Etiqueta: Dom Quixote

  • Mãe não há só uma

    Mãe não há só uma

    Título

    Vínculos ferozes

    Autora

    VIVIAN GORNICK (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Há livros que escrevem a sua própria história, sem que se perceba porque são ignorados quando são publicados, e têm um sucesso enorme tempos depois. Foi o que se passou com este Vínculos ferozes. Foi publicado pela primeira vez em 1987, mas só acabou catapultado para o sucesso recentemente, pelos críticos literários do New York Times que o consideraram o Melhor Livro de Memórias dos Últimos 50 Anos.

    Os críticos elogiaram-no pela avaliação crua e honesta que a autora faz sobre uma relação habitualmente não escrutinada nem por ensaios nem por ficção: a relação entre mães e filhas. Neste caso, entre a própria Vivian e a sua mãe. Trata-se de um livro autobiográfico, que explora a natureza do vínculo mãe-filha e, surpreendentemente, nos mostra como nem sempre é um relacionamento saudável.

    Escritora de não-ficção e crítica literária, Gornick normalmente escreve sobre assuntos polémicos, incluindo política e questões de género, mas, neste livro, explora tópicos familiares sob novos ângulos: o que significa ser mulher, mãe e filha. Refclete sobre o seu próprio relacionamento com a mãe, “Ma”, e o que esse vínculo filial lhe ensinou sobre feminilidade.

    Há muitas maneiras de ser mãe, e as outras influências femininas são tão importantes para as filhas em crescimento, quanto a influência das próprias mães. É isto que a autora explora. O relacionamento de Vivian Gornick com a mãe é difícil. “A minha relação com a minha mãe não é boa e, à medida que as nossas vidas se acumulam, parece muitas vezes piorar. Estamos encerradas num canal relacional estreito, intenso e vinculativo” (pág. 12).

    Aos quarenta e cinco anos da autora, elas encontram-se regularmente para passear pelas ruas de Manhattan. Esses passeios levam-nas a recordações nostálgicas da Nova Iorque do tempo da infância de uma e idade adulta de outra. Os diálogos são, por vezes, amistosos e cheios de sentido de humor mas, na maioria das vezes, essas caminhadas são ofuscadas por níveis de desprezo, irritação e raiva tão fortes que a mãe chega a interpelar estranhos na rua e dirá: “Esta é a minha filha. Ela odeia-me”.

    A narrativa passa-se então entre estes momentos do presente e as memórias do passado da autora. Vivian Gornick começa o livro com uma das suas primeiras recordações: tem oito anos e mora num bairro judeu, no Bronx, com Ma, que passa a maior parte do tempo a julgar as vizinhas do prédio e o que elas fazem. Tudo é objeto de escrutínio, o que fazem, o que compram, com quem se dão socialmente. Quem entra e sai das suas casas.

    Gornick reflete sobre o papel da mãe na sua educação, mas escreve também sobre as outras mulheres que moldaram a sua juventude, transformando-a na mulher que agora caminha com a mãe. Está particularmente grata a Nettie Levine. Nettie morava do outro lado do corredor do prédio, da sua infância, e era o oposto de Ma: coquete, liberal e feminina. Encorajou Viviane a “flirtar”, namorar e a usar os seus encantos femininos. Para Gornick, Nettie e Ma representavam os dois modelos antagónicos de feminilidade, e ela lutou, ao longo da sua vida, para os conciliar. 

    A mãe é ousada e obstinada, ela realmente quer o melhor para a filha, mas adora controlá-la. A tensão aumenta em casa. A casa da vizinha é um refúgio para a adolescente. E é neste diálogo de aproximação e de ruptura que toda a narrativa do livro nos vai levando num vai e vem de amor e de ódio.

    Vivian ama muito Ma, mas não a vê através de lentes cor-de-rosa. Vê-a como ela realmente é: não a sua mãe, mas uma mulher imperfeita com tantos defeitos como qualquer outra pessoa. Só quando crescemos é que vemos os nossos pais como pessoas reais e isso nem sempre é uma experiência agradável.

    A autora escreve também sobre si própria na amizade, no casamento, como filha, como uma mulher que vive sozinha em Nova Iorque e como uma escritora que tem dificuldade em escrever. Há momentos em que descreve as suas lutas e os seus fracassos com tanta franqueza calma que parece não haver nada sobre si que tema falar.

    É, por tudo isto, um livro brilhante, que nos deixa a pensar, e permanece por muito tempo na nossa mente.

  • A mística e a mágica das labaredas

    A mística e a mágica das labaredas

    Título

    Salvar o fogo

    Autor

    ITAMAR VIEIRA JUNIOR

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do seu romance de estreia, Torto arado, ter ganhado o Prémio LeYa em 2018, o baiano Itamar Vieira Junior estabeleceu-se como um dos escritores brasileiros mais reconhecidos da actualidade, e das últimas décadas. 

    Alcançando um sucesso estrondoso, Torto arado valeu também ao autor, em 2020, o prémio literário mais importante do Brasil, o Jabuti de Literatura, e o prémio Oceanos. Em 2022, Vieira Junior lançou ainda o livro de contos Doramar ou a Odisseia, também editado pela Dom Quixote.

