo de 20 dias, mostra-se, contudo, completamente inaudito a ocorrência de atrasos tão elevados nestes contratos do Hospital de Braga, até porque somente atingem as aquisições relacionadas com a pandemia ao longo de 2020 e dos primeiros meses de 2021. Numa panóplia de outros contratos, para a aquisição de medicamentos para outras doenças, por exemplo, o Hospital de Braga não apresenta atrasos desta ordem de grandeza, nem pouco mais ou menos, mesmo em aquisições feitas no auge da pandemia. O “problema” foi, de facto, exclusivamente, dos contratos relacionados com a covid-19.
Com efeito, dos 32 contratos analisados pelo PÁGINA UM – todos acima de 100 mil euros, dos quais 28 se celebraram em 2020 e quatro em 2021 (até Maio) –, aquele que demorou menos tempo entre a celebração do contrato (sem redução a escrito) e a sua publicação do Portal Base foi para a compra de 4.800 testes PCR à empresa Horiba, em 20 de Maio de 2020, com um custo total de 178 mil euros. Como a sua publicitação ocorreu apenas em 23 de Maio passado, decorreram assim 733 dias até constar no Portal Base.
No extremo oposto, identificaram-se dois contratos que demoraram 1.140 dias a serem publicitados: um da Teprel, para a aquisição de um número indeterminado de humidificadores com gerador de fluxo, no valor de 106.961 euros – adquiridos logo no início da pandemia (26 de Março de 2020), e que apenas foi colocado no Portal Base no mês passado –, e outro da Colunex, que vendeu em Março de 2020 um número indeterminado de máscaras cirúrgicas e FFP2 no valor de 477.500 euros. Ignora-se o valor unitário de cada tipo de máscara e, obviamente, a quantidade adquirida e efectivamente entregue.
Aliás, os contratos envolvendo a Colunex, uma empresa conhecida por vender colchões, já tinha merecido uma notícia do PÁGINA UM em 6 de Novembro do ano passado, quando se detectou que tinha facturado 1,3 milhões de euros numa semana no início da pandemia por vendas de máscaras aos hospitais do Tâmega e Sousa, aos dois centros hospitalares do Porto, à Unidade Local de Saúde de Matosinhos e ao Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira. Neste último caso, existe a informação no Portal Base de que “na 1ª entrega todo o material foi devolvido por não corresponder ao adjudicado”, mas não são registadas anomalias nos outros contratos.
Conselho de Administração do Hospital de Braga, que a partir de 2019 deixou de ser gerido por uma parceria público-privada. Em primeiro plano, o presidente, João Porfírio Oliveira, responsável máximo pelas aquisições e pelos atrasos na publicitação dos contratos no Portal Base.
Como em Novembro do ano passado ainda não constavam as vendas da Colunex ao Hospital de Braga – dois contratos por ajuste directo, um no valor de 477.500 euros e outro de 414.000 euros –, agora sabe-se que a empresa de colchões terá facturado, em contratos sem redução a escrito, cerca de 2,3 milhões de euros. Isto se não houver mais contratos “escondidos” do Portal Base. Note-se que antes da pandemia as vendas da Colunex a entidades públicas foram de zero.
No caso destas compras do Hospital de Braga, a Colunex – que, portanto, facturou nos dois contratos 891.500 euros – nem foi a empresa que mais facturou. O pódio vai para a Alfagene, uma empresa de comercialização de produtos laboratoriais, que conseguiu três chorudos contratos em 2020, que só agora em 2023 acabaram plasmados no Portal Base, embora sem qualquer documento associado, porque também foram por ajuste directo sem redução a escrito.
O mais elevado foi assinado em 6 de Agosto de 2020 para a aquisição de 30.000 testes e custou 573.900 euros. Demorou 900 dias a aparecer no Portal Base. O segundo contrato mais valioso da Alfagene envolveu a compra de “kits de estracção e detecção de SARS-CoV-2”, sem indicação da quantidade. Celebrado em 15 de Janeiro de 2021, com um valor contratual de 426.762 euros, a informação da sua existência apenas surgiu no Portal Base 840 dias depois. O terceiro contrato foi assinado em 12 de Maio de 2021, para mais kits em número indeterminado, tendo o Hospital de Braga desembolsado mais 426.762 euros. A informação sobre este contrato demorou 744 dias a chegar ao Portal Base. No total, a Alfagene facturou ao Hospital de Braga 1.427.424 euros em contratos escondidos durante mais de dois anos. Quantos kits entregou? Não se sabe.
A Colunex, com sede numa freguesia de Paredes, fundada em 1986, vende sobretudo colchões de gama alta, mas facturou 2,3 milhões de euros em equipamentos de protecção individual nos primeiros meses da pandemia, sempre por ajuste directo.
Além da Colunex e da Alfagene, o Hospital de Braga celebrou contratos, “esquecidos” durante mais de dois anos, com a Teprel (quatro contratos no valor total de 697.977 euros), a PTTEX (três contratos no valor total de 569.500 euros), a Interhigiene (dois contratos no valor total de 440.000 euros), a Intehigiene (dois contratos no valor de 397.500 euros), a Bastos Viegas (dois contratos no valor total de 393.646 euros), a A Menarini (dois contratos no valor total de 316.000 euros), a Fapomed (dois contratos no valor de 255.000 euros) e ainda, com um contrato cada, as seguintes empresas: Clinifar, Intersurgical, Roche, Horiba, Quilabam, PHM, Medicinália Cormédica, Batist Medical Escala Braga (para remodelação dos serviços de urgência) e Enerre.
Note-se que fora deste período (a partir de Maio de 2021), e com outros produtos (ao longo de todo o período da pandemia), os prazos entre a celebração dos contratos e a sua publicitação são incomensuravelmente mais curtos. A título de exemplo, um contrato assinado entre o Hospital de Braga e a empresa Raclac para a aquisição de luvas de nitrilo em 22 de Julho do ano passado, no valor de 127.594 euros, demorou apenas cinco dias a surgir no Portal Base. Ou seja, um contrato assinado mais de um ano depois dos primeiros é publicitado em cinco dias; os outros, na primeira fase em que tudo era permitido com o argumento da urgência em salvar vidas demoraram, por vezes, mais de 1.000 dias, ficando esquecidos mesmo quando a calma ressurgiu.
No passado dia 2, o PÁGINA UM contactou à Administração do Hospital de Braga, presidido por João Porfírio de Oliveira, pedindo diversos esclarecimentos e documentos. Questionou-se sobre como se comprovava a verdadeira aquisição dos materiais e a veracidade das entregas dos materiais, quem foi responsável pelas aquisições e quais foram as razões para a demora da publicitação da informação dos contratos no Portal Base. Também se perguntou se o Hospital de Braga informava alguma entidade tutelada pelo Ministério da Saúde sobre as aquisições feitas no âmbito da pandemia.
