Etiqueta: Dom Quixote

  • Há algo de podre no Reino da Dinamarca

    Há algo de podre no Reino da Dinamarca

    Título

    A trilogia de Copenhaga

    Autora

    TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Neste livro, Tove Ditlevsen faz-nos uma descrição pungente da sua vida (o livro é autobiográfico), não hesitando em entrar em caminhos confessionais, explorando temas como a infância, a maternidade e as dificuldades da mulher em se assumir como artista, sem pudor e sem subterfúgios. O livro está dividido em três partes: Infância, Juventude e Relações Tóxicas; e foi publicado, pela primeira vez, nos anos 60 do século XXI, na Dinamarca.

    Infância fala-nos sobretudo da sua meninice, num bairro pobre de Copenhaga, e na sua relação complicada com a família. A sua relação mais próxima é com o pai “no fundo da minha infância está o meu pai a rir-se e é negro e velho como a nossa salamandra mas não tem nada de assustador (…). Nunca me interpela por sua própria iniciativa porque não sabe o que dizer a meninas pequenas. De vez em quando, dá-me umas palmadas na cabeça e ri-se: ah, ah, ah. Nessas alturas a minha mãe torce a boca num esgar de desagrado e ele depressa retrai a mão.”

    Com a mãe é diferente: “Já tenho quase seis anos e em breve serei matriculada na escola, porque já sei ler e escrever. A minha mãe conta-o, cheia de orgulho a quem a quiser ouvir. Diz assim: os filhos dos pobres também têm cabeça”. O irmão goza constantemente com ela e, sendo o preferido da mãe, provoca-lhe ciúmes constantes e dolorosos. Um dia descobre o seu caderno de poesia e isso é mais um motivo para o gozo e o escárnio permanentes. Tove é uma criança infeliz, quase sem amigos, e que se deixa manipular facilmente por qualquer um que lhe mostre um pouco de interesse e atenção. Vai ser assim a vida toda.

    A segunda parte continua com a mesma toada: uma juventude cheia de problemas económicos, os poemas que continua a escrever às escondidas e as relações pessoais tumultuosas e muito pouco satisfatórias: amigos que se transformam em namorados (e em maridos) mas com quem ela, verdadeiramente, nunca cria laços. Para além disso, não consegue manter um emprego porque facilmente se desinteressa das suas obrigações e por um motivo mais ou menos trivial vai-se despedindo ou sendo despedida. Foi despedida como empregada doméstica, por ter esfregado um piano com água; foi ama seca de um menino que anunciou: “Tens que fazer tudo o que eu digo ou dou-te um tiro”. Sai de casa dos pais quando faz dezoito anos e vai morar para uma pensão que tinha o retrato de Hitler na parede; embarcou no primeiro dos seus quatro casamentos e teve um amante que lhe enviou cartas iguais às que escrevia a todas as suas amantes, como descobriu depois do fim do romance.

    Por volta dos 20 anos publicou o seu primeiro livro de poesia, e tornou-se famosa. Mas, nem por isso mais feliz.

    E, depois, nada nos prepara para a terceira parte: Relações Tóxicas. Ditlevsen, divorciada de um editor literário com quem casou só porque ele tinha aquela profissão, escapou das pressões desta segunda união condenada e nova maternidade, seguida de um aborto clandestino – que nos deixa um travo amargo pela forma como ela lidou com a situação e pelo facto de constatarmos acontecer, na Dinamarca, o mesmo que acontecia, em Portugal, no que diz respeito à educação sexual e à saúde da mulher –, e tropeçou nos braços do seu próximo marido, um médico silenciosamente perturbado, que preenche as suas necessidades como nenhum homem tinha feito antes, porque, para além de uma relação desigual, conflituosa e ciumenta a viciou em petidina.

    Diz ela que o medicamento tem um nome que “soa como o canto dos pássaros”. Quando o marido lho dá, imediatamente, a felicidade mental e física que ela oferece é infinitamente mais intensa do que tudo o que sentiu até então. “Eu sorri-lhe agradecida”, escreve, “e o fluido entrou no meu sangue, elevando-me ao único nível onde eu queria existir. Depois ele foi para a cama comigo, como sempre fazia, quando o efeito estava no auge. O seu abraço era estranhamente breve e violento.”

    À medida que a sua dependência se aprofunda, a narrativa torna-se total e agonizantemente compulsiva. Chega a um clímax doloroso, ainda mais comovente pelo facto de, após cinco anos de cativeiro no reino do vício, Tove consegue libertar-se quer do vício, quer do marido, mas nunca mais foi uma mulher inteira, apesar do amor com que foi rodeada pelo quarto marido e por Jabbe, a fiel criada que lhe tomava conta dos filhos nas suas ausências.

    Acabou por falecer aos 58 anos, por overdose.

    Um livro que é mais do que uma vida. É um testemunho histórico e um documento que nos ajuda a compreender, inclusive, a história daquele país.

