Etiqueta: Dom Quixote

  • Infância centrada no telefone: que desafios?

    Infância centrada no telefone: que desafios?

    Título

    A geração ansiosa

    Autor

    JONATHAN HAIDT (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Jonathan Haidt é um psicólogo social americano e professor de Liderança Ética na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque. Nascido em 1963, Haidt é conhecido pelo seu trabalho em psicologia moral e política, e a sua investigação centra-se no modo de as pessoas formarem os seus julgamentos morais. Doutorou-se em Psicologia Social pela Universidade da Pensilvânia, em 1992, tendo leccionado na Universidade da Virgínia durante 16 anos.

    Haidt ganhou notoriedade com o seu livro The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (2012), no qual explora as raízes psicológicas das divisões políticas e religiosas. Juntamente com Greg Lukianoff, publicou outra obra relevante, The Coddling of the American Mind (2018), dedicada às mudanças culturais e educacionais que, segundo os autores, estão a fragilizar a geração mais jovem.

    Com este A Geração Ansiosa (Publicações Dom Quixote), Haidt vai além das alterações culturais, demonstrando como as redes sociais, mais do que transformarem a cultura, estão a transfigurar a humanidade, desde 2010. Esta obra apresenta uma análise profunda e crítica sobre o colapso da saúde mental entre os jovens da chamada “Geração Z” (Gen Z), os que nasceram depois de 1995.

    Esta é uma leitura obrigatória para todos os pais, educadores e responsáveis políticos pela educação e saúde na infância, adolescência e juventude. Deste modo, todos serão confrontados com o seu papel no aumento dos distúrbios mentais (mas não apenas) dos jovens nascidos depois de 1995 e, sobretudo, dos que, desde 2010, têm acesso às redes sociais.

    A hipótese do autor é a de que, desde a década de 1980, temos vindo a assistir à reconfiguração da infância por duas ordens de razões: a super-protecção do mundo real por parte dos pais, devido ao que o autor designa de ‘safetism’; e a sub-protecção no mundo virtual.

    Esta grande reconfiguração da infância, transformou esta fase da vida, primordial sob o ponto de vista da socialização – enquanto processo de aquisição, aprendizagem e interiorização das normas, valores, comportamentos e atitudes da sociedade (enquanto processo de integração nos grupos sociais de que fazemos parte) –, a partir da combinação daquelas duas grandes tendências: o medo de deixar as crianças brincarem sem vigilância parental (dito de outro modo: parentalidade excessivamente protectora) e a permissão para navegarem no mundo virtual sem qualquer limitação e protecção. Desde então, passou-se de uma infância centrada na brincadeira para uma infância centrada no telemóvel (smartphone).

    O declínio da infância baseada na brincadeira tem provocado quatro danos fundamentais nas crianças e jovens: privação social, privação do sono, atenção fragmentada e dependência. Não é estranho, por isso, que a Gen Z, a primeira a crescer inteiramente na era digital, se tenha tornado, segundo Haidt, uma “geração ansiosa”, marcada por altos índices de ansiedade, depressão, auto-mutilação e suicídio.

    O autor descreve a génese e fundamenta todos aqueles danos, demonstrando, também, como as redes sociais prejudicam mais as meninas e raparigas do que os rapazes. O livro está pejado de estudos que comprovam tudo e mais alguma coisa, sendo certo que só quem não quer é que não verá o que está à frente dos nossos olhos, tão-só porque os adultos da geração de 1970 e 1980 não querem reconhecer os pais helicópteros em que se converteram. Se é de provas que precisam, basta folhear a 150 páginas de notas e referências bibliográficas, onde se encontram todos os estudos, dados e afins sobre o estado mental, as suas causas e consequências.

    A “onda gigante de sofrimento” da ‘geração ansiosa’ tem causas e estão estudadas e documentadas. Apesar do cenário preocupante, Haidt é generoso e sugere um plano de acção para reverter o marasmo em que vivemos, propondo quatro medidas fundamentais: adiar o uso de smartphones até o ensino secundário, proibir o acesso às redes sociais antes dos 16 anos, criar escolas livres de dispositivos móveis e incentivar as brincadeiras não supervisionadas durante a infância. Haidt defende que estas acções são essenciais para restaurar uma infância mais saudável e equilibrada na era digital.

    Para isso, é primordial que a acção seja colectiva. Importa que pais, educadores e responsáveis políticos se unam e coloquem em prática aquelas e outras medidas. Caso contrário, de uma infância centrada no telemóvel passaremos a ter adultos extra-terrestres, cuja ‘vida’ virtual será, provavelmente, a única que saberão ‘viver’.

    Um curto excerto (p. 187):
    Assim que os adolescentes passaram dos telefones básicos para os smartphones, tanto a quantidade como a qualidade do seu sono diminuíram em todos os países desenvolvidos. Os estudos longitudinais demonstram que o uso do smartphone antecedeu a privação de sono (…) os seus efeitos são vastos. Incluem depressão, ansiedade, irritabilidade, défices cognitivos, problemas de aprendizagem, pobre desempenho académico, mais acidentes, mais mortes por acidente”.