Também se questionou se ainda existem mais contratos relativos aos anos da pandemia (2020 a 2022) não colocados no Portal Base e quais os montantes efectivamente gastos pelo Hospital de Braga em equipamentos de protecção individual e em testes e outros materiais no âmbito da pandemia.
Solicitava-se, de igual modo, que fossem enviados as facturas e os documentos de entrega (guias de remessa) dos materiais.
Hoje, em nota enviada ao PÁGINA UM, que pode ser lida aqui na íntegra, a Administração do Hospital de Braga nada esclarece de forma considerada plausível sobre os motivos do atraso na publicitação dos contratos escondidos por mais de dois anos – e que, saliente-se, de novo, apenas atinge contratos relacionados com a covid-19 – nem envia qualquer documento.
Hospital de Braga passou de novo para a esfera pública em 2019.
Apesar de ser evidente o tempo em que os contratos e os montantes envolvidos estiveram escondidos, o Conselho de Administração do Hospital de Braga diz que “a priorização dada à situação epidemiológica de Covid-19, bem como as medidas excecionais e temporárias decorrentes, obrigou à aquisição de diverso equipamento de proteção individual e sanitário, tendo sido celebrados para o efeito diversos contratos, todos no cumprimento dos requisitos, procedimentos e transparência exigíveis.” Ou seja, a transparência foi tão grande que, na esmagadora maioria dos contratos, nem sequer se explicita a quantidade adquirida, e portanto nem se sabe o valor unitário e o nível de especulação de preços.
Mais adiante, na sua nota, o Conselho de Administração do Hospital de Braga diz também que “a excecionalidade da situação, associada a dificuldades relacionados com os recursos humanos, conduziram à publicação desfasada de alguns contratos, encontrando-se, atualmente, os procedimentos normalizados e todos os contratos integralmente publicados”, acrescentando ainda que “a missão e o foco de atuação do Hospital de Braga, EPE passam por privilegiar o acesso, a prestação de cuidados de excelência e a melhoria contínua da Qualidade, da Segurança e Sustentabilidade Financeira e Ambiental, desenvolvendo a sua atividade no cumprimento do enquadramento legal que lhe é aplicável.”
Por fim, diz ainda que “anualmente, é elaborado, entre outros, o Relatório e Contas, onde se encontra espelhada informação referente à atividade, ao desempenho e às contas do Hospital de Braga, EPE e onde consta, desde 2020, um capítulo dedicado à Covid-19.”
Transparência e rigor na gestão dos dinheiros públicos continuam a ser atributos menosprezados. Administração do Hospital de Braga apresenta justificações absurdas para atrasos incompreensíveis.
Analisado os relatórios e contas do Hospital de Braga de 2020 e 2021, o PÁGINA UM confirmou que os capítulos dedicados à covid-19 nada esclarecem sobre as aquisições, fornecedores e quantidades entregues. Do ponto de vista contabilístico, no ano de 2020 apenas surge um quadro elencando os custos por grandes itens, com um montante total de 20.439.019,77 euros. Para o ano de 2021, o pouco detalhe é similar, apontando-se um custo global de 38.33.071,93 euros.
Que todo este dinheiro foi gasto, não haverá grande dúvidas. Se correspondeu a material efectivamente entregue e consumido, e a custos justos, aparentemente só com uma investigação policial se encontrará luz. Até porque, face a tantos contratos de elevado montante, por ajuste directo, sem conhecimento de quantidades nem preços unitários, e escondidos durante mais de dois anos do conhecimento público, somente uma instância de investigação policial, ou uma qualquer divindade, conseguirá apurar se estamos perante uma mera negligência ou um esquema ilegal num período onde o dinheiro público era fácil de gastar, aos milhões, sem questionar. Aliás, parecia mesmo mal estar a questionar-se. E houve empresas privadas que agradeceram.
CONTRATOS DO HOSPITAL DE BRAGA NO ÂMBITO DA COVID-19 ACIMA DE 100.00 EUROS ENTRE MARÇO DE 2020 E MAIO DE 2021
Alfagene
Data do contrato: 6/8/2020
Data da publicação: 23/1/2023
Dias entre contrato e publicação: 900 dias
Aquisição de 30.000 testes para SARS-CoV-2 com colocação de equipamentos
Menos de um ano após um polémico arquivamento, por caducidade, de um procedimento contra o Porto Canal, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) quis corrigir a mão, e passou a “pente fino” uma dezena de contratos entre o canal televisivo do Futebol Clube do Porto e entidades públicas. Saiu um rol de irregularidades e ilegalidades. E foi identificado, pela primeira vez, um jornalista, Pedro Carvalho da Silva, por participar em conteúdos que consubstanciam a execução de contratos comerciais. Este poderá ser o primeiro caso de muitas dezenas espalhados pelos principais órgãos de comunicação social portugueses. Além disso, a Porto Canal vai ter de exibir e ler um longo texto no seu noticiário para assumir as falhas.
Ausência de identificação de patrocínios em programas, jornalistas a executarem programas comerciais, publicidade ilegal a bebidas alcoólicas e violação das normas do Código dos Contratos Públicos – este é o rol de irregularidades e ilegalidades detectadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) numa averiguação a “pente fino” de contratos entre o Porto Canal – detida pela empresa Avenida dos Aliados, maioritariamente detida por uma sociedade ligada ao Futebol Clube do Porto e presidida por Jorge Nuno Pinto da Costa.
A deliberação do regulador, assumida em 22 de Março passado – e à qual o PÁGINA UM teve acesso em primeira-mão, e que ainda não constava hoje no site da ERC –, além de originar três procedimentos autónomos com vista a processos de contra-ordenação, obriga desde já o Porto Canal à leitura e exibição de um longo texto no seu serviço noticioso de maior audiência, “atendendo à colisão com a obrigação e garantir uma programação independente face ao poder económico”.
Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto SAD e da Avenida dos Aliados S.A., detentora do Porto Canal.
Nesse texto, o Porto Canal vai ter de assumir que em dois dos seus programas (Imperdíveis, patrocinado pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), e Viver Aqui, patrocinado pelo município de Vila Nova de Gaia, em Novembro e Junho de 2021, respectivamente), “ambos sob alçada da Direcção de Informação”, houve publicitação de bens, marcas e serviços de entidades públicas “sem que tal tivesse sido devidamente identificado perante os telespectadores”.
A ERC obriga também o Porto Canal a assumir que esta sua opção “revestiu-se de opacidade, não cuidando de informar os telespectadores de que tais conteúdos resultaram de contrapartidas monetárias”, e que tal, quando não devidamente identificada, ameaça seriamente a independência do órgão de comunicação social e o livre exercício do direito à informação”.
O regulador – no âmbito de uma análise detalhada, mas que incidiu somente no período de um ano (1 de Julho de 2021 a 30 de Junho de 2022, e em contratos exclusivamente com entidades públicas – identificou também, pela primeira vez, jornalistas habilitados com carteira profissional a executarem tarefas incompatíveis, ou seja, no cumprimento de tarefas impostas em contratos comerciais.