  • O Inverno da vida sob a forma de prosa

    O Inverno da vida sob a forma de prosa

    Título

    Misericórdia

    Autora

    LÍDIA JORGE

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Misericórdia é o novo romance de Lídia Jorge, e foi escrito a pedido da sua mãe, Maria dos Remédios, que residia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime quando faleceu em abril de 2020, com 92 anos, logo no início da pandemia, vítima de covid19.

    Com uma vasta obra, Lídia Jorge é um dos nomes femininos mais consolidados da literatura portuguesa. Nascida em Boliqueime em 1946, é autora de inúmeros romances, contos, poesias, crónicas e ensaios: Entre as suas obras mais conhecidas estão Os Memoráveis (2014), Combateremos a Sombra (2007), O Dia dos Prodígios (1978) e A Costa dos Murmúrios (1988).

    Já recebeu vários prémios literários, nacionais e internacionais, entre os quais o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000); o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014) e, mais recentemente, o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas (2020).

    Inspirado na história e nos registos pessoais da mãe da autora, Misericórdia é um retrato ficcionado, contado na primeira pessoa, dos últimos meses de vida de Maria Alberta Nunes Amado – tratada por Dona Alberti – uma idosa que vive no Hotel Paraíso, um lar de terceira idade. semelhante a um diário, a narrativa inicia-se a 19 de abril de 2019 e estende-se até à véspera da morte do personagem.

    Ao contrário do que se poderá pensar, Misericórdia não é triste nem tão-pouco deprimente. Também não é sentimentalista. É belo, comovente, autêntico. Mesmo quando desvela a maldade humana, o que sobressai é a vida que ainda pulsa dentro dos residentes do Hotel Palácio.

    Alude às dificuldades inerentes a quem está no Inverno da vida: a sensação de que o corpo nos trai e não acata as nossas ordens, os pensamentos são movediços e a autonomia, que outrora se tivera, se perdeu. Fica-se à mercê dos outros, e da sua misericórdia. Não obstante, consegue mostrar a beleza da velhice, até mesmo o seu encanto, e isto apesar das agruras que ela abarca. É a derradeira experiência de viver o presente, já não existe pressa para se chegar a lado nenhum e, como evidencia o diário de Dona Alberti, o regozijo mora nos momentos mais corriqueiros: na escuta de uma leitura melódica que um estranho faz de uma história, ou na breve visita do genro.

    Misericórdia tem humor, candura, leveza, mesmo nos pontuais incidentes ominosos que descreve. Esses episódios não deixam o leitor indiferente, mas também não pesam demasiado – são contrabalançados com o humor e com o entendimento de que nenhuma contrariedade é o destino final.

    Estamos sempre dentro da cabeça desta Dona Alberti, a quem a idade não levou a personalidade, que é forte e vincada. E estamos bem; as 457 páginas do romance não são demasiadas para conhecer esta castiça senhora. Eis um excerto que relata uma das suas últimas “batalhas” com a noite, isto é, as insónias:

    “A noite esperou que eu me movesse. Como eu não lhe fazia a vontade, a ardilosa disse – «E quero ainda o teu saco de pano que usas pendurado ao pescoço, com tudo o que tens lá dentro.» Era demais. Respondi-lhe – Isso querias tu. O meu saco com tudo o que tenho lá dentro? Parece impossível. Visitas-me há anos, e não me conheces? Esse, só se mo arrancares à força. Experimenta lá. (…) Se te aproximares mais um milímetro que seja, vais ter de experimentar a resistência dos meus pulsos. Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.”

    A prosa é sublime, e Lídia Jorge faz um trabalho brilhante na criação da voz literária desta personagem, tornando o discurso e o tom sempre familiares e reminiscentes de uma qualquer avó – se não a nossa, alguma.

    A autora afirmou já que este não é um livro mórbido, mas sobre a vida. Tem razão. Não poderia ser mais verdadeiro. Misericórdia é a vida contada por quem mais a viveu, uma idosa. E isso é de valor, ainda mais quando contada com tanta vitalidade.

  • Uma orfandade emocional

    Uma orfandade emocional

    Título

    Os abismos

    Autora

    PILAR QUINTANA (tradução: Pedro Rapoula)

    Editora

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do sucesso retumbante de A Cadela, que foi finalista do National Book Award em 2020 nos Estados Unidos, chegou agora a Portugal o novo romance da escritora colombiana Pilar Quintana, Os Abismos, que venceu em 2021 o prestigiado Prémio Alfaguara em 2021 de romance. Uma vez mais, é a Dom Quixote a editar a obra daquela que é uma das romancistas com maior projecção na América Latina.

    Os Abismos retrata os dramas de uma família colombiana atormentada, nos anos 1980, e a história é-nos contada pela filha (única), Cláudia, uma menina de apenas nove anos.  A mãe, também Cláudia, não o queria ter sido, e só o foi por força das convenções sociais que não a deixaram prosseguir uma carreira nem escolher outro destino que não fosse o casamento e a maternidade. Assim, pode dizer-se que a distância emocional que define a relação entre ambas é “abismal” – sempre fria, distante, negligente –, à imagem do que tinha sido, também, entre a avó e mãe de Cláudia.