  • Todos nascemos loucos

    Todos nascemos loucos

    Título

    Os rostos

    Autor

    TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os rostos, originalmente publicado na Dinamarca em 1968, foi escrito por Tove Ditlevsen no mesmo período da magnífica Trilogia de Copenhaga, também é inspirado na sua vida, mas transforma o seu material em arte numa alquimia que perturba e enternece, simultaneamente. Ao longo de toda a sua vida adulta, a autora lutou contra o abuso de álcool e drogas, e foi internada várias vezes em hospitais psiquiátricos. Vimos isso várias vezes na sua outra obra e voltamos a vê-lo neste.

    A personagem central, Lise Mundus, é uma escritora de livros infantis, que não sabe lidar com o seu sucesso. Ganhou um prémio com um livro que “não considerava nem melhor ou pior do que os seus outros livros”, e é assediada por jornais e revistas à procura de opiniões de “mulheres proeminentes” sobre questões triviais (“As minissaias estão a destruir o casamento?”).  Casada e mãe de três filhos, Lise sente-se esmagada pelas expectativas e responsabilidades da vida doméstica e pela pressão da sua carreira, embora não consiga escrever nada há dois anos. Sente-se posta de parte pelo meio literário, e vive com a preocupação que, um pequeno acto de plágio cometido há muito tempo, venha a ser descoberto e que ela esteja prestes a ser desmascarada. Lentamente, torna-se numa mulher a viver um colapso mental, navegando entre a realidade e as alucinações. 

    À medida que a sua saúde mental se deteriora, ela começa a ver rostos perturbadores à sua volta, rostos que a observam e a julgam. Essas visões misturam-se à sua realidade, tornando-se cada vez mais difíceis de se distinguir numa impotência que nos arrasta a nós também. O livro procura retratar a “loucura” vista por dentro, com toda a falta de confiabilidade que tal acarreta. Lise, por exemplo, acredita que o seu marido, Gert, está a ter uma relação amorosa com a governanta, Gitte, depois de a sua amante anterior, Grete, se ter suicidado. Ela também acredita que Gitte lhe fornece uns comprimidos para dormir e a instiga a suicidar-se também.

    Os pensamentos de Lise são delirantes, mas ela acaba por tomar uma overdose medicamentosa e acaba num hospital psiquiátrico “amarrada à cama com um cinto de couro largo coberto de parafusos e parafusos“. Lise anseia por “um lugar diferente, outra realidade, onde seja possível existir”, mesmo que isso signifique uma enfermaria de hospital. Mas nem aí fica tranquila: é atormentada por vozes intrusivas e teme os rostos das outras pessoas que a rodeiam. Os rostos que Lise vê são expressões simbólicas da sua angústia interior, representando a culpa, o medo e a autopunição. Ditlevsen explora aqui a desconexão entre a identidade interna e a externa, e como essa divisão pode levar à fragmentação da mente. A mãe visita-a, mas não é simpática. O resto da família está impedido de o fazer, porque ela mantém a narrativa de que querem matá-la. Desde o início, os armários são “cavidades perturbadoras”, o céu cheira “como o hálito de pessoas que não comem” e as vozes soam como “pus de uma ferida”.

    Os rostos e as vozes (nós nunca sabemos quais são reais e quais são produto da sua loucura) continuam a atormentá-la, a ela e a nós, leitores. As descrições das alucinações de Lise são tão vívidas que sentimos a mesma confusão e terror que a protagonista. A fronteira entre a realidade e a ilusão é deliberadamente ténue, o que cria uma atmosfera de incerteza e suspense psicológico.

    Quando um médico lhe pergunta a Lise a razão para ter tentado matar-se, ela responde:

    “Eu tinha uma necessidade terrível de ver alguns rostos novos”.

    Os rostos torna-se assim uma exploração poderosa e perturbadora da mente humana em desintegração. Tove Ditlevsen, através deste romance, oferece uma representação visceral da luta pela saúde mental, escrito com a habitual clareza e honestidade brutal, apresentando uma visão perturbadora da vulnerabilidade humana e da fragilidade da mente. No entanto, diga-se que depois de se ter lido a Trilogia de Copenhaga, este romance não vem nada acrescentar de novo.

  • Destino e livre-arbítrio, humor e tragédia humana

    Destino e livre-arbítrio, humor e tragédia humana

    Título

    Jacques e o seu amo

    Autor

    MILAN KUNDERA  (tradução: Teresa Curvelo)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Duas das grandes virtudes das reedições, sobretudo quando passados já longos anos da primícia edição, é de não permitir aos mais velhos, recordando-os, corrigir o erro de terem deixado escapar sem leitura uma determinada obra, e em simultâneo dá-la a conhecer a quem não era nascido ou andava por outras andanças.