Depois de ter deixado caducar um procedimento aberto em 2018, ERC voltou a passar os contratos do Porto Canal a “pente fino”. Irregularidades e ilegalidades são mais que muitas.
Esta tem sido uma das matérias mais polémicas dentro da classe jornalística, denunciado várias vezes pelo PÁGINA UM, e sobre as quais a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, presidida pela jurista Licínia Girão, nada tem feito em concreto para atalhar.
Desta vez – e é mesmo uma situação inédita –, a ERC nomeia explicitamente o jornalista Pedro Carvalho da Silva (CP 4108), pivot do Porto Canal e apresentador do programa de “infoentretenimento” Viver Aqui, por participar na produção de conteúdos onde “compromete não só o seu direito à autonomia e independência, como também o seu dever correspondente, tal como determinado no Estatuto do Jornalista”.
Por outro lado, o Porto Canal comprometeu-se, neste contrato de 15 mil euros, a realizar cinco reportagens de 10 minutos em cinco meses, com conteúdos articulados entre as duas entidades, e ainda uma reportagem alargada de uma hora, ficando a hipótese de “dar ênfase ao Património Histórico ou até mesmo fazer várias reportagens em simultâneo em várias Caves de Vinho do Porto.” Ou seja, ingerências escandalosas na definição editorial de um órgão de comunicação social sob a forma de contrato público.
Pedro Carvalho da Silva (“mascarado”), jornalista do Porto Canal, que será (em princípio) alvo de um processo disciplinar pela CCPJ, durante o primeiro aniversário do programa Viver Aqui (15 de Março de 2022), patrocinado pela autarquia de Vila Nova de Gaia. Ao seu lado esquerdo, o antigo director do Porto Canal, Tiago Girão, que cessou funções no mês de Março, mas que não foi abrangido pela deliberação da ERC.
Na sua deliberação, os membros do Conselho Regulador dizem mesmo – e querem agora que o Porto Canal o exponha aos seus telespectadores – que “ao não acautelar as previsões legais e deontológicas exigidas, a televisão do Futebol Clube do Porto SAD “poderá ter comprometido a veracidade , rigor e objectividade dos conteúdos, em prejuízo do interesse público e da livre formação da opinião”.
Nessa medida, a ERC enviou o processo do jornalista Pedro Carvalho da Silva para instauração de um processo disciplinar pela CCPJ. Ao contrário do que é habitual, desta vez a ERC invoca expressamente o artigo 14º do Estatuto do Jornalista, o que impedirá, em princípio, a CCPJ de não abrir, como é habitual, a abertura deste tipo de procedimentos disciplinares.
Além de outras situações aparentemente legais mas que revelam grande promiscuidade – como autarcas que patrocinam programas a serem entrevistados nesses mesmos programas, como sucedeu com políticos de Valongo (duas vezes), Vizela e Póvoa de Varzim –, a ERC detectou ainda três casos de contratos públicos celebrados em data posterior à emissão das “peças jornalísticas”, designadamente aqueles assinados entre o Porto Canal e a UTAD e os municípios de Valongo e Póvoa de Varzim. Para estes casos, a ERC remeteu o caso para o Tribunal de Contas que poderá vir a determinar a nulidade destes três contratos e a correspondente devolução das verbas, além da eventual aplicação de multas.
Excerto do caderno de encargos entre o Porto Canal e o município de Vila Nova de Gaia que estipula a obrigatoriedade da realização de reportagens jornalísticas sobre o município e uma entrevista ao edil.
No caso do contrato com a UTAD, que envolveu a divulgação e cobertura do evento Vinhos Alumni, a ERC considerou que, pelas declarações dos enólogos, se estava perante publicidade a bebidas alcoólicas, pelo que será levantado um processo de contra-ordenação por violação da Lei da Publicidade.
Na mesma linha, o patrocínio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte para o programa Norte num Minuto mereceu críticas do regulador que, apesar das justificações do Porto Canal, decidiu abrir um “processo administrativo com vista ao apuramento sistemático e em profundidade das questões legais”.
Em suma, o regulador pretende analisar com maior detalhe uma prática cada vez mais sistemática dos media mainstream: a encomenda de conteúdos específicos por parte de um patrocinador para serem explicitamente transmitidos por um órgão de comunicação social sem que seja claro para o público que se está perante um condicionamento (pelo menos indirecto) à liberdade editorial.
Além de tudo isto, a ERC ainda detectou que a empresa Avenida dos Aliados – a detentora do Porto Canal – não tinha colocado no ano passado a informação sobre os fluxos financeiros na Plataforma da Transparência dos Media e se existiam clientes relevantes.
Jornalistas a cumprirem contratos comerciais abundam nas redacções, mas até agora a ERC não os identificava nem remetia os processos para a CCPJ invocando o artigo correcto do Estatuto do Jornalista.
A situação foi entretanto corrigida, ficando-se agora a saber que a empresa do Porto Canal teve um prejuízo em 2021 da ordem dos 233 mil euros e que depende quase exclusivamente da FCP Media (do universo da Futebol Clube do Porto SAD) para sobreviver. Com efeito, dos cerca de 3,7 milhões de euros de rendimentos naquele ano, quase 3,5 milhões (93,94%) foram “injectados” pela FCP Media.
Saliente-se que esta fiscalização especial ao Porto Canal sucede depois de um polémico arquivamento no ano passado de um procedimento, que deveria ter culminado num processo de contra-ordenação. O arquivamento foi justificado por “caducidade”, através de uma deliberação do Conselho Regulador da ERC, e a celeuma provocou mesmo uma reestruturação interna.
A ERC, sabe o PÁGINA UM, está também a analisar um vasto conjunto de contratos similares aos do Porto Canal que envolvem a maioria dos principais órgãos de comunicação social, tendo jornalistas habilitados com carteira profissional a executá-los como se fossem “jornalistas comerciais”.
A homenagem a António Guterres em Vizela, sob a forma de escultura, é apenas mais um dos casos em que a arte pública está conotada ao mundo dos amiguismos ou do marketing pessoal dos artistas plásticos. O PÁGINA UM foi dar uma “vista de olhos” nas esculturas encomendadas desde 2022 por autarquias, universidades e outras entidades públicas. E se a diversidade de preços é grande, quase todas têm uma característica comum: não houve concorrência; paga-se para ver em definitivo, porque os contratos são por ajuste directo. De entre os mais beneficiados está a nova coqueluche da arte urbana: Bordalo II já facturou, nos últimos cinco anos, mais de 650 mil euros em ajustes directos.
Há de tudo um pouco no mundo da arte pública. Desde obras que orçam nem seis mil euros até valores que se aproximam dos 200 mil euros, mas todos com um ponto em comum: ajustes directos, o que, em termos práticos, significa que o adjudicante escolheu literalmente a dedo quem, com as mãos, lhe haveria de fazer esculturas.