    Embora Cláudia “adulta” repita constantemente, quase a tentar convencer-se a si mesma, que não é como a sua mãe, a verdade é que não consegue deixar de reproduzir com a sua filha os mesmos padrões emocionais que herdou e assimilhou na sua infância.

    O pai, Jorge, 21 anos mais velho do que Cláudia-mãe, passa a maior parte do tempo a trabalhar no supermercado que gere com a sua irmã, Amélia. E, quando, enfim, está em casa, a sua presença é quase meramente física, já não são muitas as palavras que troca com a filha – não obstante, o pouco que diz deixa transparecer algum afecto.

    O seguinte trecho em que Cláudia descreve a celebração do seu nono aniversário é revelador do trato entre o casal e a filha:

    A minha mãe, como todos os anos, recordou a sua gravidez. A grande barriga, os pés inchados, que a cada cinco minutos tinha vontade de ir à casa de banho, que não conseguia dormir e o que lhe custava levantar-se da cama. As dores começaram ao almoço. Eram a coisa mais horrível que já tinha sentido. O meu pai levou-a para a clínica e ali sofreu toda a tarde, toda a noite, toda a manhã do dia seguinte, toda uma nova tarde, a sentir que ia morrer, e outra noite completa, até de madrugada.

    – Saiu roxa. Horrorosa. Puseram-ma ao peito e eu, a tremer e a chorar, pensei: esforcei-me tanto para isto?

    A minha mãe deu uma gargalhada tão grande que se lhe viu o céu da boca, profundo e sulcado como o tronco de uma pessoa subnutrida.

    – A bebé mais feia da clínica – disse o meu pai.

    Deste modo, Cláudia-filha cresce com os pais, mas sempre numa espécie de orfandade emocional, privada do afecto que, na idade em que está, tem necessidade de receber e que nunca se cansa de tentar obter. A situação familiar, que já é complexa e delicada, leva um novo “tombo” quando a Cláudia-mãe começa a ter um caso com o marido da cunhada.

    A traição fá-la afundar-se ainda mais e cair numa depressão que a deixa praticamente de cama, a whisky e comprimidos. A partir de aí, a sua personagem fica num limbo constante, parecendo estar sempre a um pequeno passo de “resvalar” para a autodestruição, o que confere um certo clima de mistério que se vai adensando ao longo do romance. Com Cláudia-filha, fala sobre Grace Kelly e Natalie Wood, dizendo-lhe que as trágicas mortes das actrizes só podem mesmo ter sido por suicídio.  

    Tendo a selva colombiana sempre como “pano de fundo”, o título Os Abismos remete tanto para os precipícios psicológicos em que as personagens se encontram, mergulhadas em sentimentos depressivos, como para os precipícios físicos que vão surgindo ao longo de toda a história.

    Pilar Quintana consegue conferir ao romance uma forte carga emocional, e a sua intensidade é o que nos deixa agarrados ao livro, mas é também, em contrapartida, o único motivo que torna difícil ler as 200 páginas de uma só vez.  

    De facto, a melancolia pode ser esmagadora, e é impossível ficar indiferente à infância infeliz da pequena Cláudia que, na sua inocência – sempre evidenciada na forma como descreve e interpreta os acontecimentos –, procura amor nos adultos que a rodeiam, mas raras vezes com sucesso.

    Parece ser consensual entre os críticos que Os Abismos não conseguiu chegar ao mesmo patamar literário que A Cadela. Em todo o caso, vale, e muito, a pena ler este novo romance de Pilar Quintana, não só pela qualidade da escrita, como pelo enredo dramático e inebriante, que aborda dinâmicas e mecanismos psicológicos que, mais ou menos familiares, não soarão estranhos a ninguém.

  • Uma utopia será sempre boa?

    Uma utopia será sempre boa?

    Título

    A nova ordem mundial

    Autor

    H. G. WELLS

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Conseguirá o Mundo, alguma vez, alcançar uma paz perdurável? E se sim, o que terá a Humanidade de fazer de modo a tornar essa possibilidade real? Com a eclosão da Segunda Grande Guerra, é a estas perguntas que o prolífico escritor, jornalista e romancista britânico H. G. Wells (1866-1946) tentou responder em A Nova Ordem Mundial, que teve a sua primeira edição em 1940, e foi agora republicado pela Dom Quixote.

    H. G. Wells foi um dos escritores mais notáveis do início do século XX. O Homem Invisível, A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos estão entre as suas obras mais conhecidas. Considerado um visionário e um dos principais percursores da ficção científica, vaticinou, por exemplo, o advento da rádio e da televisão, a vigilância em massa, a world wide web, e a bomba atómica.