    Com Torto arado, o autor cravou indelevelmente o seu nome no mundo literário transportando o leitor para a realidade de um Brasil rural, assolado pela pobreza e vítima de relações de poder e velhas estruturas opressoras que se perpetuaram no tempo. Em Salvar o fogo, replicou a receita (recuperando até uma personagem) –, e saiu-se bem. Não tendo conseguido exceder a “obra-prima” anterior, o que nunca seria tarefa fácil, solidificou o estilo com que se apresentou ao público.

    A história deste seu segundo romance passa-se nos anos 1960 e tem como protagonistas Moisés e Luzia, dois irmãos que vivem numa comunidade rural na Tapera do Paraguaçu, como inquilinos de terras detidas pela Igreja, e obrigados a pagar, todos os meses, impostos à instituição – uma injustiça aos olhos de Mundinho, o pai, que se recusa sempre a cumprir com os pagamentos. 

    Mundinho trabalha na terra, de sol a sol, e é dependente do álcool, ficado o peso da educação de Moisés, o “caçula”, para Luzia, cuja idade dista uma grande distância do seu irmão mais novo. Vivem apenas os três juntos, já que todos os outros irmãos abandonaram a aldeia assim que tiveram oportunidade; e a matriarca da família, Alzira, faleceu antes de Moisés poder sequer recordar o seu rosto.

    Luzia, por isso, assume o fardo de cuidar do “Menino”, como lhe chama, para além de trabalhar todos os dias como lavadeira da igreja do Paraguaçu, de forma abnegada e devota. Entre os dois, há um amor maternal profundo, mas raras vezes exteriorizado: Moisés anseia por afecto, mas a irmã educa-o de rígida e friamente, nunca se permitindo expressar actos de carinho. 

    Os dois primeiros capítulos são narrados na primeira pessoa, sendo o primeiro contado pelos olhos de Moisés, e o segundo por Luzia. É neste último que se revela ao leitor um dos grandes segredos do romance, e que se compreende, finalmente, a atitude sempre ríspida e amarga de Luzia. 

    A Igreja surge, ao longo do romance, como um símbolo da opressão – sobre ela e através dela, contam-se muitas histórias. Essencialmente, é retratada como uma fonte do “Mal”, do que é profano e perverso, de agressão e subversão. As dores e os traumas que o mosteiro da aldeia provocou a Moisés – o único da família que frequentou a escola –, levaram-no a abandonar a sua casa, a irmã e o pai, e a rumar à cidade, com apenas 15 anos.

    Depois de um incêndio reduzir o mosteiro a ruínas, e o estado de saúde de Mundinho se deteriorar, os irmãos que há muito tinham virado costas às margens do rio do Paraguaçu, regressam para um reencontro familiar. O reencontro, já 15 anos após a partida de Moisés, reacende os fantasmas de um passado que, longe de enterrado, continua vivo e “efervescente”.

    Ao longo da história, há uma aura de mistério que envolve as personagens principais e que se vai adensando, enquanto vão, também, sendo desvendados alguns dos seus segredos.

    Luzia é tida por toda a comunidade como uma “bruxa” e acusada de práticas de feitiçaria, sendo por isso ostracizada, vilipendiada e alvo de chacota. A corcunda que, estranhamente, desenvolveu ainda em adolescente só cimentou, entre a população supersticiosa, o mito de eventuais poderes sobrenaturais. 

    Moisés, por sua vez, nascido nas águas do rio em noite de Lua Cheia, cresce e vive com muitas dúvidas em torno das verdadeiras causas do desaparecimento precoce da sua mãe e das circunstâncias em torno do seu nascimento.

    Salvar o fogo é sobre desigualdades e abusos de poder de instituições seculares perpetrados sob um manto de boas intenções, mas, mais do que isso, é sobre a complexidade dos laços familiares e os dramas subjacentes, a força do feminino e da Natureza – e, claro, do fogo, literal e metafórico, que tanto consome e destrói como aquece e eleva.

    Sobretudo, é um romance que nos abre as portas a uma dimensão mística e mágica da vida, contrastando-a com a singeleza de vidas aparentemente “comuns” e simples, iguais a tantas outras que vieram antes. 

    A escrita é melodiosa e envolvente, embora fazendo-se por vezes uso de expressões que soam um pouco a clichés, já muito “repisados”. 

  • A arte da auto-aceitação do idiota adorável

    A arte da auto-aceitação do idiota adorável

    Título

    O ódio a si mesmo

    Autor

    ALAIN DE BOTTON (tradução: João Van Zeller e Leya)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Alain de Botton é um filósofo contemporâneo, nascido na Suíça, em 1969. Vive em Londres, onde fundou e é administrador da “The School of Life”, uma instituição que promove, investiga, reflecte e desenvolve novas formas de Educação que contribuam para que as pessoas vivam melhor. 

    É conhecido como “o filósofo da vida quotidiana”, pela autoria de livros de ensaios e programas de televisão que discutem temas mais ou menos prosaicos. Foi com How Proust can change your life (Como Proust pode mudar sua vida), em 1997, que Alain de Botton se viria a tornar mundialmente reconhecido. Um livro baseado na vida e obra de Marcel Proust, e a partir do qual Botton extrai de forma majestosa elementos para reflectirmos e, eventualmente, melhorarmos a nossa vida. Um livro amplamente vendido nos Estados Unidos e no Reino Unido.  