    Bastaria isso, e todas as reedições mais recentes de Milan Kundera, o grande escritor checo e Prémio Nobel da Literatura falecido no ano passado, pela Dom Quixote seria alvo de elogios. Mas talvez mais ainda se deva agradecer à editora não estar a esquecer-se das pequenas obras (de pequena) dimensão, como já foi o caso, no ano passado, de Um Ocidente sequestrados ou a Tragédia da Europa Central – com textos escritos em dois fôlegos, um em 1967, outro em 1983 – e agora com Jacques e o seu amo, uma peça de teatro, publicada originalmente em 1981, mas que é mais que uma simples obra de dramaturgia.

    Ora, no caso deste Jacques e o seu amo, eram já conhecidas diversas edições, incluindo de grupos de teatro (que já encenaram esta peça), mas todas nos anos 90 do século passado. A reedição mais recente, a quarta da Asa – agora integrada no Grupo Leya –, já com a tradução de Teresa Curvelo, já é do longínquo ano de 2005. Por isso, em boa hora esta ‘ressurreição’.

    Sendo sobretudo uma homenagem e uma reinterpretação de um clássico de Denis Diderot, Jacques, o Fatalista e o seu amo – disponível em formato de bolso numa edição da Tinta da China, com tradução e prefácio de Pedro Tamen e Eduardo Prato Coelho, respectivamente –, esta peça de teatro não apenas tem o cunho de nos divertir e nos levar a reflectir.

    Explorando os temas do fatalismo, da liberdade e da natureza do acaso. Há ne4ste encontro duas visões: Jacques, o servo, acredita firmemente que tudo o que acontece está predestinado, enquanto seu amo mantém uma visão mais céptica, mesmo perante situações análogas. Essa tensão entre destino e livre-arbítrio é um reflexo das condições existenciais que Kundera viria no seu próprio tempo. E o universo de Kundera está sempre pressente: tema do amor é constantemente revisitado, com uma abordagem oscilando entre o cómico e o trágico, um reflexo das relações humanas.

    Além de ser, pela forma como recria Diderot, uma celebração da liberdade narrativa e da inventividade literária do século XVIII – por vezes menorizada, mas que atinge um píncaro não apenas com o homenageado, mas sobretudo com Laurence Sterne, bem referenciado e apontado por Kundera no magnífico prefácio – trespassa nos diálogos uma mordaz análise às condições sociais e políticas.

    Mesmo não se tendo lido – e nem se assinala como obrigatória a obra de partida de Diderot –, diga-se que a peça de Kundera mantém a estrutura clássica dialógica e episódica de Jacques, o Fatalista e o seu amo, sendo interrompida por narrativas paralelas e digressões filosóficas com tiradas humorísticas. No entanto, Kundera também se adiciona uma camada metatextual, explorando mesmo as relações entre o autor, as suas personagens e o público, permitindo também uma reflexão sobre a liberdade artística e a censura. A obra acaba assim por ser, de igual modo, uma celebração da narrativa fragmentada e da complexidade do discurso humano, reconhecendo-se o estilo literário de Kundera, mais conhecido pelo magistral A insustentável leveza do ser (1983) e por O livro dos amores risíveis (1969, contos) e por O livro do riso e do esquecimento (1978).

    O prefácio – ou introdução a uma variação –, com data Julho de 1981 é de leitura obrigatória, sobretudo por não ser datado. Além de notas interessantíssimas sobre literatura – e a sua ‘análise’ em torno de Diderot, de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e da literatura russa –, é a visão que mostra sobre a o impacte também psicológico de uma invasão, como a da Rússia à Checoslováquia em 1968, que se mostra, e mostrará sempre, de grande actualidade.

  • A queda de um jovem discípulo

    A queda de um jovem discípulo

    Título

    Hans: sob o peso das rodas

    Autor

    HERMANN HESSE (tradução: Paulo Rêgo)

    Editora

    Dom Quixote (Abril, 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nascido a 2 de julho de 1877, em Calw, Alemanha, o romancista e poeta, Hermann Hesse, viria a morrer em Montagnola, Suíça, em 1962. Em 1946 foi laureado com o Prémio Nobel da Literatura pela sua obra, cujo tema principal está associado ao esforço que é necessário para romper com os modos e padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade, a fim de se encontrar e construir um caminho próprio e a identidade individual.

    Esse foi, aliás, um dos seus desideratos existenciais, bem plasmado em diversas obras que refletem a sua própria jornada. Razão por que parte delas se reveste de um carácter autobiográfico, como é o caso de Siddhartha (Editora Bis) e O lobo das estepes (Publicações Dom Quixote). 

    Hans: sob o peso das rodas  é claramente um romance autobiográfico, baseando-se na sua experiência enquanto aluno no seminário de Maulbronn. Como descendente de uma família de missionários pietistas, desde cedo foi preparado para seguir o mesmo caminho. Embora fosse um aluno exemplar, não conseguiu adaptar-se e abandonou o seminário menos de um ano depois – tal como Hans Giebenrath, o jovem de quem este livro narra a história.