    A expressão “Nova Ordem Mundial” tem hoje servido de material para teorias da conspiração. Curiosamente, algumas delas poderiam mesmo fundamentar-se neste livro. É que o autor apresenta a tese de um governo internacional como a solução para os conflitos que na altura assolavam o Ocidente. Um socialista confesso – foi um dos membros mais proeminentes da Sociedade Fabiana – H. G. Wells mostra-se crítico do marxismo e da revolução russa, mas defende abnegadamente a colectivização do poder e reitera que está em curso o fim de uma era e a queda de uma antiga ordem.

    Wells clarifica a sua ideia de colectivização no seguinte trecho: “[É] a gestão dos assuntos comuns da humanidade por um controlo comum responsável por toda a comunidade. Significa a abolição da discricionariedade nas questões sociais e económicas, assim como nas questões internacionais. Significa a abolição drástica da procura do lucro e de todas as artimanhas que os seres humanos engendram para parasitarem os seus congéneres. É a concretização prática da irmandade humana por intermédio de um controlo comum.”

    Segundo Wells, é imperativo que ocorra esta transformação na sociedade, sob risco de o mundo redundar em miséria e destruição.

    Wells adverte, porém, que este sistema socialista à escala global, que vê como inevitável, só poderá ser bem-sucedido se forem feitas diligências no sentido de proteger os cidadãos contra eventuais abusos de poder.

    Para esse fim, torna-se essencial a formulação de uma Declaração de Direitos Humanos, que o autor apresenta em esboço nesta obra, e que viria a desenvolver em Os Direitos do Homem, publicado no mesmo ano.

    Na verdade, o canadiano John Peter Humphrey, responsável pelo rascunho que serviu de base à Declaração Universal dos Direitos Humanos, chegou a admitir que a matéria de H. G. Wells sobre os direitos humanos influenciou a elaboração do documento adoptado pelas Nações Unidas.

    Embora conceba reflexões pertinentes, com as quais se pode até estabelecer paralelos com os tempos actuais, a realidade que H. G. Wells desenha como sendo desejável e necessária é manifestamente utópica. As últimas décadas provaram-no: o reconhecimento dos direitos humanos não tem impedido a sua violação, a paz não foi alcançada – adivinha-se, inclusivamente, novos cenários de guerra – e não parecem haver métodos infalíveis de evitar a tirania.

    Não obstante, e quer se concorde ou não com a sua visão, a crítica sagaz e arguta de H. G. Wells à sociedade do seu tempo fazem com que esta leitura valha a pena e atestam à sua genialidade.

  • O caminho faz-se caminhando

    O caminho faz-se caminhando

    Título

    Lincoln Highway

    Autor

    AMOR TOWLES (tradução: Tânia Ganho)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Recensão

    A Lincoln Highway é a estrada transcontinental mais antiga e a primeira construída para veículos motorizados, ligando as costas leste e oeste, dos Estados Unidos da América. O livro inclui, logo nas páginas iniciais, o seu mapa. É este percurso que Emmett Watson e o seu irmão Billy se propõem fazer, até à Califórnia, tentando fugir do passado e tentando encontrar a mãe que os abandonou, quando ainda eram crianças.

    Emmett Watson, o irmão mais velho, cometeu um crime, e pagou um preço por isso. Tem 18 anos e acaba de ser libertado da instituição de reabilitação, onde cumpriu a pena. Regressa à quinta onde cresceu, no Nebraska, e tenciona juntar-se ao irmão mais novo, Billy, uma vez que, entretanto, o pai de ambos morreu, falido e na iminência de perder a quinta, penhorada pelo Banco.

    À sua espera, Emmett, para além do irmão, tem o seu Studebaker Land Cruiser, de 1948 e para sua surpresa um envelope, com um valor considerável em dinheiro, deixado pelo pai, acompanhado por uma carta em que lhe pede que recomecem a vida noutro lugar. É isso que tencionam fazer, mas o destino troca-lhes as voltas.

    Por peripécias várias, nomeadamente o facto de outros dois jovens, Duchess e Woody, a cumprir pena na mesma instituição, se terem escondido no porta-bagagem do carro do diretor, e aparecido, de surpresa, a um Emmett estupefacto, antes de lhe roubarem o carro.

    Assim, em vez de rumarem à Califórnia, os dois irmãos fazem a viagem, de comboio, no sentido inverso, e vão para Nova Iorque, destino provável dos dois amigos.

    Aquilo que prometia ser um romance on the road transforma-se, então, noutra coisa, e essa é apenas a primeira surpresa que nos reserva o autor.
    O livro transporta-nos pela América dos anos 50, onde acompanharemos as várias personagens/narradores durante dez dias.

    Numa contagem decrescente, o livro começa no capítulo dez e termina no um.  Com uma arquitetura narrativa muito original o narrador, em cada um dos capítulos, é diferente e várias vezes vemos as mesmas circunstâncias narradas de maneira diferente e com perspetivas diferentes dependendo de o narrador ser Emmett, Billy ou algum dos outros personagens como os dois amigos, Woody e Duchess ou Sally, a vizinha da casa do lado, que tem uma paixoneta por Emmett e tratou de Billy na ausência do irmão.