Num momento em que ecoam críticas à beleza e ao custo da escultura de António Guterres em Vizela – encomendada pela autarquia por 89.980 euros para homenagear o primeiro-ministro que elevou aquela vila a sede de concelho, em 1998 –, este caso revela apenas os meandros do pequeno mundo da arte escultórica em Portugal, onde mais do que o aprumo no cinzel ou as noções estéticas do escultor jogam mais as suas ligações ou o marketing pessoal.
Estátua de António Guterres custou quase 90 mil euros.
Com efeito, de acordo com uma análise do PÁGINA UM, de entre os 49 contratos relacionados com esculturas registados no Portal Base desde Janeiro de 2022, apenas um foi por concurso público, aberto pelo município do Porto e ganho por Gelimar da Silva Trillo, que teve de “derrotar” cinco concorrentes. O valor, porém, é dos mais baixos que se detectam. No total, os 48 contratos por ajuste directo desde 2022 totalizam mais de 1,3 milhões de euros.
No topo da lista de contratos por ajuste directo está uma escultura em homenagem ao cavaleiro Joaquim Bastinhas, falecido em 2018, que a autarquia de Elvas encomendou ao escultor espanhol José Antonio Navarro Arteaga, conhecido em Portugal por ser o autor do busto de 60 quilogramas de bronze de Cristiano Ronaldo que se encontra no museu do Real Madrid.
Para a escultura do toureiro português, a Câmara de Elvas, presidido pelo “dinossauro” Rondão Almeida, nem pestanejou em pagar 177 mil euros em Julho do ano passado, sendo, por agora, conhecida uma réplica em pequeno tamanho.
Escultor espanhol que fez busto de Cristiano Ronaldo para o museu do Real Madrid recebeu 177 mil euros da autarquia de Elvas para homenagear o cavaleiro Joaquim Bastinhas.
O segundo maior contrato por ajuste directo desde 2022 foi estabelecido pela Fundação Marques da Silva, ligada à Universidade do Porto. Por duas peças escultóricas, a encomenda foi entregue directamente ao arquitecto Álvaro Siza Vieira por 175 mil euros, em Abril do ano passado. A ausência de concurso público ter-se-á devido ao facto de um dos mais famosos arquitectos portugueses ser já o autor do edifício do novo centro de documentação desta instituição.
Já a Câmara Municipal de Trofa fez o terceiro contrato mais elevado, decidindo, também por ajuste directo, comprar uma escultura e dois conjuntos de desenhos do artista plástico Alberto Carneiro, já falecido, em 2017.
O contrato, neste caso, beneficiou uma galeria de arte lisboeta (Galeria 3 + 1), que detinha estas obras de arte, tendo a aquisição uma justificação até bastante plausível: Alberto Carneiro, cuja obra premiada está exposta em vários importantes museus, nascera em 1937 naquele concelho, mais precisamente em São Mamede do Coronado.
Uma parte substancial das esculturas são de preço abaixo dos 10 mil euros (20 contratos), havendo apenas seis acima dos 50 mil.
Neste segundo grupo conta-se a a escultura promovida por Miguel Guimarães, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, que gastou 57 mil euros para que Rogério Abreu fizesse duas cabeças de metal oco mascaradas a glorificar os “heróis da pandemia”. Por ajuste directo, claro.
Quem, de entre os vivos, também não se pode queixar da concorrência é o escultor Bordalo II, transformado nos últimos anos na nova coqueluche das artes plásticas. Através da sua empresa Mundofrenético, Artur Bordalo arrecadou dois contratos por ajuste directo nas últimas cinco semanas: no dia 15 deste mês a Lipor – a empresa de gestão de lixos do Grande Porto – pagou-lhe 18.860 euros por uma escultura, e o Instituto Superior Técnico encomendou-lhe também uma escultura por 57.500 euros, em 20 de Fevereiro.
Estas duas esculturas vão juntar-se a mais 23 contratos por ajuste directo que Bordalo II já conseguiu de entidades públicas, tendo facturado, em apenas cinco anos, um total de 652.329 euros. Em todo o caso, Bordalo II nunca facturou mais do que 72 mil euros por uma peça – valor que fica assim aquém da escultura de António Guterres em Vizela.
Sendo as autarquias um dos principais clientes destes artistas, não surpreende assim que se estabeleçam laços que vão além da arte. Um desses exemplos ocorre no município de Loulé, onde a Origami, pertencente ao artista plástico Filipe Feijão, conseguiu três ajustes directos para a execução de esculturas no valor total de 48 mil euros.
A Origami foi responsável pelos corsos dos Carnavais daquele concelho algarvio entre 1999 e 2014. Esta empresa – que tem sede nas Caldas da Rainha – tem, aliás, no município de Loulé um extraordinário cliente, sempre por ajustes directos: desde 2017 soma 11 contratos por ajuste directo no valor total de 201.750 euros.
A influência dos artistas na arte de obtenção de contratos por ajuste directo tem, de facto, em muitas situações, um padrão regional. Será, por exemplo, o caso de Francisco Lucena – que, desde 2020, conseguiu três contratos com autarquias.
Na verdade, Lucena é um especialista em conseguir contratos para o mais variado tipo de esculturas públicas contratadas por ajuste directo por autarcas. No seu portefólio contam-se 26 contratos para esculturas urbanas, pagas por autarquias, quase todas do interior norte e centro, das quais apenas em dois casos teve consulta prévia.
Aos 36 anos, Bordalo II acumula cada vez mais contratos por ajuste directo: em cinco anos foram já mais de 650 mil euros facturados.
Este escultor tem alguns clientes habituais, o que é bem representativo da cultura destes negócios: dos 18 municípios a quem já entregou arte pública, há quatro repetentes: Vila Pouca de Aguiar (quatro contratos), Trancoso e Sernancelhe (três, cada) Vila Pouca de Aguiar (dois). Francisco Lucena amealhou, desde 2010, um total de 700.819 euros apenas de câmaras municipais.
Apesar destas ligações promíscuas, que impedem a livre concorrência e estímulo criativo para novos artistas, o silêncio é a alma do negócio. De uma forma aberta, não há, na verdade, quem critique abertamente a forma como os contratos por ajuste directo se executam ao longo do país para obras desta natureza.