    Hans é um jovem talentoso e dedicado que é pressionado para alcançar a excelência académica num ambiente escolar rigoroso e desumanizador – uma das críticas e lutas de Herman Hesse ao longo da sua vida. Assim é a trajetória de Hans, marcada pelo esforço para corresponder às expectativas impostas pelo seu pai, professores e pela sociedade.

    O pai, o Sr. Giebenrath, admirava toda esta aplicação, cheio de orgulho. Na sua cabeça lerda morava o ideal de muitas pessoas limitadas e insignificantes: ver crescer um ramo que, a partir do seu tronco, suba e atinja uma altura digna de ser olhada com um respeito quase inconsciente” (p. 63).

    Hans é um jovem sonhador e ambicioso, ao mesmo tempo vulnerável e sensível que acaba por ceder à tensão de um sistema de ensino exigente e elitista. Depois de ingressar no seminário, no qual muito poucos conseguem entrar após um exame para o qual se preparou abdicando da sua infância e adolescência, torna-se amigo íntimo de Hermann Heilner.

    Este Heilner era mesmo um tipo esquisito. Um entusiasta, um poeta. Já antes se admirara com o comportamento dele. Era do conhecimento geral que Heilner trabalhava muito pouco, e, no, entanto, sabia bastante; era capaz de dar boas respostas, embora sempre mostrasse desprezo por tais conhecimentos” (p. 87).

    A amizade de Hans com Heilner, um jovem rebelde, é o princípio do fim da vida académica de Hans, que se vê dividido entre a completa dedicação a uma vida exigente e, eventualmente, desenxabida, e a possibilidade de vivenciar outras experiências que lhe permitam explorar o mundo de forma mais livre e solta.

    Ao longo desta narrativa reflexiva e contemplativa, o leitor fica agarrado à transformação de Hans, um rapaz talentoso e de futuro académico promissor, que se perde e desorienta num espaço opressivo.

    Estamos perante uma narrativa poderosa e trágica que ressoará, em particular, nos leitores que alguma vez tenham vivenciado e/ou sucumbido às expectativas sociais. É um lembrete sombrio, mas necessário, das consequências de uma vida vivida sob a constante pressão para cumprir padrões externos.

    Por intermédio da sua prosa notável e introspetiva, Hesse convida a refletir sobre os valores que realmente importam na busca de uma vida plena e autêntica. As obras que se seguem como que demonstram essa busca do autor.

  • Relações vorazes

    Relações vorazes

    Título

    Mandíbula

    Autora

    MÓNICA OJEDA

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Um grupo de adolescentes de um meio privilegiado, conservador, cria uma irmandade de devoção ao Deus Branco, figura mística que simboliza o terror.

    As cerimónias livres ou ritualizadas são oficiadas num “templo” descoberto pela líder do grupo, Annelise. “Quero mostrar-vos uma coisa [… ] e desde então visitavam-no às escondidas, depois das aulas, para pintar as paredes, cantar, dançar ou não fazer nada, apenas para o habitarem durante algumas horas vazias, com a sensação às vezes frustrante, outras vezes excitante […] que pressentiam nas articulações mas ainda não sabiam explicar.”

    O erotismo perigoso, ousado, da adolescência, é invocado de forma subliminar e é sublimado nas histórias de terror, ensaios para as creepypastas, tributos literários a Edgar Allan Poe e Lovecraft.

    As adolescentes saltitam do mundo real, regulado e visceral para o mundo imaginário, secreto e com regras paranormais deslizando do universo pré-adulto para o infantil, atravessando fronteiras sensoriais e psicológicas fluidas, típicas dum estado transitório da adolescência.

    As emoções e sensações assaltam constantemente a razão: “[…] Enfim quero assegurar-lhes que não lhe estou a mentir: qualquer pessoa é capaz de distinguir a realidade dum pesadelo, ou o real do imaginário. Apenas os loucos esquecem a diferença, mas eu não estou louca. Sei o que vi. Além disso, mesmo que o tivesse imaginado, mesmo que essa aparição branca estivesse estado apenas na minha mente, porque teria de ser menos real? A minha mente existe e tudo o que ela projecta sobre o mundo também. […] Porque no fim de contas o que importa não é o real mas sim o verdadeiro.”

    Annelise, com a mandibula de tubarão na fronte, roubada do espolio de ciências naturais do colégio, uma coroa de força predatória, primitiva, metamorfoseia-se em sacerdotisa pagã.

    O triângulo de jovens mulheres, as duas ‘bestfriend forever‘, Annelise e Fernanda, e a infeliz e insegura professora Clara, partilham relações disfuncionais com as progenitoras, de diferentes expressões: indiferença, humilhação e controlo. Esse laço invisível e oculto, motor de sentimentos de vazio, abandono e perda, despoleta a traição de Annelise, o rapto de Fernanda e a loucura temerosa de Clara admiradora de Rimbaud: “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo, escreveu o poeta em Uma Temporada no Inferno”.

    O medo surge como uma vertigem de desejo e rejeição controlada pela dor e pelo risco ritualizado, uma liturgia iniciática. “Mas o medo era biológico […] e possuía um idioma sem gente”.