    Esse é um dos aspetos mais fascinantes do livro: os capítulos têm uma impressão digital; o tom, a abordagem dos assuntos e até o sentido de humor são pessoais e, ao fim de alguns capítulos, começamos a identificar facilmente o narrador.

    As aventuras alternadas dos vários narradores que deixam sempre um fio solto e que é retomado no capítulo seguinte criam uma sinfonia empolgante com muitas notas diferentes, de caóticas a assustadoras (um vagabundo, ameaça atirar Billy do comboio abaixo) a maravilhosas (a primeira visão de Manhattan, de Emmett, quando chegam a Nova Iorque), por exemplo.

    Billy é uma criança maravilhosa: um misto de mágico e filósofo fascinado por um livro que leva na mochila “Compêndio de Heróis, Aventureiros e Outros Viajantes Intrépidos”, de Abacus Abernathe, e que já leu, como faz questão de repetir, vinte e cinco vezes, funciona como o deus ex machina; não apenas desencadeia acontecimentos como também tem uma habilidade quase mágica de criar a história certa para os estranhos que vão encontrando ao longo do caminho.

    É ele que convence o irmão que o tal “recomeço de vida” deve ser feito em San Francisco onde ele acredita que a mãe está e tem sempre um pretexto para voltar ao livro que o faz acreditar que os grandes descobridores científicos podem viajar ombro a ombro pelos reinos do conhecido e do desconhecido aproveitando ao máximo a inteligência e a coragem, mas também serem ajudados por feitiçarias e encantamentos e a intervenção ocasional dos deuses.

    Quem ler a Lincoln Highway vai adorar a viagem por cerca de seiscentas páginas, que se leem com o prazer da evasão, algo que apenas alguns livros nos proporcionam.

  • As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

    As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

    Título

    Onde as pêras caem

    Autora

    NANA EKVTIMISHVILI (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A premiada realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili fez o seu debut como escritora em 2015 com Onde as pêras caem, e foi uma aposta ganha: publicado em inglês no ano passado, o seu (ainda) único romance foi nomeado para o International Booker Prize.

    Dos seus filmes, destacam-se In Bloom, selecionado para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição dos Óscares de 2014, e My Happy Family, exibido no Sundance Film Festival de 2017.

    Onde as pêras caem é uma homenagem aos pequenos super-heróis da vida real, aqueles dos quais ninguém fala, que lutam diariamente pela sobrevivência em circunstâncias adversas. Por outras palavras, é a história de órfãos e crianças com deficiências mentais que são abandonados à sua sorte pelas respectivas famílias num colégio interno conhecido como a “Escola dos Idiotas”. O pano de fundo é o início da década de 1990, após a dissolução da União Soviética, na rua de Kerch, em Tiblissi, capital da Geórgia.

    Nesta obra ficcional, a heroína é Lela, apresentada com traços heróicos: destemida, aguerrida e com uma personalidade vincada. O seu espírito rebelde e independente é, no entanto, contrabalançado por um lado bondoso e altruísta que, devido à sua “capa” protectora, não é logo perceptível a um mero estranho.

    Os vilões da história são adultos: os pais que viraram as costas aos filhos, e lhes alimentam falsas esperanças de um dia os irem buscar, ou os “educadores”, como Vano, professor de História do colégio, e às mãos de quem as meninas sofrem abusos sexuais constantes. Já com dezoito anos, Lela vai, ao longo dos dias, congeminando o assassinato de Vano, que a violou repetidas vezes durante a sua infância.

    Para além de motivada pelo desejo de vingança, Lela faz o papel de irmã mais velha e assume a missão de proteger o seu amigo Irakli, acalentando o sonho de o ver partir para uma nova vida fora das paredes do orfanato. Ika, como os colegas lhe chamam, é um menino que espera, há anos, que a mãe o venha buscar num “próximo fim de semana” que nunca chega.

    A chance de deixar aquela instituição putrefacta, e de sentir pela primeira vez o calor de um lar e o aconchego de uma família parece estar ao alcance de Irakli quando um casal americano envia uma representante à Escola para adoptar um dos residentes. Porém, quando finalmente surge a oportunidade de Irakli começar do zero, dá-se uma reviravolta.

    Escrito sem sentimentalismos, Onde as pêras caem é um retrato fiel e verossímil de um mundo à margem, mas que todos sabemos que existe. Nomeia, dá voz e corpo a estes anónimos que, tal como tantos outros, podemos não conhecer mas que andam por aí, num qualquer “edíficio-escola” nas periferias das cidades; e de quem ouvimos falar, de vez em quando, na televisão ou nos jornais. Talvez por isso, as personagens nos pareçam estranhamente familiares e as descrições tristemente reais. 