N.D. Republicamos um dos trabalhos de investigação da campanha “Todos por Quem Cuida”, originalmente publicados em Dezembro do ano passado, após a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ter decidido tomar uma “deliberação” (leia-se a opinião de três pessoas) que, entre outros dislates, dá bitates sobre como se deveria conduzir uma investigação jornalística num país democrático, “insta o PÁGINA UM ao escrupuloso cumprimento dos normativos legais e deontológicos em matéria de rigor informativo”. Como nada há a mudar no que publicámos em Dezembro passado, o PÁGINA UM insta a ERC a não ingerir, como reiteradamente tem feito, na independência dos jornalistas e a interferir nos seus métodos de trabalho (sobretudo naquele que seja incómodo), recomenda-lhe ainda que aprenda a analisar melhor as normas da DGS e as questões atinentes sobre a matéria em causa, que estude melhor (e sem viés) os documentos que profusamente apresentámos (e que não eram públicos antes, e tornaram-se acessíveis por sentença do Tribunal Administrativo), e, por fim, que prescinda de juízos de valor sobre esta investigação jornalística, sobretudo antes de serem conhecidos os resultados do “processo de esclarecimento” instaurado por despacho do inspector-geral das Actividades em Saúde em 15 de Janeiro passado. O PÁGINA UM deseja também um sossegado fim de mandato (que, por lei, já deveria ter terminado em Novembro passado) aos (ainda) membros do Conselho Regulador da ERC, e que o façam com um mínimo de dignidade. Recorde-se ainda que em outra deliberação, esta de Julho do ano passado, a ERC também decidiu criticar um trabalho do PÁGINA UM sobre o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais. A investigação do PÁGINA UM era tão má, mas tão má, mas mesmo tão má, que, enfim, e afinal, esteve na base da aplicação de uma contra-ordenação sobre António Morais, que, hélas, se queixara à ERC do mau trabalho jornalístico. Este presente artigo manter-se-á como manchete até sexta-feira.
Em Fevereiro de 2021, num polémico início da campanha de vacinação contra a covid-19, e apenas uma semana após tomar posse na task force, Gouveia e Melo, o agora Chefe do Estado-Maior da Armada, negociou com o bastonário Miguel Guimarães as condições para se vacinarem vários milhares de médicos que não estavam na lista de prioridade da Direcção-Geral da Saúde. Mais de 27 mil euros foram parar aos cofres do Hospital das Forças Armadas, sem que o acordo ad hoc tenha sido autorizado. Pior ainda foi a operação contabilística: a conta acabou paga pela campanha “Todos por Quem Cuida” (detida por três particulares), mas a factura foi endereçada para a Ordem dos Médicos. Entretanto, este ano, surgiram quatro farmacêuticas a “reivindicar” o apoio nesta operação à Ordem dos Médicos, atestando sob a forma de recibo. Este é o quarto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.
Há pelo menos mais de uma semana que Manuel Pizarro, ministro da Saúde, sabe, mas não comenta: em Fevereiro do ano passado, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o então responsável pela task force, Gouveia e Melo, mercadejaram a administração de vacinas a quase quatro mil médicos a troco de um pagamento de mais de 27.000 euros, que foram encaminhados para o Hospital das Forças Armadas.
Este expediente, realizado à margem das orientações então emanadas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – que é a Autoridade de Saúde Nacional – começou a desenhar-se apenas uma semana após o então vice-almirante Henrique Gouveia e Melo tomar posse como coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, substituindo Francisco Ramos. Este ex-secretário de Estado da Saúde demitira-se por irregularidades relacionadas com as prioridades de vacinação no Hospital da Cruz Vermelha. Nas primeiras fases da vacinação, devido à escassez de doses, surgiram muitos casos de administração indevida, levando mesmo à instauração de 216 processos judiciais, apesar de apenas um ter levado a condenação, conforme revelou ontem o jornal Público.
Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS.
Embora no dia de posse tivesse considerado “lamentável” a administração indevida de vacinas – que então estava na ordem do dia. incluindo no Parlamento– e prometido “apertar mais as regras” de controlo, uma semana mais tarde, em 10 de Fevereiro, Gouveia e Melo reuniu-se com o bastonário Miguel Guimarães para acertar uma forma de contornar a posição da DGS que não priorizara a vacinação dos médicos que trabalhavam fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de não constar no processo consultado pelo PÁGINA UM eventuais respostas escritas de Gouveia e Melo, nessa reunião terá saído a garantia de colaboração não apenas da task force, mas também das próprias Forças Armadas.
No dia 19 de Fevereiro, o bastonário escrevia um e-mail ao “Distinto Senhor Coordenador da Task Force Mui Ilustre Vice-Almirante Henrique Gouveia e Melo”, enviando em anexo, “tal como combinado na reunião do passado dia 10”, uma lista de médicos a serem vacinados, à margem do programa oficial de vacinação, defendendo a justeza e relevância desta questão.
A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades, que Miguel Guimarães “brilhasse”.
Certo é que, independentemente da eventual justeza desta medida, muitos médicos sobretudo do sector privado e social, bem como os médicos aposentados do SNS que mantinham actividade clínica, não estavam na lista das prioridades em Fevereiro do ano passado. Gouveia e Melo tinha conhecimento disso, até por integrar a task force desde Novembro de 2020, e também saberia que negociar à margem do processo oficial era cometer os mesmos erros ou até ilegalidades que levaram à “queda” de Francisco Ramos.
As negociações foram rápidas. Em 25 de Fevereiro, após um contacto telefónico com Gouveia e Melo, Miguel Guimarães fecharia então um acordo ad hoc – dir-se-ia informal, porque não há qualquer protocolo ou acordo escrito – para vacinar um pouco mais de quatro mil profissionais, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas, Miguel Guimarães estava preocupado em saber se poderia chamar a comunicação social para acompanhar toda a operação, que acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial.
O uso das palavras “negociação” e “acordo ad hoc” não são abusivas nem despropositadas no contexto em que se realizou esta vacinação paralela.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.
Com efeito, a vacinação daqueles médicos à margem das orientações da DGS não teve apenas como eventual desiderato “proteger os profissionais de saúde e dar confianças aos doentes”, como então garantia Miguel Guimarães ao jornal Nascer do Sol, mas envolveu também contrapartidas monetárias. Apesar das vacinas serem gratuitas, Gouveia e Melo somente as disponibilizou contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos.
A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos. Mas é aí que surge ainda mais um caso rocambolesco, envolvendo o fundo “Todos por Quem Cuida”.
A Ordem dos Médicos quis ficar com os louros mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril do ano passado, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação. Sendo expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser um das três pessoas que decidia se dava apoio –, como foi, o problema mais uma vez passou pelo expediente contabilístico pouco ortodoxo. Isto é, ilegal.
Factura pela vacinação paralela dos médicos foi enviada à Ordem mas paga pela campanha solidária.
Uma vez que a factura do Hospital das Forças Armadas estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros. Porém, não foi isso que sucedeu.
A factura manteve-se na Ordem dos Médicos, e em seu nome, mas o dinheiro recebido pelo Hospital das Forças Armadas proveio da conta do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado por Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
Contudo, para aumentar a estranheza desta operação de financiamento, a Ordem dos Médicos passaria, já este ano, facturas/ recibos a quatro farmacêuticas assumindo que tinham sido estas a suportar os custos de vacinação.