    Outros publicou, sendo de destacar A arquitectura da felicidade e A arte de viajar, ambos publicados, em Portugal, pela Dom Quixote, tal como este O ódio a si mesmo. Em cada uma destas obras, Alain de Botton convida os leitores a uma observação atenta para uma tomada de consciência de si próprios.  

    É precisamente desse modo que O ódio a si mesmo começa, com um teste em forma de questionário, que tem como objectivo avaliar a consciência da identidade de quem começou a ler este ensaio. O resultado é um ponto de partida para o leitor saber se se enquadra no conjunto de pessoas que se odeiam a si mesmas e se o grau de desprezo é ou não patológico. Razão pela qual o autor vai sugerindo, ao longo do livro, que se consulte um especialista para realizar terapia.   

    No capítulo III, o autor discorre sobre as consequências do ódio a si mesmo que, no limite, pode desencadear um processo de auto-destruição que culmina com o suicídio. Segundo Alain de Botton, “as pessoas não se matam por lhes ter acontecido coisas más; matam-se porque já sofrem de um intenso ódio a si mesmas” (pág. 63), sendo um ou outro acontecimento infeliz a demonstração dessa irrefutável justificação para o auto-extermínio. 

    O capítulo IV, “As origens do ódio a si mesmo”, é particularmente interessante, uma vez que o autor convida o leitor a uma viagem ao passado, numa espécie de terapia por regressão. O objectivo é levar o leitor a se observar, como se estivesse na plateia de um cinema, em cuja tela passam as cenas dos episódios mais marcantes da sua infância. 

    A partir dessa análise, em perspectiva e retrospectiva, o leitor terá elementos para compreender o seu modo de ser e até as razões por que se odeia – talvez, desse modo, consiga encontrar formas de aceitar as suas características e até mesmo limitações.  

    Na verdade, Alain de Botton não oferece receitas, tampouco sugere que se poderão alterar/melhorar essas características ou limitações. Aquilo que o autor propõe é que cada um se avalie de forma objectiva, começando com a recuperação das memórias, pesquisando de forma profunda os sentimentos que se terão vivenciado na infância, em especial com os respectivos progenitores e familiares mais próximos, como os irmãos.

    Os instrumentos de trabalho são, por isso, os da auto-análise, com recurso à visualização e sensorialização dos contextos iniciáticos. Desse modo, é possível que se consiga apreender a ira sentida e as respectivas causas. Nesse processo de auto-descoberta, mostra-se provável que se alcance um dos propósitos deste ensaio: a capacidade de se perdoar a si próprio, que é o primeiro passo para a auto-aceitação. 

    As estratégias que o autor propõe vão, então, no sentido de aprofundarmos a aceitação de que ninguém é perfeito, incluindo nós próprios, e que, em cada um de nós, mora um idiota adorável. Com o exemplo de David Brent, o chefe da série “O escritório”, o autor lembra-nos que são as idiossincrasias que nos tornam peculiares, e, por isso também, objecto do amor fraterno.

  • O incrível destino de Belle Gunness

    O incrível destino de Belle Gunness

    Título

    Os meus homens

    Autora

    VICTORIA KIELLAND (tradução: João Reis)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Este livro é estranhíssimo. Embora escrito na terceira pessoa, deve ler-se, na sua maior parte, como um monólogo louco, desesperado e perturbador de uma mulher com problemas de saúde mental que, amiúde, nos traz um discurso desconexo que temos dificuldade em seguir.

    “O corpo de Nellie era tão quente e macio, ela cheirava tão bem, e Brynhild deixou-se tombar para dentro, agarrou-se mais e mais à irmã e Nellie não a soltou. Algo na visão que Brynhild teve naquele momento, nos braços de Nellie, virou tudo de cabeça para baixo, a libertação selvagem, esse sentimento repentino, ela só queria agarrar-se a Nellie para nunca mais a soltar. Brynhild sentiu a respiração desdobrar-se no corpo, como se todas as asas de borboleta lhe arrancassem a alma pela boca, como se conseguisse finalmente respirar e ao ar abrisse caminho até aos pulmões.”

    Brynild é a protagonista, e durante a narrativa muda o seu nome, primeiro para Bella, e depois para Belle, numa busca desesperada de se tornar alguém novo e começar de novo. Nellie é uma sua irmã que vive nos Estados Unidos, para onde Brynild vai depois de uma experiência traumática que viveu na Noruega, sua terra natal, por volta de 1880. 

    Os factos são baseados na história real de uma mulher, muitas vezes referida como “a primeira assassina em série da América”, Lady Barba Azul, Princesa do Inferno e a viúva negra de La Porte. A sua notoriedade já lhe valeu um lugar no Guinness e fascinou fãs de crimes. Inspirou baladas, panfletos e livros de não-ficção, alguns filmes e documentários, e pelo menos um longo romance. Agora, a escritora norueguesa Victoria Kielland pegou na história e dá-nos uma visão nova da mesma. 

    Depois de um breve período a viver com a irmã, casa-se com um norueguês, Mads Sørensen, e mata-o. Depois casa-se com Peder Gunness, outro norueguês, mata-o também. Depois de Peder, começa a publicar anúncios em jornais atraindo homens solitários e com posses e vai matando-os, um a um, e enterrando os restos desmembrados no quintal.