    Todos nós, de resto, já nos teremos cruzado com vítimas de abusos e de abandono que, porventura, engrossam os relatórios de instituições de solidariedade social. Ou com as que, omissas dessas listas, vivem as suas vidas como as personagens deste romance: relegadas ao esquecimento depois de serem “saqueadas” pelos seus carrascos, a não ser que alguém como Ekvtimishvili se lembre de escrever sobre eles.

    Onde as pêras caem é, enfim, sobre crianças especiais com vidas marcantes que, aqui, neste romance, como na vida real, vale a pena conhecer para evitar que ainda existam em próximas gerações.

  • O cão, a lágrima e outros sentimentalismos

    O cão, a lágrima e outros sentimentalismos

    Título

    Cuidado com o cão

    Autor

    RODRIGO GUEDES DE CARVALHO

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Jornalista e romancista, Rodrigo Guedes de Carvalho nasceu no Porto, em 1963. Foi na RTP que se profissionalizou – é licenciado em Comunicação Social – e começou a chegar à casa dos portugueses. Actualmente, é subdirector de Informação da SIC, apresentando o Jornal da noite, de segunda a sexta-feira.

    Paralelamente, desenvolveu a sua carreira como escritor, estreando-se na ficção em 1992 com o romance Daqui a nada – vencedor do Prémio Jovens Talentos das Nações Unidas. Depois de A casa quieta (2005), Mulher em branco (2006) e Canário (2007), ganhou o Prémio Autores SPA – Melhor Livro de Ficção Narrativa 2018, com O pianista de hotel, publicado no ano anterior, tornando-se num autor reconhecido e aclamado pela crítica.

    O argumento é também uma das suas paixões: exemplo disso são os argumentos para os filmes Coisa ruim (2006) e Entre os dedos (2009).

    Cuidado com o cão, agora publicado pela Publicações Dom Quixote, é mais um romance dedicado à profundidade das relações humanas. Como se sabe, a pandemia da covid-19 tem espoletado uma série de romances, e Cuidado com o cão é mais um: neste caso, com o enfoque no isolamento forçado que terá “obrigado” à introspecção e à revisão dos anos e vidas vividas.

    A personagem principal é o antigo cirurgião António Pedro, que, na sua velhice, triste e solitária, se sente ainda mais sozinho durante o confinamento. A visita inesperada de uma desconhecida fá-lo reviver as perdas. Perdas de confiança, de pessoas, como a filha e a mulher.

    O protagonismo desta personagem é partilhado com a vida de duas gémeas trapezistas, cuja separação seria apenas física, uma vez que ambas acabaram por seguir o mesmo caminho académico e profissional, apesar de todas as vicissitudes.

    O título do livro é uma espécie de homenagem ao cão, enquanto melhor amigo do homem – um cliché, diríamos. O primeiro, talvez. Em cada história do livro há pelo menos um cão que ocupa um lugar de relevo na vida das personagens, ora como companheiro, ora como protector.

    O Cuidado com o cão não se restringe ao animal doméstico, mas ao cuidado que devemos ter com cada pessoa que se cruza connosco. Na nossa perspectiva este “deve” é um “senão’” (dos muitos) do livro – uma espécie de moral prosaica perpassa todo o romance, fazendo lembrar o jornalista, que vive no autor, quando nos censurava: “Tenham noção…”, aquando dos confinamentos compulsórios decretados durante os Estados de Emergência.

    A estrutura do romance pode também tornar-se cansativa para alguns leitores. O experimentalismo do autor coloca o leitor numa espiral de impaciência, uma vez que, de forma repetitiva, retoma cada história no início de cada capítulo, como que fazendo um sumário em cada nova entrada – não vá o leitor esquecer o que já aconteceu. Algo que, na verdade, até pode acontecer, tendo em conta que, além destas histórias, o autor conta e reconta os enredos de outras gémeas da literatura, perdendo-se ainda com os Beatles e outras bandas.

    Este cruzamento de histórias poderia ser interessante – e até pode ser enriquecedor para quem aprecia o género; porém, parece-nos que resultaria melhor se fossem entradas mais naturais. Por vezes, dá a sensação de que estamos numa sala de aula, onde o professor explica e volta a explicar o que aconteceu, como se fôssemos crianças de cinco anos.

    De maneira que, pois então, recomendamos o livro apenas a quem gosta de sentir a lágrima no canto do olho e de outros sentimentalismos a que Rodrigo Guedes de Carvalho nos tem habituado.

  • As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    Título

    A entrada na Guerra

    Autor

    ITALO CALVINO (tradução: Leonor Reis e Sousa)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Aos 31 anos, Italo Calvino escreveu A entrada na guerra, uma das suas obras menos conhecidas, e que em boa hora, e de forma muito oportuna, a Dom Quixote agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

    A oportunidade não se deve apenas por dar a conhecer aos leitores portugueses (por ser até agora inédita no nosso país) uma das primeiras obras deste escritor italiano – hoje merecidamente um dos grandes da Literatura europeia do século XX –, ainda mais autobiográfica.