De acordo com os documentos consultados na Ordem dos Médicos pelo PÁGINA UM – por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, no passado dia 4 de Março a Ordem dos Médicos passou este documento contabilístico com o valor de 3.725,2 euros à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.
Três dias mais tarde, a Ordem de Miguel Guimarães passaria mais três facturas/ recibo a outras três farmacêuticas [vd., as ligações]: Ipsen Portugal (no valor de 11.040 euros), Bial (2.590 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros), também expressando que se trata de “donativo sem contrapartida” para a “campanha de vacinação da Ordem dos Médicos”.
Para aumentar a estranheza destes comprovativos – que, em última análise, permitiriam que as farmacêuticas pudessem assumir o donativo como uma despesa para efeitos fiscais –, apenas no caso do alegado donativo da Ipsen surge a referência a “pronto de pagamento”. No caso da Gilead aparece, como condição de pagamento, “Factura 10 dias”, enquanto nas situações da Bial e Laboratórios Atral surge “Factura 30 dias”. Ou seja, numa situação normal, isto significaria que a Ordem dos Médicos teria, nestes casos, a promessa de entrada de dinheiro em caixa no prazo de 10 e 30 dias, respectivamente.
Mas, repita-se, o pagamento foi feito pela conta solidária já no ano anterior – ou seja, deveria ser esta (ou os seus titulares) a receber a factura/ recibo das farmacêuticas.
Factura/ recibo da Laboratórios Atral, uma das quatro em que se assume que o apoio financeiro para vacinar quase quatro mil médicos proveio de farmacêuticas. Contudo, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi realizado pela conta solidária titulada (em nome individual) por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
Acresce também que, independentemente de serem ou não documentos forjados, ou de a Ordem dos Médicos ter recebido mesmo os donativos daquelas quatro farmacêuticas (apesar do pagamento ter sido feito pela conta solidária), os montantes daquelas facturas deveriam ter sido declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.
Não foram, e nem o Infarmed reagiu ainda, passado mais de uma semana, ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM.
Sobre estas matérias, o bastonário da Ordem dos Médicos, a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e o médico Eurico Castro Alves – ou seja, os gestores da conta solidária “Todos por Quem Cuida” – optaram por não responder directamente à dezena de perguntas que o PÁGINA UM lhes colocou, decidindo fazer uma declaração conjunta através de uma representante legal.
A advogada Inês Folhadela diz que “o procedimento de quitação [no caso da operação das vacinas] foi o mesmo que foi adotado em relação aos restantes donativos”, e garante que para a sua administração “foi estabelecido [um acordo] com o Ministério da Saúde, através do coordenador da task force, vice-almirante Gouveia e Melo”, acrescentando que “o Hospital das Forças Armadas não prescindiu da remuneração dos serviços prestados, tendo a Comissão de Acompanhamento (sem intervenção da Ordem dos Médicos) deliberado que as despesas seriam suportadas pela ação solidária”. A advogada insiste que a task force, sendo uma “unidade criada pelo Governo para assegurar a estratégia, planificação e logística para a campanha de vacinação em massa contra a covid-19 (…), estava autorizada a concertar essa ação”.
Convém salientar que não há nenhum acordo escrito por Gouveia e Melo, até porque o Despacho 11737/2020 não lhe dava autonomia para Gouveia e Melo contrariar as orientações da DGS sem sequer autorização superior. A definição da estratégia, do plano logístico e outras acções eram sempre feitas sob liderança da DGS, do Infarmed e de outros organismos tutelados pelo Ministério da Saúde, como taxativamente consta do despacho governamental assinado em 23 de Novembro de 2020 pelos ministros da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Saúde.
O PÁGINA UM não encontrou no processo consultado qualquer documento de autorização nem qualquer protocolo que tenha formalizado o acordo de administração das vacinas entre Gouveia e Melo e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.
N.D. Este é o quarto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.
Depois da intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a todos os contratos de compra de vacinas contra a covid-19, o Governo fez desaparecer o conteúdo dos únicos quatro contratos inseridos no Portal Base, que somente reportavam a compras de cerca de 10 milhões de doses. Portugal terá comprado pelo menos 45 milhões de doses, mas ignora-se as condições futuras. Com o expurgo dos quatro primeiros contratos, a estratégia do Ministério da Saúde seria convencer o Tribunal Administrativo de que, por haver um acordo central assinado entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, Portugal não assinou qualquer contrato. A artimanha, porém, não resultou. O PÁGINA UM tem os quatro contratos “apagados” do Portal Base. E quer mesmo ver os outros.
O Governo apagou literalmente do Portal Base os quatro únicos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 numa clara tentativa de evitar que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigue o Ministério da Saúde a ceder ao PÁGINA UM a globalidade dos acordos comerciais com as farmacêuticas, que já deverão aproximar-se dos 700 milhões de euros. No último dia do ano passado, o PÁGINA UM colocou um processo de intimação, depois de esgotadas todas as tentativas para o ministério de Manuel Pizarro permitir a consulta dos contratos com a Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen.
Os custos exactos destas vacinas adquiridas por Portugal são desconhecidos, porque nunca foram comprovadas as quantidades efectivamente compradas nem o respectivo preço unitário, alegadamente por cláusulas de confidencialidade de legalidade duvidosa e de transparência democrática nula. Também se ignora as quantidades adquiridas a cada farmacêutica, sendo certo que as vacinas da Janssen e a AstraZeneca quase deixaram de ser administradas e a Pfizer tem vindo a suplantar a Moderna.
Manuel Pizarro. O seu ministério luta com todas as armas e artimanhas possíveis e imagináveis para evitar mostrar compras e compromissos com as farmacêuticas ao PÁGINA UM. Quando não se pode já esconder, então apagam-se contratos.
A Direcção-Geral da Saúde apenas colocara, até agora, os primeiros quatro contratos, assinados entre Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, no valor de 135 milhões de euros, que serviram para comprar as primeiras 10 milhões de doses para a fase inicial do programa de vacinação. Estes lotes terão dado para vacinar 5 milhões de pessoas. Na plataforma da contratação pública estavam, até há poucas semanas, tanto os dois contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e a Pfizer como os que foram assinados com a Moderna.
Embora faltassem na plataforma de contratação pública todos os contratos subsequentes a partir de Janeiro de 2021 – que terão envolvido pelo menos a aquisição de cerca de 35 milhões de doses –, no Portal estiveram integralmente inseridos os quatro contratos, sem rasuras nem cortes, durante quase dois anos.
Agora, os ficheiros dos quatro contratos foram substituídos por outros ficheiros completamente vazios de conteúdo. Toda a informação foi apagada, conforme se pode confirmar aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Nos dois ficheiros anexos aos dados dos contratos com a Pfizer, agora inseridos no Portal Base,
O acto de expurgo foi absoluto, intencional e recente. Com efeito, decorre neste momento um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa com vista ao acesso integral aos contratos das vacinas contra a covid-19, às comunicações com as farmacêuticas e a documentos complementares (como guias de transporte) , intentado pelo PÁGINA UM, tendo já o ministério de Manuel Pizarro alegado que como a Comissão Europeu “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”. Ou seja, que não existiam contratos entre a DGS e as farmacêuticas.