    A imagem poética da mandíbula simboliza a relação voraz, por vezes predadora no sentido literal e metafórico, das relações de ‘amitié amoureuse’ entre mulheres e entre mães e filhas, uma narrativa mítica de dor, erotismo e ‘dark side of the soul‘.

  • De quantos fragmentos se vive uma vida?

    De quantos fragmentos se vive uma vida?

    Título

    Os detalhes

    Autor

    IA GENBERG (tradução: João Reis)

    Editora

    Dom Quixote (Maio, 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Ia Genberg nasceu em Estocolmo, Suécia, em 1967, e começou a sua carreira como jornalista. Publicou o seu romance de estreia em 2012, Söta fredag [Doce sexta-feira]. Seguiram-se outros livros: Belated farewell [Adeus tardio] (2013) e a coletânea de contos Small comfort [Pequeno conforto] (2018).

    Os detalhes, de 2022 agora publicado em Portugal pelas Edições Dom Quixote, é o seu terceiro romance, e foi um bestseller instantâneo na Suécia, com o qual ganhou o Prémio August para melhor livro de ficção, em 2022, e o Prémio Literário Aftonbladet, em 2023. A tradução inglesa de Kira Josefsson foi selecionada para o International Booker Prize 2024.

    Este romance, elaborado a partir de quatro memórias não lineares, enquadra-se nesta sociedade pós-moderna, caracterizada pela crescente fragmentação da(s) vida(s) – para usar o conceito de Zygmunt Bauman –, cuja compreensão, ou procura desse entendimento, passa, também, por juntar os pedaços de mosaicos mais ou menos estilhaçados. É até provável que esse seja um dos motivos por que terá agradado e continua a agradar os leitores que, pese embora não encontrem um fio condutor na história, não têm como parar a leitura que se desejaria mais lenta. Pelo menos para atentar aos detalhes de cada uma das quatro personagens que a autora constrói e a partir das quais se poderia, eventualmente, compreender a essência e identidade, também, fragmentada da narradora.

    Poderia, na medida em que tal como a questão que se formula no final – “Quem é o sujeito real do retrato, a pessoa que está a ser pintada ou a pessoa que segura o pincel?” –, a dúvida persiste.

    E perdurará, possivelmente, uma vez que é por referência ao outro que nos habita, ou nos habitou, que conseguimos construir a nossa identidade, mesmo que de forma precária. A busca identitária é um dos temas latentes deste romance. O convite que a autora nos formula é, no limite, o de procurarmos, nas nossas memórias, os outros que nos fizeram ser o que somos hoje.

    O poder da memória e a sua valorização estão inerentes à condição humana. São as histórias e estórias que contamos a nós próprios que nos auxiliam a compreender e, quem sabe, a responder às grandes questões: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?

    Ia Genberg aventura-se a escavar esse artefacto humano, relembrando que a memória é volátil (como é a natureza humana) e que é, profundamente, influenciada pelo ângulo de onde observamos o passado. Neste caso, é a partir de um estado febril, recorrendo a livros oferecidos, trocados e até esquecidos.

    A evocação do passado pode, com certeza, espoletar a necessidade de o explicar ou compreender. Não obstante, a pessoa do presente reconhece que as emoções que afloram decorrem de lembranças mais ou menos imperfeitas e fragmentadas. O leito febril em que narradora se situa é, por isso e desde logo, um jogo incerto de verdade e consequência. Assim, sob o efeito da febre e da nostalgia, a narradora, uma mulher de meia-idade, revisita as suas histórias vividas com quatro pessoas/referentes que ficaram impregnadas na sua pele identitária.

    Johanna é o primeiro amor da narradora que deixa uma marca indelével na sua vida. A relação com Johanna é marcada pelo gosto divergente de autores, fomentando discussões e reflexões que acabam por gerar uma profunda ligação literária. A troca de livros, em particular, “A trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster, simboliza o vínculo intelectual e emocional que partilhavam. O facto de Johanna ser uma apresentadora famosa torna a memória ainda mais vívida, pela presença constante de uma ausência.

    Niki, a excêntrica companheira de casa da narradora durante a faculdade, desapareceu sem deixar rasto, mas as marcas subsistem, tal a sua profundidade. A convivência com Niki é retratada como uma caça interminável a objetos perdidos, simbolizando a busca por algo mais profundo na vida. A sua amizade forte, mas frágil, é ilustrada pela lembrança de um exemplar desgastado de A filha do Rei do Pântano, de Birgitta Trotzig, que restou como um vestígio da relação desfeita.

    Alejandro, um dançarino chileno-alemão, é descrito como uma tempestade que varreu a vida da narradora com um caso de amor ardente e breve. A relação com Alejandro é caracterizada por uma gravidade emocional que assusta e fascina a narradora. Embora de curta duração, a força das memórias das experiências vividas continua a moldar a perspetiva da narradora sobre o amor e as relações íntimas.