    Nem por retratar o período inicial da II Guerra Mundial, que pode, aqui e ali, invocar os actuais acontecimentos na Ucrânia.

    Na verdade, deve-se a estes dois factores, mas sobretudo à sua qualidade literária, e por ser um retrato do início de uma guerra por alguém que, na verdade, está a iniciar a sua vida.

    Calvino, nascido em 1923 nos arredores de Havana (Cuba), por um acaso familiar, contava apenas 31 anos quando publicou, em 1954, as três breves memórias que constituem est’A entrada na guerra. Estava ainda longe das suas obras mais emblemáticas como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972) e Se numa noite de inverno um viajante (1979), mas já havia publicado O visconde cortado ao meio (1952), a primeira parte da magistral trilogia fantástica de Os nossos antepassados, completada ainda na década de 50: O barão trepador (1957), e O cavaleiro inexistente (1959).

    Mesmo sendo um livro de memórias, sem possuir, assim, a pretensão de contar uma história, esta obra tem dois fascínios. Primeiro, não aparenta ser escrito por um adulto de 31 anos, mas antes é a voz e o sentimento do adolescente Calvino a confrontar-se com a realidade de uma nova guerra que se avizinhava, mas que para jovens italianos parecia algo que somente quebrava o quotidiano, criando-lhes um mundo de aventuras. Segundo, já se lhe nota um amadurecimento da prosa, já bem visível em O visconde cortado ao meio, uma segurança na simplicidade como discorre a narrativa e a pontua com detalhes, por vezes desconcertantes. 

    A primeira parte, A entrada na guerra, que lhe dá título à obra, é datada no dia 10 de Junho de 1940. Encontra o jovem Calvino, como vanguardista (milícia juvenil homóloga à Mocidade Portuguesa), ajudando como pode (e quer e lhe apetece) a dar sopa aos refugiados que chegavam a uma escola, e onde o que mais “saltava à vista (…) era a presença de aleijados, de idiotas, de mulheres barbudas, anões, eram os lábios e narizes deformados por lúpus, era o olhar impotente dos doentes com delirium tremens: era este o rosto sombrio das aldeias de montanha, agora obrigado a revelar-se, a desfilar nas paradas o velho segredo das famílias camponesas à volta de quem as casas das aldeias se apertam umas contra as outras como as escamas de uma pinha”.

    A segunda parte, Os vanguardistas de Menton, temos um involuntário e imberbe Calvino a participar na pilhagem daquela pequena cidade francesa que caiu nas mãos de Mussolini em meados de 1940. Também aqui, jornalisticamente, o jovem Calvino revela a existência da máquina de propaganda, já então com as suas fake news: “Tínhamos visto recentemente no cinema um documentário que mostrava a luta das nossas tropas nas ruas de Menton; mas nós sabíamos que era falso, que Menton não tinha sido conquistada por ninguém, mas apenas abandonada pelo exército francês na altura do ataque e depois ocupada e pilhada pelos nossos.”

    O retrato de Calvino não chega a ser pungente nem sequer demasiado crítico da “selvajaria” das pilhagens, as quais acompanha e participa, para não ser considerado “estúpido”, mas sem qualquer entusiasmo.

    A terceira e derradeira parte, As noites da UNPA (Unione Nazionale Protezione Antiaerea, um corpo de voluntários para socorro da população civil em caso de ataques aéreos), retrata “tempos em que ainda não se sabia o que era o terror; pelas ruas viam-se apenas sinais do despertar geral e brusco: vozes nas casas, luzes que se acendiam e eram logo apagadas, e pessoas meio vestidas às portas dos abrigos olhando para o ar”. Por isso, o relato incide sobretudo nas aventuras, brincadeiras, partidas e descobertas de Calvino e dos seus amigos em San Remo durante um blackout.

    Nada, nesta obra, retrata o período posterior da vida de Calvino na sua chegada à fase adulta, com a entrada na Universidade de Turim e depois Florença – onde estudou a contragosto Agricultura, por pressão paterna –, e muito menos a sua entrada na Resistência italiana comunista. Não era preciso. Está muito, muito bom assim como ficou.

  • Um livro que se lê enquanto se reza para que se salve

    Um livro que se lê enquanto se reza para que se salve

    Título

    Um detalhe menor 

    Autora

    ADANIA SHIBLI (tradução: Hugo Maia)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Março de 2022)

    Cotação

    13/20 

    Recensão

    Há livros que fazem os leitores, página após página, pedir que se salvem. O romance da palestiniana Adania Shibli é um desses casos, pelo tema e pela recomendação.

    Escrito originalmente em árabe, apesar da autora ser poliglota e viver entre Berlim e Jerusalém, Um detalhe menor é, na verdade, uma novela, pelo seu tamanho (140 páginas de letra grande e maior espaçamento do que o habitual) – ou até, mais apropriadamente um díptico constituído por dois contos interligados, que invocam o passado e o presente da vida (e da morte) dos palestinianos expulsos das suas terras e segregados por Israel.