    Victoria Kielland é brilhante em descrever pequenos momentos quotidianos que, numa mente deprimida, se transformam num desespero avassalador.

    “As recordações eram como uma sopa branca atrás dela, faziam um som de sucção sempre que ela mexia a cabeça, a pura morte por afogamento. (…) A luz que a encadeava entrava pela janela, caía sobre todas as coisas, deixava à vista pó e moscas, deixava tantas coisas à vista que Bella sentiu uma náusea e, no meio de um pântano como uma vegetação luxuriante e canais construídos com represas, no meio de braços e pernas, com os olhos no meio da cara, Bella não mais aguentou.”

    Não é uma leitura fácil nem confortável e é cansativo estar dentro da cabeça de Belle. Os mesmos detalhes e imagens surgem repetidamente, numa vertigem da loucura que vai aumentando à medida que os acontecimentos se sucedem.

    Apesar da brutalidade de algumas páginas, trata-se de um romance até poético e comovente e damos por nós a tentar desculpabilizar a protagonista e a tentar perceber as razões que a levaram a atos tão violentos na sua busca insaciável do amor.

    A tradução de João Reis é, como habitualmente neste tradutor, exímia e cuidada.

  • Jovem à beira de um ataque de nervos

    Jovem à beira de um ataque de nervos

    Título

    Indignação

    Autor

    PHILIP ROTH (tradução: Francisco Agarez)

    Editora

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Desaparecido em 2018, aos 85 anos, Philip Roth é considerado o maior escritor americano do século XX. Foi reconhecido pelo seu trabalho, com vários prémios, como o Pulitzer, em 1998, pela obra Pastoral americana, e o National Book Award, em 1969, por Adeus, Columbus, entre muitos outros.

    O escritor foi várias vezes mencionado para o Nobel da Literatura, mas é provável que a crítica que lhe está associada, a de ser antissemita, tenha tido algum peso nessa ausência.

    O judaísmo era, aliás, um dos temas recorrentes do autor, o que lhe terá valido uma série de críticas por parte da comunidade judaica. Paralelamente, os temas da família e da sexualidade concorriam para as polémicas de que foi alvo ao longo da sua vida, como aconteceu com a obra O complexo de Portnoy.

    Uma das características do autor era, precisamente, a sua capacidade para conjugar diferentes temas numa mesma obra, no que alguns designam de “realismo sincrético”, tal a sua habilidade genial para entrelaçar o homem comum numa teia que envolve tanto a política norte-americana, como a família, a religião e a sexualidade. Posteriormente, acrescentou o tema do envelhecimento, de que são exemplos Humilhação e O fantasma sai de cena.

    Em Indignação, reeditado pela D. Quixote, repete-se a figura recorrente: o jovem judeu. Neste caso, o jovem Marcus Messner, filho de um talhante kosher, que vive em conflito com o pai desde que entrou na universidade. Para se afastar das preocupações, sem sentido, da figura paterna, prefere estudar noutra cidade.

    De Newark, muda-se então para Ohio, onde descobre a sexualidade, com uma jovem problemática que, logo no primeiro encontro, lhe oferece sexo oral.

    Perplexidade à parte, o seu objetivo é estudar e ser o melhor aluno, de modo a escapar à guerra da Coreia. Mas, conflito atrás de conflito com os colegas de quarto, Marcus vê-se em situações inimagináveis para a sua juventude e parca experiência. Reconhece, assim e sem compreender ainda, o peso das instituições e da política, ficando indignado com o modo como é tratado, em particular, pelo Deão da Universidade de Winesburg.

    É com o responsável máximo da Universidade que Marcus tem grandes discussões ideológicas, indo buscar a Bertrand Russel os seus argumentos para não frequentar a capela (cristã), onde todos os estudantes (em teoria) estão obrigados a assistir à missa, pelo menos quarenta vezes.

    O narrador é a personagem principal que, sob o efeito da morfina, nos conta como e porquê pediu transferência para outra universidade, bem como a cadeia de acontecimentos que o conduziram à indignação.

    Como é hábito, o autor é mestre em agarrar o leitor desde a primeira, até à última página, talvez pelo realismo que caracteriza a sua obra, sendo fácil e provável uma identificação com a personagem principal.

    Ainda que o prosaico se possa sentir, a profundidade da vida espelha-se nessa simplicidade e na angústia e medo que assalta qualquer ser humano: a morte – aqui, representada pelo medo da personagem principal em ser chamada para combater na guerra da Coreia.

  • Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Título

    A guerra dos chips

    Autor

    CHRIS MILLER (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Muito se tem dito sobre o fim da hegemonia dos Estados Unidos, e o início de uma nova era onde outras potências adquirem destaque internacional, sobretudo a China, o seu principal adversário. Teme-se, digamos assim, que o verniz mais do que estale entre estas duas nações, em grande parte devido às tensões envolvendo Taiwan.

    Contudo, como Chris Miller demonstra em A guerra dos chips, por enquanto, se “guerra” há, esta vai-se travando com outras armas: os chips. 

    Professor de História Internacional na Tufts University’s Fletcher School, e investigador convidado no think-thank American Enterprise Institute, o autor deste best-seller do New York Times ocupa também o cargo de director para a Eurásia no Foreign Policy Research Institute. Eis, portanto, um verdadeiro especialista nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia, a política externa russa e a história das relações norte-americanas com o estrangeiro, como se vê por algumas das suas obras, como The Struggle to Save the Soviet Economy: Mikhail Gorbachev and the Collapse of the USSR e ainda Putinomics: Power and Money in Resurgent Russia.