    Birgitte, a mãe da narradora, é uma figura complexa e evasiva, moldada por traumas de infância. Descrita como uma mulher à deriva, Birgitte deu à luz a narradora durante um surto psicótico, influenciando a abordagem cautelosa da narradora no que se refere à confiança e à intimidade. A narrativa de Birgitte é, talvez, a mais pungente, pelo modo como explora a dinâmica mãe-filha pela lente do perdão e compreensão tardia.

    A estrutura fragmentada do livro reflete, assim, a natureza complexa e dispersa da memória, resgatando momentos que se transformam numa prosa lírica e precisa, ao mesmo tempo introspetiva e reflexiva.

    “Os Detalhes” é um romance que requer uma leitura atenta e paciente, oferecendo aos leitores uma exploração rica e complexa das emoções humanas e das interações prosaicas da vida quotidiana. Mosaicos feitos histórias para dar substância a cada uma das vidas da nossa existência.

    “Vivemos muitas vidas ao longo da nossa vida – vidas mais breves, vidas secundárias, vidas «mais pequenas» com pessoas que aparecem e desaparecem, com amigos que nunca mais revemos, com filhos que crescem e saem de casa – e nunca sei qual das vidas minhas deve, supostamente, servir de moldura” (p. 127).

  • Há alguém que sobreviva à guerra?

    Há alguém que sobreviva à guerra?

    Título

    Libertação

    Autor

    SÁNDOR MÁRAI (tradução: Piroska Felkai)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Sándor Márai nasceu em 1900, em Kassa, então parte do Reino da Hungria (actualmente Košice, na Eslováquia), sendo considerado um dos grandes escritores húngaros do século XX. Desde cedo terá demonstrado o seu talento para a escrita, tendo publicado, ainda na adolescência, os seus primeiros poemas e contos em revistas locais. Em 1920, mudou-se para a capital da Hungria, Budapeste, onde trabalhou como jornalista e crítico literário.

    A sua obra, diversa e vasta, é constituída por romances, contos, peças de teatro e ensaios, sendo reconhecida pela profundidade psicológica – ainda que ignorada e mesmo banida na Hungria, dada a sua crítica ao regime comunista de então. O descontentamento de Sándor Márai com o regime político levou-o a sair do país. 

    Viveu algum tempo em Palermo, Itália, onde terá escrito algumas das suas obras mais conhecidas, como por exemplo, As velas ardem até ao fim, publicado pela Dom Quixote, tal como este Libertação. Posteriormente, mudou-se para os Estados Unidos, onde se suicidou, em 1989. Só então, Márai voltou a ser aclamado como um dos maiores escritores húngaros de todos os tempos. Em 1990, foi-lhe concedido, postumamente, o Prémio Kossuth.

    Em Libertação, Sándor Márai conta a história de Erzsébet, uma jovem estudante húngara, que luta pela sobrevivência durante o cerco de Budapeste, no fim da Segunda Guerra Mundial. A sua experiência é um testemunho fascinante, porque intenso, e arrepiante, porque verdadeiro, sobre o período que marca o fim da ocupação de Budapeste pelos nazis e a chegada das tropas soviéticas – a salvação?

    Sem muitas informações sobre a personagem principal e o seu pai, um cientista perseguido, e o seu namorado foragido, o cenário é lúgubre – como teria de ser uma cave fétida onde estão escondidas, talvez, centenas de outras pessoas perseguidas.

    “Talvez”, pela ambivalência referida. Como é a vida dos que fugiram com uma mala e perderam quase tudo e todos, inclusivamente a sua dignidade, para se protegerem das explosões, da destruição provocada pelos combates, do genocídio dos judeus? É uma espera, inflamada pela leve esperança de sobreviver, numa co-“habitação” frágil e que fragiliza, num espaço subterrâneo sem mais nada que tantos outros também à espera da libertação – serão, os soviéticos, os salvadores?

    A sua chegada é aguardada sem saber-se quem são afinal, se amigos ou inimigos. A incerteza que corrói e pode apagar o que resta de humanidade de quem perdeu tudo e todos.

    A entrada do primeiro soldado russo na cave é intensa; como todo o romance, aliás. O realismo verosímil torna o leitor activo na leitura. É obrigado a refletir sobre os dilemas morais com os quais a humanidade continua a deparar-se: o que é a guerra? O que acontece depois da guerra? 

    Dizemos que outras guerras, numa forma contínua de destruição da humanidade, do planeta – enfim, uma autofagia que, para o comum dos mortais, continua, também, incompreensível. Até deixar de o ser, porque certamente deixaremos de existir.

  • A censura como gatilho da demência

    A censura como gatilho da demência

    Título

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    Autora

    HANNA BERVOETS (tradução: Maria Leonor Raven)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    A cotação para este romance não é mais alta por causa do seu final. Além de nos deixar a ‘salivar’, ficamos mesmo com a sensação de que falta alguma coisa – portanto, mais spoiler que isto não é possível. Com certeza que os leitores compreenderão o referido, sendo igualmente certo que, só por isso, a curiosidade já estará estimulada. 