    A primeira parte retrata o evento trágico e horrível de uma jovem árabe às mãos de militares israelitas em 1949, no deserto de Negueve, um ano após a criação do Estado de Israel e do chamado Nakba (catástrofe) que levou ao êxodo de 700 mil palestinianos.

    Na segunda, interligado a este acontecimento, conta a viagem quase suicidária de uma palestiniana, com o medo sempre em si entranhado, que entra por terras dos colonatos em busca de informações sobre aquele evento passado, apenas por via um detalhe menor: ocorreu 25 anos antes do seu nascimento.

    Aquilo que, porém, é uma ideia literariamente poderosa: os dramas do povo palestiniano, o seu presente assombrado pelo seu passado, esvai-se numa narrativa repetitiva, por vezes cansativa e exasperante.

    Mesmo aceitando que, na primeira parte da novela, estamos perante um deserto avassalador, com os seus peçonhentos insectos e um calor sufocante, chega a ser exasperante que Shibli exponha continuamente os hábitos de higiene do comandante da companhia israelita, bem como a evolução do seu estado de saúde resultante da mordida de um insecto (num romance longo seria aceitável; num romance curto ou novela surge como factor de desequilíbrio).

    Até à página 17, o dito comandante lava as axilas por quatro vezes. Até à página 72, quando termina a primeira parte do romance, e passa para a actualidade, são seis lavagens de axilas.

    Quase nada há do pensamento do comandante (que concentra a primeira parte do romance), nem dos seus subordinados dos da árabe sequestrada. Se a intenção de Adania Shibli era transmitir, ausência de sentimentos ou de humanismo, falha, na minha opinião: tais ausências não significam ausência de pensamento. 

    A excepção surge num longo discurso (não há diálogo) do comandante ao seus soldados que, em duas páginas, expõe de forma algo artificial (até nas palavras escolhidas) as intenções dos judeus nas terras apossadas aos árabes. 

    Um exemplo, neste trecho: “(…) E é aqui exatamente que iremos testar a nossa força criativa e pioneira, quando conseguirmos transformar o Negueve numa região próspera e civilizada, num centro para o ensino, o desenvolvimento e a cultura, à semelhança do que já fizemos nas regiões norte e centro. Apesar de agora parecerem totalmente infecundas, estas extensões de deserto irão recuar gradualmente com a plantação de árvores e a construção de projetos agrícolas e industriais, para que o nosso povo nelas possa viver. Mas, para que tudo isto se concretize, primeiro é necessário vencer aqueles que nutrem a mais feroz e roaz inimizade contra esta terra, e protegê-la o melhor que pudermos. A nossa presença aqui é ponto de partida para realizar esta visão (…)”   

    De similar problema sofre a segunda parte do romance (ou segundo conto), protagonizado por uma jovem palestiniana em viagem também introspectiva. A presença dos latidos de cães, que percorre também o relato, embora evoque o passado (também um cão acompanhou o sofrimento da jovem árabe às mãos dos israelitas), soa sempre a forçado.

    Do ponto de vista literário, existe alguma esperança de redenção no romance aquando dos preparativos da viagem da jovem em busca de saber algo mais sobre o passado da árabe de 1949, e na forma como percebemos o quotidiano dos palestinianos em Ramallah, e o apartheid a que estão sujeitos para saírem do seu reduto e poderem percorrerem as “terras ocupadas”, outrora dos seus antepassados, e as antigas vilas destruídas,  e o omnipresente medo.

    Esperamos, depois da entrada no “território ocupado”, que surja então uma ligação para além da geografia que una o passado e o presente, que se desvende algo que ajude na reflexão sobre esta quasi-impossibilidade de co-habitação entre judeus e árabes, sobre a Humanidade, sobre o bem o mal, sobre a opressão e a maldade; um qualquer rasgo que nos salve a leitura, que vá para além da simpatia pelo contexto e pela autora.

    Contudo, tudo se esvai numa escrita que aparenta, em muitas páginas, ser uma mera redacção, sem rasgos literários (excepto, porventura, na estranha descrição em torno da poeira de uma explosão), por vezes um mero Guia Michelin, com cruzamento de mapas, acompanhando um carro a rodar de um lado para o outro, ora para a esquerda e depois para a direita, com pastilhas elásticas à mistura, a seguir pela estrada Y ou Z, sem densidade nem sequer beleza estilística. Dir-se-ia mesmo que o livro foi escrito durante uma viagem, num par de dias, tão simplesmente descritivo que se mostra.

    No fim, a viagem da jovem palestiniana chega a ser um tormento sem nexo, e acaba em tragédia, sem grande surpresa, aliás. O romance fica próximo. Uma pena. O livro foi finalista do National Book Award e do International Booker Prize – sinceramente, não se entende como.