    A narrativa desta sua obra, agora publicada em Portugal, assemelha-se ao enredo de um filme de acção, em que os protagonistas se debatem pela vitória, enquanto os acontecimentos se vão adensando e tornando cada vez mais imprevisíveis, fazendo-nos colar ao ecrã. E o propósito será mesmo esse, uma vez que A guerra dos chips mostra ser uma espécie de thriller de não-ficcão e, por isso, o autor confere-lhe uma boa dose de intensidade dramática. Nesta história da vida real, o que está em causa é a cobiça pelo lugar cimeiro na indústria dos semicondutores – e é isso que assegurará a consolidação e manutenção do poder, a nível global, a quem o alcance. 

    Ao longo de cerca de 450 páginas, Chris Miller recua até às origens desta tecnologia, que diz ser o “novo petróleo”, e explica em detalhe como se tem desenrolado, neste campo de autêntica batalha, a luta entre os Estados Unidos e a China. Fala do caso das sanções à Huawei, que fizeram manchetes no início deste ano, mas que foram apenas uma das medidas que os Estados Unidos já tomaram para tentar evitar, ou atrasar, a ascensão da China neste sector. 

    Os chips, como se sabe, são uma peça fundamental de variados equipamentos, e o autor lembra-nos como uma grande parte da nossa existência está profundamente alicerçada nesta tecnologia. Desde os micro-ondas, smartphones, frigoríficos, computadores, à Bolsa de Valores e ao armamento, o Mundo como o conhecemos hoje não existiria sem estes minúsculos objectos. Na verdade, “grande parte do PIB Mundial é produzido com máquinas que só funcionam com semicondutores. Para um produto que não existia há 75 anos atrás, esta é uma evolução extraordinária”. (pág. 34)

    Não é, assim, de espantar que a China esteja tão apostada em destronar os Estados Unidos, gastando já mais dinheiro a importar chips anualmente do que em petróleo. No caminho, tem tentado fintar as duras restrições aplicadas pelos Estados Unidos, como a Lei dos Chips, e outros entraves à sua capacidade de produção, como os controlos à exportação de materiais necessários.  

    Para sabermos se será, ou não, bem-sucedida, teremos de esperar pelos próximos capítulos, mas aquilo que Chris Miller salienta é que se pode estar na iminência de uma mudança abissal no panorama geopolítico, alterando o equilíbrio das relações económicas internacionais e do poder militar. O seguinte trecho resume o seu argumento: “A Segunda Guerra Mundial foi decidida pelo aço e pelo alumínio, logo seguida pela Guerra Fria, que foi definida pelo armamento atómico. A rivalidade entre os Estados Unidos e a China pode muito bem ser decidida pela capacidade computacional”. (pág 29)

    Até a famosa Sillicon Valley, que é também central nesta indústria, deve ao seu nome ao material com que se fabricam os chips. Como Chris Miller destaca pertinentemente, a Internet e as redes sociais, de que hoje estamos tão dependentes, só existem graças à genialidade de alguns cientistas, e “porque os engenheiros aprenderam a controlar o mais diminuto movimento dos eletrões na sua corrida através de superfícies de silício. A ‘Big Tech’ não existiria se o custo de processar e memorizar 0 e 1 não tivesse caído um bilião de vezes nas últimas cinco décadas”. (pág. 32)

    Mas se é inegável a relevância desta tecnologia neste nosso Mundo globalizado, também é verdade que a sua importância assume contornos mais delicados, tendo em conta que a produção se concentra num reduzido número de companhias, que, ainda por cima, se localizam em países vulneráveis a conflitos bélicos ou até a desastres naturais, como terramotos – como é o caso de Taiwan e do Japão. 

    No entanto, o “fantasma” mais assustador, que paira sobre a gigante indústria dos chips e, acima de tudo, sobre o Ocidente, é a de uma Terceira Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a China. 

    A guerra dos chips “troca por miúdos”, assim, tanto quanto é possível num assunto deste calibre, as dinâmicas perigosas entre as duas potências que continuarão, previsivelmente, a digladiar pelo “domínio” do Mundo, num verdadeiro duelo de titãs. 

    No final desta colossal e fascinante obra, Chris Miller confessa que “escrever este livro foi só ligeiramente menos complexo do que fazer um chip” (pág. 451), o que, passando o humor ou ironia, acaba por mostrar, com justiça, o grau de minúcia, investigação e de esforço de simplificação que ele colocou num tema tão complexo mas tratado com mestria.

  • Os destroços de uma utopia

    Os destroços de uma utopia

    Título

    Regresso da URSS seguido de apontamentos ao meu “Regresso da URSS”

    Autor

    ANDRÉ GIDE (tradução: João van Zeller)

    Editora

    Dom Quixote

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nobel da Literatura em 1947, o francês André Gide (1869-1951) publicou, em 1936, Regresso da URSS, no qual relatava a viagem à União Soviética que fez naquele ano, e posteriormente lançou também Apontamentos , sobre essa mesma jornada. Agora, ambos os títulos foram publicados pela Dom Quixote num só volume, que conta com uma apresentação do filósofo, investigador e professor Paulo Tunhas, falecido em Abril passado.