    O título é, desde logo, atractivo para os leitores interessados pela censura que se realiza aos conteúdos das redes sociais. No caso deste curto, mas intenso, romance, a rede social é a Hexa – mas poderia muito bem ser o Facebook, se se tratasse da realidade. Na verdade, a autora baseou-se na sua investigação sobre as condições de trabalho de moderadores de conteúdos a nível mundial, recorrendo a estudos, documentários e outras fontes – muitas delas referidas no final do livro.

    Sendo uma obra de ficção, a semelhança com a realidade é de tal modo profunda que a verosimilhança nos deixa estupefactos. Desengane-se, porém, quem pense que encontrará relatos minuciosos de violência das fotografias ou dos vídeos mencionados ao longo da história. Ainda que a visualização de todas essas imagens seja uma das causas dos distúrbios dos trabalhadores, o seu eventual e consequente desequilíbrio mental está associado às condições em que têm de realizar as suas tarefas de moderação dos conteúdos – e este é o âmago da história.

    Este romance psicológico narra a história, na primeira pessoa, de Kayleigh, uma jovem que trabalhava como moderadora de conteúdos de uma rede social, Hexa. É, portanto, uma versão pessoal, em modo confessional – uma carta ao seu advogado, o senhor Stitic –, sobre uma série de acontecimentos vivenciados e interpretados pela personagem, cuja lucidez é questionável, dadas as circunstâncias e pressão laboral em que vive.

    O seu trabalho, a aprovação ou não de conteúdos, decorre da questão diária:

    “Isto pode ficar na plataforma? E de contrário: Porque não? Essa última pergunta era a mais difícil. Um texto do tipo «Todos os muçulmanos são terroristas» não está autorizado pela plataforma, porque os muçulmanos são uma CP, uma ‘categoria protegida’, tal como as mulheres, os homossexuais e, acredite ou não, senhor Stitic, os heterossexuais. Por outro lado, a frase «Todos os terroristas são muçulmanos» já está autorizada, porque os terroristas não são uma CP e, além disso, ‘muçulmano’ não é um termo insultuoso. (…) Se selecionássemos a categoria errada, a avaliação era considerada incorreta, mesmo que houvesse razões para esse post ser removido” (pp. 18-19).

    É a sua paixão e obsessão por uma colega que desencadeia o gatilho para o colapso, que não é exclusivo da jovem. Pelo contrário, a narrativa que nos envolve de início ao fim é só mais uma evidência da crise psicológica generalizada (também pelas muitas situações de exploração e stress laboral) que se vive actualmente.

    Lido de uma assentada, este romance é uma visão muito próxima da realidade – assustadora – que, além de nos assoberbar, nos distorce ao ponto de deixarmos de questionar quem somos, para começarmos a perguntar o que podemos e devemos esconder e censurar.

    Hanna Bervoets é uma escritora e jornalista neerlandesa. Nascida em 1984, em Amsterdão, estudou Jornalismo, tendo sido colunista do jornal De Volkskrant (2009-2014), onde escrevia sobre os perigos do digital.

    Em 2020, recebeu o prestigiado Prémio Frans Kellendonk pelo conjunto da sua obra, que inclui os títulos Of Hoe Waarom, Lieve Céline (adaptado ao cinema), Alles Wat Er Was (2013) e Ivanov (2016) – que terá recebido elogios pela exploração inovadora de temas como a inteligência artificial. 

  • Um origami japonês

    Um origami japonês

    Título

    Mil grous

    Autor

    YASUNARI KAWABATA (tradução: Mário Dias Correia)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Agosto de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Esta história conta-se em duas linhas: Chikako, uma terrível e temível alcoviteira, antiga amante do pai de Kikuji, o protagonista, cria uma rede de mentiras para envolver todos os intervenientes: as jovens que ela faz questão de apresentar a Kikuji, a mãe de uma delas e os pais dele, ambos já falecidos. Tudo o resto é mestria pura do autor, uma linguagem suave, mais abstrata que descritiva, aproximando-se muitas vezes da prosa poética. 

    Outra ‘protagonista’ é a tradicional cerimónia do chá do Japão, cuja subtileza nos escapa muitas vezes por ser rica em símbolos e significados nem sempre são claros. A arte do chá, na qual Chikako é exímia, promoverá tanto aproximações quanto desencontros, sendo o pretexto que ela usa para se insinuar nas vidas alheias.

    O tradutor manteve os nomes dos objetos e dos locais envolvidos no ritual, com os termos no original. No entanto, uma nota de edição logo no início do livro, ajudam na sua compreensão.

    Os mil grous, título do livro, são também importantes na cultura japonesa: o grou, ou tsuru, é uma ave sagrada no Japão. Simboliza a longevidade, pois nas lendas vive mil anos. Diz-se que fazer mil origamis de tsurus traz a realização dos desejos. No romance, porém, os mil grous não são garantia de sorte, saúde, paz ou longevidade. As personagens não contam com as graças da ave mítica.