Mas isso é falso – aliás, o recurso à mentira tem sido uma prática sistemática do Ministério da Saúde em processos de intimação. Há contratos, até porque, apesar dos acordos (APAs) terem sido concretizados ao nível da Comissão Europeia, existe sempre a necessidade de as compras específicas para Portugal serem suportadas por contratos mais simplificados, como se mostrava evidente nos quatro primeiros contratos colocados no Portal Base.
Antes do “apagão” dos documentos no Portal Base, o PÁGINA UM pôde garantir que, no caso dos dois contratos aí existentes com a Pfizer, conseguia-se conhecer o número de doses adquiridas e os prazos de entrega, o valor da aquisição, o nome do responsável em Portugal pela recepção das vacinas e quem os assinara, entre outros pormenores.
Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna agora inseridos no Portal Base, depois do expurgo ordenado pelo Governo, segundo consulta realizada hoje.
No primeiro contrato – para a aquisição de 4.4400.804 doses, no valor total de 54.489.660 euros –, contendo seis páginas, pela Direcção-Geral da Saúde assinou a então subdirectora-geral Vanessa Pereira de Gouveia. No segundo contrato – para a compra de 2.220.596 doses por 34.419.238 euros –, também com seis páginas, foi Graça Freitas a signatária. Pela farmacêutica norte-americana assinou Nanette Coccero, presidente da Vaccine Global.
Quanto aos dois contratos entre a DGS e a Moderna, que constavam no Portal Base, o PÁGINA UM também pode garantir que tinham menos detalhes e apenas cinco páginas cada. Ambos foram assinados por Graça Freitas e por Jerome Maddox, então vice-presidente da Moderna – que estava sedeado em Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts – em 29 de Dezembro de 2020, a um preço de 27.247.155 euros e de 18.780.000 euros. Saliente-se que é uma completa anormalidade a existência de contratos públicos desta natureza e dimensão financeira sem qualquer informação nem detalhe.
E o PÁGINA UM pode garantir tudo isto, porque, antes de o Governo ter ordenado a substituição dos contratos do Portal Base – para apagar provas perante o Tribunal Administrativo de Lisboa –, descarregou os originais do Portal Base.
Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna, e inicialmente colocados no Portal Base, antes do expurgo ordenado pelo Governo.
Assim, quem quiser pode confrontar-se, para o primeiro contrato da Pfizer, o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).
Para o segundo contrato da Pfizer, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está (que é igual ao do primeiro contrato) com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).
Para o primeiro contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).
E, por fim, para o segundo contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).
Recorde-se ainda que outro argumento do Ministério da Saúde junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, para evitar o acesso do PÁGINA UM aos contratos, é a alegada realização de uma auditoria à gestão das vacinas, algo que não foi ainda comprovado nem justificado, nem conflitua com uma consulta.
E, depois de tudo isto, retirar as devidas conclusões, esperando que o último bastião da Democracia, os tribunais, não se deixem ludibriar com estas artimanhas governamentais.
N.D. Não vá o Ministério da Saúde repor os ficheiros originais no Portal Base, fazendo crer que o PÁGINA UM não é rigoroso, decidiu-se então gravar integralmente uma consulta aos conteúdos do contratos nesta madrugada. A confiança na transparência do Governo, em geral, do Ministério da Saúde, em particular, é neste momento nula. Para memória futura, os ficheiros expurgados agora pelo Governo podem ser visualizados aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer, que aparenta ser igual ao do primeiro, pelos sombreados), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Também para memória futura, conheça-se um dos contratos originais entre a Pfizer (BioNTech) e a Comissão Europeia (SANTE/2020/C3/043/043) antes de ser expurgado e depois de ser expurgado das partes “sensíveis”.
Apenas uma semana após tomar posse na task force, Gouveia e Melo, o agora Chefe do Estado-Maior da Armada, negociou com o bastonário Miguel Guimarães as condições para se vacinarem quase três mil médicos que não estavam na lista de prioridade da Direcção-Geral da Saúde. O negócio envolveu o pagamento de mais de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, e também uma contabilidade criativa com donativos de quatro farmacêuticas à Ordem dos Médicos. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde abriu um processo de esclarecimento, no decurso das investigações do PÁGINA UM.
A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu um “processo de esclarecimento” para apuramento de eventuais ilegalidades em redor do acordo ad hoc para a vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro do ano passado entre o actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o então coordenador da task force Gouveia e Melo, actual almirante e Chefe do Estado-Maior da Armada.
A informação oficial surge na sequência de uma investigação do PÁGINA UM ao registo das actividades operacionais e contabilísticas da campanha Todos por Quem Cuida – cujo acesso aos documento apenas foi possível após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, que consistiu numa campanha de angariação de fundos protagonizado pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, em parceria com a Apifarma.
Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS.
Numa mensagem ao PÁGINA UM, a IGAS diz que, “por Despacho do Inspetor-Geral [Carlos Carapeto] de 15 de Janeiro de 2023, foi determinada a abertura de um processo de esclarecimento, com o objetivo de avaliar se existe matéria que deva e possa ser avaliada (…) no âmbito das suas competências.”
O processo de esclarecimento, segundo o léxico operativo da IGAS, é formalmente “o conjunto organizado de documentos que traduzem um procedimento rápido e expedito destinado à recolha de elementos com vista ao esclarecimento de expediente geral, à verificação prévia de requisitos que habilitem a eventual decisão de instauração de ação inspectiva ou ao acompanhamento de ações inspetivas dentro ou fora” desta entidade. Sendo assim uma “análise de natureza inspetiva preparatória”, fica assim sujeita à elaboração de um relatório, que será para todos os efeitos consultável no futuro, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.
Sobretudo através de transferências da indústria farmacêuticas, na verdade este fundo foi gerido numa conta pessoal de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins (ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e indigitada presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte) e Eurico Castro Alves, recém-eleito presidente da secção regional do Norte da Ordem dos Médicos. O PÁGINA UM detectou, documentalmente, um conjunto de irregularidades e ilegalidades na gestão do fundo, que pode mesmo consubstanciar a criação de um “saco azul” de mais de 968 mil euros, além de fuga ao fisco e ausência declarações de rendimentos proveniente de farmacêuticas no Portal da Transparência do Infarmed.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.
O acordo de vacinação dinamizado pelo bastonário da Ordem dos Médicos e pelo coordenador da task force tem, porém, contornos distintos, muito peculiares, mas não de menor gravidade, como o PÁGINA UM revelou em 15 de Dezembro passado, no primeiro de um conjunto de artigos de investigação jornalística dedicado à gestão do fundo “Todos por Quem Cuida”, que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros.