    Considerado o último dos mais importantes escritores franceses do século, André Gide nasceu em Paris no seio de uma família burguesa protestante, tendo uma educação rígida e moralista. Influência que veio a desconstruir, já que Gide se enquadrava no arquétipo do artista subversivo: homossexual, praticava e defendia abertamente a pederastia, e nutria simpatia pelos ideais comunistas e revolucionários.

    Um prolífico escritor, Gide teve o seu primeiro livro publicado em 1891, e muitas das suas produções literárias eram de carácter autobiográfico. Escreveu em diversos estilos, incluindo ensaios e críticas, e traduziu ainda autores como Shakespeare, Joseph Conrad e Rainer Maria Rilke. O imoralista , Corydon e Os frutos da terra são algumas das suas obras de maior destaque. 

    O escritor francês conheceu a União Soviética em 1936, poucos anos depois de ter declarado, nas suas próprias palavras, direitos e amor pelo país. Porém, com a sua visita ao território soviético, a opinião que então acalentava esbarrou com uma realidade menos idílica do que aquela que tinha imaginado. Ainda assim, diga-se, o autor faz, logo no início, uma ressalva: apesar das críticas que desferem à União Soviética, consequências de um compromisso para com a verdade, a sua fé na possibilidade de o país alcançar o ideal comunista não abandonado.

    Mas, de facto, o que André Gide descreve parece longe de se assemelhar a uma utopia. Embora ressalte alguns aspectos positivos e dignos de elogio, o retrato que traça é inequivocamente mais negro do que risonho. 

    O que o escritor encontra aquela URSS de Estaline é um povo domesticado, mergulhado na propaganda do regime, sem conhecimento do que acontece além das fronteiras soviéticas, resignado e reduzido a uma uniformização castradora.

    Convencidos de que o seu país é, em todos os aspectos, superior aos demais, adultos e crianças vivem alheados da realidade dos restantes países europeus, mas convictos, não obstante, de que sabem exatamente do que se passa para lá “da sua rua”.  Mostram-se atónitos, até cinicamente descrentes, quando Gide lhes revela, por exemplo, que em França também existem escolas e um metropolitano.

    A somar à ignorância sobre a conjuntura europeia, as crianças aprendem desde cedo quais são as qualidades do regime estalinista, que reproduzem sem questionar. O lema subjacente é simples: tudo o que se faz na URSS é bom e virtuoso; o que se faz fora dela é, no mínimo, medíocre.  

    Gide revela-se igualmente desapontado com o culto do líder e a constante bajulação a Estaline, dando conta de que a sua efígie se ergue por toda a parte, e a sua imagem está pendurada em todas as casas por que passou. 

    Por outro lado, a pobreza ainda prevalecente que o regime comunista não conseguiu erradicar, constituiu uma surpresa para o autor: “Supostamente, já não existem classes na URSS. Mas existem pobres, muito pobres. Esperava, no entanto, já não os ver, ou mais precisamente: foi para já não os ver que fui à URSS” (p. 65).

    Sobre o Pravda, o principal órgão de comunicação social soviético, que determina o sentido que deve seguir o pensamento do povo, Gide é assertivo: “Todas as manhãs, o Pravda ensina-lhes o que deve saber, pensar, acreditar. E não é aconselhável afastar-se disso!” (pág. 51). 

    Salientando a importância da liberdade artística – por óbvias razões – como instrumento de crítica do poder e do status quo, o escritor lamenta a censura que observou: qualquer obra só é aceite se estiver “alinhada”. 

    Gide acaba por denunciar, enfim, a morte do espírito crítico, e o encorajamento à subserviência e à delação. Os opositores, que se atrevam a mostrar insatisfação perante o regime instalado, são facilmente imputados de uma atitude “contrarrevolucionária”. O essencial do seu pensamento sobre o que testemunhou pode resumir-se nestas linhas:

    Ditadura do proletariado , foi-nos prometido. Estamos longe disso. Sim: ditadura, obviamente; mas ditadura de um homem, e já não dos proletários unidos, dos soviéticos. É importante não nos iludirmos, e temos de reconhecer muito claramente que não era isto que gostaríamos. Mais um passo e diríamos até: é isto precisamente o que não queríamos” (p. 76). 

    Para além do sublime domínio da palavra, que tornou André Gide num marco na literatura francesa, o uso inteligente do sarcasmo e de um humor acutilante, faz deste relato uma leitura imperdível. 

    Em última análise, a obra convida o leitor, sobretudo o mais obstinado, a reflectir sobre se os mais nobres valores podem ter, como consequência legítima, a tirania. Mas, antes disso, se uma filiação ideológica deve redundar num envio que não permita constatar o esclarecer. Porque, como nota Gide, “é importante ver as coisas como são , e não como gostaria que fosse”. 

  • Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Título

    A fera na selva

    Autor

    Henry James (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Publicada há 120 anos, Uma fera na selva mantém-se, nem que seja metaforicamente, jovial, no sentido de ser uma novela actual na sua complexidade psicológica e nas suas inúmeras subtilezas, que tão bem retratam a natureza humana: a vida, em si mesma, o tempo, as ânsias e as obsessões, as oportunidades (perdidas também) e a própria decadência e morte.