    Página a página, aquilo que começa com um monólogo interior de Kikuji, vai-se tornando cada vez mas denso. As suas recordações de infância trazem-lhe a memória do tempo em que Chikako esteve envolvida com o seu pai, o sofrimento da mãe a que assistiu impotente, o que faz que crie uma aversão enorme a essa mulher que, no entanto, e de forma abusiva se vai insinuando na vida do jovem, trazendo-lhe notícias que ele não pede, organizando cerimónias de chá na sua própria casa e à revelia da vontade dele. E, tudo isto, com uma contenção enorme de descrições. Cada linha de diálogo, cada descrição parecem extremamente importantes, talvez precisamente porque há tão pouco texto descritivo.

    Muito daquilo que se passa com os personagens sentimo-lo mais do que lemos. Há só pequenos indícios e pequenas pistas, num texto de uma contenção enorme que nos faz desejar mais. Yasunari Kawabata consegue uni elementos como sexo, sensualidade, luto, traição, calor e perda de valores orientais para nos contar uma história que, apesar de simples e linear, nos prende nas suas pouco mais do que 170 páginas.

  • Entre a ficção e a realidade

    Entre a ficção e a realidade

    Título

    Zuckerman libertado

    Autor

    PHILIP ROTH (tradução: Francisco Agarez)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Agosto de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Zuckerman libertado, original de 1981 e, agora, publicado em Portugal pela editora Publicações Dom Quixote, é uma obra do reconhecido autor Philip Roth (de quem falámos aqui, recentemente). Este é o segundo romance da série protagonizada pelo escritor Nathan Zuckerman, seguindo a sua jornada em busca pela liberdade pessoal e criativa (O escritor fantasma e A lição de Anatomia, juntamente com Zuckerman Acorrentado completam a série). 

    Narrado na terceira pessoa, a história passa-se em 1969, um ano depois de Martin Luther King e Robert Kennedy terem sido assassinados, com os protestos contra o Vietname como pano de fundo. É o ano em que Nathan Zuckerman está a aprender a lidar com a fama depois da publicação do seu romance Carnovsky

    A sociedade e os media perseguem o protagonista com a tentativa constante de o vincular à sua obra, altamente controversa. Quem leu O complexo de Portnoy, do mesmo autor, encontrará muitas semelhanças em relação ao enredo, às consequências e às polémicas geradas pelo efeito espelho relativamente às personagens criadas em ambas as referências. 

    Esse é, aliás, um dos grandes temas do livro. O pesadelo vivido por Zuckerman pelo facto de muitos leitores, incluindo a sua família e conhecidos, confundirem a ficção com a realidade. Ou será que é Nathan (e eventualmente Philip Roth) que, ao usar tanta matéria-prima da realidade quase em bruto, conduz os leitores a, facilmente, identificarem o escritor/autor com a personagem criada?

    Com Nathan Zuckerman, Roth explora, de forma exímia, a dificuldade em separar a vida do autor das suas criações literárias. À semelhança de Philip Roth, Zuckerman é constantemente questionado sobre o quão autobiográficas são as suas obras. Os factos – autobiografia de um escritor é disso ilustrativo.  

    “A ficção não é autobiografia, mas toda a ficção, estou convencido, mergulha as suas raízes na autobiografia” (pág. 160): excerto da recensão ao livro Carnovsky, escrita por Alvin Pepler, um admirador que persegue o escritor protagonista. Esta personagem cómica é baseada num concorrente histórico, também judeu, dos programas de perguntas e respostas da televisão dos anos 1950.  

    Zuckerman também lida com problemas pessoais, como conflitos amorosos, questões de identidade e dilemas éticos. Pode, por isso, ser um livro denso, dado o mergulho profundo na mente da personagem principal – provavelmente os dilemas existenciais por que o autor terá passado aquando da publicação de O complexo de Portnoy

    Neste fascinante e provocativo Zuckerman libertado, Philip Roth faz jus ao propósito do pós-modernismo. É quase certo que o leitor se sentirá sacudido, quase agredido, uma vez que será “obrigado” a reflectir, juntamente com a personagem, sobre a função da literatura. 

    O autor usa a própria personagem para justificar aquele intento, recorrendo a Frank Kafka, que terá escrito: “Creio que só devíamos ler aqueles livros que nos mordem e nos ferram. Se um livro que estamos a ler não nos desperta com uma pancada na cabeça, para quê lê-lo?” (pág. 212).

    A presença de Kafka na obra também poderá ser um indício da vontade que Philip Roth tem em explorar a natureza alienante da fama e do sucesso, bem como as consequências psicológicas e emocionais de se ser uma figura pública, um dos temas centrais do livro.

    A narrativa expõe, igualmente, a censura e os limites da liberdade de expressão, discutindo a responsabilidade de um escritor perante o seu público. De tal modo que o romance conflui para o momento em que o irmão de Nathan o confronta com a sua (ir)responsabilidade de “trazer tudo a público”, sem qualquer comedimento (pág. 229). 

    Numa era em que as distopias parecem tornar-se realidade, ler a obra deste escritor de origem judaica pode ser uma forma de nos alienarmos deliberadamente, nem que seja por algumas horas, de um mundo confuso e caótico.