Pouco depois de tomar posse como coordenador da task force – substituindo Francisco Ramos, que se demitira por irregularidades na selecção de profissionais para a administração das primeiras doses de vacinas (então ainda raras) –, Gouveia e Melo aceitou as diligências de Miguel Guimarães para serem vacinados quase 3.700 médicos que não se enquadravam nas prioridades determinadas pela Direcção-Geral da Saúde.
A norma 002/2021 de 30 de Janeiro de 2021 determinava então que na fase 1 deveriam ser vacinados os “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes”, os profissionais de lares (ERPI) ou de instituições similares e da rede de cuidados continuados, as pessoas com 80 ou mais anos, as pessoas de mais de 50 anos com determinadas comorbilidades e ainda “os profissionais das forças armadas, forças de segurança, serviços críticos e titulares de órgãos de soberania e altas entidades públicas”. Para a fase 2, que então não estava ainda a desenvolver em Fevereiro de 2021, estava prevista a vacinação do grupo etário dos 65 aos 79 anos e pessoas dos 50 aos 64 anos com determinadas comorbilidades. Somente no final da Primavera de 2021 começaram a ser vacinados os menores de 50 anos, quando já não se colocavam problemas de escassez de doses.
A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades então definidas pela Direcção-Geral da Saúde, que Miguel Guimarães “brilhasse” junto dos seus colegas.
Ora, isso significava que uma pequena parte dos médicos – aqueles que trabalhavam no sector privado, em função não directamente de cuidados de saúde – seriam tratados em Fevereiro como comuns cidadãos, ou seja, seriam vacinados em função da idade e/ ou das comorbilidades – e não pela profissão ou pela inscrição numa associação pública profissional. Algo que Miguel Guimarães, como bastonário, nunca aceitou.
Por esse motivo, Miguel Guimarães foi lesto a estabelecer contactos com Gouveia e Melo, havendo um e-mail que mostra ter ocorrido uma reunião em 10 de Fevereiro de 2021 entre os dois. Seguiu-se troca de mensagens até que o bastonário conseguiu aquilo que desejava: em 25 de Fevereiro, após um contacto telefónico com Gouveia e Melo, Miguel Guimarães terá fechado então um acordo ad hoc – dir-se-ia informal, porque não há qualquer protocolo ou acordo escrito – para vacinar 1.382 médicos não-prioritários no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve.
Em vésperas da primeira toma, Miguel Guimarães estava sobretudo preocupado em saber se poderia chamar a comunicação social para acompanhar toda a operação, que acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial.
Factura pela vacinação paralela dos médicos foi enviada à Ordem dos Médicos, mas paga pela campanha solidária. Contudo, depois surgem documentos de donativos de quatro farmacêuticas que custearam a vacinação.
Como contrapartida ao acordo, o Hospital das Forças Armadas recebeu 27.365 euros da Ordem dos Médicos – assumindo-se que cada administração custava 3,7 euros.
No processo consultado pelo PÁGINA UM, não existe qualquer documento comprovativo de um contrato de prestação de serviço que justifique este pagamento.
Se esse documento existe, então deveria estar nos documentos, porque o Tribunal Administrativo obrigou as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a disponibilizarem todos os documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”. Ou seja, se existe e não foi disponibilizado aquando da consulta pelo PÁGINA UM, então houve incumprimento de uma sentença judicial, com subtracção de documentos.
Embora o pagamento pela administração das vacinas às Forças Armadas tivesse vindo da conta pessoal conjunta de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves – gestores da campanha Todos por Quem Cuida –, a factura foi passada em nome da Ordem dos Médicos.
Para aumentar o rol de irregularidades, existem também documentos de donativos para esse mesmo fim provenientes de quatro farmacêuticas: Gilead (3.725,2 euros), Ipsen Portugal (11.040 euros), Bial (2.590 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros).
Nenhuma destas farmacêuticas fez declaração de entrega de donativos no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, entidade cujo presidente, Rui Santos Ivo, continua sem realizar qualquer acção inspectiva. Ana Paula Martins, ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, trabalhava então na Gilead aquando da data desse alegado donativo.
Todos estes factos estão documentados pelo PÁGINA UM, no seguimento da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Aliás, nessa documentação não existe qualquer acordo escrito entre a Ordem dos Médicos e a task force ou Gouveia e Melo, até por uma simples razão: a task force, criada em finais de Novembro é uma estrutura sem qualquer autonomia própria, dependente do Ministério da Saúde, uma vez que as atribuições concedidas ao “núcleo de coordenação” estiveram sempre sob a liderança da Direcção-Geral da Saúde (DGS), Infarmed, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). Basta saber ler o artigo 4º do Despacho nº 11737/2020, de 26 de Novembro.
Manuel Pizarro, ministro da Saúde, continua em silêncio sobre a vacinação de médicos não-prioritários à margem das normas em vigor em Fevereiro de 2021.
A evidência deste acordo ter sido realizado à margem da lei fica patente no silêncio do Ministério da Saúde quando, por duas vezes, o PÁGINA UM confrontou Manuel Pizarro sobre estas matérias: a primeira vez, no dia 5 de Dezembro passado; a segunda vez, uma semana depois, em 12 de Dezembro. Em mais de um mês, o Ministério da Saúde não mostrou qualquer reunião nem mostrou qualquer documento que comprove ter existido autorização superior para conceder um excepção – o que, obviamente, não significa que não surja, agora, assim, num repente, de forma inopinada, com a IGAS a iniciar um processo de esclarecimento.
Em todo o caso, será interessante saber como agirá agora a IGAS neste “processo de esclarecimento”, que envolve o próprio bastonário da Ordem dos Médicos e o atual Chefe do Estado-Maior da Armada – que até recebeu o Prémio Nacional de Bioética em Novembro de 2021 –, tendo em conta as recentes notícias de estar a decorrer um processo disciplinar contra a directora da Delegação Regional do Sul do INEM. Teresa Brandão é acusada pela IGAS de ter cometido irregularidades na vacinação contra a covid-19 naquele instituto, em Janeiro de 2021. Mas aí estavam em causa apenas quatro frascos de vacinas, que dariam para 24 doses.
Ora, o acordo ad hoc entre o bastonário Miguel Guimarães e o agora almirante Gouveia e Melo permitiram o desvio de 7.396 doses – 1.140 vezes mais. Uma questão de estatística, de legalidade e de ética que a IGAS agora analisará.
N.D. Em resultado da investigação do PÁGINA UM sobre este acordo ad hoc, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) abriu um processo por alegada falta de rigor. O processo surge no decurso de uma participação de alguém cuja identificação foi escondida pela ERC. A resposta do PÁGINA UM fez-se através de uma carta aberta, enviada também por e-mail, ao presidente do regulador, Sebastião Póvoas.