    Retratando a vida, ou a vida desaproveitada, de John Marcher – um homem que (sobre)vive na expectativa de um evento extraordinário que o tornará diferente dos demais (não se sabe se para melhor, se para pior) –, nesta novela Henry James cruza-o com May Bartram, uma mulher que, confidente inicial de um “segredo”, o acompanha pacientemente nas suas inseguranças e ânsias, numa estranha dinâmica que não permite nem avanços nem recuos para qualquer relação, que parece estar ali a gritar entre os dois. Ambos aguardam assim, mais ele que ela, mas ambos aguardam.

     “A forma real que esta relação o deveria ter tomado, tal como se apresentava, era o casamento de ambos. O diabo era que, justamente porque se apresentava assim, tornava o casamento impossível. A convicção, a apreensão, a obsessão dele, em suma, não era um privilégio que pudesse pedir a uma mulher para partilhar; e essa consciência era justamente o que o atormentava. Alguma coisa estava à sua espera, entre as circunvoluções dos meses e dos anos, como uma Fera agachada na Selva, a preparar o salto. Se a Fera estava destinada a matá-lo ou a ser morta por ele, era irrelevante” (pg. 34).

    Enfim, os dois personagens passam pelas respectivas vidas, de forma lenta e com a “fera”, omnipresente mas invisível, até que, efectivamente, algo sucede, mas, quando sucede, na verdade, a sua apreensão é já tardia e irremediável para John Marcher.

    Notável pela maneira e estilo da narrativa e seus diálogos ambíguos e subtis– que tornam a novela bastante complexa e aberta a várias leituras, daí que ser obra conhecida pela dificuldade de tradução –, Henry James explora magistralmente a natureza da vida, do amor e da perda (ou do não-ganho), onde uma selva metafórica – a vida e a sua imprevisibilidade – estão sujeitas (ou não) à ameaça de uma também metafórica fera, temida por ser desconhecida e imprevisível (embora certa, pelo menos para Marcher; não tanto, talvez, para May).

    Novela de múltiplas interpretações, A fera na selva pode ser entendida também como uma metáfora sobre a nossa constante luta interna sobre o sentido da vida, sobre as nossas opções e sobretudo sobre as hesitações que, se se mantiverem ao longo da vida – como sucedeu com John Marcher – nos surpreende apenas, à laia de saldo final, com uma terrível perda sem qualquer ganho. Na verdade, nem sempre quem espera sempre alcança. Pode apenas perder-se, sem glória.

  • Verão, vestidos e bonecas

    Verão, vestidos e bonecas

    Título

    Vozdevelha

    Autora

    ELISA VICTORIA (tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Elisa Victoria nasceu em Sevilha, em 1985. Orgulha-se da sua colecção de bonecas, bem como do facto de ter usado gorro vermelho para vender pizzas e hambúrgueres. Estudou Filosofia e Ensino de Educação Infantil.

    É professora de escrita criativa e tem contribuído para diversos sites, fanzines e antologias. Antes deste Vozdevelha ser o Livro da Semana no El País, em 2019, tinha publicado dois livros: Porn & Pains, em 2013, e La sombra de los pinos, em 2018, ambos com Esto no es Berlín. Aguardamos com alguma expectativa a tradução do seu mais recente livro, El Evangelio.

    Esta história é sobre tudo ou nada do que aconteceu nos longos meses de um Verão do fim da infância de uma menina de nove anos, Marina. Cheira ao Verão seco e escaldante de Sevilha, onde o sol abrasador queima as ruas desertas na hora da siesta. Cheira a churros, asas de frango frito, algodão doce e também a cocó, xixi, e outros odores domésticos que integram a paisagem olfativa de um subúrbio da Sevilha pós-Expo’92.

    A linguagem burlesca da narradora, a menina Marina, para descrever com densidade os usos e costumes, neste caso, de um bairro dos subúrbios do início da década de 1990, deve-se à influência literária em que o livro se enquadra, o costumbrismo. Será, por isso, muito fácil que os nascidos em meados da década anterior se sintam profundamente identificados com os programas de televisão, os desenhos animados e os brinquedos da época, como a Barbie, a Chabel ou o Nenuco.

    O ritmo oscila entre os roncos sonoros da avó, também Marina, a alegria de Diana Ross e o flamenco de Rocío Jurado. Há muitas mulheres; o tema do género está bem presente, sobretudo pela ausência dos ascendentes masculinos da menina – o pai aparece apenas uma vez. Domingo, o namorado da mãe, também Marina, é a sua única influência masculina, mais pelo que deixa à disposição para ler e arregalar os olhos, como as revistas de pornografia e o livro que lê numa piscina cheia de crianças do condomínio, “A máquina de foder”.

    Neste Verão, Marina parece obcecada com o sexo e cocó e as suas reflexões mais ou menos profundas vagueiam entre a eventual morte da mãe – doente oncológica – e as possibilidades de sentir um orgasmo, seja com outras meninas da sua idade, seja pelos filmes de terror, seja ainda pelo misterioso filme pornográfico gravado numa cassete VHS com uma etiqueta, na qual se lê “Jogo do Betis”.

    Nesta história pouco infantil, o futebol e a política lutam pelo mesmo espaço da religião. No ano em que o “charmoso” Felipe González ganha as eleições, Marina aprende a importância de ser baptizada – a primeira comunhão será o passo seguinte, mas só se for obrigatório para se integrar no grupo de meninas do bairro para onde vai viver no final desse Verão.

    É disto mesmo que o livro também trata: sobre como o processo de socialização, durante a infância, contribui para que as crianças, por intermédio dos diversos agentes de socialização (desde a família, os pares, os media, até à escola e religião, neste caso, católica), aprendam os seus papéis recorrendo a guiões, nem sempre fáceis de compreender, tão-pouco passíveis de serem alcançados pelos mais velhos que pensam que controlam… o incontrolável.

    Tudo concorre para criar confusão, desordem e sobretudo, para desenvolver a personalidade forte de uma criança precoce, inteligente, curiosa e, naturalmente, cheia de dúvidas. O monólogo vívido, detalhado sobre questões existenciais e corriqueiras, agarra o leitor mais nostálgico, mas sem melodramas.  

    É um romance divertido e jovial, enquanto toca no que parecem ser os temas mais relevantes de uma criança que questiona tudo. A sua avó, a figura mais presente e influente durante o longo e quente Verão de céu esbranquiçado, responde a tudo de igual para igual, contando as histórias dos seus casamentos – é duplamente viúva.

    Um Verão preenchido de brincadeiras, quedas, dente partido, revistas de banda desenhada pornográficas, em que o rádio e a televisão, com meia dúzia de canais abertos, são os únicos meios para ludibriar os longos minutos dos dias de Verão.

  • A História como thriller

    A História como thriller

    Título

    O esplendor e a infâmia

    Autor

    ERIK LARSON (tradução: Miguel Diogo)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Erik Larson é autor de oito livros, seis dos quais são best-sellers do New York Times. As suas duas mais recentes obras, A última viagem do Lusitânia e, este, O esplendor e a infâmia atingiram o primeiro lugar nessa lista, pouco depois do seu lançamento.

    Na capa do livro editado em Portugal, pela Publicações Dom Quixote, pode ainda ler-se que é o livro do ano para Bill Gates e Barack Obama – o que, desde logo, cria muitas expectativas. E, com efeito, a primeira coisa que se pode dizer é que o livro nos oferece um relato cativante e envolvente, que nos impele a ler esta lição de História como se de um thriller de ficção histórica se tratasse.

    Esta é uma das suas virtudes, a de contar a História, formando um mosaico de pequenas e grandes histórias de várias figuras proeminentes, como por exemplo, as de Winston Churchill, naturalmente, Frederick Lindemann (amigo e conselheiro científico de Churchill), General Pug Ismay (amigo íntimo e confidente), Lord Max Beaverbrook (chefe do Ministério da Produção Aeronáutica); mas também de figuras secundárias, como a sua filha, Mary Churchill, e John Colville (secretário particular de Churchill). Os diários destes últimos são dois dos muitos registos diarísticos a que o autor recorre.

    Este é outro dos aspectos que vale a pena destacar. Mostra-se notável o tipo e a quantidade de fontes que o autor consultou para nos narrar um dos períodos mais sangrentos para a Grã-Bretanha, durante a II Guerra Mundial, que inclui a campanha Blitz: desde o dia 10 de Maio de 1940 – dia em que Churchill é nomeado primeiro-ministro – até 10 de Maio de 1941. Foi um período marcado pelo crescente protagonismo de Churchill, até pela série de discursos que proferiu com o objetivo de dar esperança e galvanizar Inglaterra. Como é sabido, a sua oratória era magnífica.

    Além dos referidos diários, o autor teve acesso a documentos oficiais, recentemente desclassificados, a escritos íntimos e oficiosos, como cartas da mulher de Churchill, Clementine, e eminentes figuras políticas de então, bem como a diários incluídos no Mass Observation Project – um projecto iniciado em 1937, na Grã-Bretanha, e que incluía os registos diarísticos de um conjunto de escritores voluntários. O objectivo era criar uma “antropologia de nós próprios”, a fim de conhecer a vida quotidiana das pessoas comuns da Grã-Bretanha.

    O recurso a este tipo de fonte permite-nos chegar à intimidade de Churchill e da sua família, uma vez que o autor nos revela traços de personalidade e idiossincrasias de muitos dos actores e jogadores da II Guerra Mundial, nomeadamente do próprio primeiro-ministro. No final do livro, fica-se com a sensação de que se conhece o “Velho Leão” intimamente, como se se tivesse privado com Churchill, tal é o grau de detalhe do livro.

    A descrição dos muito agitados, e sempre com muitos convidados, fins-de-semana em Chequers, a casa de campo do primeiro-ministro inglês, é disso exemplo. Eram dias de trabalho e de muitas decisões, mas com jantares de gala, no fim dos quais Churchill poderia dançar nu e de charuto na boca.

    A História oficial é, assim, intercalada com a vida privada e até pensamentos e reflexões íntimas dos diversos intervenientes da II Guerra Mundial. A negociação entre Churchill e Roosevelt é bem explorada, sendo possível compreender como decorreu todo esse processo, quer oficial, quer oficiosamente.

    Note-se, porém, que os pormenores podem ser excessivos, dado que em alguns momentos sobressai uma espécie de caricatura de Churchill. Esta é uma das fraquezas do livro – o excesso de detalhe pode, inclusivamente, fazer com que o leitor se perca na História.